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Bonaldo, Frederico

As 5 grandes correntes éticas ocidentais: Aula 5

ISBN:

1. Filosofia

CDD 100
__________________________________________

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SINOPSE
Na quinta aula do curso “As cinco principais correntes Éticas do Ocidente”, o
professor Frederico Bonaldo nos introduz à ética da coordenação social, corrente
preponderante nos dias atuais e que encontra em Hobbes seu principal expoente.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: as diferenças entre o
pensamento clássico e o pensamento moderno; o que é a ética da 3ª pessoa; qual o
enfoque da ética da coordenação social; o que é a moral para Hobbes, para Gauthier
e para Rawls; o que é o contrato social e como ele é estabelecido; qual o meio para
encontrar a exatidão na previsibilidade e uma coordenação social perfeita; o que é o
Estado de Natureza e o que é o Estado Civil.

Breve Revisão
Antes de nos dirigirmos ao estudo da Ética da Coordenação Social, cabe
relembrar que as cinco principais correntes da ética ocidental são: a Ética das
Virtudes; a Ética do Dever; a Ética da Coordenação Social; a Ética como Explicação
do Comportamento Humano; a Ética da Utilidade ou Utilitarismo.
Os principais expoentes de cada uma dessas correntes são, respectivamente:
Aristóteles e Tomás de Aquino; Immanuel Kant; Thomas Hobbes; David Hume;
Jeremy Bentham e John Stuart Mill.
Apenas para lembrar, a ética filosófica, a filosofia moral, tem a finalidade de
justificar, de consertar ou de dar razão aos comportamentos que os seres humanos
praticam no seu cotidiano.

O enfoque da ética da coordenação social


Hoje, estudaremos a ética da coordenação social com base em Thomas
Hobbes e em alguns de seus continuadores, ainda que não se declarem discípulos
dele.
A ética da coordenação social, desenvolvida por Thomas Hobbes, também é
nomeada de ética da colaboração pelo autor que nos serve de base para esse curso,
o filósofo italiano Giuseppe Abbà.
A ética da coordenação social não apresenta como enfoque o indivíduo ou a
busca da felicidade - sendo as virtudes o caminho para esta - como acontece na ética
das virtudes. A ética da coordenação social também não enfoca o cumprimento do
dever pelo dever, tal como em Kant, e na lei moral que existe dentro de nós, a qual
ditaria espontaneamente deveres para nós mesmos, em que ser moral corresponde
ao cumprimento desses deveres.
A ética da coordenação social visa a liberdade individual possível. Toda o
pensamento de Thomas Hobbes aparentemente visa à paz social. Contudo, na
verdade, esse não é o objetivo último, mas sim o penúltimo. O último é a liberdade
individual possível. A paz é pré-requisito para que possamos ser livres dentro do
possível. Então, toda a teoria do contrato social vai nesse sentido. É interessante que
isto fique claro deste o princípio: que o objetivo do Thomas Hobbes é o exercício da
liberdade humana, necessariamente limitada, ou seja, dentro do possível.
Thomas Hobbes nasceu no final do século 16, no ano de 1588, e faleceu no
final do século 17, em 1679.
O enfoque de sua ética para chegar nessa finalidade da liberdade humana
possível consiste na procura de regras que levem à coordenação social. Ou seja,
tentar coordenar as pessoas na sociedade, fazer com que estas vivam em paz para,
assim, cada um poder afirmar a si mesmo, o exercício da liberdade possível. Isso está
exposto de maneira mais clara no “Leviatã, sobre a matéria, a forma e o poder
eclesiástico e civil1”, escrito em 1651. Contudo, também se faz presente no livro “Do
cidadão2”, de 1647, anterior ao “Leviatã”.
Thomas Hobbes propõe uma revisão da ética aristotélica.
Aristóteles tinha uma proposta ética individual que servia, posteriormente,
como condição, como um degrau, para se fazer uma ética social, que seria, no final
das contas, uma ética dentro da pólis, uma filosofia política. Para Aristóteles, o lado
prático da nossa razão, da nossa inteligência, quer dizer, voltado para práxis, voltado
para ação, para funcionar bem, deveria basear-se em uma virtude da inteligência
chamada prudência. A prudência buscava soluções políticas verdadeiras e não
soluções políticas certas. Uma solução verdadeira é uma solução que sempre pode

1
“Leviatã” é o livro mais famoso do filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651. O seu título se deve ao
monstro bíblico Leviatã. O livro, cujo título por extenso é “Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil”, trata da estrutura da sociedade organizada.
2
“Do cidadão” é a primeira parte da trilogia planejada por Hobbes durante seu exílio na França. É composta por
três temas da natureza humana: liberdade, império e religião.
ser aperfeiçoada. A verdade nunca pode ser encontrada de maneira total. Os
indivíduos sempre encontram a verdade de maneira parcial. Por isso, sempre é
possível encontrar mais dessa mesma verdade. É possível explorar a verdade sobre
qualquer coisa. Portanto, as soluções políticas, muito complexas, são verdadeiras no
sentido de que elas são aprimoráveis. Elas não deixam de ser acertadas, corretas,
mas podem sempre melhorar. Esse é o sentido de verdade. A verdade se opõe ao
erro, mas não equivale à certeza. Aristóteles não procurava soluções políticas certas.
Ele não queria ter certeza, exatidão matemática, sobre quais regras sociais seriam
aquelas totalmente eficientes e que, portanto, seriam imutáveis, nas quais jamais
seria preciso mexer, para que a coordenação social fosse perfeita. Mas isso
pretendeu Thomas Hobbes. Não podemos esquecer que Hobbes estava inserido
dentro da modernidade, a qual tinha essa ânsia pela exatidão, ânsia pela certeza.
Essa é uma das diferenças essenciais do pensamento moderno em relação ao
pensamento clássico, que é o greco-medieval.

O pensamento clássico e o pensamento moderno


O pensamento clássico buscava a verdade, sabendo que a verdade sempre é
aprimorável, nunca é esgotável. Isto traz consigo que ainda que o indivíduo conheça
a verdade muito bem, o mundo é inseguro para ele. A insegurança sempre existe.
Na modernidade, com todas as descobertas matemáticas e físicas, tentaram
transpor para a filosofia, para o pensamento filosófico, e para o pensamento
humanístico, de maneira geral, essa mesma certeza presente na matemática pura e
na matemática voltada para a física. Quando se tratava de ética pessoal, havia o
desejo de encontrar princípios absolutamente claros cujo conhecimento pudesse
conduzir depois a soluções perfeitas, inequívocas, totalmente corretas, certas, sem
nenhum grau de insegurança. Isso também no campo político. Havia o desejo de fazer
leis que fossem conduzir a sociedade à inexistência de conflitos sociais entre os
cidadãos. Queriam a certeza, porque queria a segurança. Ou seja, não queriam a
imprevisibilidade.
No caso da tradição do pensamento clássico, a previsibilidade era algo
querido, mas dentro do possível. Ou seja, a previsibilidade possível, sabendo que não
era factível uma previsibilidade absoluta, somente uma previsibilidade parcial.
Na Idade Moderna, por outro lado, tentava-se uma previsibilidade completa.
Ciente da vigência de determinados elementos, fatores, é possível prever exatamente
o que vai acontecer no futuro, inclusive no campo político, das relações sociais.
Portanto, a razão prática aristotélica, voltada para a política, buscava a
verdade. Já a razão prática hobbesiana, buscava a certeza, justamente a certeza que
pudesse garantir a coordenação social que levava à paz, e esta, por sua vez, que
possibilitasse o exercício da liberdade individual, da afirmação de si mesmo, dentro
do possível.
Hobbes busca soluções políticas certas com base em uma racionalidade
matemático-geométrica, típica da época moderna, e também na ciência mecanicista
bastante desenvolvida por Galileu Galilei. A ideia é que se o indivíduo tem o
conhecimento de certas causas, isso permite que ele faça uma previsão
absolutamente certa, inequívoca, dos efeitos que vão derivar dessas causas, inclusive
nos campos das relações sociais. O Hobbes propugna que aos conhecermos as
paixões humanas, que seriam essas causas, seria possível predizermos de maneira
certeira, sem nenhuma sombra de dúvida, o comportamento humano que resultaria
dessas paixões. Se fizéssemos um inventário, uma coletânea, de todas as paixões
humanas e de como elas funcionam, porque estas seriam o princípio de nossas
ações, poderíamos prever quais seriam as ações e, portanto, poderíamos fazer um
cálculo de coordenação social perfeito, que levasse a coordenação social azeitada e
esta, por sua vez, levasse à paz e a paz levasse à liberdade individual.

O Objetivo da ética hobbesiana


O objetivo da ética hobbesiana é este: conhecer as paixões humanas para
saber o comportamento humano resultante delas em função da vida política, não em
função da vida individual, que era a preocupação inicial da ética clássica, da ética
aristotélica, por exemplo. É preciso fazer com que as pessoas procurem o bem na
sua vida, para serem felizes, e que, no campo social, as leis sejam justas para permitir
que as pessoas procurem o bem e alcancem a felicidade. O Hobbes não. Ele se
concentrou simplesmente na coordenação social que permita que, no fim das contas,
cada um possa usufruir, desfrutar, da sua liberdade limitada da maneira como quiser,
dentro daquela cerca de limitação que a liberdade necessariamente vai ter no Estado
civil.
O objetivo do Hobbes não era procurar a vida virtuosa, a vida excelente, mas
era evitar o Estado de conflito político-religioso, que acontecia bastante na Inglaterra
na sua época, entre grupos rivais, com a finalidade de garantir pelo menos parcelas
do chamado direito natural ilimitado de autoafirmação, que ele concebia. O direito
natural é um direito que existia no estado de natureza. No Estado de natureza, esse
direito natural de autoafirmação, de liberdade, seria ilimitado, o indivíduo teria direito
a tudo (ius in omnia). No Estado civil, depois que se faz o contrato social, esse direito
natural ilimitado de autoafirmação teria de ser necessariamente um direito civil
limitado de autoafirmação. Então, garantir parcelas dessa liberdade existente antes
do Estado civil.
O pressuposto deste objetivo da ética hobbesiana é o estado de natureza, a
figura do estado de natureza. Hobbes não afirma que o estado de natureza tenha sido
uma época histórica. O estado de natureza é um pressuposto não histórico, mas
simplesmente epistemológico, simplesmente uma construção mental para poder
justificar o contrato social que vai dar origem ao estado civil. Hobbes caracteriza esse
estado de natureza como um cenário em que todos os seres humanos se poriam uns
contra os outros, seria a guerra de todos contra todos. Todos teriam direito a tudo,
mas os bens seriam escassos, então, inevitalmente, os seres humanos entrariam em
conflito. Um procuraria devorar o outro, tal como um lobo devora sua presa. Por isso,
ele dizia que “o homem é o lobo do homem” [Homo Homini Lupus] no estado de
natureza. No estado de natureza, quem devora o ser humano é outro ser humano,
que por sua vez é devorado por outro ser humano, porque todos têm uma liberdade
ilimitada e, como consequência disso, têm direito a tudo. Contudo, os bens aos quais
eles têm direito são bens escassos, não são infinitos, então, necessariamente, não é
possível que todos tenham tudo.

As paixões conflituosas
Embora o estado de natureza seja uma pressuposição epistemológica, há
uma base empírica para ele. No “Leviatã”, Hobbes afirma que a vida humana é um
teatro de paixões conflituosas, ou seja, sentimentos que se debatem. Exemplos
dessas paixões conflituosas: o desejo de autoconservação; o desejo de
autoafirmação, de liberdade; o desejo de aquisição; o desejo de dominação de objetos
e de pessoas. Todos esses são desejos que verdadeiramente encontramos em nós.
Esses desejos se tornam paixões conflituosas quando os indivíduos dão vazão a eles,
sem procurar controlá-los minimamente. Quando minimamente controlados, não
necessariamente serão paixões conflituosas. A descrição das paixões me parece
correta, mas dizer que a vida humana é um teatro de paixões conflituosas me parece
que não é necessariamente assim, isso pode ser um exagero.
Hobbes também dizia que existe uma paixão que vai ser o início da solução
para a paz, que posteriormente vai levar à liberdade possível. É a paixão do medo, o
medo de morrer, sobretudo. O medo de ser ferido, o medo de ser humilhado, sendo
o medo de morrer, o maior de todos. O medo de morrer é identificado por Hobbes
como a paixão que faria com que saíssemos desse estado em que o homem é o lobo
do homem, da guerra de todos contra todos. Hobbes afirmava, ainda, que as pessoas
têm medo de morrer e que a morte é o que as espera na guerra de todos contra todos.
Uma vez que este medo de morrer existe, e é uma paixão muito forte nos indivíduos,
estes devem tentar se manter vivos.

As leis naturais de convivência


Para chegar a essa finalidade de mantermo-nos vivos, Hobbes estabelece
alguns meios. Em primeiro lugar, ele tenta descobrir, de maneira racional, e explicitar
18 leis naturais de convivência, derivadas desse medo da morte e do desejo de
liberdade (autoafirmação), que tanto asseguram a paz entre os homens quanto geram
vantagens recíprocas, de modo que todos teriam vantagem na convivência. Exemplos
dessas 18 leis naturais da convivência:
1) Buscar a paz: devemos privar-nos de alguns direitos, como, por
exemplo, o direito de tirar a vida alheia.
Para Hobbes, no estado de natureza, como queremos a liberdade absoluta, a
autoafirmação total de si, os indivíduos têm o direito de matar os outros. No estado
de natureza, nem o direito à vida seria um direito. O direito seria de se autoconservar,
mas não de conservar os outros. Assim, os outros não têm direito a que eu respeite
a vida deles, eles têm direito de manter a vida deles e cada um tem o direito, se for
necessário, de tirar a vida um dos outros.
2) Devemos cumprir os contratos que celebramos.
Segundo Hobbes, isso é uma lei natural da convivência já no estado de
natureza. Para ele, devemos mostrar gratidão por aqueles que cumprem os seus
contratos. Não é que devamos fazer isso de qualquer forma. Isso precisa ser feito se
queremos a paz e a vantagem recíproca. Neste caso, temos que nos mostrar gratos
àqueles que prometeram certas coisas e cumpriram suas promessas.
3) Os recursos naturais que não podem ser divididos, têm de ser
compartilhados.
Os rios, por exemplo, não podem ser divididos entre várias pessoas. Deste
modo, tem de ser uma propriedade comum.
4) Deve-se evitar o orgulho.
Deve-se evitar o orgulho desde que eu queira a paz e a vantagem recíproca,
que derivam do medo de morrer. Caso contrário, se o indivíduo desprezar o medo da
morte, não evitará o seu orgulho, mas sim dará vazão a este.
5) As disputas devem ser resolvidas por um árbitro.
Um terceiro imparcial, que possa decidir com mais distanciamento e com
menos emotividade parcial as contendas entre duas ou mais pessoas.

Hobbes segue elaborando as leis naturais de convivência, que são 18 ao todo,


as quais derivam do medo de morrer e que buscam a paz e a liberdade possível, o
desejo de autoafirmação. As leis naturais de convivência seriam o primeiro meio para
os indivíduos se manterem vivos.

O contrato social
O segundo meio para os indivíduos se manterem vivos seria o contrato social.
Os indivíduos estabeleceriam um pacto entre si. Eles pactuariam algumas regras para
que pudessem todos ficar vivos, fugindo da morte, portanto, e para que pudessem se
afirmar dentro do possível.
Este contrato social, ou pacto social, consistiria em eleger um soberano que,
por sua vez, estabeleceria leis, regras de convivência dotadas de sanções caso
fossem descumpridas, que fossem válidas não dentro de cada um, mas fora de cada
um, na convivência externa. Quer dizer, não no foro íntimo, mas no foro externo de
cada pessoa. Ou seja, regras que fossem válidas nas relações entre duas ou mais
pessoas, nas relações entre sujeitos, nas relações intersubjetivas. Essas regras, na
verdade, são as normas jurídicas, que são dotadas de sanção pelo descumprimento,
que são válidas, não no foro interno, mas na foto externa, na convivência social.
Hobbes dizia que essas leis que o soberano vai estabelecer são as verdadeiras
leis morais. As verdadeiras leis morais ou éticas são as normas jurídicas. Então, ele
identifica a ética, a moral, com a coercitividade, a obrigatoriedade e uso da força para
garantir essa obrigação de cumprimento, das normas jurídicas. Assim, Hobbes faz a
ética equivaler ao direito. Para ele, só o foro externo do ser humano é o campo da
razão prática e da ciência moral, da ciência ética. Não se preocupa com a felicidade,
não se preocupa com a intenção com a qual nós realizamos ações, toda essa
preocupação, para ele, é inútil. A única moral possível é a moral pública, a moral
estabelecida pelas leis públicas. A moral individual é a adequação às leis obrigatórias
do local onde se vive, daquela sociedade politicamente organizada. O indivíduo pode
aderir de bom grado, assentindo e concordando com as leis, ou não, pode aderir a
contragosto. Tanto faz. O importante é que o indivíduo adira às leis. Se o indivíduo
aderir, está realizando ações morais. Se o indivíduo não aderir, estará realizando
ações imorais. Nisso se resume, basicamente, o escopo, a esfera, de funcionamento
da ética hobbesiana.

A ética da terceira pessoal


Como fica a ação individual humana nesse cenário? Os indivíduos vão ser,
certamente, executores das suas ações. Neste caso, o indivíduo é somente o ator,
aquele que vai executar o papel, mas não é o compositor, não é o autor de suas
ações, pois quem as compõe é o soberano, o estado, o Leviatã, que instituiu as regras
jurídicas, as leis públicas. O indivíduo é executor de suas ações, mas não é
compositor do conteúdo delas. A autoria das ações individuais, seu conteúdo, cabe
ao soberano legislador. Esse é o típico enfoque ético da terceira pessoa. Não do eu
que decide, mas de um terceiro que decide por ele. O indivíduo simplesmente cumpre
a ordem.
Ao meu modo de ver, esta é a ética que está mais em vigor nos dias de hoje,
pelo menos no Ocidente. A única ética universal que podem valer para todos são as
leis juridicamente válidas, promulgadas e obrigatórias. Só esses podem ser os
absolutos morais dos dias atuais, que devem ser obrigatoriamente cumpridos, sem
nenhuma possibilidade de justificação de seu descumprimento. As pessoas,
individualmente, podem ter seus valores, podem ter a sua moral íntimas, mas essa
moral íntima não é compartilhável. Deste modo, ou criam-se pautas de conduta que
são as leis, que podem ser compartilhadas por todos, ou não existe nenhuma moral
universal. Do meu ponto de vista, a moral do pacto social é a moral mais aceita hoje
em dia, porque tentar descobrir o que é verdade, em relação às ações humanas, o
que é o bem e o que é o mau, tudo isso é visto como impossível. Em outras épocas,
havia todo um processo dialético, paciente, para tentar se descobrir isso. Isso porque
havia a crença na verdade objetiva. Embora ninguém fosse dono desta, ela existia.
Portanto, era preciso descobrir essa verdade objetiva, ainda que fosse parcialmente,
e sempre seria parcialmente. O avanço, na verdade, ia ser gradativo, paulatino. Hoje,
como estamos na época da pós-modernidade, que seria a época da pós-verdade, não
há verdade no fim das contas, temos que construir uma verdade, fabricar uma
verdade, pois, sem uma verdade, a convivência social simplesmente não é viável.
Isso vem da ideia de contrato social.
O Hobbes não é o único a ter uma ideia de contrato social. Posteriormente,
John Locke elaborou a sua ideia de contrato social, um pouco modificada, e Jean
Jacques Rousseau também. O primeiro, e que teve uma influência mais ampla, foi o
Thomas Hobbes.

O que é ética?
A ciência moral, a ética, consistia, para Hobbes, em desenvolver técnicas para
elaborar pactos e instituições sociais. A ciência moral deveria elaborar consensos
entre as pessoas e, a partir desses consensos, estabelecer algumas instituições
sociais, algumas pautas de comportamento dos indivíduos na sociedade. No final das
contas, isso é dizer que a ética consiste em desenvolver técnicas legislativas, técnicas
de confecção de leis, que fossem eficazes no sentido de instaurar a paz, como
condição necessária para que cada um possa ser livre dentro de certas limitações.
As leis estipuladas socialmente, por essas convenções e pelas instituições criadas, é
que, na visão do Thomas Hobbes, merecem ser qualificadas de maneira moral ou de
maneira ética, ou seja, como certas ou erradas, como boas ou más, sempre tendo
como parâmetro, como crivo, a paz e a autoafirmação, a coordenação social pacífica
e a possibilidade de que os indivíduos sejam livres, pelo menos parcialmente.
Deste modo, as ações pessoais, personalíssimas, praticadas dentro do
ambiente domiciliar não podem ser qualificadas moralmente. As únicas ações que
podem ser qualificadas moralmente são as ações no foro externo. As ações de foro
interno, portanto, não podem ser qualificadas moralmente. Um pensamento ou falar
mal de alguém pelas costas, por exemplo, não pode ser moralmente qualificado.
Somente é qualificável moralmente aquilo que possa ter uma transcendência social,
ou seja, que tenha uma característica jurídicas. Logo, há uma equivalência entre
direito e moral em Thomas Hobbes, em que a moral se reduz ao direito e não o
contrário, o direito sendo ampliado para abarcar um campo moral mais amplo.
Na ciência moral hobbesiana, também se abandona a ideia de ciência moral
como empenho individual de aperfeiçoar o próprio caráter, que era típica da moral
clássica. Em primeiro lugar, a moral consistia em aperfeiçoar o próprio caráter, tornar-
se um indivíduo melhor. Seguindo a mesma lógica do melhoramento, da
perfectibilidade da técnica, da arte, dos artifícios, das realidades, o indivíduo, ele
mesmo, é aprimorável, ele mesmo pode ser melhor. Isso é abandonado na ética
hobbesiana.
Na ética clássica, o caminho para se tornar uma pessoa melhor era a
aquisição de excelências do caráter, as virtudes. Seriam as virtudes que
aperfeiçoariam aquelas faculdades da nossa psique, da nossa alma, do nosso
espírito. As faculdades da psique, da alma, do espírito, são: a inteligência ou razão; a
vontade; sentimentos ou afetividade. A virtude responsável por aperfeiçoar a razão
seria a prudência ou a sabedoria prática. A virtude responsável por aperfeiçoar a
vontade seria a virtude da justiça. As virtudes responsáveis por aperfeiçoar a
afetividade seriam a temperança e a fortaleza. Tudo isso é deixado de lado na
proposta hobbesiana de ética.

A retomada de Hobbes no século 20


Hobbes foi esquecido durante uma época. Ele sofreu várias críticas depois da
publicação de “Leviatã”, sobretudo, e, depois, nos séculos 17 e 18, foi realmente
deixado de lado como filósofo moral, como pensador ético. No final do século 19, um
historiador chamado Ferdinand Tönnies3, voltou a estudar o Hobbes, não sendo
seguido nisto por nenhum outro estudioso. Assim, isso aconteceu de maneira isolada.
Já no século 20, Leo Strauss4, um alemão radicado nos Estados Unidos, pretendeu
reabilitar, recuperar, uma filosofia política com base no direito natural de estilo
aristotélico, sobretudo. Leo Strauss considerava que o principal rival, antagonista
desta tentativa de fazer uma filosofia política com base no direito natural, seria o
Thomas Hobbes. Strauss escreveu um livro, em 1936, chamado “The Political

3
Sociólogo do século 19.
4
Filósofo do século 19.
Philosophy of Hobbes: Its basis and its genesis5”, criticando Thomas Hobbes. E, de
maneira não querida, involuntária, a partir da publicação desse livro, houve uma
retomada histórica e filosófica do pensamento de Thomas Hobbes no século 20, com
muitos autores defendendo a visão política deste.
A retomada filosófica do Hobbes possibilitou que em matéria de ética, de
estudos sobre a moral, se mantivesse o subjetivismo de valores, como funcionava a
teoria do contrato social. Cada um podia ter os seus valores de maneira subjetiva,
incomunicável, não compartilhável, mas haveria uma moral social, que seriam as
normas jurídicas. Além disso, possibilitava que se reintroduzisse alguma
racionalidade nos juízos morais, mas a racionalidade presente nas normas jurídicas
do foro externo das pessoas, não do foro íntimo. Isso tinha sido abandonado de
Hobbes até o século 20.
Houve diversas versões na retomada da ética hobbesiana, mas em todas elas,
foi mantido o enfoque de Hobbes de que a ética consiste em uma convenção de
regras que visa à colaboração vantajosa para todos, a fim de que todos possam fazer
a auto afirmação de si mesmos. Não é que essas regras provém de uma natureza
humana, que já tem regras implícitas que são explicitadas em regras escritas. Essa é
a ideia aristotélica e depois tomista. O Hobbes afirma que as regras são fabricadas.
De acordo com ele, a natureza humana não dita, por si mesma, nenhuma regra de
convivência social, pelo contrário, ela dita regras de “in”convivência social, em que o
homem é o lobo do homem, quer dizer, todo mundo quer ter direito a tudo e os
indivíduos matam-se uns aos outros. É totalmente o contrário da visão aristotélica de
que o homem é um ser que vive na pólis, é um animal político. Essa é uma ética na
qual as regras de convivência social, de colaboração vantajosa para todos, são regras
construídas.
Então, há uma diferença entre falar de consenso em Aristóteles e de consenso
em Hobbes. Neste caso, consenso apresenta um significado diferente para um e
outro. O consenso, em Aristóteles, é disputa de opiniões na tentativa de chegar à
verdade sobre alguma questão. Uma verdade objetiva, existente, que não está
acessível de maneira fácil a ninguém. Por isso, é preciso que uma opinião lapide a
outra. A partir desse processo, estabelecem-se as regras. Esse é o consenso social

5
“A filosofia política de Hobbes: a sua base e a sua gênese”. O livro se destina a expor e a debater as linhas de
pensamento do filósofo inglês Thomas Hobbes sobre o homem, o Estado, o poder e o direito.
na ética clássica. Já na ética moderna, sobretudo hobbesiana, o consenso não é
tentar chegar à verdade, porque esta não existe simplesmente. Portanto, o consenso
é fabricar uma verdade que, por definição, é artificial, não é natural. O consenso é
fabricar um parâmetro de convivência. A única coisa que é natural é o desejo do
indivíduo de ser livre o máximo que puder. Por isso, os indivíduos tentam estabelecer
um consenso de regras que possibilite o máximo possível de liberdade para todos.
Logicamente, esse máximo possível será muito pequeno em comparação com o
desejo de liberdade e de autoafirmação existente.
Veremos versões dessa retomada, dessa reabilitação, da filosofia moral
hobbesiana. Veremos a ética como convenção socialmente sancionada através de
normas jurídicas a fim de evitar alguns males da condição humana. Depois, veremos
concretamente três autores:
1) David Gauthier: filósofo do século 20, Gauthier fala da ética como
conjunto de regras negociadas, pactuadas, que vão restringir o
interesse individual em favor da maior vantagem para todos. Assim,
segue basicamente o que diz Hobbes.
Depois, veremos dois autores que não se declaram hobbesianos, que se
declaram kantianos, mas que tem uma proposta de filosofia moral cuja estrutura é
praticamente idêntica à de Hobbes.
2) John Rawls: professor do século 20.
3) Jürgen Habermas: filósofo do século 20.

David Gauthier
David Gauthier nasceu em 1932. Canadense, ele foi professor da Universidade
de Toronto de 1958 a 1980. A partir deste ano, tornou-se professor da Universidade
de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Gauthier é declaradamente hobbesiana e
apresenta três obras principais: “The Logic of Leviathan - the moral and political theory
of Thomas Hobbes6”, de 1969. Depois, em 1986, foi publicado seu livro “Morals by
agreement7”, em tradução, “Moral mediante Acordo”, ou seja, é um acordo que cria a
moral. Em 1990, publicou “Moral Dealing - Contract, Ethics and Reason”,

6
Em tradução, “A lógica do Leviatã - A teoria moral e política de Thomas Hobbes”.
7
Neste livro, o autor argumenta que os princípios morais são princípios de escolha racional.
“Relacionamento moral - contrato, ética e razão”, uma coletânea de ensaios e artigos
que haviam sido publicados em periódicos e revistas entre 1974 e 1985.
O pensamento de David Gauthier apresenta alguns pontos principais. Um
deles é o procedimento contratual [o contrato social], responsável por estabelecer
regras de justiça que vão garantir vantagens para todos. Essas vantagens, contudo,
não são iguais. Elas dependem do poder maior ou menor que cada qual tem na hora
de celebração do contrato, do pacto social. Gauthier é bem claro ao afirmar que os
mais fortes, aqueles que têm mais poder, terão mais vantagens no acordo, no pacto
social, nas regras jurídicas estabelecidas. Esse procedimento contratual se basearia
na chamada Teoria Econômica da Escolha Racional. Quer dizer, uma transposição
de uma teoria econômica para a ciência política de maneira geral e também para o
pensamento moral. No livro “Morals by agreement”, de 1986, David Gauthier afirma
que os valores morais não são objetivos, mas, pelo contrário, são produtos das
nossas afeições, dos nossos gostos. Deste modo, tudo depende daquilo que cada um
gosta. Como os gostos são diferentes, os valores morais não terão nada de objetivo,
serão totalmente subjetivos.
Na visão clássica, para que tenhamos o contraponto, os valores morais são
subjetivos porque estão dentro de um sujeito e passam pelo filtro deste. Contudo, os
valores morais vêm de uma objetividade. A realidade é normativa, sobretudo a
realidade humana. Cada ser humano tem dentro de si uma lei natural. Esta dá
diretrizes amplas de comportamento que depois vão ser concretizadas pela razão na
hora de decidir, e vão ser mais bem concretizadas se a pessoa tiver a sua razão
aperfeiçoada pela virtude da prudência. Mas, vamos dizer assim, os valores morais
são originariamente objetivos. Depois, passam pelo filtro da subjetividade do indivíduo
e residem dentro desta subjetividade.
O David Gauthier, por sua vez, afirma que os valores morais são produtos
exclusivos das afeições de cada um, ou seja, dos gostos de cada um. Assim, ele
transfere para a ética a noção de apreço, de gosto, de afeição. Na verdade, a noção
de valor econômico, a noção de preço. A palavra preço vem de apreço. As pessoas
apreciam algo,dão um preço a algo, dão um valor a algo. Ainda, para Gauthier, os
valores morais sempre vão depender do interesse e da demanda das pessoas. Os
valores morais que terão mais espaço no contrato social, serão aqueles mais
demandados pelas pessoas, aqueles pelos quais as pessoas manifestam maior
interesse. Então, uma lógica econômica transposta para o mundo ético-social, uma
vez que o mundo ético-individual não é aqui contemplado.
O conceito de razão prática também se altera. Gauthier afirma que só é
racional, no sentido da práxis, da ação, aquilo que maximiza a satisfação dos próprios
interesses, ou seja, dos interesses individuais.
Por isso, no campo econômico, para David Gauthier, não haveria necessidade
de regras morais em absoluto, bastaria seguir as leis do mercado. Não há
necessidade de moralidade na economia. A única exceção é a seguinte: quando os
outros não me lesam economicamente, é mais vantajoso [não que seja obrigatório]
economicamente para o indivíduo não os lesar também, porque dessa maneira é
possível manter uma relação mais perdurável e de vantagem recíproca.
As regras morais seriam restrições à liberdade que permitiriam que os
indivíduos alcançassem, em alguma medida, seus próprios interesses. Basicamente,
a mesma ideia do Hobbes de liberdade possível. Alcançar os interesses próprios,
ficando restritos em alguma medida, é sempre uma situação pior do que em relação
aos nossos interesses de maneira total e absoluta. Mas é a única situação possível
em sociedade. Hobbes também já havia pensado isso no “Leviatã”.
Essas regras que serão feitas, ainda que o senso comum as qualifique como
injustas, seriam regras justas porque foram pactuadas. Aqui podemos ver a
construção da verdade, a construção da verdade moral, da verdade prática. A
construção do certo e do errado. As regras são justas simplesmente porque foram
pactuadas desta forma.

John Rawls
John Rawls é um autor norte-americano, foi professor da Universidade de
Harvard por muitos anos e também lecionou na Inglaterra, em Oxford. Ele nasceu em
1921 e morreu em 2002. Muito difundido, sobretudo seu livro seminal, lançado em
1971, chamado “Uma teoria da Justiça”8. A obra está traduzida para quase todos os
idiomas.
Seu segundo livro, “O liberalismo político”, foi publicado somente em 1993,
22 anos após “Uma teoria da Justiça”. Nessas duas décadas, John Rawls escreveu

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“A Theory of Justice” é uma obra de filosofia política e ética de John Rawls, considerada uma das obras de
teoria política mais importantes do século 20.
vários artigos, os quais foram publicados em diversas revistas, em que refutava as
críticas de outros autores ao conteúdo de “Uma teoria da justiça”. Depois, todas essas
refutações foram condensadas no livro de 1993, “O liberalismo político”. Em 1999,
Rawls publicou o livro “A lei dos povos9”.
Rawls é um liberal, no sentido norte-americano, de esquerdista. Ele não é um
conservative ou um liberal na economia, pelo contrário. Ele entende a intervenção
estatal na economia, e em qualquer assunto humano, em regra, como benéfica.
O enfoque de fundo de “Uma teoria da justiça” foi preparado em 1951, vinte
anos antes da sua publicação. Portanto, Rawls pensou muito para escrever este livro,
e, de fato, manteve intacto o enfoque de fundo do livro nas suas obras subsequentes.
A proposta do Rawls pretende ser alternativa ao utilitarismo reinante no mundo
anglo-saxônico dos anos 1960, início dos anos 1970. John Rawls nunca se afirmou
hobbesiano. Pelo contrário, de maneira declarada, explícita, diz-se adepto da visão
de contrato social elaborada por John Locke, Jean Jacques Rousseau e Immanuel
Kant, sem nunca mencionar Hobbes. Contudo, como Rawls transforma a teoria
política do contrato social em teoria moral, aproxima-se da posição do Hobbes. É por
isso que, no livro “A história crítica da Filosofia Moral”, do Giuseppe Abbà, dentro da
corrente ética do ocidente chamada Coordenação Social ou Colaboração Social, o
autor incluiu John Rawls, apesar de este não ser discípulo de Thomas Hobbes.
O pensamento de John Rawls também apresenta alguns pontos principais. O
primeiro ponto fundamental é que, para Rawls, o contrato social é somente um artifício
lógico para que os indivíduos ponham em prática aquelas intuições que todos temos
em comum acerca da justiça presentes nas sociedades liberais e democráticas
ocidentais contemporâneas.
Rawls afirmava que não pretendia fazer uma teoria da justiça ou uma teoria
político-moral para o mundo inteiro, mas somente para aqueles países que fossem
liberais, no sentido de liberal, e democráticos. Ou seja, ele elabora uma teoria que
pretende refletir o ethos, o arcabouço de valores, de práticas, reiteradas, da região
norte-atlântica do planeta: Canadá, Estados Unidos e Europa Ocidental.
Continuando: segundo as intuições comuns acerca da justiça, nessa área do
planeta, a justiça consiste em vantagens recíprocas através da coordenação social.

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O livro apresenta duas partes “A ideia da razão pública revisitada”, que descreve detalhadamente como uma
democracia constitucional moderna poderia ser vista como legítima por cidadãos que não uma doutrina
abrangente liberal.
Ou seja, as pessoas procurando colaborar umas com as outras para que haja
vantagens recíprocas. Estas vão se basear na igualdade moral de todos os homens.
Nota-se, neste ponto, o influxo da filosofia kantiana no pensamento de Rawls,
porque dizer que todos os homens são iguais moralmente é uma ideia de Kant. Kant
postula isso.
Rawls prossegue que todos os homens são merecedores de igual respeito e
consideração.
O contrato social é construído com base nessa igualdade moral e nesse
merecimento de igual respeito e consideração de todos os seres humanos. O contrato
social visa a estabelecer princípios concretos de justiça que sejam iguais para todos.
O contrato social de John Rawls recebe o nome de justiça como equidade, em
português. Na verdade, a palavra equidade foi a melhor encontrada para se traduzir
a palavra inglesa fairness. É complicado, porque Rawls chama de justice as fairness.
Em tradução para o português, tornou-se justiça como equidade. Em espanhol e nos
demais idiomas latinos, a tradução foi a mesma. O fairness é praticamente
intraduzível. Ele envolve muito mais do que dar a cada um o que é seu, nem mais
nem menos. É um pouco diferente.
Vejamos alguns elementos dessa justiça como equidade, que é o contrato
social de John Rawls:
1) Agentes racionais
São aquelas pessoas que têm desejos e objetivos, que são desprovidas de
inveja, e que não façam questão de ver realizados posicionamentos éticos
controversos.
Então, se uma pessoa quer debater publicamente os parâmetros de conduta
social, ela precisa ser alguém que não tem inveja. Ou, se a inveja estiver presente, é
preciso contê-la. Depois, se a pessoa é favorável a algum posicionamento ético
controverso como, por exemplo, ser favorável à proibição do aborto, a pessoa tem de
abrir mão de lutar por isso, abrir mão de tentar, por todos os meios, que isso aconteça
na sociedade. Neste caso, não se pode alegar a possibilidade de objeção de
consciência e muito menos o direito de desobediência civil.
Os agentes racionais são aquelas pessoas que entendem que o bem é um
desejo pessoal que tem alta probabilidade de ser satisfeito na convivência social.
2) Posição Originária
A posição originária seria a situação inicial em que os agentes racionais
deveriam se por, deveriam se situar, mentalmente, para estabelecer os princípios de
justiça iguais para todos. Todos os agentes racionais devem se considerar igualmente
merecedores de consideração e respeito. O que ele chama de imparciais. A pessoa
imparcial é aquela que considera a si mesma e aos outros merecedores de igual
consideração e respeito. Para que as pessoas sejam imparciais, considerando a si
mesmas e aos outros como merecedores de igual consideração e respeito, é preciso
que façam um artifício mental chamado de “revestir-se do véu de ignorância”. Cobrir-
se com o véu de ignorância consiste em deixar de lado, ignorar, as características
pessoais, nossas e dos outros, ignorar os acontecimentos históricos, de modo que as
pessoas consigam desconhecer a posição que ela e os outros ocuparão futuramente
numa sociedade justa.
Ou seja, a pessoa precisa esquecer se ela é rica, pertencente à classe média
ou pobre. Se ela é trabalhadora braçal ou intelectual. Quais são seus dotes naturais.
É preciso que ela se esqueça de tudo isso. É preciso esquecer que houve a primeira
e segunda guerra mundiais, que houve a revolução francesa e maio de 1968.
Dessa forma, os agentes racionais escolheriam como princípios reitores da
justiça, do social, a igualdade e a liberdade.
Entretanto, as pessoas não poderiam esquecer nunca de somente uma coisa,
porque, senão, não escolheriam a liberdade e a igualdade como princípios reitores da
sociedade. As pessoas não poderiam se esquecer das características gerais da vida
humana, como, por exemplo, de que é preciso se alimentar, de que existe o sistema
digestivo, de que existe o sistema reprodutor, enfim, todo o funcionamento da
fisiologia humana, e também da psique humana, o desenvolvimento racional. Além
disso, também não poderiam se esquecer da psicologia moral e das ciências. Então,
as pessoas teriam que esquecer de todos os fatos históricos, mas não poderiam se
esquecer das descobertas científicas.
3) Objeto da Escolha Racional
Rawls chama de objeto da escolha racional os princípios coletivos de justiça,
pactuados entre os agentes racionais, que garantem vantagens recíprocas para
todos. Esses princípios coletivos de justiça se caracterizariam por serem:
I. gerais, ou seja, não levariam em conta as particularidades de cada
indivíduo;
II. universais, pois deveriam valer para todos os indivíduos;
III. públicos, estabelecidos entre todos os indivíduos, não entre alguns
indivíduos e muito menos por apenas um indivíduo. Portanto, deveria
haver uma democracia completa, uma participação completa, absoluta,
dos sujeitos, dos agentes racionais no seu estabelecimento;
IV. devem submeter as pretensões conflitantes a um regulamento. Este
seriam as normas jurídicas, um ordenamento jurídico, as leis públicas;
V. São definitivos, são o critério máximo a que nós, indivíduos humanos,
podemos recorrer para esclarecer como devemos agir.
Rawls segue uma estrutura muito parecida com a do Hobbes, ainda que não
se diga hobbesiano.
Outro aspecto importante da proposta ética do Rawls é que, em uma sociedade
bem ordenada, aquilo que é justo, ou seja, aquilo que é pactuado, a fonte do
consenso, do contrato social, tem de se sobrepor àquilo que cada um possa
considerar como bom. Se uma pessoa considera como bom, por exemplo, que haja
transfusão de sangue para quem precisa, mas foi pactuado, porque a maior parte da
sociedade se tornou testemunha de Jeová, que isso é proibido, a pessoa tem que
considerar que aquilo que é pactuado está acima daquilo que ela considerada como
bom, ainda que seja algo em prol da manutenção da vida através de um procedimento
clínico.
Vamos ver um trecho interessante do livro “Uma teoria da Justiça”:
“Em geral, é boa coisa que as concepções que os indivíduos têm do seu bem
difiram entre si de maneira significativa.”. Rawls está elogiando que haja discordância
ética do que é bom e do que é mau entre nós. “Mas, ao mesmo tempo, isso não é
bom quanto as concepções acerca do que é justo”. Ou seja, acerca do que é
pactuado. Não é bom que as pessoas entrem em conflito sobre aquilo que já foi
estabelecido pelas leis. “Em uma sociedade bem ordenada, os cidadãos se atêm aos
mesmos princípios de justo [...]”, as mesmas leis, as mesmas normas jurídicas, aí
está para ele a moral, “[...] e esforçam-se por alcançar uma identidade de juízo nos
casos particulares.”. Quer dizer, as pessoas vão ter que concordar, de uma maneira
esforçada, com aquilo que foi pactuado, para que não haja disputas, a fim de que
todos considerem-se merecedores de igual consideração e respeito. Do contrário, se
houver conflito entre as pessoas acerca daquilo que já foi pactuado como justo, os
indivíduos acabarão entrando em conflito e, aos poucos, deixarão de se considerar
merecedores de igual consideração e respeito.
Por isso, para Rawls, tal qual para Hobbes, é importante a coordenação social.
O pluralismo das concepções do que é bom impede que se chegue a um
consenso sobre o que é o bem comum. O bem comum seria uma concepção
compartilhada do que é o bem, do que é bom. Como cada um tem a sua concepção
do que é bom e do que é mau, o bem comum é impossível de ser alcançado. Por isso
que Rawls descarta, deixa de lado, as chamadas concepções compreensivas de bem.
Por exemplo: um grupo de pessoas que compartilha de uma visão humanista que
abarca todos os aspectos da vida humana, considerando que em cada um desses
aspectos haja situações melhores ou piores. Ou, então, religiões que façam isso. Para
Rawls, essas pessoas não são aptas a participar do debate público sobre aquilo que
tem que ser pactuado como regra pública de convivência, porque têm uma visão
compreensiva de bem. Não podemos ter uma concepção compreensiva de bem. As
pessoas têm que fazer com que os princípios de justiça, as normas jurídicas, não
componham a moral como um todo, mas que sejam, esses princípios de justiça, a
única moral publicamente compartilhável. Portanto, se o indivíduo tem uma visão
compreensiva do que é bom, do que é moral, não é uma pessoa apta a participar
desse debate público. Essa moral compartilhável, através das normas jurídicas, é o
que Rawls chama de overlapping consensus, ou seja, o consenso superposto. Quer
dizer, um consenso parcialmente coincidente. Obviamente, as pessoas não
concordam absolutamente entre si sobre tudo que consideram bom. As pessoas
concordam parcialmente entre si sobre o que consideram como bom. Essa parte
coincidente é que constituirá o conteúdo de justiça como equidade, justice as fairness,
de normas jurídicas.

PERGUNTAS
1) De onde vem a ideia de direito natural e se não é errado chamarmos de direito,
uma vez que este é uma obrigação que alguém tem para com você?
A ideia de direito natural surge, com esse nome,dikaion physikon, vem dos
gregos antigos, physis é natureza, daí vem física, e dikaion é justo. Então, direito
natural. O direito natural começa na literatura grega, pode-se ver em Sófocles, por
exemplo, na tragédia “Antígona”, em que esta fala acerca da lei dos Deuses que não
está escrita, a qual é superior às leis de Creonte, o rei de Tebas. Creonte havia feito
um edito que proibia que os desertores do exército de Tebas fossem enterrados.
Esses desertores teriam que apodrecer ao relento se viessem ao morrer. Antígona
evoca a lei dos Deuses não escrita.
Posteriormente, vemos isso surgir com a tríade de filósofos mais importantes
da Grécia Antiga, composta por Sócrates, Platão e Aristóteles, sobretudo por este
último. Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles caracteriza muito bem o que seria justo por
natureza e o justo por convenção, justo por acordo. O que seria justo por convenção
dependeria daquilo que fosse justo por natureza, não poderia violar aquilo que fosse
justo por natureza. Na verdade, a ideia de justo natural ou direito natural vem de outra
noção que é mais ampla, que é a noção de lei natural. Quem explica isso de maneira
mais pormenorizada é Tomás de Aquino, no século 13. Tomás de Aquino afirma que
a lei natural é uma participação do ser humano na lei eterna. A lei eterna é a lógica
com a qual Deus governa o universo que ele criou. Deste modo, a participação do ser
humano nessa lei eterna chama-se lei natural e esta tem algumas diretivas, algumas
normas muito amplas nela embutidas. A primeira seria a de autoconservação. A
segunda seria de perpetuação da espécie humana. A terceira seria de conhecimento
da verdade e a última seria de estabelecimento de amizades, de convivência social.
Então, o ser humano teria ínsito, em si, dentro de si, quatro diretivas básicas:
preservar a própria vida e a própria integridade física; dar continuidade à sua espécie;
procurar conhecer a verdade sobre o mundo, da maneira mais profunda que puder;
estabelecer amizades da maneira mais extensa e mais profunda que puder também.
Dentro disso, dessas quatro diretivas, vemos surgir uma série de coisas que são
justas para cada ser humano. Por exemplo, o direito à vida, vem dessa diretiva, dessa
ordem natural, de o indivíduo conservar a sua própria vida. O direito à integridade
física tem essa mesma origem. O direito a compor uma família vem da diretiva de
perpetuar a espécie humana. O direito à educação vem da diretiva de conhecer a
verdade. O direito de livre associação, o direito, também, ao casamento, vem dessa
diretiva de estabelecer amizades.
Um direito, no sentido de liberdade para agir de determinada forma, sempre
vai implicar um dever para outra pessoa. Essa correlação de direitos e deveres é
pouco lembrada, mas, de toda forma, é algo existente e é assim que funciona.
Outro aspecto interessante de mencionar é que a defesa que Tomás de Aquino
faz dessas quatro diretivas é de que elas são objetivas. Ainda que as neguemos, elas
existem dentro de nós. Ou seja, ela faz parte da essência humana. Quem tiver
humanidade, quem for ser humano, as terá necessariamente. No entanto, elas podem
assumir feições diversas ao longo do tempo.
Pensemos no casamento regulado juridicamente, socialmente. Quando um
homem e uma mulher vão se casar, eles vão constituir uma família nova, uma
sociedade familiar e além de terem uma série de pré-requisitos para que a união
funcione, como, por exemplo, que se gostem e estejam dispostos a ser leais um com
o outro, etc., outro requisito é que se empenhe o que tem de patrimônio para o bom
andamento daquela nova sociedade familiar constituída. Hoje em dia, não temos mais
a figura do dote. No código civil vigente hoje, promulgado em 2002, não temos mais
a figura do dote. O dote era o dinheiro que a família da noiva deveria dar ao noivo. No
código civil de 1917 do Clóvis de Beviláqua, o dote ainda existia. Porque naquela
época a maior parte das mulheres não trabalha fora. As mulheres trabalhavam
somente dentro de casa. Como a mulher não tinha renda própria, era necessário que
ela contribuísse economicamente com a sociedade que ela estava constituindo junto
com o noivo, que tinha se tornado marido, com algum dinheiro. De onde poderia provir
esse dinheiro? Da família dela, em princípio, ou de alguma outra pessoa que quisesse
doar. Mas tinha que ser apresentado um dote, a não ser que o noivo renunciasse a
esse direito. Hoje em dia, a maior parte das mulheres trabalha. Não é mais necessário
que peçam dote para o pai ou para a mãe, pois elas têm as suas receitas próprias
provenientes do seu trabalho.
Na medida em que há uma mudança tecnológica, técnica, das coisas, os
direitos e os deveres que temos vão se configurando, vão ganhando novas
configurações.

2) É possível que um indivíduo consiga se aprimorar moralmente, a partir de uma


visão agnóstica da realidade? Se o indivíduo tem uma visão agnóstica da
realidade, ele não estaria incorporando uma moral judaico-cristã para um fim
que é o aperfeiçoamento da convivência, em última análise?
O agnóstico é aquele que professa não saber se Deus existe ou não, vive como
se este não existisse. Na prática, ele não pensa em Deus. Agora, vamos analisar isso
historicamente, a partir de dados concretos. O primeiro a falar de virtudes cardeais,
de aperfeiçoamento do caráter, foram os gregos. Mas também, antes deles, o próprio
confucionismo afirmava o mesmo. Então, havia uma religiosidade nessas civilizações,
mas, por exemplo, se pegar “Os analectos”, de Confúcio, não faz muita referência a
Deus ou a alguma divindade. A “Ética a Nicômaco” também não faz muita referência
a um ser transcendente. Tampouco, diante da dúvida, afirmam se esse ser
transcendente existe ou não. Parece que dão por assentado que existe, mas não
estão a todo momento fazendo referência a ele. Então, o agnóstico pode chegar a ter
uma postura intermediária, no sentido de não saber se Deus existe ou não, mas estar
convencido de que precisa agir bem, de que existe algum parâmetro de bem e de
mal. Ele não sabe determinar se isso vem de Deus ou da própria evolução biológica
do mundo ou do ser humano, pode ser uma ética biológica, uma evolução ética ligada
à própria fisiologia humana, mas ele entende que tem que ser uma pessoa leal, veraz,
que não minta. Esse agnóstico pode reconhecer essa obrigatoriedade de agir para
com os outros, mesmo na convivência familiar ou entre amigos, pouco social, por ser
algo que lhe impulsiona. Em princípio, é possível que haja agnóstico que reconhecem
esses valores. No entanto, de fato, nossa vida, normalmente, nosso dia a dia,
apresenta uma mistura entre os momentos felizes e dramáticos, problemáticos.
Nesses momentos dramáticos, normalmente temos dilemas morais, se devemos ou
não fazer algo. Diante dessas situações, pode faltar o estímulo do transcendente.
Neste caso, os indivíduos podem tomar a decisão errada por falta de recorrer ao
transcendente.

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