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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE


SOCIEDADE DO LIVRO
“RETÓRICA ENTRE A VOZ
E O OUVINTE”
COM PROFESSOR MARCUS BOEIRA

SUMÁRIO

Sinopse .............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. 3

Aula 1 — Górgias, de Platão ...................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 4

Aula 2 — Retórica, de Aristóteles ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 27

Aula 3 — Tratado da Argumentação: A Nova Retórica ................................................................................................................................................................................................................................................................. 47

Aula 4 — Conclusão .............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. 66


SINOPSE

Retórica é a arte de se comunicar de forma assertiva

e persuasiva. É saber expressar as ideias de maneira clara e

organizada, para que o ouvinte compreenda a voz que recebe do

interlocutor. Além disso, o estudo da retórica permite a ordenação

e método ao pensar, ou seja, nossos pensamentos se tornam

mais claros. A partir de três grandes obras fundamentais, “Górgias

(ou Da Retórica)” de Platão, “Retórica” de Aristóteles e “Tratado

da Argumentação: A Nova Retórica” de Chaïm Perelman e Lucie

Tyteca, estudaremos alguns aspectos básicos relativos aos meios


de persuasão e a composição do discurso.

BONS ESTUDOS!
AU L A 1

GÓRGIAS, DE PLATÃO
Hoje trabalharemos um livro muito importante não somente para

o pensamento platônico — em particular para um gênero específico de

temáticas situadas dentro dos diálogos platônicos, que é o problema do

discurso e da argumentação — mas sobretudo porque esta obra é de uma

importância universal para a história da filosofia. Eu me refiro ao diálogo

Górgias de Platão. A edição que usaremos é a publicada pela Editora

Perspectiva, com uma tradução do grego para o português muito bem

feita pelo Daniel Lopes, que respeita os sentidos. O objetivo deste encontro,

portanto, é o de trabalhar algumas noções fundamentais da assim chamada

ars rhetorica (a arte retórica).

Quando nós pensamos na retórica, normalmente lidamos com um

tipo de discurso que tem em vista o emprego de métodos persuasivos.

Ou seja, um tipo de discurso cuja pretensão aparente é o convencimento

do receptor acerca de algum objeto sobre o qual o emissor pretenda

convencer o receptor. A grande questão é que o contato com a arte retórica

nos leva a inúmeras especulações a partir de uma primeva informação. Ou

seja, se a retórica é um tipo de discurso que visa à persuasão, há pelo menos

três questões que ficam evidentes a partir dessa primeira constatação:

(1) Quem está falando, quem é o rétor, aquele que fala com o

objetivo de persuadir o interlocutor.

(2) Qual é o destinatário do discurso, aquele que será convencido

ou persuadido pelo discurso empreendido pelo emissor.

(3) Qual é o objeto do discurso retórico.

Quem fala, para quem fala e do que fala? Estas três perguntas

definem e delineiam o horizonte do discurso retórico e seu emprego num

diálogo e mesmo numa comunicação pública.

Em Protágoras, um outro diálogo, Platão nos diz que existem pelo


menos duas formas de averiguar a exposição pública de um discurso. É

o que normalmente chamaríamos de performance. Ao olhar para aquele

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que fala, nós o sondamos considerando pelo menos duas acepções

dessa performance. Os gregos chamavam isso de epideik-, de onde vem

epideictic ou epideixis, ideia segundo a qual aquele que fala o faz como

se exibisse uma certa arte performática capaz de transformar o horizonte

cognoscitivo daquele que escuta. Essas duas formas são, respectivamente,

o mito e o raciocínio.

As diferenças entre a exibição de um mito e a exibição de um

raciocínio consistem precisamente em assumir que, nesta segunda

forma de exibição, não há exatamente o que chamaríamos de diálogo,

mas uma pretensão de um compartilhamento universal dentro de uma

demonstração. Por exemplo, se por meio de um raciocínio eu digo que dois

mais dois é igual a quatro, a única reação que vocês terão é a de aceitar o

que afirmo, não porque sou eu a dizer, mas porque o objeto do discurso é

universalmente válido do ponto de vista lógico-matemático.

Outra maneira de averiguar a performance, de entender o modo de

exibição daquele que declara algo, é precisamente tomá-lo não naquilo

que compete à ciência e ao conhecimento certo do objeto do discurso, mas

no que implica uma probabilidade ou mesmo alguma verossimilhança. O

mito desempenha bem essa tarefa. Quando um mito ou algum argumento

mitológico é exibido, aquele que escuta poderá interpretar essa narração de

diferentes formas, dado que o que está sendo narrado contém uma espécie

de característica simbólica, que transforma esse discurso em um de matriz

universal.

Quando lidamos com esse modo de exibição, normalmente seu

veículo na comunidade de interlocutores pode assumir duas acepções

diversas mas de algum modo complementares. Uma primeira é a que

apresenta algum argumento por probabilidade e induz o interlocutor

a compartilhar aquela tese de algum modo. Obviamente que, devido à

inexistência de um grau de certeza nesse caso, é possível que o ouvinte

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do discurso possa confrontá-lo com outra percepção, formando assim

uma espécie de diálogo cujas oposições se sustentam em tese e antítese.

Quando falamos nesse tipo específico de diálogo, estamos nos referindo ao

que os antigos chamaram dialética.

A dialética consiste precisamente em assumir no discurso certa

capacidade de demonstrar probabilisticamente o que se quer, levando-se

em conta sempre uma possibilidade de refutação, de antítese. Na dialética

lidamos com discursos pequenos, com respostas mais curtas, com aquilo

que os gregos chamaram brakhulogos. Ou seja, uma espécie e um tipo

especial de discurso breve que tem em vista uma exposição curta de uma

resposta que não exige outros aditivos senão o enfrentamento do tema,

com o propósito de uma solução mais próxima da certeza.

Diferente é o caso da retórica. No discurso retórico, a necessidade de

mostrar outra alternativa supõe sempre um nível menor de probabilidade,

nível este que chamaremos doravante verossimilhança. Como a retórica

lida com a verossimilhança, ela supõe um discurso usualmente maior

do que o discurso dialético. Para dar conta da verossimilhança, eu sou

impelido a ornamentar meu discurso com outras técnicas argumentativas,

outras expressões e o uso de certos cadinhos linguísticos e eventualmente

musicais, para conferir à minha exposição um ornamento que seduza o

receptor da mensagem. Essa atividade de adornar o discurso era muito

usual em uma classe social específica no tempo de Platão e de Aristóteles:

a classe dos sofistas. Um dos maiores sofistas de Ática foi Górgias.

Górgias, de herança siciliana latina, mas que fez muito sucesso na

Ática, é o objeto desse diálogo em que Platão, ao endereçar-se a ele, propõe,

como pano de fundo, tratar e lidar com essa arte que visa à persuasão.

Mas em Górgias existem cinco personagens principais: o próprio Sócrates

— personagem principal de todos os diálogos platônicos —, seu discípulo

Querofonte, Górgias e seus discípulos Pólo e Cálicles. Já no início do diálogo,

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Sócrates justifica um atraso, pois ele aparece no momento em que Górgias

já havia falado aos seus alunos a respeito da retórica e de outros temas

correlatos. Para justificar o atraso, Sócrates diz que ele e Querofonte tinham

ficado mais tempo do que queriam na Ágora (esfera pública), onde estavam

antes de chegar para o encontro com Górgias.

Górgias é endereçado justamente para que Sócrates pudesse

mostrar as insuficiências da tese de Górgias e de seus dois discípulos acerca

de qual é o objeto adequado do discurso retórico e de que tipo de gêneros e

espécies de atos humanos a retórica deve tratar. Por esse motivo, podemos

dividir o diálogo em três grandes partes.

Na primeira parte, Sócrates dirige a Górgias uma série de perguntas


no sentido de lhe pedir que esclareça o que é a retórica. Górgias apresenta

três respostas em graus diferentes de satisfação: a primeira é plenamente

insatisfatória, a segunda é menos insatisfatória e a terceira, embora exponha

bem suas razões é, todavia, uma resposta que, para Sócrates, continua sendo

insatisfatória. Para sopesar a suposta humilhação pela qual passara Górgias,

os seus dois discípulos entram em cena e tentam defender o ponto de vista

de seu mestre e os seus próprios, buscando com isso contrastar dois tipos

específicos de filosofia política e moral subjacentes ao discurso retórico.

Pólo é o primeiro discípulo com quem Sócrates mantém, na segunda

parte, um intenso debate sobre o objeto da retórica e a estatura moral de

quem a pratica. A terceira e última parte é constituída pela interlocução

específica entre Sócrates e Cálicles. Dos discípulos de Górgias, este é quem

se apresenta de forma mais radical e ao mesmo tempo mais irritadiça

com Sócrates, como é notável ao longo do diálogo. Em alguns momentos,

Cálicles até namora com a violência dado o seu grau de irritação.

Coisa curiosa, porque, através de Sócrates, Platão começa

estabelecendo uma distinção radical, que será decisiva no desfecho do

diálogo, entre a experiência e a inexperiência. A experiência humana tem

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como guia de orientação o que os antigos chamavam de techné e os latinos

de ars, arte. Isto é, uma virtude intelectual que leva alguém a produzir algo,

seja uma produção externa por si (por exemplo, alguém produz um vaso ou

uma peça), seja uma produção interna que pode se dar no corpo (a ginástica

e a medicina produzem um corpo são), ou mesmo uma produção na alma

(o aumento da inteligência por meio de certas artes chamadas liberais).

A arte, portanto, é aquilo que guia e orienta a experiência humana, que,

desprovida de arte, gera a inexperiência — isto é, a negação da experiência

— e terá como resultado o acaso. Entre a arte e o acaso emerge a aquisição

da experiência por meio de uma ordenação a certos fins. Sendo assim,

com qual fim o rétor lida? Qual é no fundo a finalidade do emprego da arte

retórica? O que exatamente pretende aquele que tenta persuadir o outro a

acolher a sua tese? Essa é a questão aqui presente.

Em Górgias, desde o início, existe um contraste entre aqueles que

usam a retórica como instrumento para a aquisição de maior poder, riqueza,

domínio e satisfação dos próprios prazeres e aqueles que a empregam

buscando a verdade, ainda que ela não possa ser alcançada totalmente.

Há, portanto, de um lado, a retórica usada como instrumento de poder e

domínio e, de outro, como meio para a aquisição do bem, da verdade e,

por que não, da beleza. Górgias, Pólo e Cálicles estão entre aqueles que

empregam a arte da persuasão para acumular poder e domínio, ao passo

que Sócrates, e mesmo os seus discípulos, como Querofonte e o próprio


Platão, têm em vista o bem ou o supremo bem relativamente aos atos

humanos.

A diferença entre essas duas noções sobre o que seja retórica aparece

no texto quando se estabelece, de um lado a negação da retórica — ou o

que os antigos chamavam de erística, isto é, o uso da arte persuasiva para

fins utilitaristas ou interesseiros —, e, por outro lado, a retórica propriamente

dita, que, embora não chegue à certeza e à verdade em sentido absoluto,

como a demonstração e a matemática, tem a pretensão de perseguir o bem

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acima de tudo, o que implica negar a própria inclinação para o domínio e o

prazer. Como a erística e retórica aparecerão no diálogo?

Comecemos mostrando no próprio texto como Sócrates contrapõe

as posições de Górgias e o põe contra a parede para tirar dele uma resposta

menos evasiva, menos encomiasta e mais diretiva a respeito do que é a

retórica. Vamos portanto ver como Sócrates fez isso. Vou convidá-los a lê-lo

comigo. Observem no trecho a seguir como Sócrates dirige a pergunta a

Górgias e o tipo de resposta que um sofista dá — e aqui estamos talvez

diante do maior sofista de seu tempo.

Sócrates: Dize-me então: dentre essas, a respeito de quê? A que coisa

concernem esses discursos empregados pela retórica?

Górgias: Às melhores e as mais importantes coisas humanas, Sócrates.

Sócrates: Mas, Górgias, é controverso e ainda obscuro o que dizes.

Creio que já ouviste nos banquetes homens entoando aquele canto

em que enumeram, quando cantam, as melhores coisas.

O que Sócrates está querendo saber não é exatamente a qualidade

da arte da persuasão, e sim o que é a retórica. Portanto, ele vai questionando

e pari passu colocando Górgias na parede. No primeiro momento Sócrates

pergunta e Górgias, como todo bom sofista, usa uma hipérbole para
justificar sua posição, que no fundo o envergonha. Ou seja, ele se sente

constrangido de dizer claramente sua posição, porque teria de assumir que

de fato utilizar a retórica como um instrumento de domínio e poder sobre

os outros. Essa vergonha de si mesmo o leva a usar de outros subterfúgios

para mascarar qual é sua real pretensão.

Mas Sócrates alimenta o debate e levanta uma segunda questão.

Notem a “paulada” que Górgias leva e como ele se sai da situação:

Sócrates: Vai então, Górgias, considera como se tivesse sido perguntado

por eles e por mim1 e responde que bem é esse que afirmas ser o

1  Ou seja, não só por Sócrates, mas por todos os alunos de Górgias

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maior bem para os homens e cujo artífice és tu!

Górgias: Aquele que é, Sócrates, verdadeiramente o maior bem e a

causa simultânea de liberdade para os próprios homens e, para cada

um deles, de domínio sobre os outros na sua própria cidade.2

O que está por trás da resposta de Górgias é: Faço isso porque quero

dominar os outros e quero dominar os outros porque quero ter mais poder.

Só faltou dizer isto.

Mas Sócrates não cede e leva a discussão adiante, tão adiante, que

impelirá Górgias a assumir sua real intenção de maneira mais explícita:

Górgias: A meu ver, ser capaz de persuadir mediante o discurso os

juízes do tribunal, os conselheiros no Conselho, os membros da

Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reunião que seja

política.

Sócrates: Agora sim, Górgias, tua indicação parece-me muito mais

propínqua a qual arte consideras ser a retórica, e se compreendo

alguma coisa, afirmas que a retórica é a artífice da persuasão, e todo

seu exercício e cerne convergem a esse fim.

No entanto, a grande questão ainda não foi resolvida. Por ora, estamos

entre quem fala e quem ouve, mas o objeto propriamente dito, o objeto
em si da retórica, foi apenas superficialmente tocado. Resta saber qual é o

objeto da persuasão. Continua Sócrates com a mesma pergunta:

Sócrates: [...] Não deixarei de perguntar a ti que persuasão provém

da retórica à qual te referes e a que coisa ela concerne. [...] “De qual

persuasão e persuasão concernente a que a retórica é arte?”

Por que a retórica é uma arte? A que tipo de experiência humana ela

conduz? Estas são as questões que estão por trás das perguntas de Sócrates.

E o próprio Sócrates usa desse artifício semântico no seu empreendimento

maiêutico de contraste entre ele e os interlocutores.


2  A palavra no grego para domínio ou poder é archein e para liberdade é eleuthería. Liberdade aqui não é no
sentido moderno. Significa uma liberdade política de dominar os outros. Portanto seria um arbítrio.

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Sócrates: Responde então, Górgias, visto que também a ti parece

justo?

Ou seja, o que é o justo nisso tudo? O que é, para Górgias, a persuasão

em si? E por que nas assembleias ela é endereçada aos interlocutores tendo

em vista alguma coisa? Ao que Górgias responde:

Górgias: Pois bem, refiro-me a esta persuasão, Sócrates, à persuasão

nos tribunais e nas demais aglomerações, como antes dizia e

concernente ao justo e ao injusto.

Neste ponto do diálogo, chegamos a outro conceito muito importante.

Se a retórica tem em vista o justo e o injusto, qual é o tipo de justiça e qual é

a concepção que deve ser adotada por aquele que emprega a arte retórica?

Esta é a pergunta que pautará todo o pano de fundo do diálogo.

Por vergonha, Górgias de alguma forma mitiga a respeito de suas

reais intenções, afinal de contas ele é um sofista. Mas Sócrates, quase

que num ato de revanchismo, vai espremer Górgias, levando-nos a uma

constatação muito interessante. Toda persuasão pretende de alguma

maneira infundir alguma coisa no interlocutor. Quem persuade, persuade a

respeito de algo. E persuadir a respeito de algo implica colocar lá dentro da

mente do receptor do discurso, alguma coisa. Por conseguinte, existem pelo

menos duas formas de persuasão: aquela que infunde o conhecimento em

si e aquela que infunde uma aparência de saber, a qual os gregos chamam

doxa, ou opinião. Aquele que emprega a arte retórica pretende infundir ou


o conhecimento ou a aparência de conhecimento, ou um saber genuíno e

verdadeiro ou um saber aparente. E é justamente a esse reconhecimento

que Sócrates conduz Górgias, perguntando:

Sócrates: Qual é, então, a persuasão que a retórica produz nos tribunais

e nas demais aglomerações, a respeito do justo e do injusto? A que

gera crença sem o saber ou a que gera o saber?

Górgias: É deveras evidente, Sócrates, que aquela geradora de crença.

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Se é assim, então é obvio que a retórica, segundo Górgias, tem

em vista um conjunto de interlocutores desprovidos de maior ciência ou

conhecimento a respeito do objeto sobre o qual se fala. Ou seja, para os

sofistas, a arte da persuasão — no caso a erística — destina-se a um auditório

de ignorantes, de pessoas que não têm condições de adentrar na ciência do

próprio objeto.

Vejamos uma interpretação que Sócrates faz a respeito da posição

de Górgias:

Sócrates: Assim, no tocante a todas as demais artes, o rétor e a retórica

se encontram na mesma condição, a retórica não deve conhecer

como as coisas são em si mesmas, mas descobrir algum mecanismo

persuasivo de modo a parecer, aos ignorantes, conhecer mais do que

aquele que tem conhecimento. [...] Ignorando as próprias coisas, o que

é o bem e o que é o mal, o que é o belo e o que é vergonhoso, o que é

justo e injusto, mas tramando a persuasão a respeito delas de modo

a parecer conhecer, mesmo ignorando, em meio a quem é ignorante,

mais do que aquele que conhece?

Em outras palavras, Sócrates foi colocando Górgias contra a parede

até levá-lo a assumir a sua real intenção no uso da erística — que é a negação

da retórica —, compelindo-o a declarar que a finalidade da suposta retórica

seria não o bem em si, mas justamente a aparência do bem, cuja intenção

subjacente é o seu domínio, o seu poder e o seu interesse.

A partir da desistência de Górgias, Sócrates faz uma espécie de

análise da retórica e do lugar adequado de emprego dela. Ele usa então

uma superfície de contrastes para mostrar que existem artes atinentes

ao corpo, que levam ao bem do corpo, como a ginástica e a medicina, e

artes que correspondem à alma, cujo fim é um experimento da alma em

si mesma considerada, como a atividade do intelecto e de suas operações

(a memória e outras faculdades espirituais do ser humano). E assim como

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nas artes relativas ao corpo o que se pretende é a conservação e a saúde do

próprio corpo, nas artes concernentes à alma, o que se pretende não é outra

coisa senão a busca incessante do supremo bem mediante uma oposição

consciente entre o bem em si e o bem aparente, entre o bem aparente

que se contenta com a superfície do discurso retórico, cuja implicação é

sempre um elogio ou um vilipêndio contra quem se dirige, por um lado,

e o supremo bem que requer uma ordenação interna da alma do rétor,

daquele que empregar o discurso retórico, por outro. Por conseguinte, o

lugar adequado para essa relação é a política e a economia.

Talvez vocês se escadalizem com o uso da expressão “política”.

Contudo, eu a emprego neste momento em sua noção semântica clássica

de bíos politikós. Para os gregos, o ser humano era um animal racional, um

animal político. Ser um ser vivo político implica dizer que o ser humano é um

tipo de animal que, dotado de intelecto (razão), vive em comunidade, e não

pode abdicar desse modo de vida, pois é na comunidade, e não em outro

lugar, que ele compartilha uma variedade de formas de vida e de existência.

Porque compartilha certos bens e os observa de diversos ângulos, muitas

vezes o ângulo pelo qual ele capta e intelige os bens o coloca em um lugar

distinto do outro que pode estar mais distante ou mais próximo do bem.

Por existir essa diferença de ângulos e posições relativamente aos bens ––

alguns estão mais próximos e outros mais distantes do supremo bem –– o

modo como o emprego do discurso retórico, por aqueles que estão mais
próximos ou mais distantes, irá variar também o modo como essa ordenação

interior do rétor, daquele que emite o discurso retórico, terá ou não um nível

maior de credibilidade. Em outras palavras: aquele que perseguir o bem

de maneira mais incisiva na sua própria vida e emitir discursos retóricos,

persuasivos, tentando convencer a comunidade a compartilhar esse bem,

procederá assim por uma reta intenção, ou seja, uma intenção baseada na

amizade e na justiça. Amizade, porque existe um amor pelo outro e o bem

compartilhado é vivenciado por quem diz e por quem ouve; e também será

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justo porque o emissor do discurso tem a noção exata do que é o bem de

si e o bem do outro e não excederá o limite adequado do seu bem e do

bem do outro. Por isso, aquele que emprega a retórica como instrumento

do supremo bem, tem por fim o bem do outro; ao passo que aquele usa a

aparência da retórica, isto é, a erística, como um instrumento de poder e

domínio, tem apenas uma ciência aparente do que é o bem e, no fundo,

sua principal intenção será a maximização do seu poder e, portanto, a

maximização do seu domínio sobre os outros.

Com Pólo, discípulo de Górgias, Sócrates estabelece um profícuo

debate para saber exatamente do que se trata a justiça que deve marcar a

qualidade moral do rétor e a qualidade moral (ou não) do sofista, uma vez

que a sofística se opõe à legislação, assim como o mau uso da retórica se

opõe à justiça. Se, por um lado, o sofista busca a maximização do próprio

poder e domínio e, portanto, dos próprios prazeres e interesses pessoais

contra os interesses da pólis, e, por outro, a idéia de lei (nomos) — lembremos

que para os gregos a lei é um instrumento do justo político —, sempre

conduz ao bem comum, então onde se situaria a retórica aqui? Ao lado da

justiça e da lei, porquanto a retórica, como arte persuasiva que é, deve ser

analisada tendo em vista aqueles três pontos salientados no início: quem

fala deve ser justo e ter por fim o supremo bem; com quem se fala deve-se

ter uma relação baseada na justiça e, por que não, na amizade; e do que se

fala (o objeto do discurso) deve sempre convergir para a realização do bem


na comunidade humana. Portanto, no seu uso, a retórica é oposta àquilo

que os sofistas — em especial Górgias, Pólo e Cálicles — chamariam ou

tomariam erroneamente por retórica, a saber: uma arte que implica uma

adulação.

No diálogo Górgias, Platão apresenta amplamente o conceito de

adulação, a noção do que é ou o que implica a arte de adular o outro. A

adulação (kolakeia) pode ser vista como um tipo de emprego da arte da

persuasão para elevar ou a si próprio ou ao outro, tendo em vista um motivo

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utilitarista. Por exemplo, muitos, senão todos, já devem ter presenciado

alguém fazer elogios muito hiperbólicos e exagerados a outrem, mas que,

por baixo, desses elogios hiperbólicos subjaz um interesse. O que essa

pessoa está fazendo é adular o outro.

Adular o outro era uma marca característica dos sofistas. Eles

adulavam políticos, governantes, pessoas que tinham muito poder nas

cidades gregas apenas com o objetivo de obter vantagens, ou seja,

proximidade com o poder, com a classe rica das cidades e coisas do tipo.

O que Sócrates faz, no diálogo com Pólo sobretudo, mas também com os

demais, é contrapor a retórica com a adulação justamente para dizer que

aos retóricos cabe sempre a busca da verdade e do supremo bem, mesmo

que custe a própria vida.

E aqui entra uma questão muito importante. Em dado momento,

Sócrates faz a seguinte pergunta: “O que é melhor, o que está mais próximo

do bem, sofrer uma injustiça ou praticá-la”? Aquele que busca o prazer está

buscando o poder e o domínio, e ao procurar adquirir o poder e o domínio,

também maximiza as possibilidades de realizar seus prazeres e apetites,

sejam irascíveis ou concupiscíveis. Pólo e Cálicles, sobretudo, defenderão

a tese de que a maximização dos apetites só pode ser alcançada quando

aquele que emprega a retórica conquista maior poder e domínio sobre

os outros. Esta é, na realidade, a tese desses discípulos de Górgias: estou

usando a arte da persuasão para adquirir maior poder, porque, ao adquiri-lo,

maior será minha capacidade de satisfazer os meus apetites. Então é claro

que para eles a resposta é apenas uma: é melhor praticar a injustiça do que

sofrê-la.

Sócrates dirá exatamente o contrário. O bem com o qual Cálicles,

Pólo e Górgias estão tratando é um bem aparente, isto é, o bem atinente

aos prazeres, e este corresponde à satisfação dos apetites. No caso, o apetite

irascível conduz à guerra, ao conflito e ao domínio; e o apetite concupiscível

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conduz ao domínio dos corpos alheios ou dos objetos em si mesmos.

Sócrates então dirá que o supremo bem, o bem com o qual aquele que

persegue a justiça — portanto persegue o bem — deve lidar é justamente

o oposto. E esse bem é sempre ser justo e verdadeiro, e o uso da persuasão

deve visar esse bem objetivo.

Deve-se perseguir esse bem objetivo, a forma de vida mais próxima

é a que tenta, não negar, mas se governar, o quanto possa, pela razão os

próprios apetites de modo a submetê-los ao domínio da razão. Aquele que

se orienta assim estará interiormente ordenado de uma maneira mais eficaz.

É a chamada virtude da temperança. A ordenação interior da alma que

conduz aquele que ama o bem e a verdade. Aquele cuja alma é ordenada

emprega a retórica e a arte da persuasão tendo em vista o supremo bem.

Portanto, para ele é mais vergonhoso cometer a injustiça do que sofrê-la,

porque quem a sofre, sofre como paixão, como pathos, como alguém que

recebe de fora algo que não lhe é devido. No caso, um ato injusto.

Vejam como, no diálogo com Pólo, Sócrates vai construir esse

conjunto de inferências.

Sócrates: Para a defesa da injustiça, quer de sua própria injustiça, dos

parentes, dos amigos, dos filhos ou da sua pátria, a retórica não nos é

minimamente útil, Pólo,3 a não ser que alguém conceba seu uso em

sentido contrário, deve-se acusar antes de tudo a si mesmo, e então os

familiares ou outro amigo qualquer, sempre que se cometa alguma

injustiça; ao invés de ocultá-lo, deve-se trazer à luz o ato injusto a fim

de se pagar a justa pena e se tornar saudável; [...] deve ser o primeiro

a acusar a si próprio e aos demais familiares, e utilizar a retórica com

este escopo a fim de que, uma vez fúlgidos os atos injustos cometidos,

se livrem do maior mal, da injustiça.

Estamos aqui diante de uma situação em que o justo é entendido

por uns de uma maneira e por outros, de outra. Segundo Górgias, Pólo e
3  A retórica nos termos empregados por Pólo, a saber: a erística.

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Cálicles, o justo é aquilo que converge para a maximização do poder e do

domínio e, portanto, para a satisfação dos prazeres. Logo, é motivo de maior

vergonha aquele que sofre a injustiça do que quem a comete, porque

quem a comete tem como finalidade o seu próprio prazer ou domínio. A

isso Sócrates obviamente objetará. Há dentro dessa discussão — e isso é

muito importante para entendermos o que vem a seguir dentro do diálogo

de Sócrates com Pólo —, um contraste estabelecido, primeiro por Pólo e

sobretudo por Sócrates, entre o justo por natureza e o justo por convenção,

e sobretudo entre a lei natural (ou lei da natureza)4 e a lei política ou a lei por

convenção. Temos então natureza e convenção.

Os sofistas defendem a tese segundo a qual entre a natureza e a

convenção existe uma oposição: a natureza conduz ao poder e ao domínio

e, pelas inclinações naturais, à busca pela satisfação dos apetites, o que só é

possível com a maximização do poder e do domínio. Esta é a maneira como

Cálicles, Pólo e Górgias (em menor medida) entendem a natureza humana:

uma natureza inclinada para a dominação. E, por sua vez, a convenção

social produz conceitos que, para eles, são artifícios, criados pela sociedade

humana para tentar corrigir e mitigar isso através de um conceito de justiça

que é adotado pelos tribunais e assembleias e pela lei feita pelas assembleias

voltada para coibir estas inclinações naturais humanas. E os crimes seriam

práticas decorrentes da natureza humana que devem ser, pelo artifício da

criação social, corrigidos e coibidos para que a sociedade mantenha alguma


ordem. É uma visão, sob certo aspecto, muito semelhante a apregoada por

alguns filósofos políticos modernos, como Hobbes, por exemplo.

A defesa de Sócrates é a de que, assim como a arte imita a natureza,

as leis e a justiça legal ou humana (a justiça por convenção, o justo

político) não são antagônicos ao justo natural, mas são dele decorrentes.

E como há o bem na natureza humana, e o supremo bem se manifesta de

4  Ainda que esses termos não sejam os mesmos posteriormente, no contexto grego todas essas coisas estão
mais ou menos involucradas.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
maneira natural ora na natureza das coisas, ora na sociedade humana, os

gregos distinguiam a physis de ethos. Physis significa a natureza como a

compreendemos hoje e o ethos é a sociedade humana ou política, uma

espécie de ordenação das relações humanas tendo em vista uma espécie

de imitação (imitatio, mimesis) deste modelo maior que é a natureza,

de modo que o justo por convenção imita o justo por natureza e a lei por

convenção imita a lei natural, que orienta os seres humanos ao bem e à

verdade.

O contraste entre duas concepções de justiça decorrentes do objeto

— ora da retórica para o Sócrates, ora da erística para os sofistas —, fica

evidente no diálogo entre Sócrates e Pólo. E como que isso aparece?

Aparece em algum momento quando, após terminar a intercessão do

diálogo com Pólo, entra em cena aquele que é o mais irascível dos três:

Cálicles. Vejamos o que diz Cálicles, depois de Pólo rir de Sócrates, quando

indagado a esse respeito:

Cálicles: [...] Tu, na verdade, Sócrates, sob a alegação de que encalças

a verdade, te envolves com essas coisas típicas da oratória vulgar as

quais não são belas pela natureza, mas pela lei.5 Pólo falava do que era

mais vergonhoso segundo a lei, mas teu discurso encalçava o que era

vergonhoso segundo a natureza.

Veja o contraste entre o que é vergonhoso segundo a lei e a natureza

para os sofistas e para Sócrates. Para este, esse contraste não existe porque

o que é vergonhoso segundo a natureza continua sendo vergonhoso

segundo a convenção. Praticar um crime não é apenas vergonhoso, cometer

injustiças não é apenas mais vergonhoso do que sofrê-la perante a lei, mas

é mais vergonhoso do ponto de vista do justo por natureza. Por isso, ele

continua dizendo:

Cálicles: [...] Pólo falava do que era mais vergonhoso segundo a lei,

5  Isto é, não são belas naturalmente, mas são belas por convenção humana, segundo Cálicles e Pólo.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
mas teu discurso encalçava o que era vergonhoso segundo a natureza.

Pois segundo a natureza, tudo o que é mais vergonhoso também é

pior, ou seja, sofrer injustiça, ao passo que, segundo a lei, é cometê-la.

Eis o contraste que ele estabelece. Cálicles está dizendo o contrário: a

vergonha está do lado de lá. É claro que, para bem responder essa questão,

Sócrates não tem outra saída, senão chegar à definição do que é exatamente

o justo e do que pretende aquele que determina a justiça.

Notem que Sócrates sempre busca definir o que é o objeto do qual se

está falando. Isso sem contar o estilo dialógico do debate. Dialogus quer dizer

através da palavra, desse discurso que leva em conta sempre um objeto que

é mais específico. Ou seja, há o emprego da retórica entre as personagens,


mas sempre considerando a determinação mais específica do objeto. E isso

fica evidente a todo o momento. Os temas vão sendo levantados, e Sócrates

vai usando os sofistas como sparring. Ele faz perguntas e mais perguntas

de modo a conduzir os sofistas às próprias contradições de suas teses. Com

isso, ele pretende mostrar a superioridade da tese do supremo bem contra

os prazeres imediatos.

A posição de Cálicles a respeito da determinação do justo é a seguinte:

Cálicles: A evidência de que esse é o caso, de que o justo é determinado

assim: o superior domina o inferior e possui mais do que ele.

Górgias e Pólo que não haviam sido tão explícitos. Cálicles diz

claramente o que pretendem: realizar uma concepção de justiça segundo


a qual o superior domina o inferior, e aquele que melhor empregar a arte

da persuasão alcançará esse objetivo. E Sócrates defende sua perspectiva

dizendo que não só pela lei, mas também por natureza, é justo ter posses

equânimes e é mais vergonhoso cometer injustiça do que sofrê-la, voltando

assim ao debate anterior.

Percebam que, por trás da pretensão de Cálicles de defender uma

concepção de justiça que, no fundo, atende à maximização do poder,

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
estamos, na verdade, diante de uma posição profundamente hedonista. É

hedonista porque ela não quer o poder pelo poder, nem o domínio pelo

domínio, e sim o poder e o domínio para a obtenção de um bem ulterior:

a satisfação dos apetites. Ou seja, os apetites vão como que governando

aquele que emprega as técnicas persuasivas. Então a força da inteligência

e a força do uso dessas técnicas oratórias voltam-se justamente para essa

perspectiva de tornar os apetites maximamente realizados e, portanto,

tornar feliz aquele que o faz. Vejam que a compreensão de felicidade nesse

caso é uma compreensão amplamente destoante da assumida por Sócrates

e Platão.

Continua Cálicles, para defender a luxúria, a intemperança, e essa

noção da eleuthería, do arbítrio:

Cálicles: Na verdade, Sócrates, o que dizes encalçar é isto: luxúria,

intemperança e liberdade, uma vez asseguradas, são virtude e

felicidade; o restante, o que é instituído pelos homens contra a

natureza, é adorno, é uma tolice desprovida de valor.

Sócrates: [...] Tu afirmas que, se alguém pretende ser como se deve

ser, ele não tem de refrear seus apetites, porém permitir que eles se

dilatem ao máximo e se prontificar a satisfazê-los em toda e qualquer

circunstância, e que nisso se consiste a virtude.

Cálicles: É o que afirmo.

E para isso eles se valerão de toda e qualquer técnica persuasiva e

chamarão isso de retórica, ainda que, de fato, não seja no sentido genuíno

da expressão, mas erística, ou seja, a adulação. A satisfação dos prazeres é o

objeto central dessa perspectiva.

O plano de defesa de sua tese, o ataque de Sócrates contra seus três

adversários e a destruição definitiva de seus argumentos, encontra-se na


parte final do diálogo quando espreme Cálicles a aceitar que a satisfação do

prazer não pode ser um bem em si. Ele começa arguindo que a satisfação

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
do prazer e dos apetites não pode ser ela mesma um fim, porque, tão logo

satisfeita, a realização do fim está consumada; ao passo que a noção de

bem é sempre permanente de algum modo e, portanto, excede o horizonte

imediatista dos prazeres e apetites.

Eu vou me valer de uma de suas posições, tão logo ele, no diálogo

com Cálicles, lhe contesta sobretudo a tese da adulação, dizendo:

Sócrates: [...] E o que é a retórica dirigida ao povo de Atenas e a todos

os outros povos de homens livres que vivem nas cidades, o que é

ela, então, para nós? Por ventura os rétores te parecem falar sempre

visando o supremo bem e tendo-o como mira, a fim de que os

cidadãos se tornem melhores ao máximo por meio de seus discursos?

Ou também eles se volvem ao deleite dos espectadores, descuram do

interesse comum em vista do seu em particular, e relacionam-se com

os povos como se fossem eles crianças, tentando apenas deleitá-los

[o famoso panis et circenses, pão e circo], sem a preocupação de

torná-los melhores ou piores para isso?

Cálicles nesse momento percebe que ficou sem saída. Ele apresentou

uma tese segundo a qual o emprego da sua própria tese no ambiente

público conduzirá a uma sociedade de crianças, isto é, de pessoas alienadas,

e, portanto, a um governo absolutamente irracional. Em resposta, ele diz:

Cálicles: Essa não é uma pergunta simples, pois há, de um lado, quem

zele pelos cidadãos quando pronuncia seus discursos, e quem, de

outro, seja do tipo a que te referes.

Ou seja, uma resposta evasiva, porque no fundo Cálicles está

começando a perceber que as consequências de sua posição levariam à

destruição da cidade e à destruição de si próprio, que somente o emprego

da ars persuasiva, da chamada ars rhetorica — que, no caso dele, não

é exatamente a retórica — para o convencimento das massas, tendo

este como o bem e a justiça suprema, levaria à destruição da cidade e à

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
destruição daquele que o faz, seja ele um governante, seja ele apenas um

orador, um rétor.

Em oposição a isso, Sócrates arguiu:

Sócrates: [...] a virtude de cada coisa, seja do artefato, do corpo, da

alma, ou de qualquer outro vivente, não advém da maneira mais bela

aleatoriamente, mas pelo arranjo, pela correção e pela arte relativa a

cada uma delas.

Quais são as artes correspondentes ao artefato? Quais são as artes

correspondentes ao corpo? Quais são as artes correspondentes à alma? As

artes chamadas artefactum são a produção de objetos. Esta arte implica

um tipo de experiência que conduz o ser humano à produção de algo.

Isto não é ao acaso, como normalmente ocorre com a inexperiência, ou

com uma vida cuja noção de felicidade é voltada apenas para a satisfação

dos prazeres e apetites, o que leva necessariamente ao acaso. Há uma

direção para a experiência humana, que, no primeiro caso, é determinada

pelo artefato, a produção de objetos. A segunda arte implica a ordenação

do próprio corpo e do bem atinente ao próprio corpo. Por exemplo, a

saúde, a medicina ou a ginástica. Todos esses bens e áreas do saber

correspondem justamente ao bem do corpo. E a última é a própria alma

como tal considerada, as virtudes que correspondem à alma. Platão diz que

a justiça é condição necessária para que as demais virtudes — a coragem e

a temperança — possam ser produzidas na alma de um ser humano.

Veja que há uma diferença enorme entre Platão e Aristóteles.

Aristóteles nos diz que todas as demais virtudes relativas aos atos humanos

(as chamadas virtudes cardeais), dependem primeiro de uma virtude

intelectual, que é a prudência. Para Platão, não há uma noção precisa do

que é a frônesis. Essa noção é muito mitigada na obra dele. Ele usa a palavra

“sabedoria” (sophía) tanto para a sabedoria teórica quanto para a sabedoria

prática (a prudência). Para Platão, a virtude condicional é a justiça tomada

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
como forma pura das formas de vida na pólis, na comunidade humana. E a

forma de vida exigida para a política, para a vida na comunidade humana, é

uma vida justa, onde todos dão o que é devido a todos. No entanto, para que

isso aconteça, são necessárias virtudes interiores que ordenem a alma no

que tange aos seus apetites. A virtude que ordena o apetite concupiscível é a

temperança, que, ao fazê-lo, ordena toda a alma internamente — chamemos

a concupiscência dos olhos, da carne e do mundo. Essa ordenação se dá

justamente pelo governo da razão (a temperança), tendo por fim um bem

que excede a própria satisfação dos apetites concupiscíveis. E o mesmo

acontece com a coragem no que se refere ao apetite irascível. Vejam, pois,

que acima da busca e da persecução dessa ordenação da alma, existe

sempre em vista o supremo bem. E é justamente nesse ponto que Sócrates

chega quando estabelece essa defesa, dizendo assim:

Sócrates: [...] a amizade e o ordenamento, a temperança e a justiça,

constituem uma comunidade, e por essa razão, meu caro, chamam

a totalidade de cosmos, de ordem, e não de desordem ou de

intemperança. Tu, porém, não me parece zelar por eles, mesmo sendo

sábio em assuntos do gênero, e esquece que a igualdade geométrica

tem um poder magnífico entre deuses e homens. Mas a tua opinião

é que se deve buscar possuir mais já que descuras da geometria.

Assim seja! Devemos, então, ou refutar este argumento, de que os

homens felizes são felizes pela aquisição da justiça e da temperança,

e os infelizes, pela aquisição do vício, ou, se for verdadeiro, examinar

as suas consequências. As consequências, Cálicles, são todas aquelas

aludidas anteriormente, quando tu me perguntaste se eu falava com

seriedade, afirmando que se deve acusar a si próprio, ou a um filho ou

companheiro, caso tenha cometido alguma injustiça, e que era esse o

uso devido da retórica; era verdadeiro, portanto, o que, segundo o teu

juízo, Pólo havia consentido por vergonha [colocado contra a parede,

Pólo não teve saída, e o mesmo ocorre agora com Cálicles]; que ser

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
injusto e cometer injustiça é tanto mais vergonhoso quanto pior do

que sofrê-la; e que, portanto, deve ser justo e conhecedor do que é

justo quem intenta ser um rétor correto, com o que Górgias, por sua

vez, havia concordado por vergonha segundo Pólo.

Ele usa o próprio discurso do sofista para mostrar as inconsistências

de sua própria tese. Claro que Cálicles não quis aceitar a derrota e insinuou

que Sócrates procurava apenas a vitória para se mostrar o mais poderoso

etc. Mas obviamente Sócrates estava em busca da defesa da verdade e do

bem contra outra concepção de justiça e de uso correto da retórica. Por isso,

ele defende assim:

Sócrates: Mas eu não te interrogo almejando a vitória, porém

querendo realmente saber, segundo teu juízo, como se deve agir

politicamente entre nós. Ou quando te volves aos afazeres da cidade,

não te preocupas com outra coisa senão que nós, cidadãos, nos

tornemos o quanto melhores? Já não concordamos repetidas vezes

que o homem político deve agir assim?

Cálicles havia dado vários exemplos de bons políticos, entre os quais

Péricles que, antes de cair em corrupção e sofrer um processo que quase

o levou a morte, desempenhou muito bem a função de político na cidade.

Notem que Sócrates não se contenta em apresentar uma tese

e mostrá-la, mas ele leva às últimas consequências. Ou seja, ele está

interessado precisamente nisto: mostrar que o que é justo não tem temor
da morte. Aliás, esta é basicamente a tese socrática.

Para terminar a sua posição no diálogo — um final extraordinário

que poderia até terminar numa espécie de ato num teatro —, diz ele,

dirigindo-se a Cálicles:

Sócrates: Provavelmente, essas coisas6 parecerão a ti como um mito

contado por uma anciã, e tu as desprezarás. E não seria espantoso

6  Ou seja, toda esta defesa e todas essas coisas que convergem para a defesa do supremo bem.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
desprezá-las, se procurássemos e conseguíssemos descobrir, em outro

lugar, algo melhor e mais verdadeiro. Todavia, vês neste momento

que vós três, tu, Pólo e Górgias, os mais sábios entre os helenos

contemporâneos, não sois capazes de demonstrar que se deve viver

uma vida diferente desta, a qual se revele vantajosa também no além-

mundo. [...]

Quer dizer, a defesa do destino da alma: ou uma vida gloriosa junto

àqueles que perseguiram a justiça a verdade e o bem, ou no Tártaro, no

Hades, portanto no local de sofrimentos. Essa é a defesa de Sócrates.

Sócrates: [...] Entre tantos argumentos, porém, todos os demais foram

refutados e somente este persiste, que é preciso ter maior precaução

para não cometer injustiça do que para sofrê-la; que o homem deve,

sobretudo, preocupar-se em ser bom, e não parecer sê-lo, quer privada

ou publicamente ; que se alguém vier a se tornar mau em alguma

coisa, ele deve ser punido; que tornar-se justo e, uma vez punido, pagar

a justa pena, é o segundo bem depois de ser justo; que se deve evitar

toda forma de lisonja, em relação a si próprio ou aos outros, sejam

esses poucos ou muitos; e que se deve empregar a retórica e qualquer

outra ação visando sempre o justo.

Percebe-se, portanto, nesse belíssimo diálogo de Platão, uma defesa

incessante da verdadeira natureza da retórica, de que tipo, ou com que tipo,

de objeto ela deve lidar e qual é exatamente a sua finalidade dentro de uma

comunicação.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
AU L A 2

RETÓRICA, DE ARISTÓTELES
Nesta aula vamos examinar um livro muito importante no corpus

aristotélico: a Retórica.1 Das obras de Aristóteles, é uma das que reputo as

mais importantes. É uma obra clássica que traz uma série de inferências

do Estagirita para o campo do discurso e da argumentação. Claro que

se nós tomarmos como base as obras que ele destina ao discurso e à

argumentação, teremos de lidar com os livros que compõem o Órganon, um

tratado especialmente dedicado à lógica, à metodologia e à argumentação.

No Órganon, Aristóteles enfrenta a temática da lógica,

considerando-a a partir de seis livros: Categorias, Da Interpretação,

Analíticos Primeiros e Analíticos Posteriores — que tratam da lógica

chamada demonstrativa — Tópicos — que abordam os lugares de noções

comuns com os quais o ser humano lida para argumentar sobre muitos

temas — e Refutações Sofísticas, em que Aristóteles lida com a patologia do

raciocínio e da argumentação correspondente.

Mas antes de adentrarmos na Retórica de Aristóteles que assim

como os seis livros do Órganon é um livro extremamente importante

para a arte do discurso da persuasão e da argumentação em geral, é

necessário ter bem presente, quando pretendemos estudar Aristóteles

e o modo como ele dispõe essas coisas todas, a distinção das quatro

modalidades de discursos em geral feita por ele: um discurso que tem

em vista o conhecimento certo e seguro das coisas em geral, chamado

conhecimento por demonstração; um segundo tipo que busca conhecer

as coisas por um juízo de probabilidade, que é a dialética ou argumentação

dialética, chamada por Aristóteles de lógica material; uma terceira maneira

de lidar com o conhecimento das coisas, não por certeza, tampouco por

probabilidade, mas por verossimilhança daquilo que está sendo dito, que é

o próprio da retórica; e por fim o discurso chamado poético que, por meio da

exposição de gêneros e símbolos, perseguimos um conhecimento acerca


1  Indico a edição da Gredos em espanhol. Creio que das línguas mais próximas a nós essa é a melhor tradução,
pois é extraordinariamente bem feita. Outra tradução que indico é a para a Loeb Classics, em inglês, também
extraordinária. Há ainda uma tradução do Pinharanda Gomes para uma editora portuguesa, a Coimbra, que tam-
bém publicou o Órganon e outras partes da obra de Aristóteles.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
de coisas que são possíveis, porquanto também universais.

Quando estabelecemos essa primeira classificação dos discursos

e da argumentação na obra de Aristóteles como um todo, temos de

considerar três questões importantes. A primeira delas é saber qual o ponto

de partida do raciocínio humano que, de alguma forma, dá vazão para a

argumentação. Se a argumentação é a expressão externa, vocal ou escrita,

de um raciocínio, então temos de perguntar aonde começa o raciocínio.

Esta é a primeira consideração que devemos fazer antes de começar a ler a

Retórica de Aristóteles. A segunda e fundamental consideração orbita em

torno do modo como estruturamos esse caminho percorrido desde o ponto

de partida até o ponto de chegada, ou seja, desde os primeiros princípios

às conclusões do que pretendemos ao expressarmos argumentos. E por

fim a terceira apreciação é quanto à disposição dos termos, dos predicados

e dos adjetivos dentro da argumentação, ou seja, como dispomos os

termos da linguagem dentro desta estrutura na qual confeccionamos a

argumentação e o discurso. É importante atentarmos, em primeiro lugar,

para esses três pontos. Este é ponto central. A partir dele, todos os demais

serão determinados.

Quando tratamos da argumentação como uma das quatro

modalidades de discurso, temos de considerar qual é o grau de certeza

que temos em relação ao objeto do conhecimento. Por isso, diante de um

objeto do conhecimento cujo grau de certeza é absoluto, sua obtenção traz

ao horizonte de quem fala e também de quem escuta um grau absoluto

de convicção e de ciência universal. Por exemplo, quando digo que “todo

ser humano é mortal, Sócrates é ser humano, logo Sócrates é mortal”, esta

conclusão é necessária dadas as premissas anteriores, e a sua necessidade

é medida por um grau de certeza absoluta. Seria néscio quem negasse esta

conclusão dadas as premissas anteriores.

Porém, temos de perguntar ainda sob que princípios estas premissas

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
podem ser estabelecidas: a de que todo ser humano é mortal e Sócrates é

ser humano? Só podemos estabelecê-las se soubermos que “mortal” é um

termo que expressa um gênero (gênero dos mortais), que “ser humano” é

uma expressão que designa a espécie, e que “Sócrates” é um termo singular

que denomina um indivíduo. À medida que constatamos a pertença de

um indivíduo a uma espécie (Sócrates ser humano) e de uma espécie ao

gênero (ser humano mortal), concluímos o pertencimento do indivíduo ao

gênero (Sócrates mortal).

Contudo, só somos capazes de fazê-lo, porque certos princípios

anteriores impedem esse raciocínio de sair de uma linha contínua, como

os princípios de identidade e de não-contradição, dos quais não podemos

abdicar, pois são princípios evidentes por si mesmos, isto é, são seguros,

certos e universais. Se negássemos o princípio de não-contradição, jamais

poderíamos afirmar que “todo ser humano é mortal, Sócrates é ser

humano, logo Sócrates é mortal”. Este silogismo, isto é, esta argumentação

seria impossibilitada. Mas vejam que se trata de um tipo de discurso que

é sempre certo e seguro, chamado analítico ou demonstração, em que a

conclusão é sempre certa e segura dadas certas premissas.

Há, porém, outro tipo de discurso cuja conclusões, embora

dependam de princípios evidentes, como identidade e contradição, não

são certas e seguras, mas estão muito próximas de um grau de certeza.

Esta proximidade com a certeza lhe confere uma plausibilidade tal que o

qualifica como um discurso dotado de probabilidade. Esse tipo de discurso

Aristóteles chama de dialética, ou silogismo dialético ou lógica material.

O grau de probabilidade de uma conclusão advém, não pela decorrência

necessária, pela implicação certa e segura dada certas premissas, como se

fosse um discurso matemático, mas tendo-se em vista um debate anterior

no qual a premissa maior desempenha uma função de tese e a premissa

menor desempenha uma função de antítese. Ou seja, eu postulo uma tese

e advém logo a seguir uma antítese.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Por exemplo, suponha que exista um grupo de pessoas numa sala

e um bom número delas esteja vestindo uma camisa na cor azul. Eu saio

da sala e me encontro com uma terceira pessoa do lado de fora; ela me

pergunta quem está na sala, eu respondo que um monte de gente. Ela

pergunta então o que eles estão vestindo, eu digo que uma camisa azul.

Tão logo essa pessoa entrasse na sala, veria algumas pessoas que não estão

vestindo azul. Vamos supor então que ela fosse insistente e me dissesse

que a minha inferência não é totalmente verdadeira, porque nem todos

estão vestindo azul, e a partir daí esse debate prosseguisse. Percebam que

a primeira tese não era certa e segura, pois ela expressava uma situação

que era um lugar-comum, isto é, qualquer pessoa entenderia o que eu

respondi. Porém, tão logo a pessoa constatasse a situação em si, veria que a

afirmação de que “estão vestindo azul” não é totalmente verdadeira, porque

a totalidade das pessoas não estava vestindo uma camisa de cor azul.

O discurso dialético vai se aproximando cada vez mais do grau de

certeza à medida em que as teses e as antíteses vão sendo postuladas

em um modelo dialético de tese e antítese, com discursos que formulam

perguntas e as solucionam por meio de respostas breves. Ou seja, na

dialética existe um caráter que é o do discurso breve, que em um diálogo

exporá uma resposta de maneira a responder uma questão com o máximo

de proximidade com um grau de certeza, ainda que esse grau de certeza

não exista de maneira satisfatória, como na demonstração.

Já a retórica, em comparação com os dois anteriores, é um discurso

que está mais distante do grau de certeza. Isso acontece precisamente

porque é como se estivéssemos apenas perante um orador (o rétor) que

tem em vista persuadir os receptores do discurso. Ou seja, é a persuasão

que entra em cena na retórica, uma persuasão que procura apresentar aos

interlocutores, sejam eles quem forem, um grau pelo menos verossímil que

os faça acreditar saber aquilo de que se está falando.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Na retórica, assim como na dialética, o ponto de partida é diferente do

da demonstração, em que o início são os princípios evidentes de identidade,

não-contradição, terceiro excluído e outros. Na dialética e na retórica, o

ponto de partida são os lugares-comuns, as noções comuns, isto é, aquelas

definições às quais toda a comunidade de interlocutores tem acesso e

noção do que está sendo tratado. Na retórica, esse compartilhamento de

certas noções comuns (topos2) implica previamente uma certa adesão à

linguagem comum e ordinária compartilhada por todos os participantes

do discurso retórico. No Górgias, Platão, Querofonte e especialmente

Sócrates dialogam com três sofistas, o mestre Górgias e seus discípulos

Pólo e Cálicles. Este diálogo e a sua inteligibilidade supõe que todos os

participantes, e mesmo os leitores do diálogo platônico, compartilhem uma

espécie de noção comum a respeito do objeto em discussão, pois sem essa

coparticipação a entrada na ars rhetorica será impossível.

Então, na retórica, estamos perante um tipo de estrutura que

possui sempre dois modelos: a enunciação de um discurso persuasivo e

a conclusão obtida com a relação da performance com o consentimento

daqueles que recebem o discurso, os receptores. É como se existisse uma

espécie de tensão entre quem fala e quem escuta, e esta tensão vai sendo

diminuída à medida que o ouvinte vai se convencendo daquilo que está

sendo dito. Essa estrutura da arte retórica será abordada mais adiante.

Aristóteles, na Retórica, distingue o tratamento dessa arte liberal

e portanto dessa modalidade de discurso em três livros. No Livro I ele

pretende expor um panorama do que é a retórica, defini-la, apresentar suas

classificações, cotejá-la dentro de sua estrutura e dividir a classe dos seus

discursos. Ele voltará a essa divisão da classe dos discursos no Livro II de uma

maneira mais específica. Mas, no Livro I, o objetivo é justamente apresentar

ao leitor, de uma maneira muito inicial e introdutória, aquilo que constitui o

próprio da retórica e o que a distingue dos demais gêneros e as patologias

2  No plural, topoi, lugares-comuns.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
correspondentes a essas modalidades de discurso.

Voltemos ao Órganon. No livro Categorias, Aristóteles aborda a

construção de enunciados (sujeito e predicado) a partir de uma constatação

da substância e dos acidentes que formam a realidade predicamental:

o que é uma substância e o que são os acidentes, os vários acidentes

que correspondem ou são modos de ser dessa substância (qualidade,

quantidade, relação, lugar, tempo, hábito etc.). Por exemplo, se eu digo “o

professor Boeira tem um metro e oitenta e três, estou considerando uma

substância designada por um termo, uma expressão “professor Boeira tem

um metro e oitenta e três”. Neste caso, trata-se da quantidade de matéria

que esse indivíduo possuí. Definirei a relação da substância com os seus

acidentes formando frases. Esse é o primeiro desafio nas Categorias. Mas

não é apenas esse; é necessário também considerar o modo como as

espécies e os gêneros são predicáveis das coisas. Se digo “o professor Boeira

é um ser humano”, isto quer dizer uma substância que pertence a uma

espécie humana. Se digo “o professor Boeira é um mortal”, isto é um gênero

que abarca a espécie humana e outras espécies animais (os felinos, os

anfíbios, os répteis etc.). Todo o gênero animal é mortal, inclusive a espécie

humana; então, se eu pertenço à espécie humana, também sou mortal. O

livro Categorias indica como devo montar enunciados para dizer isso.

A articulação entre as sentenças mostrará o modo como

interpretarei as coisas. Daí o segundo livro Da Interpretação (Peri

Hermeneias) no qual Aristóteles apresenta todas as implicações lógicas,

categóricas e modais a partir dessa formação de frases, para então nos

Analíticos Anteriores e Posteriores (terceiro e quarto livros) chegar ao

estudo da demonstração, um tipo de discurso chamado também científico,

em que há sempre conclusões certas e seguras. No quinto livro, Tópicos,

Aristóteles trata dos lugares-comuns que constituem a dialética e a retórica;

de como, partindo dos lugares-comuns, empregamos uma variedade de

frases, seja para chegar ao objeto o mais próximo da certeza (dialética)

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
ou para persuadir os nossos interlocutores a aderir à tese que postulamos

(retórica). Em Refutações Sofísticas, sexto e último livro, Aristóteles estuda

as patologias do discurso: da demonstração, da dialética e, como não, da

retórica, a partir do estudo das falácias.

Por isso, na Retórica, Aristóteles foca mais na retórica e suas espécies e

classes de discursos do que propriamente nos outros elementos que, ante o

objeto interior da retórica, são periféricos, porém absolutamente necessários

para sua consumação na ordem do discurso e da argumentação. Isso

porque ao retórico compete em primeiro lugar perseguir certos objetivos

que de alguma forma não recaiam naquelas patologias, como a reductio

ad absurdum, argumentum ad temperantiam ou petição de princípio —

falácias usuais que o próprio Aristóteles constata nas Refutações Sofísticas,

nas quais aqueles que praticam o discurso podem eventualmente cair.

Por esse motivo, no Livro I, Aristóteles terá essa direção, ao passo

que no Livro II abordará justamente o aspecto anímico dos participantes

na comunidade de comunicação: quais são os vícios e as virtudes interiores

de quem fala e de quem escuta; como se dá a relação entre o temor e a

confiança, a relação da desconfiança com o amor, a relação do irascível e

do concupiscível com a temperança e a coragem, e a ira, a indignação e a

compaixão naquele que escuta e naquele que fala. Quando escutamos algo

que nos parece absurdo, por que isso nos enche de ira? Por que a retórica

tem este poder de ora fazer aumentar esses sentimentos e apetites dentro

de nós, ora mitiga-los todos? Tudo isso, Aristóteles trata integralmente no

Livro II. Além disso tudo, ele enfrenta novamente, agora de uma maneira

específica, o entimema, a estrutura do discurso retórico que veremos daqui

a pouco, e também o modo como as refutações (isto é, o estudo dos elencos

sofísticos ou das falácias, se quiserem) são atinentes às classes da retórica

ou às classes de discursos retóricos, como cada um deles pode recair

eventualmente em certas falácias, colocando o orador em maus lençóis.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Por fim, no Livro III, Aristóteles versa sobre as virtudes propriamente

ditas do discurso retórico enquanto tal: o problema das imagens com

as quais se lida, o problema da clareza do discurso, de como o discurso

retórico tem uma certa clareza, o ritmo do discurso retórico e como

isso é importante para o orador público. Aqui Aristóteles está bastante

preocupado com a veiculação da retórica na Ágora, isto é, no espaço público

da pólis. Esta preocupação obriga o Estagirita a analisar o modo adequado

de expressar-se e de veicular certas palavras que, quando prementes

no âmbito dos interlocutores, despertam neles certas ações e reações

anímicas. Por isso mesmo, o ritmo, a forma de locução, o ornamento e o

emprego de certas palavras, visando um determinado objetivo, constituem

os modos de expressão dos gêneros oratórios. Entendamos bem que a

oratória não é o mesmo que a retórica. A oratória é a exposição externa na

comunidade humana — no caso grego, na comunidade política — daquilo

que o rétor pretende persuadindo os outros. Outras formas e modalidades

que aparecem na oratória, por exemplo, são a acusação, típica nos tribunais,

ou o modo como devemos nos comportar e nos defender face a certas

acusações, como selecionar pontos e cadinhos dentro dos discursos. No

Livro III, Aristóteles de alguma forma enfrenta esses gêneros de expressão


típicas do discurso oratório, que é uma forma externa de verificar a retórica.

Em suma, a obra como tal possuí muitos quesitos e pontos que merecem,

cada um, uma análise bastante detalhada.

Selecionei algumas passagens que me parecem decisivas na Retórica

de Aristóteles, e que expõem muito claramente todos esses intentos de

uma forma mais ampla e ao mesmo tempo articulada. Comecemos, pois,

por aquilo que está logo no início da obra:

“A retórica é uma antístrofa da dialética já que ambas tratam daquelas

questões que permitem ter conhecimentos, de certo modo, comuns

a todos e que não pertencem a nenhuma ciência determinada”.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Debulhemos essa frase para ver bem o que ela quer dizer. Temos

aqui três questões fundamentais:

(1) Assim como a dialética, a retórica condiz com aquelas

noções comuns, o topos, isto é, uma linguagem natural, o

que hoje chamamos de linguagem ordinária, a que falamos

popularmente; não é a linguagem científica, mas é uma

linguagem compreensível a todos os seres humanos que falam,

no nosso caso, a língua portuguesa. Então essa linguagem

natural, ordinária, comum é aquela que marca os discursos

retórico e dialético.

(2) A retórica é uma antístrofa da dialética. Isso quer dizer que a


retórica e a dialética podem ser vistas de forma unitiva e até

analógica sob certo aspecto. Há uma analogia possível entre

a retórica e a dialética: ambas têm como analogado principal,

esses topoi (lugares-comuns) a partir dos quais partimos para

persuadir uma ou muitas pessoas de algo do qual elas tenham

alguma noção, mesmo que aparente e não científica.

(3) A demonstração é a lógica própria do silogismo analítico, no qual

se usa a demonstração como um método de toda e qualquer

ciência. Por exemplo, para provar que uma planta tem certas

leis que dirigem seu comportamento natural, seu movimento,

em vista de determinados resultados, tentamos extrai-las e, a

partir disso, provamos existir um vínculo entre certos princípios

que conformam essa ciência e os resultados eventualmente

obtidos através de uma experimentação. Isso é típico da ciência

e próprio da demonstração.

Na dialética e na retórica não funciona assim, pois não há uma

ciência determinada. O que há, em contraste com a demonstração, é

uma ciência meramente aparente de certas coisas que compartilhamos.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Portanto, há um grau de universalidade muito maior em ambas do que na

ciência, em que o nível de certeza é muito maior — em alguns casos uma

certeza definitiva, em outros, uma certeza provisória, mas ainda assim um

grau de certeza. Em outras palavras, a “demonstração” (usando o termo

aqui de maneira emprestada, e não direta) da dialética e da retórica não é

exatamente uma demonstração científica, mas uma demonstração daquilo

que se pretende ou numa tese — no caso da dialética — ou no emprego de

um discurso persuasivo — no caso da retórica. Por isso, Aristóteles é muito

claro ao dizer

[...] que não pertencem a nenhuma ciência determinada.3 Por isso,

todos participam de um modo de ambas, posto que, até um certo

limite, todos se esforçam em descobrir e sustentar um argumento e

igualmente em defender-se e acusar. A maioria dos homens faz isso,

seja por azar, seja por meio do costume que é próprio do seu modo

de ser.

Ou seja, a dialética e a retórica são muito mais próximas da vida

comum, cotidiana, dos seres humanos do que a demonstração, e o são

porque estão mais próximas daquilo que constitui o aspecto maior ou

mais quantitativo na imaginação e na nossa inteligência, que são os

lugares-comuns. A maior parte de nossos raciocínios e de nossas crenças

ou convicções, das nossas opiniões, são veiculadas com base em lugares-

comuns. Ou seja, são postulações universais ou semiuniversais tomadas

como “princípios” não evidentes, princípios arbitrariamente selecionados e

designados para desempenhar uma função que, na demonstração, é a dos

princípios evidentes (princípio de não-contradição, princípio de identidade).

Na retórica e na dialética, esses princípios estão de alguma forma supostos.

É como se criássemos uma etapa intermédia entre nossas postulações —

na retórica, a persuasão, e, na dialética, a tese e a antítese. E esse intermédio

3  Quer dizer, a ciência é indeterminada, porque ela tem um grau de universalidade menor na dialética e muito
maior na retórica.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
é justamente o topos, um lugar-comum que compartilhamos.

Percebam que, quando Aristóteles emprega assim, ele tem sempre

em vista uma articulação entre esses modos de discurso. Quer dizer, a

retórica não pode ser analisada sem a dialética, que, por sua vez, não

pode ser analisada sem a demonstração, e vice-versa, porque estamos

aqui diante de conclusões e, portanto, objetos que são mais ou menos

universais. O objeto da demonstração é menos universal, pois ele pertence

a uma ciência determinada. Por exemplo — de novo —no caso da botânica:

demonstrarei que uma orquídea tem um certo movimento na sua forma de

vida que resulta em tais e quais fatos. Então para um tratamento adequado

da orquídea, é necessário isso, o habitat natural de uma orquídea exige

uma temperatura tal, num lugar tal; todas essas coisas são determinadas

segundo leis. Portanto, a conclusão que obtenho a partir desses resultados

é específica, dada a determinação deste objeto científico. Por isso, a ciência

é determinada na demonstração.

Na dialética e na retórica, não. Se eu quero persuadi-los a torcer para

o Grêmio Futebol Porto Alegrense, preciso usar de muitos artifícios. Se

quero persuadi-los a gostar de um gênero musical específico ou de que

uma marca de biscoitos é melhor do que outra ou se um vinho é melhor do

que outro, eu tenho de ornamentar meu discurso com muitas outras coisas

para despertar em você, pelo menos, uma curiosidade que moverá seus

apetites — no caso específico, o apetite concupiscível — para buscar provar

o vinho ou o biscoito e ver se há ou não uma satisfação do gosto. Vejam

como isso é impressionante nesse sentido.

Mas a retórica também supõe uma pergunta: qual é sua utilidade?

Sabemos que, na retórica, existem três pontos: quem fala (o rétor), para quem

se fala (os receptores do discurso) e do que se fala (o objeto do discurso).

Em Sócrates e Platão, o objeto do discurso deve convergir para o bem, para

a verdade e, portanto, para as virtudes humanas. A pergunta é: continua

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
sendo assim em Aristóteles? Por isso, ele nos pergunta qual é a utilidade da

retórica e traz a resposta no Livro I:

A retórica é útil porque por natureza a verdade e a justiça são mais fortes

que os seus contrários, de modo que se os juízos não se estabelecem

como se deve, será forçoso que sejam vencidos por ditos contrários, o

qual é digno de recriminação; ademais de que, no que toca a algumas

gentes, nem ainda se dispuséssemos da ciência mais exata, resultaria

fácil, argumentando somente com ela, lograr persuadi-los, pois o

discurso científico é próprio da docência, o que é impossível no nosso

caso, e melhor ainda se necessita que as provas por persuasão e os

raciocínios [correspondentes] sejam compostos por meio de noções

comuns, como assinalamos nos Tópicos a propósito da controvérsia

que há ante este mesmo povo.

Em outras palavras, o que Aristóteles está querendo nos dizer é que

as noções acerca do que é verdadeiro e do que é justo são mais fortes do que

os seus contrários dentro do que chamamos de noções comuns. Ou seja,

as noções comuns exprimem com maior força e adesão àqueles discursos

que convirjam para a justiça e a verdade. Pode lidar com certas pessoas

que não se convencerão mesmo que esfreguemos na cara delas a verdade.

Mas é comum pensar e usual crer que no mundo dos tópicos, das noções

comuns, existe uma pretensão maior de universalidade relativamente às

noções de justo e verdadeiro. E é justamente isso que Aristóteles diz: “A

retórica é útil porque por natureza a verdade e a justiça são mais fortes que

os seus contrários”. Com isso, ele não quer dizer que a justiça e a verdade

prevaleçam sempre ao modo científico, pelo contrário: na retórica e também

na dialética, há sempre uma força maior do justo e do verdadeiro do que

sobre o injusto e aquilo que falta à verdade — ou o falso, na lógica, ou o erro

ou a mentira, no caso. Vejam então como essas questões se colocam para a

retórica segundo Aristóteles.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Quando nós pensamos assim, temos de considerar que se a retórica

é formada por três partes (por aquele que fala, por aquele que escuta e

pelo objeto com o qual se lida), então a pergunta que não quer calar é esta:

qual é o lugar dessa comunicação? Onde ela acontece? Por isso o emprego

da retórica deve ser condizente com o lugar dentro do qual se esteja. Se a

retórica é veiculada na pólis, na comunidade política, a grande pergunta

deve ser pelas instituições que modelam a ordem da pólis e ao mesmo

tempo distinguem as funções políticas dentro da cidade.

Quando observamos na Política de Aristóteles, vemos que ele fala

dos bons e dos maus regimes políticos. Os bons regimes são aqueles

que perseguem o bem ou pelo governo de um (a monarquia), ou pelo

governo de alguns (a aristocracia) ou pelo governo de muitos (a politeia).

Em contrapartida, as patologias tornam esses regimes corruptíveis. Por

exemplo, a patologia da monarquia é a tirania, pois leva à destruição do

bem comum pelo privilégio do bem particular do tirano; a da aristocracia é

a oligarquia, ou seja, o interesse particular daqueles poucos que governam a

pólis; por fim, a patologia da politia (ou politeia) é a demagogia ou, como os

antigos a chamavam, a democracia que, se hoje é tomada como o melhor

regime político, na Antiguidade, era classificada como um mau regime, um

regime corruptível e corruptor da politeia.

Precisamos levar isso em consideração porque o emprego da

retórica será, de um jeito ou de outro, classificado segundo classes de

discurso de maneira correspondente ao modo como estas instituições

são organizadas. Aristóteles nos diz que a retórica não pertence a nenhum

gênero determinado, diferentemente da ciência que tem sempre um

gênero discursivo determinado, segundo o qual há sempre princípios e

conclusões certas e seguras obtidas por meio do silogismo demonstrativo

ou da analítica, ou seja, por meio de um raciocínio em que certas premissas

implicam conclusões necessárias. Mas se, por um lado, na retórica não há

um gênero determinado, por outro, há um gênero indeterminado que vai se

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
moldando à medida em que se emprega a persuasão, tendo em vista o maior

bem — o bem comum, no caso da pólis, e a verdade, no caso do intelecto, ou

da atividade filosófica ou da atividade poética em alguma medida.

Cada uma dessas classes, portanto, corresponde a tantas quantas

sejam as instituições e os lugares-comuns dos quais a comunidade política

participe. Por isso, a retórica não tem um gênero específico, mas ela em si

mesma possui classes e especificidade que são próprias suas. Nesse sentido,

a retórica nos tribunais corresponde a um gênero específico dela (retórica),

mas jamais específico cientificamente considerando, e será diferente da

retórica nas assembleias, que, por sua vez, será diferente da empregada

por aquele que exerce o poder ou que pretende uma espécie de monólogo

para falar de si ou de outrem, visando um elogio ou uma censura.

Aristóteles nos apresenta três tipos de gêneros oratórios resultantes

da ars rhetorica, Tomando por base que a retórica é um tipo especial de

discurso que visa sempre a verdade, mas que, por ausência de um grau de

certeza e mesmo de um grau de probabilidade, o máximo a que ela chega

é a verossimilhança desse grau de plausibilidade. Dentro disso, são três os

tipos de discurso ou classes do gênero oratório que pertencem à retórica.

Diz Aristóteles:

Três são em número as espécies da retórica, dado que outras tantas

são as classes de ouvintes do discurso que existem. Porque o discurso

consta de três componentes: o que fala, aquilo do que se fala e aquele

a quem se fala; mas o fim se refere a este último, ou seja, o ouvinte.

Agora, o ouvinte é, por força, ou um espectador ou alguém que julga;

e, neste último caso, alguém que julga sobre coisas passadas ou

sobre coisas futuras. Há, com efeito, quem julga sobre o futuro, como,

por exemplo, um membro de uma assembleia, e quem julga sobre

sucessos passados, como faz o juiz; o espectador, à sua vez, julga sobre

a capacidade do orador. De modo que é preciso que existam três

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
gêneros de discursos retóricos: o deliberativo, o judicial e o epidítico.

O discurso deliberativo visa sempre persuadir a comunidade acerca

de um bem que, assumido no presente, repercutirá no futuro. Se admitimos

por persuasão que há maior verossimilhança em tomar uma posição, a

mais próxima possível do bem, segundo o que foi dito, isso implicará uma

melhoria futura, isto é, uma maior proximidade relativamente ao bem de

parte desta assembleia.

Esse é o caso do discurso legislativo. Alguém que defenderá um

projeto de lei usa de vários artifícios para persuadir os demais a votar com ele

esse projeto, transformando-o em lei. Mas, para fazer isto, ele será impelido

a persuadir os demais de que, aprovar essa lei, implicará num bem comum
para essa comunidade política. Esse tipo de discurso chamado deliberativo

tem em vista sempre um bem futuro. Ele olha, portanto, para os futuros

contingentes em relação àquele bem. O tempo aqui é o tempo futuro. Diz

Aristóteles: “Os tempos de cada um desses gêneros são, para a deliberação,

o futuro (pois se delibera sobre o que sucederá, seja aconselhando, seja

dissuadindo disso).

Então há dois fins próximos correspondentes do discurso

deliberativo: (1) apresentar a conveniência dessa medida e (2) mostrar que

ela é prejudicial. No caso do legislador, ele quer convencer alguém de que

aprovar um projeto de lei é conveniente. Suponhamos que um legislador de

posição contrária tente persuadir a comunidade de que tal projeto será no

fundo prejudicial. Assim sendo, o fim do discurso retórico, no primeiro caso,

é a conveniência e, no segundo caso, é o prejuízo, justamente considerando

a maior proximidade com o bem. No caso não é uma proximidade

certa nem mesmo provável, mas uma proximidade verossímil, plausível

(entendendo-se verossímil como aquilo que tem aparência de verdade).

O segundo tipo Aristóteles chama de discurso judicial. Diferente do

primeiro, o judicial é aquele que olha para o passado, para fatos pretéritos,

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
para o que aconteceu. Se na deliberação usamos a vontade para com o

intelecto dirigir cada ser humano a uma decisão que implicará o futuro,

no discurso judicial a memória da história é convidada a se manifestar

mostrando os fatos e apresentando maior ou menor proximidade com

aquilo que poderia ser tomado — usando um exemplo do direito penal —

como a autoria do crime ou a materialidade da prova. No fundo, o discurso

judicial é próprio dos tribunais, daqueles que julgam, e a sua finalidade é a

aplicação da justiça ou a correção da injustiça. Se for um magistrado que é

justo, ele vai procurar sempre a aproximação maior com a verdade; se ele,

todavia, for injusto, vai tentar usar de artifícios prementes na retórica tendo

como finalidade substituir a verdade pela mentira e tomar a mentira como

se verdade fosse de uma forma intencionalmente má, perversa.

Observem que interessante como Aristóteles diz isso:

O próprio da deliberação, primeiro caso, é o conselho e a dissuasão,4

pois uma dessas duas coisas é o que fazem sempre, tanto os que

aconselham em assuntos privados, como os que falam ante o público

com o propósito de realizar o bem comum [ou interesse comum]. O

próprio do processo judicial é a acusação ou a defesa, dado que os

que pleiteiam forçosamente devem fazer uma dessas coisas.

Acusar ou defender só ocorrem porque aquele que acusa e aquele

que defende perseguem a justiça. Ora a justiça na sua acepção plena, na sua

identificação com dar aquilo que é devido a outrem, ora de forma precária,

privada ou até corrupta de entender a justiça, como é o caso de Cálicles e de

Pólo, no Górgias de Platão, que tomam a justiça não como dar a cada um o

que lhe é devido, mas como o domínio do mais forte sobre o mais fraco ou a

maximização dos apetites em prol do indivíduo, e não da comunidade. Mas

mesmo nesses casos, a acusação e a defesa aparecem como estratégias

para o discurso retórico que terá como fim o justo e o injusto.

O terceiro tipo específico é o discurso epidítico, também chamado


4  Ou seja, é conveniente ou não é conveniente.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
monológico: quando alguém fala bem ou mal a respeito de si ou de outrem.

É uma espécie de monólogo. Aqui Aristóteles diz claramente: “O fim do

discurso epidítico é o elogio ou a censura”. O elogio, porque aquele que o

faz pretende ornamentar a sua pessoa com qualidades. Por exemplo, uma

pessoa fará uma entrevista de emprego e falará bem de si. Para isso, ela

selecionará somente as qualidades e deixará os defeitos de lado. Isso é uma

tática do discurso epidítico que, nesse caso, é o seu fim último, sua causa

final, o elogio. Aquele que contra-argumentar essa postura censurará a

pessoa no sentido de apresentar justamente os defeitos, e não apenas as

qualidades.

Vejam que interessante o que Aristóteles nos diz no Livro II, a partir

de todas essas coisas:

[...] posto que, para cada gênero de discurso há um fim distinto e

para todos eles foram definidas as opiniões e enunciados de onde

(os oradores) obtém só as provas por persuasão,5 tanto nos discursos

deliberativos e epidíticos, como nas controvérsias forenses [no caso

da retórica judicial], e posto que ademais temos estabelecidos já

também a partir de que procedimentos é possível fazer que os

discursos expressem o talante, nos resta tratar dos lugares-comuns (a

todos esses discursos). Porque, com efeito, a todos (os oradores) lhes

é forçoso servir-se em seus discursos do ‘possível’ e do ‘impossível’,

assim como esforçar-se em demonstrar, uns, que será assim e,

outros, que será de outra forma. Assim, também é comum, em outros

discursos, o lugar relativo à magnitude, dado que todos fazem uso da

diminuição ou da amplificação,6 seja em suas deliberações e elogios,

seja quando censuram e acusam, seja em seus discursos de defesa.

Pelo mais, uma vez que estejam definidas essas coisas, buscaremos

falar em comum — se é possível em alguma medida — dos entimemas

5  Os lugares-comuns dos quais nós falávamos antes.


6  No caso dos defeitos e das qualidades do discurso epidítico, por exemplo.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
e dos exemplos, a fim de que, incorporando o que falta, concluamos

a proposição proposta desde o princípio. Entre os lugares-comuns,

contudo, o de amplificar é o mais apropriado aos discursos epidíticos,7

como já se disse; o de remeter aos fatos o é aos discursos judiciais

(pois o ato de julgar versa sobre eles); e do possível e do futuro, aos

discursos deliberativos.

Para terminar, explicarei o que é o entimema. Na demonstração

temos sempre uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão;

na dialética temos uma tese, uma antítese e uma síntese; e na retórica

temos o entimema. O entimema é um tipo de estrutura de discurso em

que passamos sempre da premissa maior para uma conclusão, ou seja, a

premissa maior é um lugar-comum, um topos, alguma coisa que todos


afirmem opinativamente como válida.

Por exemplo, a seleção brasileira é a melhor seleção do mundo. Eu

sinceramente discordo, mas vamos supor que a maior parte dos brasileiros

tomem como válida essa afirmação, é uma opinião geral. Então eu tomo

essa opinião e logo concluo uma série de outras coisas: já que a seleção

brasileira é a melhor do mundo, ela certamente ganhará a próxima Copa

do Mundo. Ou seja, um discurso que traz uma espécie de conveniência


em relação ao futuro dado um lugar-comum, uma opinião compartilhada.

Em suma, no entimema sempre temos em vista uma estrutura, assim

como na demonstração e na dialética; porém, nessa estrutura, não há uma

premissa menor, passamos diretamente do lugar-comum para conclusão.

Por isso que o discurso retórico é baseado não na verdade ou no

saber científico ou no conhecimento propriamente dito, mas em uma mera

opinião, em um saber aparente, uma crença ou, para usar uma expressão

empregada pelos gregos, uma opinião, uma doxa. Em suma, compete ao

retórico induzir alguém a assumir um saber aparente como se verdadeiro

7  Ou seja, quando alguém fala de si ou de outrem, fala sempre amplificando as qualidades e diminuindo os
defeitos ou, aquele que censura, faz o contrário.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
fosse, mas não porque ele tenha má intenção, senão porque, crendo ter

alcançado com o máximo de esforço investigativo a verdade não absoluta,

mas apenas a aparência da verdade, ele quer com isso persuadir os outros a

chegar onde chegou. Daí a distinção entre a retórica e a erística, o uso bem-

intencionado e mal-intencionado da verossimilhança, como normalmente

faziam os sofistas (caso de Górgias ou de Cálicles), a diferença está em que

a retórica persegue a verdade, mas não chega nela; isso porque a estrutura

da sua argumentação não permite situar entre o topos (o lugar-comum),

a premissa maior e a conclusão uma premissa menor que possa avaliar as

condições de veracidade da premissa maior, como normalmente ocorre na

dialética com a antítese relativamente à tese.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
AU L A 3

TRATADO DA

ARGUMENTAÇÃO: A NOVA

RETÓRICA
Nesta aula trataremos de uma obra que eu diria muitíssimo

importante para a retórica e a argumentação em geral no século XX.

Normalmente, quando pensamos na temática da retórica, nos

ocupamos com os autores clássicos da Antiguidade que escreveram acerca

desse tema — Aristóteles, Platão, Quintiliano, Cícero, dentre outros — e

pouca ou até nenhuma atenção dedicamos aos autores que comentaram a

retórica nos períodos posteriores.

Por esse motivo, na cultura europeia como um todo, é como se a

retórica tivesse ficado adormecida por alguns séculos. Isso não significa,

todavia, a inexistência de autores que tenham se dedicado, comentado e

analisado a retórica. Porém, o acervo bibliográfico acerca da retórica clássica


ficou como adormecido até o século XX, tanto em seu alcance, quanto em

sua reputação.

Na passagem do século XIX para o XX, houve grandes transformações

na cultura filosófica e na cultura interessada na filosofia da linguagem e

nas teorias da argumentação. Tivemos todo um movimento em prol da

chamada lógica simbólica, ou lógica matemática, que outra coisa não fez

senão transfigurar as regras e axiomas clássicos da lógica formal aristotélica

e estoica e oferecer um novo padrão de avaliação e de normas para os

raciocínios analíticos.

Autores importantes como Gottlob Frege, Wittgenstein e outros foram


decisivos nesta empreitada de transfigurar a lógica e a fundamentação

da matemática nos seus aspectos mais intestinos. Isso promoveu uma

mudança significativa no panorama filosófico da Europa do início do

século XX, levando não só à fundação, mas também ao desenvolvimento da

Escola Analítica, que estava interessada no estudo semiótico e analítico da

linguagem, distinguindo a linguagem natural daquela objeto das ciências

e da metalinguagem.

É importante termos bem presente esta transformação no panorama

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
cultural ocidental que vergou a tônica dos interesses filosóficos para o

campo da linguagem, porque, durante praticamente toda a primeira

metade do século XX, os interesses filosóficos no campo da linguagem

ou da lógica orbitaram em torno das várias lógicas que foram nascendo

e se desenvolvendo naquele período: as diversas lógicas modais aléticas,

a lógica de relevância, a lógica epistêmica e os avanços significativos da

lógica matemática a partir da obra de Frege e de autores posteriores, como

Bertrand Russel e outros. Por isso, naquele período existia uma obsessão

pela lógica demonstrativa atual, uma lógica que se mostra apta a ser

tomada como um método universal para as ciências dedutivas, cujo escopo

central é a apresentação de regras e axiomas a partir dos quais certos sinais

gráficos, símbolos representativos de variáveis e constantes lógicas — e

por isso o termo “lógica simbólica” — passam a ser empregados nesses

teoremas justamente para dar vazão a provas e a demonstrações em geral

nos diversos campos da ciência. Diante desse panorama, dada a lógica

formal — agora lógica simbólica —, há um crescente desprezo pela posição

que a dialética e a retórica poderiam ocupar nos raciocínios apodíticos.

A partir da passagem da primeira para a segunda metade do século

XX, assistiremos ao florescimento da dialética e, em especial, da retórica

no campo do Direito, da Sociologia e mesmo, um pouco mais tarde, da

Filosofia. Ou seja, no século XX ocorre uma espécie de reflorescimento da

retórica, uma restauração do grau de relevância que ela deve ter no campo
da argumentação e dos raciocínios. Aquela pecha imputada à retórica

com o desenvolvimento rigoroso da lógica matemática e simbólica estava

agora com os dias contados. Alguns autores foram decisivos para este

reflorescimento da retórica.

O primeiro que se dedica a reestabelecer a retórica é um autor

muito importante chamado Theodor Viehweg. Ele escreve sua obra magna

Tópica e jurisprudência tendo em vista um posicionamento dentro da

retórica, da lógica jurídica e da argumentação jurídica. Ou seja, um jurista

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
de uma área específica chamada ciência do direito pretende mostrar que

a retórica e a dialética devem ocupar um lugar de proeminência em um

determinado âmbito de raciocínios humanos. Esse reposicionamento

desses dois tipos de discurso no horizonte, não somente dos raciocínios em

geral, mas também do raciocínio jurídico especialmente falando, traz à tona

a restauração da retórica no século XX.

Logo depois da Tópica e jurisprudência, um escrito de grande

impacto, sobrevém uma obra de fundamental importância para o

desenvolvimento da retórica em campos mais específicos e mais longevos:

Tratado da argumentação: a nova retórica, de Chaïm Perelman, um autor

muito importante sobre o qual trataremos nesta aula. Ele, aliás, escreve esse

livro com Lucie Olbrechts-Tyteca, colega então na Universidade de Bruxelas,

onde eles mantêm um profícuo centro de pesquisa em retórica.

Dos muitos livros escritos por Perelman, o Tratado da argumentação

pode ser considerado como a obra magna dos seus esforços para o

desenvolvimento da retórica não só no direito, mas sobretudo no campo

argumentativo em geral. Perelman obviamente escreve outras obras

importantes, e até mesmo publica algumas de suas conferências, que em

alguma medida são partes menores, mas especificamente desenvolvidas

de temas já presentes nessa obra. Esse também é o caso da edição disponível

no Brasil, pela Martins Fontes, cujo título é Retóricas.

Considerando as duas, eu indico a obra Retóricas para aqueles que

pretendem uma leitura mais rápida, ela é até mais fácil de ser adquirida.

Mas para os que têm interesse em aprofundar-se na temática da retórica

com maior diligência, prestando atenção a elementos mais específicos —

alguns dos quais veremos nesta aula — indico o Tratado da Argumentação.

Nesta obra Perelman expõe a sua nova retórica que, do meu ponto de vista,

é nova, porém com ares muito clássicos. Ela é apenas nova no que tange ao

modelo de apresentação; contudo, o subterfúgio e o pano de fundo desta

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
nova retórica já estavam consolidados nas obras de Aristóteles, Quintiliano

e Cícero.

Esta obra de fundamental importância é publicada pela primeira vez

em 1958, com o objetivo de levar a cabo o que Viehweg havia iniciado e

empreendido, ou seja, reestabelecer o lugar adequado da retórica no espaço

da razão e portanto no espaço da atividade reflexiva do meio acadêmico

europeu naquele período. O Tratado da argumentação apresenta a

retórica de uma maneira que eu diria profundamente taxonômica. Que eu

quero dizer com isso? Quando observamos as diferenças existentes entre

Górgias de Platão e a Retórica de Aristóteles, notamos uma diferença

bastante premente. Enquanto Platão apresenta a retórica dentro de uma

narração, Aristóteles a apresenta segundo uma classificação científica de

suas propriedades conceituais e temáticas. É como se, quando lêssemos

Platão, a leitura despontasse de uma maneira mais fácil, porque estamos

aprofundando nossa análise dentro de uma narração; ao passo que a

leitura de Aristóteles exigirá um fichamento, uma variedade de anotações

para que depois rememoremos os termos tão logo consultemos nossas

anotações, dado o caráter classificatório da obra em relação aos seus temas.

A obra de Perelman não se contenta apenas em estabelecer uma

classificação dos temas já presentes na Retórica de Aristóteles, mas

vai adiante, porque insere uma série de outros conceitos e de outras

temáticas. Nesta obra, ele tem uma propositura primeira muito clara de

que a retórica serve à eficácia e à aplicação da justiça, de modo que, para

vê-la adequadamente, deveríamos primeiro compreender o que o autor

entende por justo e, depois de bem compreendido isso, descermos à

estrutura da obra e como, a partir dessa estrutura, refletiremos sobre certos

temas importantes e novidades que ele apresenta em comparação com os

clássicos.

Por isso, eu os convido a ver comigo o seguinte: Perelman nos diz

51
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
que, no século XX, nos campos da teoria e da filosofia do direito, existe uma

certa obsessão dos autores por uma busca permanente de um conceito

universal de justiça formal ou procedimental. Ou seja, a despeito das

diferenças ideológicas, sociais, intelectuais, políticas, morais, religiosas, de

valores e de juízos em geral, esta concepção de justiça, dado o seu caráter

formalista, teria condições de manter-se e conservar-se de forma perene.

Veja que estes esforços já tinham sido feitos no passado pelo próprio

Aristóteles e outros autores. Porém, diferente destes, Perelman tem em

vista oferecer um modelo teórico de justiça formal, dentro do qual a retórica

possa ser analisada, descrita e avaliada, sem cair numa dependência em

relação a essas diferenças ideológicas de valores e diferenças de todo o

gênero. No fundo o que ele pretende nesta obra é mostrar que a retórica,

mais do que perseguir a verdade, é um discurso que persegue a verdade

formal dado o caráter relativista do conceito de verdade abraçado na era

contemporânea. Claro que isso nos traz inúmeros desafios. Certamente

se nós formos por alguma razão objetar essa propositura, poderemos ter

todo tipo de fundamentação e até justificação para fazer. Porém, algo que

parece bastante interessante e ao mesmo tempo chocante do ponto de

vista intelectual, é o fato de que essa propositura não tem outra finalidade,

senão a de descrever as condições formais do discurso retórico na era

atual. Ou seja, em que medida a retórica pode servir como uma espécie de

unidade formal e estrutural na sociedade política?

Para tanto, Perelman apresenta um conceito geral do que é o justo

e seis grandes critérios que definem o enquadramento conceitual dessa

definição universal. Para ele, justiça procedimental corresponde ao ato de

dar a cada um o que lhe é devido segundo a sua categoria. Esta categoria

dependerá exatamente de qual é o critério selecionado para defini-la. Existe,

pois, seis categorias correspondentes a esses seis critérios.

O primeiro é critério da propriedade: a cada um o que é próprio. Aquilo

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
que pertence a cada um, não só uma propriedade no sentido econômico,

mas no sentido amplo da expressão — ou seja: a cada um, o mesmo. O

segundo é aquilo que é previsto em lei, e aqui o caráter institucional do

direito é algo bastante importante. O terceiro, segundo a categoria dentro

da qual um agente em relação aos outros mereça algo. Por exemplo, para

a categoria dos assalariados de tipo “B”, o valor adicional correspondente

será “X”; para os da classe “C”, será “Y” e assim por diante. Nos critérios

seguintes, como se verá, há um contato bastante próximo com a ideia de

juízos de valor. O quarto tipo chamaríamos de critério por meritocracia: a

cada um segundo seu mérito. Isso possui muitas acepções. Posso persuadir

alguém de que outra pessoa merece mais em razão do mérito que ela

me mostra. O quinto seria o critério laboral: quem trabalha mais merece

ganhar mais, quem trabalha menos merece ganhar menos. Por trás disso,

há uma concepção igualitarista no sentido da igualdade social. E o sexto

seria o critério de necessidade. Aqui, sim, a ideia da igualdade material,

a ideia típica do Estado social, do welfare state. Em todos esses casos, o

posicionamento do discurso retórico, à medida em que se aproxime dessas

categorias, obterá um certo grau de universalidade.

Perelman, a certa altura, como veremos, distingue a persuasão do

convencimento, o persuadir do convencer. A persuasão ocorre quando tento

persuadir um indivíduo particular a acreditar naquilo que estou dizendo.

Dado o caráter de verossimilhança de meu discurso, eu como que induzo


esse indivíduo a aderir um saber aparente, uma opinião minha; ao passo

que o convencimento se dá quando me dirijo a toda uma assembleia, a

todo um auditório, portanto a um número muito maior e até indeterminado

de pessoas. Esse número indeterminado, por sua vez, trará uma exigência

muito maior de justificação e fundamentação no modo como postularei

meu discurso retórico. Porque nesse caso não se trata de persuadir alguém

a adotar uma opinião, e sim de convencer um auditório — e esta é a

expressão-chave na obra de Perelman — a abraçar o que está sendo dito

53
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
de uma forma que, se não unânime, ao menos com o máximo possível de

concordância. Portanto, quanto maior proximidade o discurso tiver com

essas categorias de justiça procedimental, haverá, segundo Perelman, uma

proximidade maior com o consenso e, portanto, com a admissão universal.

Neste ponto, o autor levanta uma questão importantíssima. Dentro

da retórica em geral, qual é aquela área do saber em que o discurso retórico

é tomado como o paradigma do raciocínio prático? Lembremos que a

dialética e a retórica não pertencem a um gênero determinado — vimos

isso com Aristóteles e Platão — diferentemente da demonstração em que

há sempre uma especificação do domínio do objeto com o qual lidamos.

Como na retórica não há um gênero determinado, então há um grau de

maior universalidade. Contudo, na medida em que empreendemos o

discurso retórico, somos obrigados a agir de alguma forma. Agir supõe

um ato deliberativo da razão prática que, avaliando as circunstâncias e as

condições da ação, persegue um determinado objetivo que a ação toma

para si como um bem a ser realizado.

Por exemplo, agirei de modo a ministrar esta aula a respeito do

livro de Perelman. O ato de ministrar esta aula me exige um movimento

que eu faço tendo em vista uma finalidade. Esta uma finalidade eu tomo

como um bem para mim, para vocês e para todos nós em geral, de modo

que, dentro da ideia mesma do raciocínio prático, sou impelido a tentar

mostrar, com o máximo de verossimilhança possível, a proximidade com

o bem que procuro realizar nessa ação. Ou seja, existe uma relação interna

entre a retórica e a razão prática nesse sentido. Essa relação muito íntima

entre a razão prática e a retórica tem vários graus: começa em um agente

humano individualmente considerado e vai se estendendo à medida em

que o circuito das relações humanas vai aumentando e alcança sua máxima

acepção na comunidade política. Se na comunidade política aquilo que

coage os seres humanos a agir de uma determinada forma e os coíbe a

não agir de outras formas proibitivas é o discurso jurídico, ou melhor, o

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
discurso legal, então é claro que, entre o discurso legal, a retórica e a razão

prática, existe uma correspondência analógica profunda. O que Perelman

nos diz, portanto, é que a retórica jurídica é o paradigma da retórica clássica.

Porque se a retórica jurídica é a que promove o discurso retórico dentro

das instituições, como dizia Aristóteles, então é claro que a retórica, dentro

das instituições do direito e da política, terá uma forma institucionalizada

e padronizada muito mais evidente e muito mais concreta para todos na

própria comunidade.

Há uma enorme diferença entre argumentar sozinho, argumentar

com um amigo, argumentar com um grupo de amigos, argumentar

num encontro com colegas de trabalho e na pólis. Supondo que você

desempenha algum cargo político, você sabe disso. É muito diferente

quando você fala aos seus pares na assembleia ou na câmara dos vereadores

e o discurso em que você tenta convencer um grupo razoável de pessoas

ou persuadir alguém a adotar uma determinada opinião, um determinado

topos. Por isso Perelman nos diz que, há na retórica jurídica uma espécie

de caráter especializado e institucionalizado que coíbe os que se dedicam

a estudá-la, aperfeiçoá-la e se aprofundar nos seus aspectos entranhados,

nos seus elementos mais interiores.

Portanto, Perelman quis com essa primeira propositura mostrar

que, dessa relação profunda entre as instituições, o discurso retórico, o

agir humano e o raciocínio prático, no fundo há uma demonstração cabal,

sociologicamente falando, do lugar que a retórica deve ocupar no horizonte

da razão humana e das razões compartilhadas. Ou seja, a importância da

retórica na sociedade não é meramente trivial, como queriam alguns na

primeira metade do século XX, mas a importância dela é decisiva para a

forma de vida humana, e seu contato com a política e com o direito mostra

o seu caráter institucionalizado.

Eu havia dito anteriormente que Perelman estabelece uma diferença

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
entre persuasão e convencimento. Aqui a diferença entre ambos se dá em

relação não a respeito de quem está falando, nem somente em razão do

objeto de que se fala, mas também para quem se fala. Na persuasão se

fala para um agente individualmente considerado e no convencimento se

busca precisamente convencer um auditório universal. O conceito-chave

da retórica de Perelman é o conceito de auditório universal, isto é, o endereço

do discurso retórico, o lugar onde se veicula o discurso retórico, o lugar a

partir do qual a imagem de quem fala suscita um grupo de receptores que

devem ser tomados como seres racionais que, diante do discurso veiculado,

comportam-se de modo a oferecer o máximo de resistência possível ao que

está sendo dito. É como se esse auditório fosse um lugar comum, aquilo

que alguns autores, como Aarnio, um grande estudioso da lógica jurídica,

chamam de humanismo esclarecido. Ou seja, é o lugar onde atingimos um

patamar de maior excelência na atividade intelectual.

O conceito de auditório universal é o conceito em torno do qual o

discurso retórico terá sempre como regra e medida um padrão avaliativo

superior que ofereça para o emissor do discurso um conjunto de exigências

suficientemente capazes de conduzi-lo a uma estatura epistêmica maior do

que há quando esse mesmo agente entrou para discursar. É como se você

fosse falar a um auditório e soubesse que ali estão pessoas que sabem muito

a respeito do assunto do qual você está falando. Por exemplo, você é um

especialista em física quântica e falará sobre o tema “X” para um auditório


de físicos, e você não sabe muito bem o quanto aquelas pessoas sabem de

física quântica, física clássica etc. Você partirá, portanto, do suposto de que

todos dominam a física quântica porque, com base nessa exigência, você

está partindo de um lugar segundo o qual o padrão epistemológico, o nível

cognoscitivo, a respeito do objeto da sua fala é o mais excelente possível.

Quando estamos perante o auditório universal, estamos perante uma

comunidade de interlocutores. Como diz Perelman, uma união de espíritos.

A ideia espírito é a ideia exatamente daquilo que aparece na língua grega e

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
na filosofia grega como um todo: a ideia do mundo intelectual. É como se

fosse um mundo transcendental, uma espécie de mundo compartilhado

da razão universal, no qual existe uma espécie de padronização a mais

excelente possível sobre a estatura científica e/ou filosófica das coisas ditas.

Não à toa, Perelman, um autor belga, é muito influenciado por

inúmeras escolas do continente europeu, como o Romantismo, mas

também pela fenomenologia de Husserl, sob certo aspecto. Então essa

noção de auditório universal converge em ampla medida com a ideia de

um mundo transcendental abstrato, no qual a razão universal é o critério

para o que se deve e o que se não deve dizer. E aquilo que se convencionou

crer de que apenas a lógica matemática e simbólica teria um lugar ao sol

dentro desse mundo transcendental da razão universal compartilhada,

Viehweg e sobretudo Perelman dizem que este padrão epistemológico

também deve subsistir para avaliar a retórica. De modo que todos aqueles

que pretendem veicular o discurso dentro do auditório universal devem

partir do suposto de que os interlocutores têm condições de julgar e avaliar

o que está sendo dito — um background avaliativo —; e um pano de fundo

no qual os participantes sabem não só avaliar, mas também descrever o

objeto adequadamente — background descritivo. Por isso a noção de

auditório universal nos leva a considerar cinco grandes pontos.

(1) A ideia de que o endereço da argumentação retórica traz para

nós a percepção de que a argumentação apresentada supõe

um conceito-limite. Isso quer dizer que a intenção do agente

produtor do discurso retórico (o orador) não é outra, senão tornar

sua argumentação padrão, isto é, uma argumentação capaz de

assumir uma estatura universal epistêmica e ao mesmo tempo

inquebrantável. Notem, o conceito de auditório universal no que

se refere ao discurso retórico transmitido torna-o pretensamente

universal, apesar de verossímil. Como vimos em Aristóteles,

o discurso pretende à verdade, mas é verossímil. Ora, se ele

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
é verossímil, como adquirirá uma estatura suficientemente

capaz de tornar-se inquebrantável? É justamente este o esforço

daquele que se dirige ao auditório universal: tornar o discurso

inquebrantável, torná-lo um conceito-limite. Essa constatação

de que o argumento retórico dirigido ao auditório pretende ser

um conceito-limite, isto é, uma fusão entre a intenção do agente

e o argumento propriamente dito, como se esse argumento

fosse normativo para todas as situações, implica um segundo

desafio.

(2) A direção do discurso dentro do auditório universal quanto ao

objeto do que é dito. Notem que, no primeiro caso, é o discurso

em si. Aqui já estamos no auditório universal e podemos

entender o objeto desse discurso. O objeto desse discurso pode

ser de dois tipos:

(1) Ele pode ter uma pretensão de apresentar um argumento

verossímil em relação a um objeto particular. Por exemplo,

quando eu digo que é verossímil crer que um matemático

ou um lógico saberá resolver um cálculo de predicados de

primeira ordem, ou é razoável ou mesmo verossímil crer

que alguém que se dirige à farmácia irá comprar uma

medicação. É verossímil, porque não é certo. O matemático

pode não saber resolver um cálculo de predicamentos e

a pessoa pode ter ido à farmácia comprar outra coisa. O

objeto com o qual estou lidando nesse caso é particular.

(2) Mas eu também posso lidar com outro tipo de objeto que

chamaremos de objeto universal. Neste caso, o grau de

adesão do auditório vai se tornando cada vez mais exigente

e o tipo especial desse modelo de discurso retórico é o

que chamamos discurso filosófico. Alguns autores —

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
e Perelman analisa isso na Retóricas —, contrastam a

retórica e a filosofia mostrando que ambas têm objetos

diferentes. Porém, há um lugar para a retórica na filosofia.

Quando alguém se vale do discurso retórico para falar

sobre coisas universais, ele o faz como que induzindo o

auditório a abraçar um saber aparente a respeito de um

objeto universal. Por exemplo, o sujeito discursa de uma

maneira profunda e proeminente sobre o mundo das

formas, como faz o Sócrates em vários diálogos, e em

particular em Timeu, buscando induzir os interlocutores

a adotar a tese dele de que existe de fato um mundo das

formas, um mundo para além deste. Esse trato com o

objeto nos leva à terceira questão.

(3) O discurso retórico pode se tornar uma questão normativa. Como

uma argumentação baseada na verossimilhança pode se tornar

normativa para todos os demais? Esse é o típico caso que vemos

na vida política dos Estados modernos, em que os tribunais, os

parlamentos, as instituições do Estado procuram, cada qual ao

seu modo, fabricar normas (o legislador cria normas gerais e

os tribunais normas, específicas para os casos). Claro que isso

é somente um conceito genérico, mas via de regra é assim. No

entanto, e quando o argumento máximo a que se pode chegar


é um argumento retórico? Em que medida deveríamos assumir

isso como um argumento normativo, já que a base desse

argumento é o saber aparente? Justamente para tentar sopesar

essa questão, advém a noção de auditório universal, o encontro

dos espíritos, como diz Perelman.

(4) Aqueles que estão no auditório são seres humanos, e devem ser

tomados na sua melhor acepção. Por exemplo, é usual em uma

sociedade de massas os líderes falarem para multidões valendo-

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
se de modelos de persuasão e modelos de convencimento,

dado que esses modelos lidam justamente com uma fraca

credibilidade na estatura racional dos ouvintes. Por exemplo,

como o povo não sabe muito bem no que acreditar, é mais

provável que ele aceite o que quer que se diga. O que essa

noção de auditório faz é justamente o contrário: há uma

espécie de convicção no melhor do ser humano, uma crença na

racionalidade humana, e essa crença exige que o imaginário do

rétor se paute por essa convicção. O agente deve estar convicto de

que está falando para pessoas que têm profundidade intelectual

e, no caso das comunidades científicas, profundidade no objeto

do conhecimento.

(5) Existem tantos auditórios quanto áreas do saber. Ou seja, eu

poderei veicular o meu discurso a tantos quantos forem os

mundos cognitivos e cognoscitivos com os quais eu esteja

lidando e, dentro de cada um desses mundos, posso fazer uma

série de avaliações do auditório. Por exemplo, o auditório dos

químicos, o dos físicos, o dos matemáticos, o dos juristas, o dos

políticos, o dos filósofos, o dos gramáticos, o dos músicos, o dos

dialéticos e lógicos. Cada auditório desses terá seu conjunto

específico de padrões e poderá sofrer diversas avaliações. Eu

poderia fazer uma análise sociológica do auditório dos químicos


ou uma análise psicológica dos lógicos. Ou seja, há uma

variedade de auditórios disponíveis que poderiam de algum

modo sustentar uma análise mais contundente a respeito dessa

noção.

Esse miolo é o que demarca o Tratado da argumentação de

Perelman. Aliás, é importante que se diga que esta obra se divide em três

partes. Na Parte I, Perelman faz uma análise dos pressupostos e limites

da argumentação. O que é o auditório? Como postulo certas exigências

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
dentro de auditórios específicos? À medida que eu vou universalizando

o auditório, essas exigências (ou seja, os limites e os pressupostos da

argumentação) vão aumentando significativamente. Até onde posso ir

com a minha argumentação? Por que não posso transpassar o lugar da

minha argumentação? Qual é exatamente o lugar-comum? Por exemplo,

estamos diante de uma comunidade de interlocutores, e um político que

falará sobre um projeto de lei, começa a dar aula de química. Todo mundo

dirá que ele enlouqueceu, ele acha que está numa sala de aula. Todo

mundo está achando que ele enlouqueceu, porque ele está falando para

o auditório errado. Nesse caso, o problema é o âmbito da argumentação,

portanto os pressupostos e os limites: ele não satisfez os pressupostos e

cruzou os limites da argumentação. No fundo, estamos aqui perante o

lugar da interação dos seres humanos, onde a razão prática, os agentes e o

discurso retórico poderão ser veiculados.

Leiamos o que o próprio Perelman tem a dizer sobre isso, e vejam

que interessante essa questão sobre o âmbito da argumentação — o

auditório, no caso — como uma construção do orador:

“A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão

próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada

do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto

de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências.

Uma argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito

revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato,

razões contra.”

Como é uma imagem que o rétor faz, ela tem de ser a mais próxima

possível do real. Quer dizer, uma desconfiança profunda da realidade

que o leva a tomar a realidade sempre como mais exigente. Então veja a

consciência do agente que fala e o quanto ela é importante nessa primeira

parte da obra em que Perelman trata dos âmbitos da argumentação.

61
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
A Parte II é intitulada “O ponto de partida da argumentação” e

compõe-se de três capítulos, os quais tratam dessa questão dos pontos e

teses correspondentes aos pontos de partida do raciocínio. Nessa parte do

Tratado está muito claro que Perelman pretende esmiuçar o que Aristóteles

já havia abordado nos Tópicos e na Retórica a respeito do conceito de topos

(lugar-comum): quais as opiniões e crenças que compartilhamos. Existem

três pontos menores importantes: o acordo, a escolha e, a partir desta, a

postulação das premissas.

O acordo é sobre o que exatamente faremos: como selecionaremos

as opiniões que entram e as que saem do discurso, como selecionar os

axiomas verossímeis, dos quais partimos para dizer o que queremos e

excluir outros que, consciente ou inconscientemente, poderiam atrapalhar

o objeto da nossa argumentação. Observem como aqui a questão da

consciência do rétor é importante. Se ele não tiver consciência o suficiente

de quais axiomas deve manter e quais opiniões deve descartar, ele corre

o risco de excluir opiniões que, no fundo, fortaleceriam a conclusão dele

ou optar por opiniões que mostram uma contrariedade em relação à

propositura inicial, à intenção de tornar verossímil aquilo de que agora está,

com o uso de uma opinião inadequada, pervadindo e contrariando suas

próprias postulações.

Do acordo, ou seja, das opiniões mais universais ou mais particulares,

vamos para a escolha. A escolha é o modo pelo qual teceremos (aqui a

palavra é bem essa) o nosso discurso. É como se pegássemos nosso discurso

retórico e fôssemos ornamentando-o com várias figuras de retórica e de

estilo. Fazendo isso, vamos construindo uma espécie de tecido narrativo-

argumentativo que vai se ampliando para tornar o mais verossímil possível

o que queremos dizer. Ou seja, do acordo sobre o que falaremos ou não

falaremos e o que o auditório quer ou não ouvir, vamos para a escolha não só

das próprias postulações e premissas que serão mais contundentes nesse

momento, mas também as figuras com as quais lidaremos para tornar

62
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
mais ornado nosso discurso.

Por fim, no Capítulo III da Parte II, intitulado “Apresentação dos

dados e forma do discurso”, Perelman trata da chamada postulação das

premissas. Isso não é outra coisa, senão as formas e figuras retóricas com

as quais um rétor, aquele que pretende o emprego da ars rhetorica num

auditório universal, deve ou não utilizar a título de ornamento de seu próprio

discurso.

Após tratar do acordo, da escolha e da postulação das premissas,

Perelman versará, na Parte III da obra, sobre as técnicas argumentativas.

Isso é muito interessante, porque as técnicas argumentativas correspondem

justamente a modelos que são padronizações do discurso retórico e que


lhe conferem uma espécie de capa, ou imagem, do que já existe na lógica

formal. É como se ele fosse apresentado estruturalmente, ainda que em

si não dependa dessa estrutura, como ocorre na demonstração1. Nesse

caso, as técnicas argumentativas conferem ao discurso uma estrutura que,

em comparação à lógica simbólica e formal, é de gesso e não de cimento.

Ou seja, ela pode ser destruída se você pegar pesado. Ela não tem aquela

rigidez estrutural da lógica demonstrativa, do silogismo analítico, porque

a estrutura do discurso retórico é apenas uma capa taxonômica que lhe

confere uma certa padronização. Contudo, é uma padronização sempre

precária nesses termos.

E algo curiosíssimo no último capítulo da Parte II, e na Parte III

propriamente dita, é a passagem da postulação das premissas para

as técnicas argumentativas. Perelman nos apresenta um dado muito

interessante que, no fundo, é uma herança da retórica clássica. Diz ele:

“Desde a Antiguidade, provavelmente desde de que o homem

meditou sobre a linguagem, reconheceu-se a existência de certos

modos de expressão que não se enquadram no comum, cujo

1  Na aula anterior, sobre a Retórica de Aristóteles, tratou-se da estrutura da demonstração: premissa maior,
premissa menor e conclusão.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
estudo foi em geral incluído nos tratados de retórica; daí seu nome

de figuras de retórica em consequência da tendência da retórica a

limitar-se aos problemas de estilo e de expressão, as figuras foram

cada vez mais consideradas simples ornamentos, que contribuem

para deixar o estilo artificial e floreado. Quando um orador, como

Latrão, professava a opinião de que as figuras não haviam sido

inventadas como ornamento, considerava-se esse parecer digno de

nota. A opinião comum, entre os teóricos do discurso persuasivo, é a

de Quintiliano, para quem as figuras são, por certo, um importante

fator de variedade e de comodidade, mas isso ‘conquanto pareça

muito pouco interessante para a prova que os argumentos sejam

apresentados sob esta ou aquela figura’.”

A pergunta é: as figuras que empregamos em um discurso que busca

ou persuadir alguém ou convencer um auditório (por exemplo, metáforas,

perífrases, alusões e outras formas diversas) pertencem ao próprio discurso

retórico como tal ou são apenas questões de estilo narrativo que, se não

fossem colocadas, o discurso poderia ter o mesmo efeito? Uma coisa ou

outra? Perelman nos traz uma posição já apresentada por Latrão, um

grande pensador da Roma antiga, que dizia: “As figuras não haviam sido

inventadas como ornamento”. Em outras palavras, as figuras teriam uma

natureza retórica, de modo que a metáfora poderia ser tomada como algo

não meramente descartável, mas decisivo para a formação do discurso

retórico e portanto do caráter de verossimilhança que poderia ter.

Qual, pois, é o critério para se considerar a alusão, a perífrase, a

metáfora ou qualquer outra dessas como apenas figuras de estilo ou partes

constitutivas do discurso retórico? Qual é o critério que devemos utilizar

para tanto? Essa é a pergunta de Perelman, e a resposta novamente orbita

em torno da noção de auditório universal. Diz ele:

“Consideraremos uma figura argumentativa, se acarretando uma

mudança de perspectiva, seu emprego parecer normal em relação

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
à nova situação sugerida. Se, em contrapartida, o discurso não

acarretar a adesão do ouvinte a essa forma argumentativa, a figura

será percebida como ornamento, como figura de estilo. Ela poderá

suscitar a admiração, mas no plano estético, ou como testemunho da

originalidade do orador.”

Em outras palavras, se a figura for decisiva para convencer o

auditório ou para persuadir o interlocutor a assumir a opinião ou a crença

compartilhada, essa figura é decisiva para o discurso. Se, todavia, ela não

for decisiva para induzir o interlocutor, ou os interlocutores, a adotar a

opinião postulada, então essa figura será apenas um ornamento estético

no discurso. Embora desempenhe a função importante de tornar o discurso

mais belo, dentre outros discursos, não terá importância decisiva do ponto
de vista propriamente retórico.

Perelman é um autor muito importante para quem pretende

estudar a retórica e o modo como a retórica clássica pode, como mostrado

nesta aula, oferecer grandes vantagens para o discurso retórico no âmbito

contemporâneo. A retórica não está morta, pelo contrário: a retórica é um

discurso vivo.

65
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
AU L A 4

CONCLUSÃO
Nas três aulas anteriores tratamos de Górgias em Platão, da Retórica

de Aristóteles e do Tratado da argumentação: nova retórica de Perelman.

Nesta aula pretendo avaliar, ou fazer uma espécie de sopesamento dos

conteúdos das aulas passadas; também avaliar de maneira reflexiva a

estatura da retórica e adicionar alguns elementos fundamentais para seu

adequado entendimento.

Na realidade, a retórica desponta como uma arte liberal, mas ao

mesmo tempo como um tipo de discurso bastante usual no passado e no

nosso tempo. Quando estudamos as pólis gregas, percebemos não apenas

uma estrutura que, moldada a partir das instituições políticas, favorecia o

emprego da retórica no ambiente da cidade onde os cidadãos conviviam

e compartilhavam certas formas de vida, mas também o modo como a

retórica era usada para persuadir e/ou convencer os diversos auditórios

criados por essas instituições.

Parece redundante dizer, mas quando olhamos para o passado,

percebemos como a prática do discurso retórico nas instituições, como

a Assembleia em Atenas, o tribunal dos metecos ou mesmo os tribunais

judiciários nas cidades gregas em geral, além de favorecer e até aperfeiçoar

a vida política, também aprimorava o próprio desenvolvimento dessa

arte liberal entre aqueles que se dedicavam ao estudo da paideia grega.

A importância da retórica na pedagogia clássica é premente e notável, e

está presente tanto no mundo helênico como no mundo latino. Autores

latinos, como Cícero e Quintiliano, se dedicaram ao estudo da retórica e

lhe conferiram uma estatura de arte absolutamente essencial para o

desenvolvimento da vida política em Roma.

Ao nos voltarmos para o passado, vemos a noção clássica de Aristóteles

a respeito da natureza política do ser humano: o homem visto como um

animal político, isto é, como um animal dotado de racionalidade; e, em razão

do intelecto, dotado de uma inclinação natural para a vida em comunidade.

67
E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Esse ser humano — definido por Aristóteles — tem modos diversos de

expressar o conhecimento ora por aparência ora por assentimento efetivo.

Percebemos também existir uma divisão dos saberes. Esta divisão está

presente em Platão, mas Aristóteles a determina de uma forma muito mais

clara e muito mais estruturada.

Nessa divisão dos saberes observamos que, no atinente à cidade e

suas formas de vida, há uma variedade de estudos que convergem para

a análise do ser humano na cidade e da cidade como tal. O estudo da

ética das virtudes, o estudo da política e da constituição de Atenas (isto

é, da organização da cidade), o estudo das funções desempenhadas por

cada instituição política, e o estudo do modo pelo qual da aquisição da

cidadania um cidadão é dirigido à vida pública, para neste ínterim adquirir


uma série de artes que lhe capacitam para o desempenho dessas funções,

certamente uma dessas artes é justamente a retórica. Ela tem portanto uma

importância tremenda na vida política do ethos, do homem público grego,

e do homem latino em Roma. Por isso, Hannah Arendt diz que a Ágora, a

praça em Atenas, é o espaço público da palavra e da ação, o mundo público

comum, o mundo portanto do agir conjunto dos homens que perseguem

a felicidade comum.

A pólis, diferente das demais comunidades, é autossuficiente. Esta

comunidade procura tornar possível, com o máximo de intenção e de ação,

um compartilhamento equânime do bem comum e da variação das formas

de vida humana ali presentes. Por conseguinte, a vida pública impele o

conjunto dos cidadãos a perseguir o bem comum por meio de um diálogo

e debate permanentes e de uma exibição ou performance de cada cidadão

que, na esfera pública, procura articular os enunciados e compor a narração

de seu discurso visando uma aproximação maior com o bem comum e com

a verdade prática da política, como se interpretava à época. Aquele espaço

comum, cujo requisito é o logos (o intelecto), ou seja, aquilo que distingue a

vida na cidade da vida na floresta ou na selva, é justamente a racionalidade.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Aristóteles diz, na Política, que aqueles que vivem na cidade é porque

tem a razão e, por tê-la, possuem uma inclinação para a vida na pólis; e

os que não tem a vida segundo a razão possuem uma vida bestial. Por

isso, fora da pólis não há vida humana; só vida bestial. Se na pólis os seres

humanos perseguem a eudaimonia — a felicidade coletiva e a individual,

a felicidade comum e a particular —, é claro que as instituições políticas da

cidade desempenham uma função altamente importante nesse processo,

de maneira que, em cada uma delas — na Assembleia mais, nos tribunais de

uma forma diferente e no “poder executivo” um pouco menos — o contraste

de posições era exatamente o tipo de delineamento do modo pelo qual

do discurso vai-se à ação. Como da palavra nos dirigimos à performance?

Como do enunciado saltamos para a forma de vida?

Por isso, entre os políticos que buscavam o bem comum e os que

perseguiam o interesse particular, existia uma diferença de categoria que

começava no discurso e terminava na forma de vida. Do discurso para a

ação, da retórica para a cidadania, da sofística para a corrupção. A velha

tensão entre os sofistas e os verdadeiros políticos que buscavam o bem da

cidade aparece de cheio na República de Platão e na Política de Aristóteles.

Porém, por trás dessa distinção tão premente e tão importante

para a filosofia política, reside algo que, embora não seja tão aparente, é

de fundamental importância para a distinção entre a retórica e a erística.

Esta diferença consiste em que a retórica, ainda que só possa alcançar

uma estatura verossímil e, portanto, um saber aparente, tenta persuadir os

outros a aderir a esse saber aparente, não de uma forma mal-intencionada,

mas pelo contrário: buscando a verdade, mesmo que ela não se mostre

pronta e claramente. Já a erística supõe uma má intenção do agente

que, ao discursar centrado na persuasão de um saber aparente, do que

é opinativo e crível, visa justamente a aquisição ou a realização de um

interesse particular, um interesse que ganha um certo ornamento para

mascarar essa pretensão individualista, tornando o discurso uma exposição

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
aparentemente em prol do bem comum.

Essa distinção entre retórica e erística é decisiva para os chamados

regimes políticos puros, que tornam uma cidade boa e feliz, e regimes

políticos impuros, que tornam a cidade corrupta e infeliz. De fato, a retórica

tem uma importância fundamental para a política; contudo, quando nós

a contrastamos com o logos — normalmente isso acontece no campo

epistemológico quando distinguimos o conhecimento científico (episteme)

do conhecimento opinativo (doxa) —, essa distinção nos mostra algo muito

premente e presente na vida política: se na vida política todos pretendem

alcançar o logos, ou seja, o discurso verdadeiro e irrefutável, sem nenhuma

mácula, que se aproxima tanto quanto possível do discurso demonstrativo ou

do silogismo analítico-demonstrativo1, há, todavia, uma precariedade e uma


carência na vida política que torna esta pretensão de tomar o conhecimento

científico um conhecimento universal; algo, que, na realidade, não é usual.

Isso porque, embora exista tal pretensão, ela é contrastada pela força que os

discursos retórico e dialético obtêm na vida própria da pólis.

Na noção grega de organização da política é muito claro que há

uma trajetória do discurso: vai do mais verossímil para o mais provável e

do mais provável para o que é certo e seguro. Na ausência de uma certeza

e uma segurança nas suas posições, os políticos ficam presos entre a

verossimilhança (retórica) e a probabilidade (dialética), como se ali subsistisse

uma espécie de movimento presente e permanente em que a vida política

lhes impele a perseguir sempre a certeza, mas, na ausência dela, lidar com

o que é provável ou verossímil.

O que distingue o discurso provável do verossímil? Na probabilidade,

uma tese é sempre contrastada com uma antítese e, para a conquista da

síntese, é necessário um esforço muitas vezes quase interminável que dá

vazão a uma espécie de superfície de contrastes que vai se tornando mais

clara à medida que esses contrastes vão se intensificando. Por exemplo, um


1  Lembrando que neste tipo de discurso as conclusões são sempre necessárias em virtude das premissas.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
político ateniense postula uma tese e outro político postula uma antítese;

este responde, o outro replica. Esse debate interminável prossegue de tal

maneira que das meras opiniões das primeiras posições chega-se a uma

síntese que é muito mais densa e próxima da racionalidade do que se tinha

no início. Essa é a tarefa da dialética: partir de certas premissas, que são

teses e antíteses, e se dirigir a uma síntese. Esta síntese é o mais próximo

possível do logos, da racionalidade. Ela ainda é desprovida de certeza, é

apenas provável, mas desse debate extraímos um posicionamento com

um grau de probabilidade, ou seja, é provável que seja melhor adotar esse

posicionamento.

Já na retórica, o objetivo é não a postulação de uma tese, cujos

contrários estejam abertos para manifestação como na dialética, e sim


persuadir o interlocutor e convencer os demais participantes do auditório

universal de que no fundo a tese merece ser abraçada por todos. É como se

o topos (a opinião, o lugar-comum) não estivesse muito aberto a refutações

como ocorre na dialética. Porém, como discurso retórico contém um grau

maior de universalidade, ele pretende ser adotado por todos. Para que

isso aconteça, é preciso uma relação entre quem emite e quem adere ao

discurso, o que obviamente pressupõe uma identidade entre o emissor

e o receptor no que se refere ao objeto do discurso. Se é um objeto que

converge para o bem da cidade, então ele é abraçado; senão, não.

Note que a retórica apresenta imensos desafios no que tange à

vida política, ao exercício da cidadania, ao modo como um cidadão deve

ser formado. Isso porque a habilidade com os enunciados, a habilidade

narrativa de construir frases e sentenças, toda a habilidade de ornamentar

os discursos com figuras retóricas e de estilo, torna o discurso esteticamente

aprazível e sedutor. E esta sedução que o rétor desempenha no interlocutor

é algo decisivo não só pelo objeto do discurso, mas sobretudo pelo modo

como se está falando do objeto.

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Por esse motivo, no mundo antigo a retórica era estudada depois

da gramática, ora nas escolas de filosofia ora no exercício da paideia,

pelos pedagogos. Aprendia-se retórica após o aprendizado da gramática

e de algumas noções básicas de dialética precisamente porque o estudo

da retórica supõe um certo background, que mais do que capacitar para

discursar e empregar conceitos, definições, figuras de dicção e figuras de

elocução, vai torná-lo capaz de avaliar a autenticidade ou não, a conveniência

ou não e a adequação ou não de certos discursos, ora na Ágora ora no mundo

privado. Aquele que persuade, persuade alguém a algo. Persuadir alguém a

algo supõe que um elemento decisivo sobrevenha tão logo se constate qual

é a causa final, ou seja, qual é o objetivo de quem usa o discurso retórico.

Usar o discurso retórico implica certos objetivos e, ao constatá-los, somos

capazes de entender o porquê de a retórica se dispor para certo fim.

Curiosamente, na retórica não há um grau de certeza como na

demonstração, não há sequer um grau de probabilidade. Contudo, em

virtude de seu caráter universal, ao lidar com o que é verossímil, a retórica

expõe as reais intenções e objetivos sem, todavia, saber se as intenções e

os objetivos terão uma articulação absoluta. Essa articulação sempre será

relativa e dependerá não somente do objetivo em si mesmo, mas também

da intenção do agente. Por exemplo, eu poderia dizer que aprovar um

determinado projeto no parlamento resultará no bem para o país, mas

silenciar o fato de que a aprovação implicaria um aumento significativo da


renda da minha empresa. Isso obviamente traria um aditivo para o meu

discurso que certamente colocaria por terra a sua natureza específica do

bem, tornando esse discurso, no fundo, um discurso erístico.

Esse foi exatamente o intento de Sócrates ao valer-se de outro método

para diagnosticar e aprofundar o estudo acerca da retórica. Ou seja, usando

Sócrates como seu personagem em seus diálogos, sobretudo em Górgias,

Platão emprega o método maiêutico, que se baseia na ideia do diálogo.

Sócrates vai sondando e investigando o objeto, usando seus interlocutores

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
como este suposto auditório universal do que ele mesmo pretende na

investigação dos temas; e Platão vai colocando na boca dos interlocutores

posições que poderiam oferecer muitas, algumas ou nenhuma resistência

à pretensão socrática de chegar a uma resposta satisfatória sobre os temas

investigados. Em Górgias a temática era a retórica, sua utilidade, seu fim

e a intenção exigida daquele que a emprega. Num profundo diálogo com

Cálicles, Pólo e Górgias — talvez os maiores sofistas da época — Platão

pretende sondar por que a retórica deve ser empregada e com qual

finalidade, e seus interlocutores apresentam respostas que, na realidade,

destoam em ampla medida de Sócrates quanto ao uso e o fim da retórica.

A retórica é uma arte, leva sempre a uma experiência, a uma direção

determinada, diferente da inexperiência que leva ao acaso. Qual é essa


direção determinada? Na ótica dos sofistas, a retórica serve como um

instrumento para tornar quem a usa mais forte e dominante sobre os outros,

de maneira a satisfazer absolutamente seus apetites. Sócrates, todavia,

mostra que todo esse projeto fracassa porque os apetites não podem por

si só servir de critério para a felicidade e para a aquisição do bem. Se o bem

é o objeto da retórica, e o bem não é trivial, tampouco perecível do ponto

de vista da satisfação dos prazeres, é porque esse bem tem um caráter

permanente. E ele tem um caráter permanente na medida em que, sendo

evidente e ao mesmo tempo objeto ou causa final dos atos humanos, as

ações das personagens terão em vista justamente a realização desse bem.

Se eu não considero o outro como um igual e não concebo um

princípio de justiça a partir do qual o outro também deve receber o que

lhe é devido, eu jamais poderei entender bem o que é uma comunidade

política. Por isso que uma teoria de justiça baseada na ideia de que por

natureza os seres humanos tendem ao poder e ao domínio, e não à

felicidade comum, jogaria por terra toda a condição de possibilidade de uso

da retórica em prol do bem. Se não fosse assim, a retórica se transformaria

numa arte meramente persuasiva ou erística de adular o outro ou usar de

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
seus artifícios para adular a multidão, buscando sempre a satisfação de

interesses particulares. Platão mostra o contrário: a retórica pretende ser

uma arte voltada para o bem comum.

O mesmo faz Aristóteles ao vincular a justiça à retórica classificando-a

segundo seus gêneros específicos: o epidítico, o judiciário e o legislativo.

Todavia, Aristóteles apresenta uma classificação dos temas que formam

a retórica, e um deles é certamente o tema dos sentimentos humanos.

Colocando-nos na posição de receptores do discurso, como os nossos

sentimentos são mobilizados pela retórica? Ou, como diz o próprio Aristóteles,

quais são as potências da alma convocadas tão logo ouvimos um discurso

retórico? Vimos em Aristóteles a estrutura do entimema, isto é, a ideia de

que na retórica o ponto de partida é sempre uma opinião. Quando partimos


de um topos, de um lugar-comum — desempenhando aqui a função de

premissa maior —, e nos dirigimos a uma conclusão do tipo “esta é a opinião

majoritária numa sociedade, logo isso deve ser um projeto de lei”, é como

se estivéssemos, em relação ao auditório, lidando com diferentes ações e

reações emocionais, afetivas, apetitivas, volitivas, imaginativas e intelectuais.

Por isso, e isso nos diz Cícero, Aristóteles e os clássicos da retórica em geral,

quando observamos o ouvinte do discurso retórico, temos de considerar

o que os clássicos chamavam de a tríade que consuma a relação do ser

humano com o mundo e com o cosmos: o pathos, o ethos e o logos.

(1) O pathos significa as paixões, os sentimentos, os afetos e os apetites

dos nossos sentidos. Do sentido comum comportamos certos sentimentos.

Dos sentimentos — que podem ser entendidos aqui como juízos reflexos

a respeito dos sentidos, pois implicam alguma estima; daí sentimento: na

mente que abarca os sentidos — temos os afetos, uma espécie de conexão

da estimativa com o mundo, da estima que temos pelos outros (pessoas

da família, amigos etc.); e dos afetos vamos aos apetites, a satisfação dos

prazeres do corpo,

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
Por exemplo, a satisfação de um prazer corpóreo poderia ser o ato

de comer chocolate. Quem é viciado em chocolate, come um, e aquilo lhe

dá uma satisfação profunda. Um apetite concupiscível, que começa na

concupiscência dos olhos e termina justamente na concupiscência carnal,

que é essa satisfação interna de mastigar aquele alimento (a pessoa observa

um chocolate, e é impelida a comê-lo); ou um apetite irascível, que busca

a dominação externa, e não interna. Ou seja, no apetite concupiscível é

justamente a satisfação interna do corpo; no apetite irascível a satisfação é

externa, porque ela implica um domínio.

Para o Cálicles, Górgias e Pólo, por exemplo, todo o discurso retórico

deve ser dirigido para esse fim, esse é o objeto final da retórica. Isto é,

usarei todos os artifícios persuasivos para satisfazer a concupiscência


e a ira. Para Aristóteles, Cícero e Quintiliano, os clássicos, a dimensão do

pathos é mobilizada, ou seja, da paixão (passivo, inativo) vamos para a ação

(ativo). E a retórica tem esse poder de mover com nosso pathos. Ela mexerá

internamente, nos fará ruminar coisas e, a partir dessa mobilização do nosso

pathos, do nosso mundo corpóreo interior, (dos sentidos, dos sentimentos,

dos afetos e dos apetites), nos dirigimos ao mundo externo. E aí inicia uma

segunda etapa.

(2) Saímos do mundo interno corporal, do pathos, para o mundo

externo corporal, chamado ethos (de onde vem a palavra ética). Este é o

mundo da convivência, o mundo comum, o mundo que nós, humanos,

compartilhamos. Dependendo do modo como nos ordenamos

interiormente, isso se refletirá na maneira como agimos externamente.

Se não ordenamos nossa alma de maneira a reger nosso corpo, e

portanto a reger os apetites para que tenham uma retidão — aquilo que

os comentaristas de Aristóteles chamavam de apetite reto, a retidão dos

apetites, uma espécie de governo que a razão estabelece sobre os apetites

e as potências interiores —, obviamente no mundo público comum (ethos),

iremos nos comportar de uma forma a tornar o apetite, e não o que é

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
racional, o ponto central de nossas ações. E quando tornamos o apetite

o centro de nossos atos, iremos nos valer de técnicas persuasivas para

apresentar um saber aparente aos nossos interlocutores, buscando não o

bem deles, mas a satisfação de nossos próprios interesse e prazeres.

A retórica clássica recomenda exatamente o contrário: antes de

irmos para o ethos, devemos necessariamente ordenar o mundo interior,

pois assim teremos uma noção exata do bem que há em nós e no outro,

para que o saber meramente aparente tenha em vista a verdade e, no

caso de não conseguirmos alcançá-la, a reta intenção possa dirigir ao que

é verossímil para uma maior aproximação ao bem comum. Portanto, os

retóricos, aqueles que se valem da retórica, têm uma responsabilidade

política e social.

(3) Tendo em vista essa responsabilidade, uma terceira instância, que

é transcendental, é convidada a avaliar as condições de uso da retórica no

mundo público comum. Esta terceira instância, ou nível, chamaremos de

logos. No nível do logos, o intelecto (a potência mais alta do ser humano,

segundo Aristóteles) será convocado a ordenar essa forma de vida de modo

completo, conferindo-lhe uma certa identidade, que não é apenas social

nem tampouco substantiva, mas sobretudo narrativa na sociedade, uma

certa estabilidade dos comportamentos e hábitos que conduzirá o rétor a

adquirir uma espécie de identidade perante os outros. Estes o reconhecem

assim, porque, tendo em vista o logos, a vida dele é ordenada para buscar

todas essas coisas. Há uma perspectiva de futuro e de mediação com o

passado que constitui o tempo presente desse ser humano real e concreto.

Quando aquele que usa a retórica possui essa identidade e também os

interlocutores têm ciência de si (ou consciência, se preferirem), é claro

que o emprego das técnicas possuirá um conjunto de padrões judicativos

muito mais evidentes e exigentes do que teria numa sociedade em que os

seres humanos não tivessem esse aspecto reflexivo tão presente. Em outras

palavras: numa sociedade de sábios, a retórica ocupa um lugar importante,

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
porém, o auditório ao qual ela é dirigida é muito mais consciente a respeito

de seus limites.

Qual é o tipo de característica que forma a ars rhetorica? Qual é o

tipo premente nesta modalidade de discurso? Por que no entimema somos

impelidos a lidar com outros requisitos adjacentes para melhorar o que já

é precário, para ornamentar aquele discurso que não alcançou a verdade?

Quintiliano, nas Instituições Oratórias, e Cícero apontam cinco importantes

características que todo rétor e em alguma medida todo ouvinte do discurso

devem possuir.

A primeira característica é o que os antigos chamavam de ars

inveniendi — de onde vem inventio —, isto é, a arte de conceber (e não

exatamente inventar) termos e enunciados desde o nada para formular

adequadamente o discurso. Dito de outro modo, é a arte que leva alguém

a construir frases e narrações de uma maneira eficaz, de modo a sugerir ao

interlocutor a consciência e o conhecimento do objeto do discurso. Ou seja,

o que temos em vista aqui é a arte de ser capaz de montar uma narração

com termos e frases para tornar essa narração compreensível aos outros.

A segunda característica importante é a dispositio, ou seja, a

disposição dos termos e o modo como vamos torná-los musicados dentro

dessa narração. Dessa disposição precisamos de uma terceira característica

chamada pelos antigos de elocutio, ou seja, a elocução. Não basta que

sejamos capazes de conceber os termos e as frases e dispô-las dentro de

uma narração ampliada, mas somos também obrigados a saber de alguma

forma modular os tons da nossa voz, de maneira a captar a atenção do

ouvinte.

Por exemplo, se nesta aula eu falasse sobre o mesmo assunto em

um único tom, em dez minutos todos estariam dormindo. Desse modo,

sou impelido a usar a elocutionis, essa terceira característica apontada por

Quintiliano. Eu preciso comunicar o conteúdo da aula modulando a voz de

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
uma forma tal, para que essa voz — a vox significandi — possa também

ter um ornamento auditivo. Ou seja, o ornamento não está somente no

discurso, mas também na mudança de tonalidade.

Da elocutio vamos para a quarta característica, a chamada

mnemosine (memória) dos gregos. Um retórico precisa da memória. Não

é possível fazer arte retórica sem a memória dos termos e seus significados

e do modo como devemos articular os termos com seus significados. A

memória não é apenas gráfica, mas simbólica e narrativa. Por isso, o acesso

às grandes sobras literárias maximiza a memória. A partir dela, nos tornamos

capazes de narrar o que queremos dizer empregando as frases, os termos e

os enunciados de uma maneira adequada; e também sempre presente no

horizonte de quem enuncia, o que no caso somos nós, os rétores.

Por fim, a quinta característica ou exigência é a pronuntiatio (de

onde vem “pronúncia”), a pronunciação. Não é o mesmo que elocução,

porque aqui não é apenas a voz e a diferença de tonalidade musical ou de

intensidade vocal do que se está a dizer, mas é sobretudo o lugar de fala:

onde estamos para constituir o diálogo e a comunidade de comunicação.

Como Aristóteles já havia nos ensinado, a retórica tem uma relação

direta com a dialética, elas são como que inseparáveis. Por isso mesmo,

em um diálogo o emprego da retórica pode servir amplamente em alguns

momentos para a persecução de uma síntese e vice-versa. Podemos

inclusive ornamentar o discurso retórico com partes que apresentem um

certo debate dialético. Mas, no fundo, a separação desses dois modos de

discurso, sua classificação e persecução temática nos apresenta imensas

dificuldades e ao mesmo tempo pontos reflexivos decisivos para a nossa

atividade humana e profissional.

Estudar a retórica é um empreendimento que exige esforço,

dedicação e, mais do que um olhar sobre a oratória em si, um olhar sobre a

fundamentação da oratória como um todo. Este foi um curso em que nos

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E-BOOK BP RETÓRICA ENTRE A VOZ E O OUVINTE
debruçamos sobre alguns autores clássicos da retórica. Todavia, tenho a

pretensão de ministrar posteriormente um curso no Núcleo de Formação

da Brasil Paralelo a respeito da retórica tendo em vista algo muito mais

concreto, muito mais aprofundado do que o que vimos aqui. Deverá ser

um curso que certamente se dedicará a analisar as temáticas da retórica,

porém considerando um certo rigor analítico e ao mesmo tempo uma certa

utilidade que essa disciplina pode comportar para a praticamente todas as

profissões humanas na sociedade moderna.

A retórica é útil, e isto é evidente não só para políticos, advogados,

economistas e jornalistas, mas também para aqueles que se dedicam às

ciências da natureza, às ciências exatas, às artes mecânicas e muito para os

que se dedicam às humanidades e à filosofia, porque o contato da retórica


com a filosofia é mais intenso do que normalmente se pensa. Os esforços

para a formação e constituição de uma ars rhetorica já podem merecer

a estatura de uma ciência dedicada ao estudo da ars rhetorica como seu

objeto.

Eu espero que de fato esse curso na Sociedade do Livro da Brasil

Paralelo tenha cumprido seu objetivo e sido útil a vocês. Faço votos de que

sim. Foi um prazer imenso tê-los aqui e os espero no Núcleo de Formação

para futuramente tratarmos de maneira mais profunda esse tema tão

encantador e tão necessário no nosso tempo.

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