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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20


CURSO
“OS LOUCOS ANOS 20”
COM PROFESSOR GUILHERME ALMEIDA

SINOPSE

Os Loucos Anos 20, mesmo sendo um breve período da

história do século XX, mostrou as incertezas, os medos, a insegurança

dos homens e mulheres que sobreviveram aos horrores da primeira


Guerra Mundial e que viram surgir no horizonte do leste do mundo

o terror vermelho soviético.

A grande ferida causada pelo Tratado de Versalhes, que

conduziu os perdedores nos pós guerra, criou o terreno fértil para

nascer as sementes de totalitarismos insanos e violentos como o

fascismo italiano e o nazismo.

E, neste ambiente conturbado e incerto, homens e

mulheres praticam os excessos de uma vida “pra ontem”, uma


vida sem perspectiva de futuro, uma vida de carpe diem. Numa

sociedade mais “liberal” como a parisiense ou mais fechada com a

estadunidense, com sua lei seca e controles sociais, estes excessos,

bons e ruins, abriram as portas para uma nova arte plástica, literária

e musical. Paris foi uma festa legalizada, e os EUA uma ilegal.

BONS ESTUDOS!
AU L A 1

O FIM DA PRIMEIRA GUERRA

E A DESORGANIZAÇÃO

GERADA PELO TRATADO DE

VERSALHES
INTRODUÇÃO

Olá, sou o professor Guilherme Almeida, é um prazer estar novamente

aqui na Brasil Paralelo apresentando um curso sobre os loucos anos 20

e como eles ecoam na nossa realidade histórica; não será tão somente o

recorte histórico de um período do século XX, pois há muitas lições deste

período a serem aprendidas através de uma profunda análise.

O título do curso, Os Loucos Anos 20 e o Carpe Diem, está relacionado

com a ideia de aproveitar o dia de hoje sem se importar muito com o dia de

amanhã, porque, ao que nos parece, esse era o grande mote das pessoas

que vivenciavam essa Europa mergulhada na ideia da loucura, de poetas

degenerados e malditos1, como foram os grandes nomes da Literatura e

das artes que viveram nesta época em Paris.

Para chegarmos ao cerne da questão é necessária a apresentação

de alguns temas, visto que nós precisamos relembrar os antecedentes

desse conteúdo como um todo. Eu poderia partir da Ciência, da Filosofia, da

História ou das artes e discorrer secamente sobre o conteúdo que veremos,

no entanto, trarei o conteúdo de uma forma mais dinâmica e sintética, para

não dizer até mesmo, de forma um pouco angustiante.

Alguns autores, como por exemplo, Paul Johnson2 no livro Tempos

Modernos, fala que a modernidade da década de 20 começou com a grande

visibilidade do eclipse solar que foi visto a partir de 1919 em Sobral, Brasil, e

na Europa; outros autores irão colocar o Tratado de Versalhes de 1919 como

a grande pedra angular para entender o início da modernidade e a década

de 20. Eu, particularmente, gosto dessas informações.

Começando com pouco de História, trouxe para vocês uma frase de

Paul Valéry3 que vale a pena termos em mente: “A História justifica tudo

quando se quer. Ela não ensina rigorosamente nada, pois contém tudo e

1  Gertrude Stein inventou e popularizou o nome Geração Perdida para designar os escritores expatriados em
Paris.
2  Paul Bede Johnson nasceu em 1928 e é um escritor, jornalista e historiador britânico.
3  Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry (1871-1945) foi um filósofo, escritor e poeta francês.

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dá exemplos de tudo”. Fazendo uma interpretação, diria que os exemplos

históricos do passado não terão a exata reprodução na nossa realidade,

porque o contexto e o momento são outros, mas a análise dos exemplos

nos permite que tomemos determinadas decisões em relação ao meio

em que vivemos.

Fazendo uma paráfrase de Ortega y Gasset4, podemos dizer que

“o homem é o homem e as suas circunstâncias”, entender as nossas

circunstâncias culturais, econômicas, políticas, é fundamental para

entendermos nós mesmos como agentes históricos da nossa própria

realidade e o momento em que vivemos. O olhar para o passado, com essa

frase de Paul Valéry, é fundamental para entendermos o momento passado

e também os elementos presentes na nossa atualidade.

Trago-lhes mais uma citação de Hemingway5, que é de um ar

delicioso, a respeito da década de 20, “Conclui-se que todas as gerações

eram perdidas por alguma coisa, sempre tinham sido e sempre haveriam

de ser”; guardem essa frase, porque, quando chegarmos no momento de

Paris sendo uma festa, saberemos que essa festa tem um porquê de ser e

conseguiremos, assim, lidar melhor com esse entendimento.

Também gostaria de ler uma passagem de Christopher Dawson


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“Quando a moralidade é privada dos elementos religiosos e metafísicos,

inevitavelmente subordina-se a fins mais inferiores, e quando os fins são

negativos — como na revolução e na guerra — toda a escala de valores

morais se reverte”. Tenho citado esse grande autor recorrentemente, e seu

maravilhoso livro chamado O Julgamento das Nações consta nas nossas

referências bibliográficas.

É isso que veremos nos antecedentes desses loucos anos 20, nos

quais a Europa mergulha de cabeça, mas com os Estados Unidos e Brasil,


4  José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um ensaísta, jornalista e ativista político, fundador da Escola de Madrid. A
Frase referenciada é “eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim” de sua obra Med-
itaciones del Quijote.
5  Ernest Miller Hemingway (1899-1961) foi um escritor norte-americano autor de grandes obras como Paris é
uma Festa, Por Quem os Sinos Dobram, etc.
6  Christopher Henry Dawson (1889-1970) foi um estudioso independente britânico que escreveu muitos livros
sobre história cultural e cristandade.

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acontece de modo diferente. No nosso caso, a década de 20 toma a forma de

um grande fim de semana enlouquecido e sem limites, no qual as pessoas

realmente chutaram o balde, e a década de 30 assume a forma de uma

grande dor de cabeça.

A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL


Depois desse preâmbulo, começamos, de fato, a primeira aula, para

tratar daquilo que será o grande mote para esse período de incertezas e de

negação de valores tidos como pétreos até a Primeira Guerra Mundial, visto

que esses loucos anos 20 possuem um porquê de ser assim.

Nós temos de lembrar que a Primeira Guerra Mundial foi uma crise

das potências europeias que tinham seus problemas de um lado e suas

alianças do outro; por exemplo, a Tríplice Entente era formada por Inglaterra,

Rússia, França e países satélites ligados a eles, e a Tríplice Aliança, formada

pelo Império Austro-Húngaro, Itália (até 1915) e o Império Otomano, que

estava também na órbita de tudo isso.

A Tríplice Aliança e a Tríplice Entende

O que facilita o entendimento da Primeira Guerra Mundial como

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um todo é justamente isso: ela foi, para dar uma explicação contundente, o

choque entre interesses nacionalistas.

O que era o Nacionalismo? Essa prática política que muitas pessoas

colocam como sendo de direita, era uma aliança entre burguesia e

aristocracia que surgiu na Europa do século XIX, principalmente nas

potências que querem se firmar como grandes nações europeias, como

Inglaterra, França, e as novas potências como Alemanha e Itália — que

tiveram seu território unificado no final do século XIX. O Nacionalismo

— essa prática com “N” maiúsculo — é uma forma que as potências

europeias encontraram para fazer uma política internacional através do

imperialismo, a tomada de territórios na África e na Ásia e, internamente,

o nacionalismo misturado ao patriotismo como, por exemplo, a exaltação

dos valores internos da nação, como a bandeira, o hino, etc.

A Primeira Guerra Mundial tem, nas suas entranhas, o choque das

potências imperialistas europeias juntamente com as alianças. Por que isso

é assim? Porque haverá momentos em que essas alianças entre nações

europeias se farão valer para que uma proteja a outra, e é nesse ínterim de

crises e alianças que nós teremos a Primeira Guerra Mundial iniciada em

1914.
Não aprofundarei aqui o conteúdo de Primeira Guerra Mundial,

mas é fundamental que lembremos pelo

menos as três fases da Primeira Guerra

Mundial: a primeira parte chamada de

Guerra de Movimento, a segunda, Guerra

de Trincheiras e a terceira parte que consta

a saída da Rússia da guerra e a entrada dos


Guerra de Trinceiras
Estados Unidos, fundamental para o fim

desta.

O interessante é que essa primeira parte da Primeira Guerra Mundial

tinha ainda uma aura um pouco mais humana, um pouco mais poética.

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Descrevo assim porque as fileiras que lutaram na Primeira Guerra Mundial,

em grande parte, consistiam de voluntários, eles formavam uma grande

porcentagem do Exército, da Marinha e da pequena Aeronáutica que existia

na época. As pessoas iam ao fronte imbuídas em defender os valores da

nação, aqueles valores criados desde o século XIX.

É interessante também vocês assistirem ao filme Joyeux Noël —

em português, Feliz Natal, um filme de 2005 — que trata do período do

Natal e ano novo nas trincheiras entre 1914 e 1915; o filme mostra com uma

grande leveza esse momento histórico de que nós estamos tratando, e ele

coaduna com esse início de guerra um pouco mais romântico. As grandes

nacionalidades estão presentes no filme: de um lado das trincheiras os

alemães, do outro lado os franceses e escoceses; todos com certas ressalvas

em relação ao outro, às vezes com ódio, como no caso dos franceses e dos

alemães. Depois de os alemães tomaram o território francês da Alsásia-

Lorena com a unificação decorrida da Guerra Franco-prussiana7, isso causa

um sentimento de ódio muito grande nos franceses, que eles chamaram

de Revanchismo.

O início desse filme é muito interessante, porque mostra três crianças,

uma inglesa, uma francesa e uma alemã, falando contra o seu inimigo; a
criança inglesa fala contra a alemã, a francesa também contra a alemã e

a alemã contra os ingleses. É curioso, e um pouco assustador, ver o ódio

presente naquelas crianças, assim como, elas estão em um cenário escolar,

o local de formação de “amantes” das nações.

Um outro filme que pode ajudar a entender esse momento de

formação das identidades europeias, principalmente da germânica, é A Fita

Branca, filme de 2009, fenomenal para entender essas nuances; apesar de

ser em preto e branco, é um filme novo.

No filme Feliz Natal podemos notar que há algo que está além

daqueles valores daquelas pessoas, algo que está além de ser francês,
7  A Guerra Franco-Prussiana ou Guerra Franco-Germânica foi um conflito entre o Império Francês e o Reino da
Prússia entre 19 de julho de 1870 e 10 de maio de 1871.

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inglês, alemão ou escocês, que é o espírito do Natal. Há uma cena na qual

os alemães estão montando suas árvores de natal na trincheira e alguém

começa a cantar Noite Feliz, concomitantemente, os escoceses também

estão ensaiando uma pequena comemoração, na qual uma das personagens

que é um padre pega uma gaita de fole quando, de repente, escuta alguém

cantando do outro lado da trincheira; as diferenças de nacionalidade caem

por terra e surge o espírito da noite de Natal no momento em que o padre

começa a acompanhar o cantor alemão “inimigo”.

Independentemente de alguém ser

protestante ou católico, existe um símbolo

superior, que é superior até às suas noções

religiosas, que é o símbolo do natal, o amor

incondicional de um ser para com toda a

humanidade, um amor que não tem nação, país

ou Estado. No filme, os inimigos até mesmo se

juntam para uma foto comemorativa e logo em

seguida vão jogar uma partida de futebol, isso é

um maravilhoso retrato do início da guerra, mas,


Trégua na noite de Natal (1914)
infelizmente, a guerra começará a ser muito
violenta.

Como tudo que é bom acaba, há os grandes manipuladores, generais

e marechais de guerra, que, informados desta situação, mandam esses

soldados para outro lugar: alguns foram presos, outros enviados a Verdun,

um campo de batalha muito violento. A guerra de trincheiras passa a atuar

de modo mais cruel para com todos, os soldados passam meses e meses

entocados nesses buracos fétidos e todo aquele ar poético vai por água

abaixo, pois a partir de 1915 as pessoas estão morrendo aos milhões.

Há uma frase fundamental à qual costumo recorrer: “Os homens

criam as ferramentas e as ferramentas recriam os homens” — geralmente

atribuída a Marshall McLuhan. A Primeira Guerra Mundial é cria dessa ideia.

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Por quê? Novas tecnologias estão aparecendo no campo de batalha, como

metralhadoras de repetição, os grandes tanques de guerra e o avião, que

começa a ser utilizado para a guerra. Temos aqui uma imagem do Barão

Vermelho, um famoso aviador que por anos não foi derrotado. Apesar

dos requintes da tecnologia, ainda assim as armas eram equipadas com

baionetas, para que, quando as balas acabassem, os soldados avançassem

para a luta corpo a corpo.

Essa imagem aqui é muito significativa,

porque, além de ela tratar do uso de gás no

campo de batalha, aparece um burro com

uma máscara contra o gás. Isso evidencia a

quantidade de animais mortos na Primeira

Guerra Mundial que chegou a quase 30 milhões


Burro de máscara contra o gás
de animais nas batalhas.

Tratando das mortes, alguns historiadores

estimam em 9 milhões de mortos, outros como 12 milhões de mortos —

nunca uma guerra obteve tantas baixas, militares e civis — uma quantidade

enorme de pessoas mutiladas, cerca de 30 milhões de feridos, 6 milhões

de prisioneiros, 10 milhões de refugiados, 3 milhões de viúvas, 6 milhões de


órfãos e milhões de litros de lágrimas derramadas. Essa guerra até pode

ter sido um pouco romântica no seu início por causa dos valores nacionais,

mas mostrou-se como uma chaga para a humanidade.

As imagens da Primeira Guerra são contundentes para

demonstrar justamente os horrores disso: pessoas mortas,

vivas, muitas mutiladas. Há uma frase do General Sherman8

muito interessante: “Somente aqueles que nunca deram

um tiro, nunca ouviram o grito e o gemido dos feridos é que

clamam por sangue, vingança e mais desolação. A guerra é


Homem ferido na I GM
um inferno”. Existem dois tipos de guerra: a dos gabinetes,

8  William Tecumseh Sherman (1820-1891) foi um militar, empresário, educador e escritor norte-americano.

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feita pelos políticos e a guerra real; uma vez eu escutei de um general que

o soldado é o que menos quer ir para a guerra, porque é ele que morre. Essa

guerra, particularmente, possui um sentido muito profundo, ela destrói

certezas e valores que até então estavam fortalecidos nessa Europa.

O final da Primeira Guerra Mundial é marcado por um

armistício feito pela Alemanha, na cidade de Copenhague e,

mais tarde, é ratificado com o terrível Tratado de Versalhes.

Eu fiz questão de colocar duas imagens, uma que mostra o

próprio tratado e a outra é uma charge mostrando que esse

Tratado de Versalhes foi “comido” pelos ratos nacionalistas,


Charge do Tratado de Versalhes
como os ingleses e os franceses, por exemplo.

Lembram-se daquilo que falei do revanchismo francês?

Os alemães foram forçados a assinar o Tratado de Versalhes, que deve seu

nome a essa assinatura que ocorreu na Sala dos Espelhos em Versalhes,

e, como a França foi a principal articuladora do Tratado de Versalhes, a

sua vingança realizou-se — a vingança é um prato que se come frio, como

dizem — nesse local onde os franceses foram extremamente humilhados, é

aqui que a revanche será feita.

Esse tratado arrebentou a Alemanha no campo político, econômico


e militar, pois fez com que ela pagasse indenizações monstruosas para

a França e a Inglaterra e, também, que limitasse seu exército a 100 mil

soldados — imagine uma Alemanha que já foi tão grande na Europa poder

ter apenas 100 mil soldados. Além disso,

a Alemanha perdeu o Reno, territórios

da Polônia, da atual Checoslováquia,

principalmente na região de Sudetos —

que era germânica na sua essência —,

foram todos para outras nacionalidades,

a Alemanha virou um gigante morto


Antes e após a I GM porque tiraram-lhe todos os poderes.

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Qual é o problema disso? Causou um grande sentimento de frustração

e revolta no povo alemão e isso vai fazer com que valores que até então

estavam mortos — como os grandes nacionalismos — voltem com novas

roupagens, como veremos em seguida.

O Tratado de Versalhes será um grande divisor de águas na história

desses anos 20, e é aqui que começamos a ver o desenvolvimento de novas

nações: o fim de grandes potências como o Império Austro-Húngaro, que

torna-se apenas Áustria; a Alemanha deixa de ser um império e vira uma

república, a República de Weimar. Então tudo aquilo que o povo alemão

conhecia como certo começa a ser balançado e o povo austríaco perde o

título de um grande império.

Localidades como aquelas da imagem, que vocês podem fazer uma

comparação entre 1914 e o final de 1918; note os desmembramentos de

alguns territórios, a incorporação de alguns territórios por antigas nações, a

criação, por exemplo, da Iugoslávia9, que coloca diferentes culturas dentro

de um mesmo território e isso vai ser um problema como veremos no século

XX, causando uma tremenda guerra entre os países dos Balcãs a partir do

fim da União Soviética nas guerras de 1994 e 199510.

Nesse momento, nós temos um período histórico único para ser


analisado, um período que lidará com problemas graves. Alguns

historiadores colocam que não houve uma Primeira e a Segunda Grande

Guerra, houve apenas uma grande guerra, com o intervalo de vinte anos

entre algumas batalhas e as outras, ou seja, na Primeira Guerra Mundial

que acaba em 1918, parece que os líderes não deram conta de resolver

alguns problemas e, nos vinte anos que se seguiram, acontece a formação

de novas crises e ocorre um boom inicial em 1939 com a campanha de Hitler

na Polônia, criando o que ficou comumente chamado de Segunda Guerra

9  A Iugoslávia foi um país que existiu na região dos Balcãs após a Primeira Guerra Mundial sob o nome de Reino
dos Sérvios, Croatas e Eslovenos em áreas que pertenciam ao Império Austro-Húngaro e ao Império Otomano.
10  Já em junho de 1991 a Eslovênia e a Croácia declararam independência; logo em setembro a Macedônia seguiu
o exemplo e, em outubro a Bósnia e Herzegovina fez o mesmo, mas neste caso houve um grave conflito. Em 1998
os albaneses separatistas de Kosovo pressionaram pela separavam deste território, mas o exército reagiu violenta-
mente. Em junho de 2006 foi a vez de Montenegro declarar-se independente.

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Mundial.

Aqui cito uma frase de Paul Johnson retirada do livro Tempos

Modernos — que está na nossa referência bibliográfica — e que eu já citei

algumas vezes: “A guerra gera revoluções e gerar revoluções é uma velha

forma de guerra”; interpretando, é como se uma coisa alimentasse a outra.

O que nós vemos do meio para o fim dessa guerra? Conturbações sociais

violentas; por exemplo, na Rússia estamos vendo conturbações criadas

principalmente por bolcheviques e mencheviques. Eu convido vocês a

assistir ao curso ministrado pelo Lucas Ferrugem chamado Uma Breve

História da Rússia disponível no Núcleo de Formação da Brasil Paralelo.

A Revolução Russa tem suas bases criadas no final do século XIX, e

vai crescendo com a perda do território da Manchúria para o Japão, com o

domínio sangrento realizado pelo Czar e com o exílio de Lênin11. Geralmente

dividimos essa revolução em duas etapas:

A primeira etapa, conhecida como Revolução de Fevereiro de

1917 ou Revolução Branca, foi comandada pelos mencheviques — o líder

bolchevique, Lênin, estava exilado — na qual instaurou-se um Governo

Provisório de caráter liberal-burguês comprometido com os direitos

relacionados à propriedade privada e com a continuidade da participação


russa na Primeira Guerra Mundial.

Interessada em que a Rússia deixasse o fronte para que a balança

pendesse para o seu lado, a Alemanha dá a Lênin a quantia de 40 milhões

de goldmarks — moeda usada pelo Império Alemão —, a fim de que este

faça a sua revolta e tire a Rússia da guerra.

Acontece então a segunda etapa, conhecida como Revolução de

Outubro de 1917 ou Revolução Vermelha, Lênin volta à Rússia e escreve as

teses de abril mostrando o grande slogan dos bolcheviques: Paz, Terra e

Pão; a paz é a saída da Rússia da guerra, terra é a coletivização das fazendas

e pão é o baixo preço do alimento e a distribuição dos produtos básicos


11  Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido pelo pseudônimo Lênin, (1870-1924) foi um revolucionário comunista,
político e teórico político russo que foi líder do governo da Rússia Soviética de 1917 a 1924.

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para a população russa, assim, começamos a ver uma nova configuração

surgindo. É a partir disso que acontece o Tratado de Brest-Litovski, o tratado

de paz entre a Rússia e o Império Alemão que o próprio Lênin chamou de

Tratado de “Paz Vergonhosa” pois os termos foram humilhantes para a

Rússia.

Em outubro de 1917 a Revolução Bolchevique ganha forma, a trilogia

do mal — Lênin, Trotsky12 e Stálin13 — está formada; Kerensky14, que era o

principal líder menchevique, foge para os Estados Unidos. Começa-se então

um aumento do poder dos sovietes, um termo designado para significar

os conselhos de operários, trabalhadores do campo e grupo de soldados

ligados a essa ideologia, e um fortalecimento do regime socialista em cima

daquilo que Lênin chamava de idiotas úteis, o povão, os sovietes.

É interessante que essa revolução veio muito em consequência da

Primeira Guerra Mundial, conforme aquela frase citada de Paul Johnson.

Há neste período uma verdadeira guerra civil: brancos de um lado,

vermelhos de outro. Isso mergulha a Rússia em uma tremenda guerra civil,

em uma desgraceira sem precedentes até o ponto em que as potências

europeias não veem isso com bons olhos, tanto que algumas potências

(cerca de dezessete) colocaram o pouco dinheiro que lhes sobrou nos


contrarrevolucionários, os brancos, mas não deu certo, os vermelhos e Lênin

se mantiveram no poder.

Restou às potências ocidentais, ditas democráticas, fazer o famoso

cordão sanitária, o isolamento da Rússia e, em 1922 — com essa nova

reprogramação social e política que Lênin chamava de NPEP (Novo

Programa Econômico e Político) — nós temos a criação da URSS, União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas.

E como estava o Brasil neste período? Nós vemos uma disputa entre
12  Leon Trótski, nascido Liev Davidovich Bronstein (1879-1940), foi um intelectual marxista e revolucionário bol-
chevique, organizador do Exército Vermelho. Foi rival de Stálin na disputa pelo poder após a morte de Lênin, a qual
perde e depois é perseguido pelo governo stalinista.
13  Josef Stálin (1878-1953) foi um revolucionário comunista e político soviético de origem georgiana. Governou a
União Soviética de 1924 até o ano de sua morte.
14  Alexander Fyódorovich Kerensky (1881-1970) foi um político social-democrata e advogado. Foi o segundo e últi-
mo primeiro-ministro do Governo Provisório Russo.

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as oligarquias de Minas Gerais e São Paulo alternando o poder, por isso

que a nossa chamada República Velha também é chamada de República

Café com Leite; como a República foi comandada por oligarquias, foi

também chamada República das Oligarquias, e por ser sempre comandada

— principalmente no Nordeste — por coronéis, também recebeu o nome

República dos Coronéis.

O Brasil vive em uma bolha de pouca

participação política, poucas pessoas tinham

poder de voto, já que analfabetos, mulheres,

militares e clérigos estavam afastados das

eleições, além da falta de interesse do povo. Essa


Charge sobre o voto do cabresto
charge representa de uma forma muito bacana

essa política do voto do cabresto: “Quem vem

votar é o zé-besta?”; e o outro responde: “Não, é o zé-burro”. O Brasil está

imerso nessa nossa política chamada política velha.

Em meio a toda essa violência deste período, voltemos

nossos olhos para a arte: em 1916 surge o movimento artístico

chamado Dadaísmo do qual Duchamp15 é um dos seus grandes

expoentes — não foi o fundador do movimento, mas ele era alguém


bastante atento. Olhem bem essa imagem colocada, para o

Dadaísmo, a destruição também é criação. Essa é uma pá de gelo,

mas porque ele deu o nome de “Antecipação do Braço Perdido”?

Duchamp faz essa outra obra que é um mictório no centro de

uma sala. Por que isso? Por que o Dadaísmo é tão


Antecipação do Braço Perdido,
Duchamp presente nesse momento? As vidas não importam

mais, pois milhares estão sendo perdidas nos

campos de batalha. Se a vida não importa, a arte também

não importa, as definições também não importam. Tudo

pode acontecer pois milhões de almas são perdidas. Mictório de Duchamp

15  Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor, escultor e poeta francês.

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Há uma frase sobre o tema: “Em uma guerra não morrem milhões

de pessoas como uma massa amorfa, morre um que gosta de sorvete, outro

que gosta de passear no parque aos domingos, o outro que é casado, o outro

que é solteiro, a outra que é uma costureira que sonha em ser bailarina,

morrem pequenas histórias”, a Primeira Guerra Mundial levou 9 milhões

de pequenas histórias.

O que o Dadaísmo está mostrando é que, se a vida perde o valor,

a arte também perde o valor — e isso é uma interpretação livre minha

baseada em estudos da história da arte. Essa imagem de uma pá pode ser

muito bem retratada naquela frase do general francês que está presente,

inclusive, no filme Joeux Noël, ele diz o seguinte: “Eu nunca vi em uma

guerra uma pá ter mais importância do que uma espingarda”. Por quê?

Porque as pás criavam as trincheiras, que eram os lugares de salvaguarda

dos soldados, portanto, é uma provocação de Duchamp; a história da Arte

demonstra que esse movimento de transgressão, de destruição e criação,

está presente no movimento dadaísta que terá o seu fim já na década de 20

para dar início a outro movimento, o Surrealismo16.

Eu gostaria de terminar essa primeira aula com duas citações, a

primeira é desse grande livro de Barbara Tuchman17 sobre a Primeira Guerra


Mundial, e convido vocês a comprarem essa obra — que está na nossa

referência bibliográfica — chamada A Torre do Orgulho; se me permitem,

vou ler aqui o posfácio, que é extremamente claro e lúcido:

“Os quatro anos que se seguiram foram como Graham Wallas

escreveu: ‘quatro anos do mais intenso e heroico esforço que a raça

humana jamais fizera’, quando esses esforços terminaram, as ilusões e

os entusiasmos que se tinham tornado possíveis em 1914, mergulharam

lentamente no mar da mais profunda ilusão. Pelo preço que pagou, o

maior benefício da humanidade seria a penosa conclusão das suas próprias

limitações, a torre do orgulho, construída através da grande época da


16  Serão dadas maiores explicações desta escola artística nas próximas aulas.
17  Barbara Wertheim Tuchman (1912-1989) foi uma escritora e historiadora autodidata estadunidense.

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civilização europeia, era um edifício de grandeza e de paixão, de riqueza e

de beleza e de caves escuras. Os seus habitantes viviam, se compararmos

aos tempos que se seguiram, com mais confiança em si próprios, mais

segurança, mais esperança, maior aparato, extravagância e elegância, mais

descuidadamente, mais alegres, com mais prazer na companhia um dos

outros e nas conversas, com maior injustiça e hipocrisia, maior miséria e

dificuldade, mais sentimentos – incluindo os falsos sentimentos -, menos

tolerância para a mediocridade, mais dignidade no trabalho, mais amor

à natureza, mais ardor. O velho mundo perdeu desde então mais do que

ganhou, olhando para trás, desde 1915, Émile Verhaeren, o poeta socialista

belga, indicaria as suas páginas: ‘com emoção ao homem que eu era’.

O que nós temos aqui? Justamente um ponto de demonstração

de que tudo que era certo se desfez no ar. A Primeira Guerra Mundial

representou o fim de certezas e o início de incertezas, balançou os

valores centrais colocados até então na poderosa Europa do século XIX,

as pessoas estão sem eira nem beira, desamparadas e desiludidas.

Também, eu gostaria de fazer uma menção a um livro chamado

A Sagração da Primavera, de um grande historiador da Universidade de

Toronto, Modris Eksteins18; esse livro, que tira o título de uma obra apresentada
por Stravinsky 19— uma obra do balé de Paris de 1913 — desvenda o que

está acontecendo na Europa no preâmbulo da Primeira Guerra Mundial,

desenvolvendo de forma extremamente bem analítica a história da Primeira

Guerra Mundial e dos anos que se seguem.

Finalizo aqui a primeira parte desse nosso encontro com uma

frase de Virgínia Woolf20: “A nossa vida é uma incerteza, um cego que

revoluteia no vazio em busca de um mundo melhor, cuja existência é

apenas uma suposição”, ela, por ser uma grande escritora, sente as dores

e as agressividades dessa perda de valores, perda de certezas, assim, o fim


18  Modris Eksteins nasceu em 1943 é um historiador latviano-canadense especialista e história alemã e cultura.
19  Ígor Fiódorovitch Stravinsky (1882-1971) foi um compositor, pianista e maestro russo. Foi conhecido principal-
mente pelo motim que se instalou a estreia de sua obra A Sagração da Primavera.
20  Adeline Virginia Woolf, nascida Adeline Virginia Stephen, (1882-1941) foi uma escritora, ensaísta e editora
britânica.

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da vida dela é triste, pois ela se suicida. É isso que eu quero apresentar

para vocês, que essa Primeira Guerra começa a balançar valores e certezas

desse mundo europeu. Finalizamos aqui a primeira parte da aula, logo na

sequência nós teremos a segunda.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
AU L A 2

INCERTEZAS NO HORIZONTE:

OS GÊMEOS TOTALITÁRIOS
Bem-vindos a nossa segunda aula sobre os loucos anos 20. Gostaria

de começar lendo uma passagem de um poema de T. S. Elliot21:

“O cadáver que plantaste ano passado em seu jardim

Já começou a brotar? Dará flores esse ano?

Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?”.

The waste land, de Elliot, é um poema mencionado no grande livro

o qual citei na aula anterior sobre a Primeira Guerra Mundial e os anos pós-

Primeira Guerra Mundial, A sagração da primavera, do historiador Modris

Eksteins. Elliot fala nesse trecho de seu poema sobre os cadáveres das

vítimas da Primeira Guerra Mundial. Os cadáveres são leituras simbólicas,

pois Elliot pergunta: “tudo o que morreu dará qual fruto?”. Todo hiato ou

lacuna tem de ser preenchida na sociedade, o problema é com o que se vai

preencher essa lacuna. Esses hiatos serão preenchidos com quais valores?

Com quais novas certezas? Com quais novas realidades? Com qual novo

paradigma a sociedade lidará, já que todos os valores foram “jogados por

terra”?
A sociedade, ao emergir da Primeira Guerra Mundial, sai em

frangalhos, e também é acometida, em seguida, por aquela que pode ter

sido a pior epidemia que assolou a Europa, a Gripe Espanhola, de 1918 a 1920,

por conta da qual, segundo alguns dados, mais de 50 milhões de pessoas

morreram. Esses acontecimentos, na sociedade, é como quando se entra

em um mar agitado, onde se leva uma pancada de uma onda, e que, ao

se levantar, vem outra onda e outra pancada, e assim em uma sequência

de sete ondas. Parece que foi assim para a humanidade sobrevivente da

Primeira Guerra Mundial, a qual emerge de um problema, mas em seguida

vem outro.
21  Thomas Stearns Eliot (1888-1965), poeta americano. O poema citado, um de seus mais famosos, chama-se The
waste land, publicado em 1922. Foi traduzido no Brasil como A terra inútil.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Algumas imagens daquele período

mostram pessoas com máscara — algo

parecido com a nossa realidade de 2020 —,

leitos e mais leitos de pessoas doentes dessa

gripe, a qual se inicia nos Estados Unidos, foi

chamada de Gripe Espanhola porque foi a

mídia espanhola, através dos jornais, que deu Gripe Espanhola (1918 -1920)

vazão às notícias sobre a gripe.

Observa-se um mundo mergulhado no caos. Sobre isso, cito uma

frase do grande Bauman22 sobre a modernidade líquida do século XX: “A

ideia de que não existe uma alternativa faz com que as pessoas aceitem

as piores barbaridades”. As barbaridades as quais as pessoas aceitarão são

concernentes a áreas que mais causam dor: as áreas da economia e da

política.

A MASSIFICAÇÃO EM SEU AUGE. O POVO, SEM HORIZONTE,


ESCOLHE SEUS LIDERES
Por isso começamos a ver no horizonte figuras odiosas — odiadas

por um lado e amadas por outro — como a trindade do mal: Stálin, Hitler e
Mussolini, grupo que pode ser ampliado com Franco, Salazar, Reza Pahlavi,

Lênin, Bela Kun e outras várias lideranças, algumas ficaram mais tempo no

poder, outras menos tempo.

Se invertêssemos e colocássemos essas lideranças no século XIX,

em vez de no século XX, as condições e os

contextos históricos fariam com que essa

liderança de despóticos tivesse assumido

o poder, ou as condições sociais, políticas e

econômicas do século XX favoreceram isso?


Stálin, Hitler, Mussolin
O que falei na primeira aula, em que
22  Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo polonês, autor de Modernidade e Holocausto (1989), Modernidade
líquida (1999), entre outros.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
citei brevemente o filme A fita branca, é uma explicação do porquê décadas

depois o Nazismo conseguiu ter raízes profundas na sociedade alemã.

Quais são os aspectos históricos que conseguimos analisar que favorecem

algumas figuras, odiadas por um lado, mas amadas por outro lado, surgirem

na sociedade?

Essas personalidades têm o poder de falar para as massas, têm

aquilo que Max Weber23 chamava de “dominação carismática”, um

certo carisma, algumas mais, outras menos, mas elas têm um elemento

carismático na sua forma de governo. Além disso, possuem distorções

de discurso, que proclamam para as massas que, como Hegel falava,

avançam24. Essas figuras odiosas e odiadas falam para uma massa ferida,

já sem valores, que aceitarão barbaridades, como fala Bauman. É a massa

formada por homens, como defende tão bem Ortega y Gasset no livro A

rebelião das massas, carentes de unidade interior, feitos às pressas para

serem mais um número nas fileiras das guerras e das indústrias. Não ataco

aqui, de forma nenhuma, o mundo capitalista, mas sim as ideologias que se

utilizam do sistema capitalista, que tornarão o homem um ser carente de

centro interior e de ideia de valor.

O surgimento desse novo homem advém do cientificismo do


século XIX, de sementes plantadas pelo Iluminismo, e também de certa

forma pelo Humanismo renascentista. São homens que abandonaram os

valores espirituais e colocaram em seu lugar valores materiais. A partir de

agora, o “ter” está no lugar do “ser”. Com a Primeira Guerra Mundial, este

processo se tornou mais evidente, e as incertezas e falta de valores bateram

na porta e entraram. Surgiram, então, figuras como Hitler, Stálin e Mussolini,

líderes totalitários que participam de ideologias muito semelhantes.

Nós falaremos sobre militarismo, antiliberalismo, totalitarismo,

monopolismo, partido único, ideologia única, polícias políticas, dentre outras

23  Maximilian Karl Emil Weber (1864-1920), sociólogo alemão. Autor de A ética protestante (1905), Economia e
sociedade (1922), dentre outros títulos consagrados na sociologia.
24 Ver O conturbado século XIX, curso com Guilherme Almeida, para a Brasil Paralelo.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
caraterísticas e práticas de regimes políticos e estatais, e, ao comparar

certas características, vemos que os regimes de extrema direita e extrema

esquerda são muito mais semelhantes do que diferentes.

A definição de fascismo como forma de ditadura de extrema direita

é dada pelos soviéticos, que dão nova interpretação de um fenômeno

novo, o qual de certa forma foi inaugurado por Mussolini, marxista em sua

formação, que fez um enjambre político dentro da Itália com sua famosa

frase: “Nada contra o Estado, nada acima do Estado, tudo pelo Estado”.

Estado comandado pelo partido dele e o partido comandado por ele mesmo.

A partir disso é possível ver o fenômeno do totalitarismo, onde o centro

do poder são os líderes com a característica da “dominação carismática”

sobre a qual Weber explica em sua grande obra Economia e sociedade. As

formas de dominação que ele analisa são: legalista, hereditária e carismática.

Sobre esta última podemos deduzir que é a que mais causa danos, pois, o

líder passa a ser um messias devido ao apego à sua figura carismática. Não

por acaso Hitler se intitula Führer, o guia; Mussolini se intitula Duce, o chefe;

e Getúlio Vargas se intitula o pai dos pobres. Eles têm títulos carismáticos.

Essas religiões políticas, como bem definiu Eric Voegelin25, se tornarão

seitas, pois os fascismos e os socialismos ultrapassam a noção política,


viram movimentos messiânicos.

O que é possível ver, por exemplo, no povo que endeusa Lula, figura

asquerosa que tem, para alguns grupos massificados, a figura carismática

de um líder messiânico. Ignoram o fato de que ele roubou e desviou dinheiro,

o fato de que ele é grotesco, pois para a massa marginalizada ele representa

um caminho, como se fosse a salvação dela. É o mesmo que vemos nos

movimentos carismáticos, que são, politicamente falando, muito fortes

nesse momento. Volto à minha primeira pergunta: será que os problemas

causados com a Primeira Guerra Mundial e com o Tratado de Versalhes, que

criaram o terreno fértil para o surgimento dessas ideologias, antes disso,


25  Eric Voegelin (1901-1985), alemão, formado pela Universidade de Viena, residente nos Estados Unidos como
professor universitário, onde lecionava Ciências Políticas.

23
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
será que líderes como esses que eu citei teriam âmbito favorável?

Lênin disse uma frase a qual é sempre interessante lembrar: “As

revoluções só acontecem com dois fatores somados: governos fracos

e líderes”. Antes não se tinha um governo enfraquecido por uma guerra

mundial, por exemplo, então não se tem brecha para uma nova realidade

surgir. Assim como os movimentos socialistas, pois nenhum movimento

socialista deu certo no século XIX. Não venham defender a Comuna de Paris,

pois ela durou 70 dias, período que não caracteriza um governo de sucesso.

Isso não é tomar o poder, como muitos esquerdistas alegam.

Durante a Comuna de Paris de 1871, os socialistas ficaram no

poder apenas em Paris, não em toda França, já que tinha outro governo,

conservador, de Thiers, comandando em Versalhes, na França. Durante

a Comuna, muitos socialistas sequer ligavam para a leitura de Marx e

Engels, eles tinham Os miseráveis, obra de 1862, como livro representante

contra o sistema que os oprimia. Obra que retrata uma realidade difícil da

população francesa, pois de fato era complicada a vida na Europa naquele

momento, principalmente na França.

A Primeira Guerra Mundial é a amplificação do que já vinha

acontecendo há algum tempo: a massificação do povo, extremamente


estratificado desde o final do século XIX, e que terá, nas décadas iniciais

do século XX, o auge da massificação, será o auge do que Ortega chama

de “homem massa”, que é o homem feito às pressas e carente de unidade

interior.

Gostaria também de ler um pedacinho de um parágrafo do livro de

Barbara Tuchman, que nos demonstra justamente como estava a sociedade

europeia no final do século XIX e começo do século XX, até a década de 20.

Vejam que interessante:

“Vinham dos viveiros dos miseráveis, onde a fome e a porcaria eram

reis, onde tísicos tossiam e o ar se tornava grosso com o cheiro das latrinas,

couves a coser e cerveja rançosa, onde crianças gemiam e casais gritavam

24
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
em incríveis brigas, onde telhados abriam buracos e as janelas deixavam

entrar as frias rajadas do inverno, onde o recato de uma vida íntima não se

podia sequer imaginar, onde mulheres, avós e crianças viviam em completa

promiscuidade, comendo, dormindo, fornicando, defecando, adoecendo

e morrendo no mesmo quarto, onde em uma panela ferviam água para

lavagem entre as refeições, caixas velhas serviam de cadeiras, montes de

palhas sujas serviam de camas e tábuas apoiadas em dois caixotes faziam

de mesas, onde algumas vezes nem todas as crianças em uma família

podiam sair ao mesmo tempo, porque não havia roupas bastante para se

vestirem, onde famílias tinham de viver entre bêbados, homens que batiam

nas mulheres, ladrões e prostitutas, onde a vida era um sobe e desce de

desemprego e de infindável trabalho, onde um operário de uma fábrica

de charutos e a mulher ganhando treze cêntimos por hora, trabalhavam

dezessete horas por dia, sete dias na semana, para se manterem a eles e a

três filhos, onde a morte era a única saída e a única extravagância, onde as

insignificantes economias de uma vida inteira acabavam por ser dissipadas

na carreta funerária, com flores e um cortejo de carpideiras que livrasse do

anonimato e da ignomínia da vala comum”.

Este é o retrato da Europa daquele período, a partir do qual não fica


tão difícil compreendermos que aquelas figuras totalitárias estivessem no

front, figuras mais semelhantes do que destoantes, chegando mesmo a

parecerem trigêmeos. De um lado, Stálin, do outro, Hitler e, no meio, Marx.

Paul Johnson26, em sua obra Tempos modernos, defende que parte das

ideias fascistas, principalmente do fascismo de Mussolini, o fascismo

italiano, advém das ideias marxistas, ele é um grande defensor disso.

Quando analisamos, por exemplo, a figura grotesca de Hitler, vemos

que o nome do seu partido é Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores

Alemães, o que nos abre precedentes para tentar imaginar uma base

socialista no Partido Nazista, uma base de esquerda, não apenas o termo


26  Paul Bede Johnson (1928- ), historiador e jornalista britânico, autor de Tempos modernos o mundo dos anos
20 aos 80 (1983).

25
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
socialista da ideia do social, mas além dela. Este é um bom assunto para

se pensar ou para se investigar, e alguns teóricos defendem a vertente de

que o nazismo seria uma política socialista, de esquerda, mas não vou

entrar nessa seara.

Como estes líderes conseguiram entrar na mente da população?

Por exemplo, quando Hitler, em 1925, publica sua obra Mein kampf (Minha

luta), não é apenas um livro que demonstrava como ele queria chegar

ao poder, mas um livro que mostrava o que ele achava da sociedade. Em

algumas pessoas ecoaram suas ideias, onde brotou a semente inaugurada

por Hitler, e aqui cabe uma análise extremamente interessante. Alguns

estudos apontam que 60% do que fazemos no nosso dia a dia é baseado

em nossos hábitos, por exemplo, quando escolhemos acordar de manhã,

ou seja, quando fazemos a escolha reiterada de sair da cama em uma

determinada hora, durante vários dias, passamos a praticá-la sempre por

hábito.

Trago este ponto de estudo para começarmos a desvendar o

porquê de, ao passar dos dias e anos, as pessoas aceitam imposições

totalitárias, novas regras, novas certezas e novos padrões culturais, que se

tornam hábito entre as pessoas. Excetuando Churchill27, um dos primeiros


a entender isso foi um alemão chamado Victor Klemperer28, na sua obra LTI:

a linguagem do Terceiro Reich. Atenção ao que ele aponta:

“[...] o efeito mais forte não foi provocado por discursos isolados, nem

por artigos ou panfletos, cartazes ou bandeiras. O efeito não foi obtido por

meio de nada que se tenha sido forçado a registrar com o pensamento ou

a percepção conscientes.

O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por

meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares

de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente.”.

27  Winston Leonard Spencer-Churchill (19874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido durante a Segunda Mun-
dial.
28  Victor Klemperer (1881-1960), judeu alemão, professor de filologia na Universidade de Dresda.

26
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Isso entrou no hábito das pessoas.

O Nazismo é uma ideologia criada e surgida no campo fértil da pós-

Primeira Guerra Mundial e do Tratado de Versalhes, onde o povo está carente

de certezas de valores. O que Klemperer fala é interessante porque os

discursos do Nazismo são sempre os mesmos, com as mesmas palavras,

repetidas milhares de vezes, fazendo com que moldem o pensamento,

e quando o pensamento é moldado, também a ação é moldada. Ou

seja, é o discurso que molda o pensamento, que molda a ação. Esta ação

constantemente repetida virará hábito, 60% do seu dia será desses hábitos.

Klemperer, linguista e filólogo, analisa os discursos nazistas e alertava uma

minoria do povo alemão que o escutava: “Alguma coisa não está certa. Por

que isso? Por que esta forma de discurso? Por que este jeito de impor uma

verdade e uma nova transgressão dos conteúdos, das palavras?”.

Palavras distorcidas, realidades alteradas, ações modificadas. Vejam

o que Klemperer fala em seguida:

“Se, por longo tempo, alguém emprega o termo “fanático” no

lugar de ‘heroico e virtuoso’, ele acaba acreditando que um fanático é

mesmo um herói virtuoso, e que sem fanatismo não é possível ser herói.

As palavras fanático e fanatismo não foram criadas pelo Terceiro Reich, mas
ele lhes adulterou o sentido; em um só dia elas eram empregadas mais do

que em qualquer outra época”.

Victor Klemperer com isso quer dizer que as distorções retóricas

empregadas por Hitler, as quais sua análise verbal demonstra, alteram o

sentido original das palavras antigas, mecanismo sempre presente nos

discursos totalitários, por sua vez estas palavras com novos sentidos só terão

eco em uma sociedade dessa realidade, neste momento.

O interessante é que começamos a ver o desenvolvimento dos

grandes movimentos políticos, que tomam cada vez mais feições religiosas.

As lideranças totalitárias darão o que as massas querem escutar. Freud foi

taxativo ao dizer que o líder que tem grande sucesso é aquele que fala o que

27
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
as massas querem escutar. Estes líderes entendem quais são as dores da

massa, e são estas carências do povo o alvo de suas promessas, criando

uma realidade ilusória, uma maya (para utilizar o termo “ilusão” dos vedas

indianos), e essas ilusões são acreditadas pela massa abandonada, sem pai

e sem mãe.

É um movimento muito interessante para análise do ponto de vista

histórico, no qual começamos a entender as várias vertentes surgidas na

Europa e as raízes dos movimentos políticos do início do século XX.

Ao refletirmos sobre o quanto a realidade do início do século XX

se parece com a nossa, veremos que não temos guerras para fazer com

que nossos valores sejam balançados, nem temos problemas econômicos

gravíssimos, por enquanto. No entanto, pensemos sobre o que foi e o que

está sendo — até a gravação desta aula — a pandemia do coronavírus.

Tirando a ideia da quantidade de mortos, e focando na ideia do caos

criado, moldado a partir de março de 2020, o caos surgido por conta do

coronavírus assemelha-se um pouco aos movimentos sobre os quais

falei, que começam a partir de 1918.

Quantas pessoas se suicidaram, quantas pessoas ficaram

desempregadas e entraram em desespero, tendo de partir para outras


atividades profissionais? Pensei sobre este atual cenário que vivemos ao

montar esta aula, pois eu também fui abalado pela nova realidade que

vivemos ao termos de remodelar toda a nossa forma de organização para o

home office. Mas e se formos mais adiante com nossa indagação sobre as

mudanças em nossas vidas?

Quantas certezas de fé e espiritualidade foram abaladas pelos

últimos acontecimentos? Por um lado, e eu estou dando aqui um

testemunho, me senti fortalecido em algumas partes da minha fé, porque

realmente não somos donos do nosso destino, pelo menos não em grande

parte. O destino não está em nossas mãos, porque basta um vírus para

causar um caos midiático movido por ideologias torpes que, como sabemos,

28
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
causaram mais caos ainda na sociedade. As pessoas passaram a policiar

umas às outras por causa do uso de máscara, politizando o uso ou não uso

da vacina. Caos que se assemelha muito na nossa realidade com o caos do

início da década de 20 do século XX.

As certezas estão abaladas, e agora? Em quem vamos acreditar? Nas

vacinas ou nos contrários às vacinas? Nas teorias de conspiração em torno

da vacina chinesa ou em uma certa ideia de que “estamos imunizados”?

Quem será que vai sair disso como líder fortalecido? Uma pessoa? Um

partido político? Um grupo político?

Vivemos um momento de grande polarização dentro da nossa

realidade histórica, e não digo apenas no Brasil, pois nos Estado Unidos as

eleições demostraram o mesmo tipo de conflito.

Quais são as lições históricas que podemos tirar deste ponto? Na

euforia desmedida, as bandeiras acabam, todas elas, e volta o acúmulo

de pessoas nas praias, nos bares, nas ruas, nos mercados, e o número de

contaminados volta a surgir nas mídias. As pessoas já não aguentam ficar

em casa, temos, a partir disso, movimentos de negação, que pedem o fim

do confinamento. Nunca se bebeu tanto quanto nos últimos meses, diz a

Federação das Indústrias de Bebidas.


Por que isso? Quais são as lições que conseguimos tirar desta

realidade ao compará-la com o que estamos analisando sobre a década de

20 do século XX? É algo a ser pensado.

29
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
No início do século XX, tínhamos o que Ortega y Gasset chamou de

“brutalidade da estupidez”, pois o mundo esteve estúpido até a década de 40

daquele século. Atualmente, a nossa estupidez é estarmos cegos para uma

realidade ampla, porque precisamos estar atentos à nossa sobrevivência.

A custa de que nós vamos dar a esses líderes a nossa sobrevivência? Para

termos dinheiro para comer e para morar, damos a nossa liberdade.

Estamos vendendo (e aqui uso no plural, “estamos”, pois o fazemos como a

população europeia da década de 20), estamos literalmente vendendo a

alma para os líderes que estendem as mãos para nos tirar do caos.

Vemos hoje líderes nos entendendo as mãos para nos tirar do caos da

infecção do coronavírus. Nos dizem: “Use máscara, passe álcool-gel, tome a

vacina”. Então a história não se repete, mas se mostra em muitos casos

um espelho distante, mas ainda assim um espelho. Portanto vale a pena

termos em mente a comparação dos fatos que se passaram com os fatos

da atualidade.

A Europa daquele período está fervilhando, e é por isso que as

ideologias totalitárias, de esquerda e de direita, possuem raízes na década

de 20. A União Soviética, após a morte de Lênin e a subida de Stálin no

poder, que expulsou Trotsky, é sintomático.


Trotsky quer espalhar a revolução socialista para a Europa, e Stálin

quer estabelecer o desenvolvimento e fortalecimento da revolução na

União Soviética para que depois as ideias sejam mandadas para o resto da

Europa.

Por que sintomático? Porque eles estão se fechando para uma

estrutura de regime de controle total, por isso Churchill dirá que se estendeu

uma grande cortina de ferro na União Soviética.

Trotsky é expulso, depois morto pelos assassinos de Stálin, quando

estava no México sendo amparado por Frida Kahlo.

Stálin fecha a União Soviética, cria os famosos planos quinquenais

em 1928, onde demonstra o poder forte e violento do seu sistema político-

30
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
econômico. Com isso, as ideias socialistas que vêm da União Soviética

começam a ter eco na Europa Ocidental, em locais que não aceitavam ou

as novas democracias ou as ideias de direita.

A crise de 1929 balança mais ainda as ideias ligadas à direita liberal.

As pessoas sentirão o terror do que foi a crise de 29, principalmente dentro

da Europa, e mais ainda dentro da Alemanha, então, olharão para o leste

europeu e verão que a União Soviética não foi afetada pela crise, porque a

União Soviética não tinha sequer um rublo aplicado na bolsa de Nova York,

e a sua economia era autossuficiente, não sofrendo abalo nenhum. O povo

médio na Europa, de inteligência média e baixa, pensará: “Por que não

aqui também? Por que não criamos aqui uma sociedade semelhante à

Soviética?”.

Nesse ponto começamos a entender, por exemplo, que a Igreja não

incentivava o sistema fascista de Mussolini na Itália, mas naquele momento,

entendeu que pelo menos um sistema de direita fascista (utilizando o termo

“direita” colocando os fascistas no espectro da direita, sobre o que tenho

algumas ressalvas) era melhor do que um sistema socialista, que na sua

base é ateu. Teremos o Tratado de Latrão, de 1929, que é a criação de uma

autonomia para a Igreja Católica no Vaticano.


Começamos a ver ares novos de violência no ar, de regimes

despóticos, totalitários, centralizados em uma ideia única, ideia de não

liberdade. Nesse momento teremos o que falei sobre a “estupidez da

brutalidade”, de que Ortega falava. A população está sendo comandada na

Europa Ocidental por líderes estúpidos, ou líderes cegos. Neste momento

acontecerá o fortalecimento de Hitler, por exemplo.

Gostaria de encerrar nossa aula com esta reflexão: por fatores

externos, a população começa a comprar ideias de fora, que não estavam

em seu entendimento. Ideias “novas”, entre aspas, de regimes totalitários

e centralizados, que são valores que entraram e se introjetaram nas suas

realidades do dia a dia e moldaram seu comportamento. Alguns autores

31
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
dirão que graças a isso o povo alemão não chegou a apoiar e incentivar o

Nazismo, mas abraçou a ideia, porque eles estavam na miséria, mas agora

não mais.

Há uma segunda reflexão que eu gostaria de fazer. Será que se

fôssemos italianos, alemães ou russos também não apoiaríamos essa forma

de governo que nos tirou da miséria e nos deu uma certa dignidade de

vida? Não estou discutindo em detrimento à liberdade, a poder ir e vir, ou à

religiosidade e espiritualidade, estou falando em uma realidade crua. Será

que não aceitaríamos essas condições impostas pelo Partido Nazista ou pelo

Partido Comunista, por exemplo? O que hoje em dia estamos aceitando em

troca de uma estabilidade psíquica, moral e principalmente econômica?

Fica a reflexão.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
AU L A 3

A GERAÇÃO DOS POETAS

MALDITOS
Nessa terceira aula desse curso sobre os loucos anos 20, abordaremos

alguns aspectos mais culturais e mais artísticos.

Comecemos com Fitzgerald29, grande escritor da década de 20;

em um livro chamado Ecos da Era do Jazz, ele aponta para esse período

como uma era de excessos, de euforia, de milagres — como ele mesmo

punha — pelo fato de não saberem o que os esperava no dia de amanhã;

aquilo que eu comentei sobre o Carpe Diem cabe muito bem aqui, porque

esses excessos compensavam — como Freud30 colocava — as incertezas e

angústias da vida.

Não é à toa que na década de 20 há uma grande produção da

área psicanalítica, Freud produz muito nesse período porque a sociedade

está complexada, o homem está complexado; não entraremos no mérito

da obra de Freud, só estou mencionando que havia teorias explicativas a

respeito do comportamento dos homens, da sua psique e de tudo que

estava acontecendo. E o que esses anos 20 tinham de excessivo na Europa,

do outro lado do Oceano Atlântico, um rigor pesado e fechado abundava

nos Estados Unidos, a ponto de a loucura parecer estar presente nos dois

lados do Atlântico.

Assim que o Dadaísmo31 finda, temos o surgimento do seu herdeiro


e profusor: o Surrealismo. André Breton32, um dos grandes nomes desta

escola, cria o Manifesto Surrealista e coloca uma frase muito interessante

sobre a loucura: “Os loucos são, em certa medida, vítimas de sua imaginação,

visto que esta os induz a quebrar certas regras, regras cuja transgressão

define a qualidade de louco”.

No Manifesto está expresso que esse movimento tinha de ser um

movimento recheado de loucura, de imaginação e de transgressão, que

29  Francis Scott Key Fitzgerald (1896-1940) foi um escritor, romancista, contista, roteirista e poeta norte-ameri-
cano. Ficou conhecido por causa de suas obras Este Lado do Paraíso, Belos e Malditos e O Grande Gatsby, entre
outras.
30  Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) foi um médico neurologista e psiquiatra criador da Psicanálise.
31  O Dadaísmo ou Movimento Dadá foi um movimento artístico que nasceu em 1916, durante a Primeira Guerra
Mundial em Zurique, Suíça.
32  André Breton (1896-1966) foi um escritor francês, poeta e teórico do Surrealismo. Ele escreveu o Manifesto Sur-
realista em 1924.

34
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
aquele era o grande momento de quebra de paradigmas e continuidades e

que era o período para se fazer algo novo, pois as amarras não existiam mais

— pelo menos não aparentemente, se internamente ou psicologicamente

elas estivessem presentes, pelo menos elas eram maquiadas com a euforia

e a falta de valores. É um momento no qual a loucura é elogiada, em que a

transgressão é vista com bons olhos, em que a imaginação é deixada livre

para fluir, não é mais aprisionada como nos movimentos cientificistas

de 1919; é um momento que parece, pelo menos historicamente, mais leve

para o ser humano, mas como eu disse: todo excesso esconde uma falta,

mas falta do quê?

É a falta de algo de que falamos desde o início deste curso: falta

desses valores, de uma raiz, de um chão fixo. O Dadaísmo começa no

meio da guerra, na sua sequência vem o Surrealismo, e os artistas tentam

demonstrar essas modificações nos padrões. Assim, eu posso muito bem

colocar um mictório na sala ou uma pá de neve e falar que aquilo é uma

obra de arte, como o Duchamp fez. A arte ultrapassa aquele entendimento

porque a vida ultrapassou o entendimento, a vida não é mais aquela grande

glória.

Luc Ferry33, que foi Ministro da Educação na França, fala em uma de


suas palestras que na Antiguidade as pessoas morriam pela religiosidade,

pelo líder espiritual, por Deus, mas já na Primeira Guerra Mundial as

pessoas começam a morrer pelas nações, e o que acontece depois desta

guerra? Essas pessoas sem eira nem beira colocam sua vida para que ou

para quem? Quem preenche essas lacunas? Como já dissemos na segunda

aula, foram esses líderes, esses “políticos religiosos”, que cobriram essa

falta.

A Arte, por estar fora das academias, se amplia, e o Surrealismo é

justamente isso.

Eu queria começar aqui, justamente nesse ponto de vista artístico

33  Luc Ferry, nasceu em 1951, e é um filósofo francês, professor de filosofia e político.

35
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
do Surrealismo, com uma obra sintomática

de Salvador Dalí34 de 1929 intitulada O Grande

Masturbador; Pouco antes de conhecer sua

futura companheira Gala - na época ela ainda

era casada -, ele pinta aquilo que lhe incomodava

profundamente: está presente uma impotência

em várias áreas, inclusive a sexual; podemos notar


O Grande Masturbador, Salvador Dalí
um rosto cujo nariz toca o chão, um gafanhoto

— que é um elemento recorrente na obra do

Salvador Dalí — perto da boca, com sujeira saindo, e também a Gala saindo

de um pedaço da sua cabeça e encostando em um pênis, um órgão sexual

mole, amortecido, “morto”.

O que é interessante — e isto é uma análise minha — é que a obra de

1929 está em consonância com um período negro do capitalismo, a queda

da bolsa valores de Nova Iorque35; assim, o quadro de Dalí aponta não só para

a impotência de sua própria sexualidade, mas também para impotência

perante a queda da bolsa, perante a corrupção nas esferas políticas, perante

uma situação que ninguém sabe onde vai parar; Vejam que interessante:

nós tínhamos, com a Primeira Guerra, com o Tratado de Versalhes e com


as ascensões de ditaduras fascistas e comunistas, demonstrações de

incertezas políticas e culturais; mas ainda havia uma certeza fraca, mas

viva, de natureza econômica, que se esfacelou com a Crise de 29. É por

isso que essa década de 20 é conturbada e intensa, justamente pelo fato

de que todos os graus de solidez desfizeram-se no campo econômico,

político, cultural, religioso, espiritual e artístico.

Observemos atentamente o quadro Os Dois Balcões, e,

principalmente, este outro chamado A Persistência da Memória; na época

ele morava em Mallorca e, quando observa um queijo Camembert muito


34  Salvador Dalí i Domènech de Púbol, 1º Marquês de Dalí Púbol, (1904-1989) foi um importante pintor espanhol
da escola Surrealista. Seu posicionamento político comentado mais a frente conta com o período da juventude
em que abraçou o anarquismo e o comunismo, e o período maduro, no qual declara ser anarquista e monarquista.
35  Conhecida também como A Grande Depressão e Crise de 1929 foi um momento de depressão econômica que
iniciou em 1929 e perdurou ao longo da década de 30.

36
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
derretido, tem a ideia do quadro, começa a ver

nessa imagem uma demonstração de como

as coisas demoram passar, como a memória

persiste, mas quais memórias? As suas próprias

memórias e também as memórias de um

Os Dois Balcões passado pesado e recente da década de 10 e 20.

Dalí e Freud

trabalham com essas questões dos sonhos, das

dimensões psíquicas desvendadas e colocadas

por ambos, mesmo que um materialize seu

trabalho na tela e o outro, nos livros; entender

isso é um ponto fascinante para tentar entender


A Persistência da Memória
esse pedaço da nossa história.

Os elementos, as tintas, as figuras, as cores

estão sendo colocados na tela conforme é o interior do artista, assim como

as sondagens que Freud e Jung farão na psique humana.

O quadro chamado O Nascimento

do Desejo Líquido é uma obra que ganhou

grande importância nos nossos dias porque


estabeleceu relação com a modernidade líquida

de Bauman. O que é essa modernidade líquida?

É a liquefação de valores, relações, instituições,


O Nascimento do Desejo Líquido
estruturas que até então eram sólidos, todas

essas coisas como que perderão a sua capacidade de manter a sua própria

forma; peguemos, por exemplo, as relações humanas: antigamente quando

entrávamos em um relacionamento era para a vida toda, enquanto que hoje,

trata-se, em sua maioria, de relações epidérmicas de momento, começa-se

hoje o que pode muito bem terminar amanhã.

Sei que eu estou avançando um pouco além da ideia da década de 20,

mas é só para entendermos a produção desses grandes artistas da época;

37
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
olhando para alguns outros quadros de Dalí na sequência, notaremos em

todos objetos fálicos que aparecem presos em tipoias ou em muletas,

justamente para demonstrar essa impotência.

Temos uma obra de arte deste mesmo autor

que retrata um momento histórico, cujo nome oficial é

Premonição da Guerra Civil e também é chamada de

Construções Moles com Feijões Cozidos; é uma obra

extremamente impactante a respeito da guerra civil

espanhola que mantém relação com outra grande

obra de arte de Picasso36 chamada Guernica, que


Premonição da Guerra Civil
também retrata a Guerra Civil Espanhola. Nós temos

entendimentos diferenciados acerca do mesmo

momento: Picasso tinha uma predileção muito maior aos movimentos de

esquerda, enquanto Dalí, não é que ele fosse de direita, mas, apesar de ser

bastante livre de amarras políticas, ocasionalmente surgia com posições

políticas desconfortáveis a seus colegas de profissão.

Guernica

A Premonição da Guerra Civil demonstra uma agonia existencial

nesse homem totalmente deformado, pois, com as partes do seu corpo,

ele forma o mapa da Espanha, mas é uma Espanha Feijões Moles Cozidos

que Estão no Chão, ou seja, se eles estão cozidos, deles não brota mais
36  Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) foi um pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo espanhol que
passou a maior parte da vida. É conhecido como um dos fundadores do Cubismo ao lado de Georges Braque.

38
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
nada, então é um solo árido de um homem deformado em um momento

histórico extremamente pesado e violento. Vejam que, no mesmo momento

histórico, nós temos dois grandes artistas produzindo sobre o mesmo tema

com visões diferentes.

Se nós temos acerca da Arte posições diferentes, imaginem do ponto

de vista histórico e cultural desse momento, e é por isso que é importante

dialogarmos com várias fontes históricas, inclusive, fontes daquelas

ideologias que nós não concordamos; muita gente é crítica, por exemplo,

de Freud, mas ele traz elementos interessantes para analisarmos — mesmo

que seja para negá-lo. Outros escritores mais de esquerda valem a pena ser

lidos porque eles trazem algumas fontes e informações verdadeiras, mas

isso não quer dizer que nós seremos infectados com a sua ideologia.

Ao ler um livro — principalmente de Filosofia e alguns historiadores

antigos — nós entendemos o momento histórico em que eles viveram; é

importante em uma obra de Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Santo

Tomás de Aquino, etc. entender o contexto em que eles viveram porque,

mesmo que os seus escritores transcendam o momento histórico, eles

partiram de um tempo e de uma local específicos para escrever.

A mesmas coisa acontece na interpretação


das obras surrealistas que estamos vendo, por

exemplo, nessa obra de Magritte37 intulada

Os Amantes; nela há o desejo do homem e da

mulher, há um quase beijo, mas as bocas não se

Os Amantes tocam, porque há um véu no rosto de cada um. Ou

também nesta obra que considero uma grande

obra para explicar esse momento, A Traição das Imagens, produzida em

1929 por Magritte; nela há um cachimbo e logo abaixo está escrito: “Isto não

é um cachimbo”; por que chama-se A Traição das Imagens? Porque não

é um cachimbo na sua realidade, é uma representação de uma coisa que

37  René François Ghislain Magritte (1898-1967) foi um dos principais artistas surrealistas.

39
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
imaginamos ser um cachimbo, há uma provocação

presente no título do quadro, porque imagem é

aquilo acreditamos ser a realidade, mas será que é

a realidade mesma?

O que você absorveu daquilo que você está

vendo é a realidade até que ponto? As histórias A Traição das Imagens

contadas, os movimentos políticos, as ideologias

aceitas, até que ponto essas coisas estão em

consonância com um fato histórico ou uma realidade analisada? Isto não é

um cachimbo porque não posso pegá-lo para fumar; as imagens nos traem

porque elas não são a realidade como um todo.

Por isso a importância de estudar História sempre acrescentando

um pouco de Filosofia, pois a História sem a Filosofia, ou a Filosofia sem a

História, não nos dão a possibilidade de entender algo em sua amplitude,

é como nós que, para caminhar, necessitamos de duas pernas.

Um outro aspecto muito interessante desse momento: a ideia de

não ter mais limites também impacta a posição da mulher na sociedade.

A rapidez das mudanças durante os anos de 1920 era vertiginosa: a

prosperidade crescente, as convulsões sociais e a euforia dos jovens pós-


guerra somadas a um novo poder dado às mulheres fizeram de 1920 uma

década de mudanças de paradigmas. Do ponto de vista das mulheres, a

moda será o grande símbolo dessa libertação feminina.

Paul Johnson tem uma frase muito interessante sobre isso: “Elas

jogaram fora os espartilhos, assim como os impraticáveis vestidos longos,

penteados elaborados e chapéus daquele tempo e adotaram vestidos mais

curtos e menos ajustados à cintura e penteados mais fáceis de montar

com bobes”. É a libertação de padrões antigos, agora há novos padrões que

também tentam ser menos agressivos e menos fechados.

Uma das grandes figuras desse momento é a grande artista

40
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Josephine Baker38, dançarina de muitos cabarés em

Paris; mulata; vivia nas altas rodas parisienses que nada

tem a ver com as altas rodas antes da Primeira Guerra

Mundial; mãe de 12 filhos adotados, ela era a grande

manifestação de um poder efusivo nessa década de 20,

pois era uma mulher extremamente forte e presente

na realidade histórica que ela vivia, e Paris foi o grande

centro de abertura para todas essas artes, como por

exemplo, a arte da moda de Coco Chanel. Chanel altera


Josephine Baker
os padrões e coloca a moda como algo a ser analisado.

Paul Johnson compôs uma trilogia de livro, Os

Criadores, Os Intelectuais e Os Heróis; no primeiro citado, há um capítulo

dedicado ao mundo da moda, no qual ele fala de Worth39, Dior40, Balenciaga


41
e Chanel42. Cada um possuía suas características particulares, mas nessa

época ronda um espírito de a moda ser algo transgressor — como Breton

colocava —, algo que ultrapassa limites, por exemplo, Coco Chanel foi uma

pessoa de destaque nisso.

Há uma figura que, do meu ponto de vista, é

extremamente querida: a grande tenista Suzanne Lenglen43;


ela entrava na quadra vestida de casaco de pele, durante o

jogo usava vestidos coloridos de seda vermelhos ou laranjas,

era a própria elegância do jogo; importa notar nas imagens

que é uma pessoa chique em uma quadra de tênis. Vamos

colocar uma passagem do livro Tempos Modernos que que

eu já havia citado anteriormente — estou o citando bastante, Suzanne Lenglen

38  Josephine Baker, nome artístico de Freda Josephine McDonald (1906-1975) foi uma cantora e dançarina
norte-americana naturalizada francesa. Particularmente acerca de suas adoções de várias etnias, a família ficou
conhecida como Tribo Arco-íris.
39  Charles Frederick Worth (1825-1895) foi um costureiro inglês que foi para Paris considerado por muitos como
o pai da alta-costura.
40  Christian Dior (1905-1957) foi um importante estilista francês e fundador da empresa de vestuário Christian
Dior S.A., uma das mais famosas da moda mundial.
41  Cristóbal Balenciaga Eizaguirre (1895-1972) foi um estilista espanhol e fundador da casa de Moda Balenciaga.
42  Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971), mais conhecida como Coco Chanel foi uma estilista francesa e fundado-
ra da marca Chanel S.A.
43  Suzanne Lenglen (1899-1938) foi uma tenista francesa.

41
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
porque é fundamental para a nossa formação intelectual: “Ela sempre

chegava à quadra com um casaco de pele, não importando a temperatura,

e jogava com trajes de melindrosa — vestidos de seda vermelhos ou laranja

acinturados e com pregas. Ela também fumava e bebia conhaque na

quadra — para acalmar seus nervos, dizia. Ela chocava a plateia com seus

movimentos ousados do tênis e ficou conhecida como ‘a Deusa’”.

Eu fico imaginando se era possível antes dessa libertação dos loucos

anos 20, uma mulher entrar em uma quadra, beber e fumar; seria impossível,

porque a sociedade não estava preparada para uma tamanha ruptura,

como coloca Paul Johnson. Os momentos históricos são fundamentais para

entender tamanhas transformações históricas; a complexidade que vemos

no mundo a partir do século XIX faz com que surjam outras disciplinas nas

Ciências Humanas, como a Sociologia e a Antropologia, por exemplo, e mais

tarde a Psicanálise. Por quê? Porque a sociedade é complexa, as pessoas

precisam de mais estudos sobre essa complexidade, e isso junto da História

e Filosofia nos dá uma certeza de que cada momento histórico possui

as suas próprias formas de organização. Quando nós comparamos esse

momento com outro, conseguimos identificar elementos que, de certa

forma, se repetem, como a libertação das mulheres a partir da década de


60, os mesmos elementos da década de 20.

É muito importante que vocês assistam à parte inicial do filme Meia-

Noite em Paris de Woody Allen44, em que ele passeia por Paris. Esse filme é

maravilhoso, principalmente a trilha sonora.

A pergunta que fica após certo estudo é: por que Paris? O que levou

Paris a ser o epicentro disso tudo? Do ponto de vista econômico, era a

questão do câmbio, pois era muito barato para pessoas com dólar ou libra

no bolso viver em Paris por um ano, por exemplo, com pequenas economias

era possível alugar um quarto em um hotel e comer e beber diariamente de

forma tranquila por um ano.


44  Heywood Allen, mais conhecido pelo nome Woody Allen, nasceu em 1935, é um cineasta, roteirista, escritor,
ator e músico norte-americano.

42
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
O que é interessante notar é que eles vão escolher outro lugar —

transgredirão o lugar que até então era o grande centro das artes, que ficava

em Montmartre, lado direito do Rio Sena — chamado Rive Gauche, o lado

esquerdo do Sena. Isso tem relação com esquerda política? Para alguns

sim, para outros não, eu entendo que é pelo fato de ser mais barato viver

do lado esquerdo do rio nessa época do que do lado direito, pelo menos

na região que eles escolhem, a região dos boulevardes, do Saint-Germain,

Rascal, aquela área do famoso Quartier Latin. A grande Paris é escolhida

nesse momento para ser o epicentro da profusão de toda essa produção

intelectual.

Sugiro a leitura de dois livros interessantes: O primeiro Paris era

Ontem de Janet Flanner45, que foi uma corresponde da New Yorker, que é

um compêndio de artigos que ela escrevia sobre Paris, principalmente do

campo cultural; o Segundo livro que indico é Os Exilados de Montparnasse

de Jean-Paul Caracalla, que nos demonstra de forma leve as grandes

movimentações e os grandes personagens: James Joyce46, Fitzgerald,

Gertrude Stein47, Picasso, Matisse48, Nijinski49, etc. Esses dois livros se

completam por demonstrarem uma Paris pouco analisada e pouco

estudada até então.


As transgressões estão presentes, por exemplo, em Nijinski, que

quebra todas as barreiras desde 1913 com a obra de Stravinsky chamada “A

Sagração da Primavera”, que já foi citada neste curso.

Paris é o centro disso tudo, é a grande mãe dessa transgressão, como

Hemingway colocou em seu livro Paris é uma festa; mas que festa é essa?

Nesse momento há a análise de P. Guinote50 que fala o seguinte: “Homens e


45  Janet Flanner (1892-1978) foi uma escritora e jornalista norte-americana correspondente do The New Yorker
de 1925 até 1975.
46  James Augustino Aloysius Joyce (1882-1941) foi um romancista, contista, e poeta irlandês. Dentre sua obra de-
stacam-se: Dublinenses, Retrato do Artista Quando Jovem, Ullisses e Finnegans Wake.
47  Gertrude Stein (1874-1946) foi uma escritora e poetisa norte-americana.
48  Henri-Émile-Benoît Matisse (1869-1954) foi um desenhista, gravurista, escultor e pintor francês conhecido por
possuir um traço fluido e original.
49 Waclaw Nizynski em polonês, Vatslav Fomitch Nijinski em russo, (1889-1950) foi um bailarino e coreógrafo russo
de origem polonesa. Ele foi o responsável pela coreografia da apresentação da obra A Sagração da Primavera de
Stravinsky.
50  Paulo Guinote, nasceu em 1965, é professor de história e escritor. A citação veio do livro Vida Boémia, Vida
Elegante: À Conquista da Noite.

43
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
mulheres bailam, cantam, riem e agitam-se alegremente, como um desejo

tão intenso de viver que das mágoas se esquecem ao ritmo do prazer”.

Junto com as mágoas podemos colocar as angústias, o medo da morte, a

ausência de padrões, de regras, de conceitos gerais, tudo isso demonstra

uma euforia desmedida nessa Europa da década de 20, e principalmente

Paris dessa década de 20.

Dentro de um retrato histórico, o filme Meia-Noite em Paris de

Woody Allen demonstra um pouco disso quando o personagem toda noite

encontra-se com esses grandes nomes citados sempre em festa, sempre

naquela euforia desmedida presente nos cafés Le Flore, Le Deux Magots,

Brasserie Lipp, todos eles na região do Rive Gauche; até a grande Helena

Rubistein51, uma empresária do mundo dos cosméticos que odiava artes e

literatura, patrocinou o seu amante com uma tipografia — isso está presenta

no livro Os Exilados de Montparnasse — e é interessante a análise que

eles fazem, porque era um homem que aspirava estar no meio intelectual

dos grandes artistas, só que ele não era artista, mas tinha o dinheiro de

Rubistein. Ele monta uma tipografia e tenta estar dentro dessa realidade, e,

de certa forma, até consegue.

Um aspecto interessante cultural — na minha opinião, a livraria mais


bacana que eu já entrei — é a Shakespeare & Company52, de Sylvia Beach e

sua companheira; com livros recentes na época e com clássicos, marcaram

a história da Literatura por ela ser a patrocinadora e produtora do Ulisses de

James Joyce, inclusive, nesses dois livros anteriormente citados, é mostrada a

arrogância de James Joyce em jamais ter colocado ela nos agradecimentos,

inclusive, ele pegou empréstimos com Sylvia, os quais ele nunca pagou.

Mesmo assim, ela nunca reclamou, uma vez que teve a oportunidade de

contribuir com uma das maiores obras literárias da década de 20.


51  Helena Rubinstein, nascida Chaja Rubinstein (1872-1965) foi uma empresária, colecionadora de arte e filantro-
pa polonesa-americana.
52 A Shakespeare and Company é o nome de duas livrarias na zonal sul de Paris. A que o professor faz referên-
cia é à primeira criada em 19 de novembro de 1919 na Rua Dupuytren que se mudou em 1922 para a Rua do
Odeão. Fechou em 1940 devido à ocupação nazista da França e nunca mais reabriu. A Segunda foi aberta por
George Whitman na rua da Bûcheie em 1951 sob o nome de Le Mistral, quando em 1964 mudou o nome para
Shakespeare and Company em homenagem à livraria original de Sylvia Beach.

44
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Há uma conversa muito interessante no filme Casablanca, em que

é mostrado esse saudosismo na hora em que acontece o beijo no final do

filme e ela pergunta: “E quanto a nós?”, pergunta é prontamente respondida

com “Nós sempre teremos Paris”.

No fim da década de 20, é interessante notar que essa euforia não

tinha grandes nomes como heróis dentro da França e consta que eles

importaram um herói, o grande aviador Lindbergh53, que fez a travessia do

Atlântico em 14 horas; ele não foi o primeiro, outros já haviam feito essa

travessia em 1919, mas ele fez um trecho maior; a multidão se acotovelava

dentro da área de pouso tal qual hoje em dia na final da Copa do Mundo.

Novamente, por causa dessa euforia desmedida, ele é colocado como herói

pelo fato de ter atravessado o Atlântico de avião. Tudo bem que é um fato

maravilhoso, mas ser colocado nas esferas que ele foi noticiado, até nos

jornais brasileiros, é um tanto quanto exagerado.

No livro de Modris, A Sagração da Primavera, ele dedica um capítulo

para retratar essa chegada do Lindbergh em Paris, e o nome do capítulo

é um tanto provocativo, chama-se “O Novo Cristo”; ele aponta para essa

loucura desmedida perante essa figura e isso só poderia ser em um lugar:

a Paris desmedida, eufórica e transgressora. Lindbergh chega a bordo do


avião chamado O Espírito de São Luís, que é tanto o nome da cidade de St.

Louis nos Estados Unidos, como também um dos grandes padroeiros da

França, o rei Luís IX54.

Para muitos que conhecem Paris, ela parece ter uma aura que

comunica com as artes e com a intelectualidade. Dizem que quando Santo

Tomás de Aquino viu Paris de cima - porque antigamente as estradas

que chegavam até lá vinham por Montmartre55 - ele falou da beleza e do

poder da cidade, mas parou, recuou e disse: “O verdadeiro poder é o de


53  Charles Augustus Lindbergh (1902-1974) foi um pioneiro da aviação norte-americana e ficou famoso por ter
feito o primeiro voo solitário transatlântico sem escalas em avião em 1927. No voo em questão ele saiu da costa
Oriental dos Estados Unidos em 20 de maio de 1927 e chegou em Paris no dia seguinte, a duração total do voo foi
de 33 horas e 31 minutos.
54 Luís IX (1214-1270), mais conhecido como São Luís, foi o rei de França de 1226 até o ano de sua morte. 
55  Montmartre é atualmente é um bairro parisiense situado em uma colina, de onde, na época de Santo Tomás,
era possível ver Paris do alto.

45
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Deus”; de qualquer forma, aquela cidade o impactou, tanto é assim que ele

passa algum tempo ensinando lá. Assim como o rei Henrique IV56, que era

protestante no século XVI, quando ele viu Paris de cima ele se converte ao

Catolicismo dizendo: “Paris bem vale uma Missa”.

E aqui fica uma colocação no ar: Paris é uma cidade que, do ponto de

vista religioso, é extremamente herética, mas também é a cidade com mais

católicos dentro da Europa; parece haver uma dicotomia entre sagrado e

profano, entre transgressão e conservação, não é à toa que ali nós temos

grandes movimentos conservadores e políticos de direita e transgressão e

políticos de esquerda; por exemplo, os pensamentos de Sartre falando que

o inferno são os outros e os movimentos de maio de 68. É uma cidade que

parece ter uma vida muito própria.

Finalizando essa nossa terceira aula eu digo o seguinte: “A saudade

de tê-la me consome. Saudades de mim. Você é meu espelho, meu sagrado

e profano: sentidos e vividos. Tua luz é minha luz, tuas esquinas o meu canto,

o teu rio meu sangue, a tua pedra minha carne. Mas tudo isso não é teu

separado do meu. Somos um, minha amada e necessária Paris”.

Até a nossa quarta e última aula.

56  Henrique IV de França (1553-1610), também conhecido como “O Bom Rei Henrique”, foi o rei de Navarra e tam-
bém rei de França a partir de 1589. Ele foi o primeiro monarca francês da Casa de Bourbon. Protestante, Henrique
IV esteve envolvido nas Guerras Religiosas na França. Antes de subir ao trono, converteu-se ao Catolicismo, a fim
de angariar apoio. Mais tarde assina o Édito de Nantes que concedia liberdade religiosa aos protestantes e finalizou
a guerra civil.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
AU L A 4

DE PARIS ENLOUQUECIDA AOS

EUA DO LIBERALISMO
Nesta quarta e última aula do nosso curso sobre os loucos anos 20,

vamos atravessar o Atlântico e nos aportar nos Estados Unidos.

A GRANDE CERTEZA ECONÔMICA CORRE PARA O RALO,


JUNTO COM O WHISKY DOS GÂNGSTERES
Estados Unidos da Lei Seca, estabelecida em 1920 pela 18ª emenda da

Constituição americana, que proibia a fabricação e o consumo de bebidas

alcoólicas, como cervejas, uísques etc. Há várias explicações sobre os motivos

que levaram os Estados Unidos a estabelecerem a Lei Seca, mas é fato que

temos uma sociedade recém saída da Primeira Guerra Mundial, da qual sai

vencedora, onde é a potência mais poderosa. Por outro lado, possui uma

sociedade protestante, imersa na ideia de moralidade e decência, o que

não permite certas liberdades, para não ocasionar libertinagens. A Lei Seca

marca o período dos anos 20 nos Estados Unidos.

Com as proibições, vêm as contravenções. Surgem figuras como Al

Capone57, famoso mafioso americano que atuou nos anos 20, entre outros

contrabandistas de bebidas alcóolicas, que aparecem desmedidamente,

vendendo bebida ilegal a bares clandestinos, típicos da época, que

contrariavam a Lei Seca. Estes bares eram chamados de speakeasy. Alguns


historiadores dizem que existiam mais de 100 mil bares clandestinos

espalhados pelos Estados Unidos. Não há como acabar com um hábito da

população, o qual perdurava há muito tempo, de uma hora para outra, com

uma emenda constitucional. Portanto, a 18ª emenda foi agressiva ao proibir

a venda de bebida alcóolica.

Os Estados Unidos seriam o país que não cairia nos excessos dos

loucos anos 20, mas não o conseguem de forma categórica, pois as

proibições foram transgredidas, a “grande transgressão” de Breton58.

O contexto da Lei Seca, nos Estados Unidos, ocasiona um problema

de saúde pública, porque como as bebidas não eram produzidas em


57  Alphonse Gabriel “Al” Capone (1899-1947), gangster.
58  André Breton (1896-1966), escritor francês, líder do Movimento Surrealista.

48
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
lugares com controle sanitário, a bebida era de qualidade muito inferior;

muitas pessoas ficavam cegas devido ao consumo excessivo de bebidas

clandestinas de péssima qualidade. Havia pessoas que morriam de

enfisema, de problemas no fígado e de diversos outros problemas de saúde

que a bebida clandestina pudesse acarretar.

O governo tenta impor o controle de consumo de bebidas alcóolicas,

mas a população enlouquece apesar dele, e caem no consumo desenfreado

de álcool. É interessante uma frase de Al Capone que fala a respeito do

sistema norte-americano e da oportunidade: “Podem chamar o sistema

norte-americano do que quiserem. A verdade é que ele proporciona grandes

oportunidades a todos”.

Há certa ironia na frase, pois obviamente ele está falando que a

oportunidade é a transgressão de várias leis impostas, inclusive transgressão

da Lei Seca. Al Capone é um dos maiores gângsteres do mundo. De Nova-

iorquino vai para Chicago e cria uma grande máfia, envolvida em prostituição,

bebidas clandestinas, assaltos etc. Ele é o grande nome da contravenção e

da transgressão norte-americana.

Figuras como Al Capone e certos mafiosos não existiam em

Paris, pois lá os transgressores eram artistas; nos Estados Unidos, os


transgressores eram gângsteres, em um país onde há a mão rígida da lei.

Neste momento temos um Estados Unidos mergulhando em leis rigorosas,

mas ao mesmo tempo com uma grande contravenção criminosa.

Quando a polícia fazia patrulha

pelos bares, obrigava os donos e

funcionários a jogar fora as bebidas pelo

bueiro, mas embaixo dos bueiros existiam

os tonéis, propositalmente colocados

pelos donos dos estabelecimentos, o

que lhes permitia reaproveitar a bebida


Patrulha da Lei Seca nos EUA
despejada.

49
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
A Lei Seca dura 13 anos, elaborada em 1919, entra em vigor em 1920

e dura até 1933. O curioso é que em alguns lugares a Lei Seca permanece

ainda hoje, ou da forma como era, proibindo o consumo de álcool, ou

de forma pouco mais amenizada, mas mesmo assim não é neste caso

totalmente liberado o consumo de álcool.

Ela termina em 1933 por um motivo específico: a crise da bolsa de

valores de Nova Iorque, que acontece em 1929, mas tem seus piores anos

entre 1931 e 1933. Durante a crise, a roda da economia gira cada vez mais

lentamente, e os Estados Unidos entram em grande recessão econômica.

Em outubro de 1929, com a queda da bolsa, cria-se o New Deal (Novo

Acordo), com o objetivo de restaurar a economia norte-americana, mas que

só será colocado em prática em 1933.

Algumas fotos mostram a euforia

depois que os bares foram liberados. A

Lei Seca cai pelos argumentos de alguns

congressistas, que diziam que o mercado

de bebidas alcóolicas poderia ser

aquecido novamente, não apenas pelo

consumo, mas pela produção e oferta de

Fim da Lei Seca em 1933 emprego. Com o New Deal e a retomada

econômica dos Estados Unidos, a Lei Seca

cai por terra, mas se torna um símbolo, por ser uma lei muito forte e rígida.

Baseada em valores protestantes, esta lei, de mão forte, coloca o consumo

de álcool como sintoma de deficiência de uma sociedade, e a deficiência da

sociedade, segundo eles, era o consumo de álcool.

É interessante pensar que, de um lado do Atlântico, temos

o rigor da lei, e do outro lado temos a liberação total do consumo de

álcool e algumas drogas, que, naquele momento, ainda não eram tidas

como grandes drogas nocivas, como a cocaína; neste momento histórico,

coexistem duas perspectivas completamente diferentes.

50
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
Neste momento o Brasil também passa a entrar em uma ruptura

histórica. Primeiro, a ruptura cultural, com a Semana de Arte Moderna

em 1922; segundo, a ruptura estrutural que vem do fato da Crise de 1929

acabar com o poder das oligarquias no Brasil, principalmente a paulista e

a mineira, que são profundamente afetadas e decaem do poder. Haverá

ruptura na nossa estrutura, com nova realidade política em cena, a Era

Vargas, que começa em 1930 e acaba em 1945.

Estes quinze anos foram um período de modificações estruturais

no Brasil. Destacam-se o direito ao voto e à candidatura da mulher, a

carteira de trabalho e as leis trabalhistas. Dividido em três fases, a Era

Vargas começa com o governo provisório; depois, o governo constitucional;

por fim, a ditadura do Estado Novo. Portanto, também recebemos o eco da

ruptura ocasionada pela Crise de 29, em nossas estruturas.

A Semana de Arte Moderna era também uma forma de transgressão,

utilizando uma arte não muito explorada no país. Grandes nomes surgem a

partir da Semana de Arte Moderna.

Utiliza-se, nos Estados Unidos, na França e Alemanha, por exemplo,

muitos cartazes para divulgar as novas leis, nos quais havia muitos desenhos

para passar informações do Estado e informações de controle social. Os


cartazes foram muito utilizados na Primeira e na Segunda Guerra Mundial.

Um dos cartazes norte-americanos mostra uma mulher aos prantos

levando uma criança; na parte de cima, a imagem mostra a escala de

uma pessoa que se transforma em

alcóolatra, desde o jovem tomando

uma taça de vinho até o último

ponto, que é o suicídio. O cartaz

passa a ideia de que o alcoolismo

começa com uma taça de vinho,

torna a quem bebe em ébrio,

culminando na morte por suicídio;

51
E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
portanto, o consumo excessivo de álcool é suicídio. Ou seja, utilizavam-se

de todas as formas para tentar impactar a sociedade. Vale a pena olhar, de

maneira mais minuciosa, cada uma das etapas do alcoolismo apresentadas

no cartaz dos Estados Unidos.

Outro tema extremamente importante na estrutura estadunidense

são as sufragistas, ou, como chamavam, suffragettes. Há, inclusive, um

filme muito interessante e recente

sobre as sufragistas59. O movimento

sufragista foi a luta pelo voto

feminino e pela voz feminina na

participação política. Novamente,

temos uma estrutura fechada,

protestante, em dissonância com


Suffragettes
a liberação do mundo francês,

onde as mulheres estavam ampliando a sua participação na sociedade e

mudando a sua postura diante do mundo; as mulheres americanas, por

sua vez, estavam lutando para serem ouvidas ao menos nas urnas. É um

aspecto muito curioso.

A ERA DO JAZZ
Nos Estados Unidos, fora a transgressão dos speakeasys, lugares

secretos para consumo de bebida, temos

a grande transgressão cultural: o jazz. Faço

questão de colocar a figura do grande Louis

Armstrong60, porque para alguns estudiosos

do jazz, ele não foi um jazzista puro, mas foi a

transição entre rhythm and blues e essa nova

forma musical, que além de ser transgressora do Louis Armstrong

59  As sufragistas. Direção de Sarah Gavron. 2015.


60  Louis Daniel Armstrong (1901-1971), músico, cantor e trompetista de jazz, um dos mais influentes e famosos no
mundo do jazz.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
ponto de vista musical, também é pelo fato de que os negros americanos,

os afrodescendentes (como alguns os chamam), foram os grandes artistas

dessa transformação.

Louis Armstrong, um grande nome da transformação musical.

Essa nova forma de tocar é complexa, improvisada, e apenas

instrumentistas muito virtuosos e que conhecem muito profundamente

música conseguem realizá-la, utilizando a parte central da música com

variações e improviso. Até então, “música marginal” era o blues, cujo termo

vem justamente de uma definição de tristeza. O blues é o grande canto dos

escravos das plantações de algodão, o famoso cotton belt, no sul dos Estados

Unidos, o cinturão de algodão. O soul sai do lamento desses escravos. Da

década de 10 e de 20 do século XX nós temos uma música marcante das

comunidades negras, uma musicalidade que até certo ponto é muito mais

simples de ser acompanhada com poucos instrumentos.

A década de 20, mais complexa,

faz com que haja uma transformação

musical muito forte, e o jazz entra

em cena. Os negros norte-americanos

demonstram o poder da sua genialidade


com músicas, utilizando acordes

algumas vezes dissonantes, mas com

Jazzing Orchestra uma perfeição musical de grande êxito.

Jazzing Orchestra, na década de 20,

marca a ruptura musical e social representada pelo jazz.

O grande nome do jazz, que se inicia na década de 20, é Duke

Ellington e a sua orquestra, pois é um aspecto de transformação social. Os

Estados Unidos possuem uma transgressão cultural que, no meu ponto de

vista, tem o jazz como base, apesar de existirem outras musicalidades, mas

não tão impactantes quanto o jazz.

Eric Hobsbawm, autor e historiador, do qual não gosto muito, pois

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
pertence à new-left inglesa, escreveu o livro História social do jazz, que

é interessante. Tirando do livro a ideologia e as análises marxistas, como

superestrutura e infraestrutura, as negações do sistema capitalista, análises

impostas até em um livro para quem busca cultura, é interessante a

costura feita do momento histórico e o surgimento do jazz. Vemos toda a

“marginalidade” da cultura negra em dissonância com um momento em

que há alto índice de consumo nos Estados Unidos. Temos a marginalidade

do povo negro, que em lei imperará até a década de 60 do século XX,

principalmente em Nova Iorque, que tinha calçadas para brancos e calçadas

para negros.

Nesse momento do jazz, das contravenções e dos gângsteres

norte-americanos, temos um dos momentos de maior consumismo da

classe média norte-americana,

e isso ficou traduzido como

american way of life, o estilo

de vida norte-americano, que

alguns abreviam para amway,

que também foi uma marca. O

american way of life, modo de


vida norte-americano, é o modo

de vida do consumo. American Way of Life

Na imagem, vê-se uma

família branca de classe média no carro, em um outdoor, mas abaixo há

uma fila de negros buscando emprego.

Não estou falando de minorias, não estou falando contra a elite branca;

não é meu posicionamento, mas nesse momento é importante olharmos

para estes fatos para entendermos uma sociedade como a americana,

muito apartada, dividida entre o branco protestante e o negro, que tem

pouca voz nesse meio, e a cultura é o que faz com que ele seja escutado.

Ao ver várias imagens de shows de jazz, é possível ver a banda tocando para

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
uma plateia de brancos; ou seja, era uma forma de eles se expressarem.

Depois da euforia desmedida do american way of life, modo de

vida norte-americano do consumo, que privilegia o “ter” — mas que, por

outro lado, fortalece a economia do país —, teremos o fim das estruturas

vigentes do liberalismo econômico com o crash da Bolsa de Nova Iorque,

em outubro de 1929, momento importante da década de 20.

Haverá nova repaginação da cultura econômica do consumo, e

não voltará a ser o liberalismo econômico puro de Adam Smith, no qual o

Estado não intervém na economia. Friso que a recessão norte-americana

foi uma calamidade puramente econômica, pois politicamente o Estado

americano continua soberano e forte, a Economia é que está quebrada.

Lembrem-se: segundo Adam Smith, na forma liberal de entendimento

econômico, o Estado não interfere na economia. Após a Queda da Bolsa de

1929, esse modelo começa a ser repensado. Nestas estruturas, a partir da

década de 30, entra o New Deal, novo acordo em que o Estado intervirá na

Economia para restaurar as estruturas econômicas que foram perdidas.

Os Estados Unidos são tão sortudos, neste aspecto, que acontece a Segunda

Guerra Mundial, ensejo que aproveitam para restaurar a economia e

reaquecê-la. E conseguem sair extremamente fortalecidos da Segunda


Guerra Mundial, juntamente com a União Soviética.

A busca por emprego, nos Estados Unidos, nos tempos da crise, se

torna cada vez maior. Muitos são os desempregados

procurando empregos diariamente, abarrotados

em grandes filas nas ruas das cidades. O mundo

capitalista quebrou, não só os Estados Unidos

quebraram, mas outras potências também. Como

falei antes, o Brasil moderno é filho dessa ruptura.

No Brasil, o eco do crash da bolsa fez com que

nos despedíssemos da Política Café-com-Leite e

abraçássemos a política de Getúlio Vargas.

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
UMA IDEIA TORPE COMEÇA A TOMAR FORMA
A Crise de 29 afetará as estruturas europeias ainda mais

profundamente. Por exemplo, a nação mais impactada com a Crise de

29 é a Alemanha, que, por causa do Tratado de Versalhes, dependia em

grande parte do dinheiro que vinha do Ocidente e dos Estados Unidos. Mais

um motivo para que ascenda, na Alemanha, a ideologia nazista. Ou seja, a

Crise de 29 e o Tratado de Versalhes farão com que o nazismo seja ainda

mais forte, na Alemanha.

Não por acaso, Hindenburg, Presidente da Alemanha, colocará Hitler

como seu Chanceler, aquele mesmo Hitler de quem tinha falado que não

servia nem para engraxar suas botas.

Por que Hindenburg coloca Hitler como seu Chanceler?

Quando o mundo capitalista sofre um colapso com a queda da Bolsa

de Nova Iorque em 1929, o europeu (em certa medida, também o americano)

de classe média passa a ver com bons olhos a União Soviética, porque ela

não quebrou economicamente, permaneceu autossuficiente; ela não tinha

um rublo na Bolsa de Nova Iorque, e não foi afetada.

Stálin, um ano antes da queda da bolsa, em 1928, começou a


implementar os Planos Quinquenais para estabelecer a estatização;

havia, na União Soviética, uma forte hegemonia; a produção dos campos

era prolífera; houve a descoberta de terras férteis de petróleo e de jazidas

de vários minerais; são fatores que fazem com que a União Soviética seja

autossuficiente. A mediocridade da classe média europeia começa a

ver com bons olhos essa forma de organização, dando legitimação à

estrutura socialista como a grande vencedora em detrimento do sistema

capitalista que se mostrou falho com a crise da bolsa.

Mas eles não estão vendo o que está realmente acontecendo lá dentro.

Lembre-se do que disse Churchill: “A União Soviética está fechada por uma

grande cortina de ferro”. Lá dentro, ninguém sabe o que está acontecendo

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
de fato. As estruturas lá de dentro não são mostradas para o resto do mundo,

eles só mostram o que eles querem. Como falei na aula retrasada, Stálin fez

o contrário do que Trotsky pensava ser bom para o socialismo, pois Trotsky

queria mostrar o socialismo para o mundo. Stálin faz o contrário: fortalece

o socialismo dentro da União Soviética antes de ser exportado para o resto

do mundo. É interessante notar que a partir da queda da Bolsa de Nova

Iorque as ideias socialistas começam a tomar mais força na Europa.

Repito que a Igreja Católica, que vê o fim do poder do cristianismo

na União Soviética, não quer correr o mesmo risco na Itália. Então, fazendo

uma análise pouco superficial, o Tratado de Latrão, certa aliança entre a

Igreja Católica e o governo de Mussolini, é estabelecido. No sistema fascista

a Igreja está presente, ou pelo menos não é amplamente perseguida como

é nos sistemas socialistas, ao menos não no início.

Tudo isso serve para explicar o porquê de Hindenburg colocar

Hitler como Chanceler, porque a sua ideologia tinha como base o Pacto

Anticomintern61, o anticomunismo. Eles acabavam à força, na briga e na

base da violência, os comícios comunistas. Era como se fosse um braço

armado do governo alemão contra as ideologias que estavam crescendo

na Alemanha. Há quem diga que as pessoas eram muito mais inclinadas


ao partido socialista alemão do que ao partido nazista. Porém, a massa

organizada de Hitler ecoava com força. O interessante também é o motivo

pelo qual era tão impactante para o povo alemão ver os desfiles do partido

nazista. Em meio a toda conturbação e caos, um grupo se mostrava

ordenado, todos vestidos iguais, todos marchando alinhados, antes de

Hitler assumir o poder na Alemanha.

Será que isso não impressiona o povo alemão? Será que Hitler quer

recusar toda a devassidão e desordem que acontece na Europa com as

transgressões artísticas, dizendo que isso não é bom e levou o mundo à

ruína, e que agora precisamos ordenar o mundo, colocar ordem nesse


61  Assinado em 25 de novembro de 1936 entre o Império do Japão e a Alemanha nazista, que visava proteger a
ambos da Internacional Comunista.

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mundo? A Alemanha está um caos, precisamos colocar ordem nesse caos,

eu sou o führer, peguem minha mão que vou tirá-los disso tudo.

Cito uma passagem do livro A Sagração da Primavera, que cita uma

frase de Hitler, muito interessante para se analisar:

“Há muito tempo, compreendi que os atores e artistas têm

frequentemente ideias tão fantásticas, que se é compelido de vez em

quando a admoestá-los com o dedo em riste e trazê-los de volta à terra.”

A palavra “fantástico” se refere ao mundo da fantasia, que, segundo

ele, não serve para mundo alemão. Hitler quer estabelecer a ordem.

Há duas colocações que gostaria de fazer para este curso. Fitzgerald,

no ensaio Ecos da Era do Jazz, diz que “os loucos anos 20 morreram em

um salto espetacular em outubro de 1929”. Esse grande escritor, dentro da

intelectualidade europeia, que escrevia em Paris efusivamente, diz que todo

o sabor que existia na década de 20 foi embora com a queda da bolsa de

Nova Iorque. É como se ele falasse: “Acabou-se o nosso tempo, agora se

inicia um novo tempo”. A segunda colocação que trago é do mesmo ensaio,

em 1931:

“Após dois anos, a era do jazz parece tão distante quanto os dias antes

da guerra. Foi um tempo emprestado de qualquer forma — toda a elite de


uma nação vivendo com a despreocupação de duques e a casualidade de

um corista. Mas ser moralista é fácil agora e foi agradável estar na casa dos

20 anos em um tempo tão seguro e despreocupado.”

Fitzgerald sente a força de um novo tempo, o tempo sombrio

da década de 30 e parte da década de 40, onde o mundo mergulhará

na loucura desenfreada do Nazismo, do Fascismo, e da violência do

Socialismo, principalmente com as estruturas de prisões como o gulag, por

exemplo.

À guisa de conclusão desta aula, utilizarei outra frase de Bauman,

para suscitar uma reflexão:

“Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em

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E-BOOK BP OS LOUCOS ANOS 20
competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é

perigoso e cobra um alto preço psicológico”.

Se temos valores criados por novos hábitos e não temos garantia

de que eles sejam os valores certos (lembrando o quadro de Magritte,

que mostra um cachimbo, com a inscrição “isto não é um cachimbo”, logo

abaixo), então vivemos como um pedaço de isopor boiando na superfície

de um rio caudaloso. Por que, segundo Bauman, esse modo de viver cobra

alto preço psicológico? Porque estas estruturas, as quais não sabemos se

são certas ou não, por serem novas, atemorizam e causam angústia, e

isso cobra de nossa psique.

Os horrores da Guerra estão para além do que comumente

imaginamos o que seja horror. A Segunda Guerra Mundial causou a morte

de cerca de 60 milhões de pessoas, para além disso cobrou alto preço

psicológico aos sobreviventes e deixou marcas profundas, que ficaram

na história.

Ao ver o terror, a perversidade e a maldade da Segunda Guerra,

Hannah Arendt dirá que o mal foi banalizado com o nazismo e os campos

de concentração. Ou seja, o mal se torna banal à medida em que é

praticado sem restrições, presente em todo lugar como algo corriqueiro


e inevitável. Este é o alto preço psicológico que a população mundial teve

de pagar. De certa forma, décadas depois veio mais um efeito colateral da

Segunda Guerra Mundial, a famosa geração baby boomer62.

Os campos de concentração nazistas e soviéticos são perversidades

que banalizam o mal. Há quem diga que alguns coordenadores dos campos

de concentração, principalmente em Treblinka e Auschwitz, depois de

verem todo aquele horror diariamente, à noite chegavam em suas casas

e escreviam peças teatrais infantis. Goebbels também é citado neste

processo, embora não estivesse presente em Auschwitz, mas era uma figura

importante. A isso Hannah Arendt chama de banalização do mal. Ou seja, as


62  Termo usado para se referir aos nascidos entre 1946 e 1964 em países que tiveram um súbito aumento de
natalidade neste período.

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pessoas estão descoladas da realidade, estão com estes valores introjetados

e os aceitaram destas ideologias políticas, como o nazismo ou o próprio

socialismo. Os horrores dos campos de concentração nazista ou socialista,

dos quais participam, não as comovem, como se fosse algo alheio a elas e

uma decorrência inevitável, ao que são indiferentes. As pessoas adquiriram

novos hábitos, como mostrei em aula anterior, planejados para serem

aceitos através da repetição constante, como Victor Klemperer mostrou

em seu livro, o qual foi citado neste curso. Todo esse processo cobrou alto

preço psicológico.

A queda: as últimas horas de Hitler é filme maravilhoso que mostra

os momentos finais das ações de Hitler, mas também indico a verem os

extras, assim como os extras de Joyeux Noel, que mostram que os atores

tiveram de abstrair a aversão que sentiam por aqueles personagens

históricos: Goebbels, Hitler e Göring, por exemplo. Destaca-se Bruno Ganz,

grande ator alemão, já falecido, que fez o papel de Hitler.

Nas cenas finais de A queda, Magda Goebbels, esposa de Goebbels,

matas seus seis filhos. Primeiro ela dá um sonífero às crianças, depois,

quando estão dormindo, coloca uma cápsula de neurotoxina dentro da

boca de cada uma. Faz as crianças morderem a cápsula batendo no queixo


delas. Depois de matar seus seis filhos, sai do quarto onde estavam para

encontrar Goebbels, mas enquanto ele se prepara para se matar, ela joga

Paciência. Eles saem do bunker, Goebbels mata sua esposa e depois se

mata.

Em uma fala desesperada de Magda para Hitler, antes deste se

matar, ela diz: “é inconcebível um futuro sem o nacional-socialismo”. Tudo

forjado com hábitos repetidos milhares de vezes durante este período da

década de 20. Período em que certezas já não existem como antes, e

novos valores são colocados onde os antigos deixaram hiatos, que são

buracos existenciais da história.

Gostaria de deixar uma frase, como de costume, pois finalizo sempre

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as minhas aulas com alguma reflexão do pensador e autor Chesterton,

que é também um grande nome do século XX, de quem sou firmemente

admirador de sua inteligência e sagacidade: “Não seja tão mente aberta que

o cérebro caia para fora”. Esta é uma grande lei para nós, conservadores, no

sentido verdadeiro do termo.

A curvatura da vara, da qual Dermeval Saviani63 falava, sobre quando

se enverga uma vara para um lado, mas quando solta, tenciona para outro

e nós não temos o meio do caminho. A ideia de ser um analista da História

e da realidade que nos cerca, e ao mesmo tempo entendendo-nos como

sujeitos que a escrevem, faz com que conheçamos e reafirmemos o que

precisa ser conservado e aprendamos a reconhecer no presente o que

precisa ser rechaçado.

Tive prazer em dar este curso para a Brasil Paralelo. Espero ter

contribuído para o enriquecimento do aluno. Eu, do meu lado, me enriqueci

muito ao estudar novamente algumas obras que há tempo não revisitava,

quando tive de elaborar este curso. Uma síntese histórica deste momento

tão impactante para nossa formação, cujas consequências formam parte

do nosso tempo atual. Espero que possa ter esclarecido alguns pontos da

História ao aluno.
Esteja à vontade para utilizar meus canais de comunicação para

sanar dúvidas e entrar em contato.

Um grande abraço, e até o próximo curso.

63  Dermeval Saviani (1943- ) professor e pedagogo brasileiro.

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