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A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

GILBERT KEITH CHESTERTON

TRADUÇÃO © PROF. CARLOS RAMALHETE

VERSÃO PRELIMINAR

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A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

Traduzido do livro THE SUPERSTITION OF DIVORCE (1920)

Autor: G.K. Chesterton (1874-1936)


Tradução: ©Prof. Carlos Ramalhete*
Disponível originalmente a versão preliminar no blog HsJonline

Este é um trabalho em curso; antes de atingir sua forma final para


publicação impressa, este texto ainda será cotejado novamente com o
original, e a ele serão acrescentadas notas explicativas que facilitem sua
compreensão pelo leitor atual.

Ele está sendo publicado aqui à medida que o trabalho progride, para
possibilitar um acesso ao menos parcial dos leitores brasileiros a esta obra
do grande escritor inglês.

Como esta versão é preliminar, pedimos sinceras desculpas por quaisquer


enganos e agradecemos toda sugestão e auxílio que nos venham a ser
prestados.

*Professor de filosofia e funcionário público, Carlos Ramalhete, escreve semanalmente na


editoria de Opinião do jornal paranaense Gazeta do Povo e foi um dos pioneiros a fazer
apologética católica em meios eletrônicos e digitais, no Brasil. Autor do blog:
HsJonline.blogspot.com

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I - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

É futilidade falar de reforma sem referência à forma. Tirando um exemplo do


bolso do colete: nada me parece tão belo, tão maravilhoso, quanto uma janela.
Todo caixilho é mágico, quer se abra ao oceano ou ao quintal; ele sempre está na
fronteira do paradoxo e do mistério derradeiros da limitação e da liberdade. Se,
contudo, eu seguisse os meus instintos, que me arrastam a desejar um número
infinito de janelas, eu acabaria sem paredes. Aliás, diga-se de passagem,
acabaria também sem janelas, pois a janela cria um quadro ao enquadrar o que
por ela se vê.

Mas há um jeito mais simples de apontar meu erro, tão simples quanto fatal: eu
quis uma janela, sem pensar se queria uma casa.

Hoje em dia, muito se fala em favor dessa luz e dessa liberdade, que podem
perfeitamente ser simbolizadas pelas janelas; mais ainda por muitas vezes se
tratar de iluminar e libertar da casa, do próprio lar. Muita gente apresenta
desinteressadamente considerações bastante razoáveis, no caso do divórcio,
mostrando-o como uma espécie de libertação doméstica. Na discussão do
assunto, no entanto, tanto jornalística quanto generalizada, pulula a
mentalidade que, de ponta-cabeça e ao acaso, deseja que haja apenas janelas,
sem paredes. Dizem que querem o divórcio, sem se perguntar se querem o
casamento.

Ora, para divorciar-se, em geral, parece ser necessário que se tenha passado
pela formalidade preliminar de casar-se; a não ser que este ato inicial seja
levado em conta, se poderia estar a discutir os penteados dos carecas ou os
óculos dos cegos. Divorciar-se é, no sentido literal, descasar-se; e não há sentido
em desfazer algo que não sabemos sequer se foi feito.

Talvez não haja pior conselho, no mais das vezes, que o de se fazer primeiro o
que está mais à mão. É um conselho especialmente ruim quando significa, como
em geral é o caso, que se deva remover o obstáculo mais próximo. É dizer que
os homens não devem se comportar como homens, mas como camundongos,
que róem o que está mais próximo deles. O homem, como o camundongo,
solapa o que não consegue entender. Se esbarra em algo, decide que este é o
obstáculo mais próximo, ainda que na verdade se trate da coluna que sustenta o
telhado que lhe cobre a cabeça. Industriosamente, assim, ele remove o
obstáculo; em troca o obstáculo o remove, a ele e a muitas outras coisas ainda

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mais valiosas. Esta espécie de oportunismo talvez seja o que há de menos
prático, neste mundo já tão pouco prático.

Fala-se, vagamente, de críticas destrutivas; o problema deste tipo de crítica,


contudo, não é que ela destrua, sim que ela não critique. É uma destruição sem
desígnio. É desmantelar uma máquina complicada, arrancando-lhe as peças
uma por uma, sem que se tenha noção alguma da serventia da máquina.

Se um homem lida com uma máquina mortalmente veloz baseando-se no


princípio de que deve puxar as alavancas mais próximas, rapidamente ele há de
descobrir os defeitos de tão alegre filosofia. Deixemos brevemente de lado
muitos dos sinceros e seriíssimos críticos do casamento moderno; grandes
massas de homens e mulheres modernos, que escrevem e falam sobre o
casamento, estão a roê-lo cegamente, como um exército de camundongos.

Quando os reformadores propõem, por exemplo, que o divórcio possa ser


obtido após uma separação de três anos (que é, aliás, exatamente a separação
que costumava acontecer nos primeiros arranjos militares da Grande Guerra,
que há pouco acabou), seus leitores e entusiastas raramente conseguem dar
alguma razão pela qual o período deveria ser de três anos, não de três meses ou
de três minutos.

É como quem diga “corte fora a pontinha do cachorro”, sem se preocupar onde
seria feito o corte. Tais pessoas não conseguem perceber o cachorro como uma
entidade orgânica; em outras palavras, não sabem diferenciar o rabo e a cabeça,
não sabem onde começa e onde acaba o animalzinho. E eis a crítica principal
que se pode fazer a estes reformadores do casamento: eles não sabem nem por
onde começar. Eles não sabem o que ele é, o que ele deveria ser, ou mesmo o
que quem o apóia supõe que ele seja. Eles nunca o examinam, nem quando
estão dentro dele. Fazem o trabalho que está mais à mão, e acabam por abrir
buracos no fundo do bote, tendo a impressão de preparar um canteiro num
jardim. Esta questão de o que é algo, de se é um bote ou um jardim, parece-lhes
abstrata e acadêmica. Eles não têm noção da grandeza da idéia que atacam, ou
de como parecem pequenos, por comparação, os buracos que nela abrem.

Assim, Sir Arthur Conan Doyle, que em outros assuntos é um homem


inteligente, diz que há apenas uma oposição “teológica” ao divórcio, que seria
inteiramente baseada em “alguns textos” bíblicos que tratam de casamentos. É
exatamente como se ele dissesse que a idéia de uma fraternidade de todos os
homens fosse algo baseado meramente em alguns textos bíblicos, que afirmam
que todos os homens descendem de Adão e Eva.

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Milhões de camponeses e pessoas simples, no mundo inteiro, assumem que o
casamento é indissolúvel, sem jamais ter lido texto algum. Numerosas pessoas
modernas, especialmente após as experiências recentes nos Estados Unidos,
pensam que o divórcio é uma doença social, sem ter jamais se preocupado com
texto algum. Poder-se-ia afirmar que para eles, ou para quaisquer outros, a
idéia do casamento é, em última análise, mística; o mesmo poderia ser dito da
idéia de fraternidade. É óbvio que um marido e uma mulher não são
visivelmente uma só carne, no sentido de formarem um único quadrúpede.
Também é óbvio que Paderewski e Jack Johnson não são gêmeos, e que
provavelmente nunca brincaram juntos, aos pés da mamãe. Há algo muito
importante a admitir, ou a acrescentar, aqui.

A verdade é a seguinte: se o nonsense de Nietzsche ou de algum outro sofista


permeou a cultura atual ao ponto de estar na moda negar os deveres de
fraternidade, então, de fato, se há de descobrir que o grupo que teima em
afirmar a fraternidade é o mesmo grupo original, em cujos livros sagrados está
o texto sobre Adão e Eva.

Suponhamos que algum cientista alemão tenha oportunamente descoberto que


os alemães e os homens inferiores sejam descendentes de dois macacos que não
seriam de modo algum irmãos, mas, no máximo, primos distantes. E
suponhamos que ele resolva afastá-los ainda mais, a machadadas, e
suponhamos que ele baseie seu comportamento numa repetição da conduta de
Caim, dizendo, ao invés de “porventura sou eu o guarda de meu irmão?”, “será
que ele é mesmo meu irmão?” E suponhamos que esta profunda filosofia da
machadada prevaleça nas universidades e nos meios da mais alta cultura, como
filosofias ainda mais tolas já o fizeram. Concordo, então, que será
provavelmente o cristão, o homem que preserva o texto que fala de Caim, que
continuará a afirmar-se irmão do cientista, a dizer-se ainda o guarda do
cientista. Ele poderia até acrescentar que, em sua opinião, o cientista parece
precisar muito de quem o guarde.

E, sem dúvida, é esta a situação atual das controvérsias acerca do divórcio e do


casamento. É a Igreja cristã que continua a afirmar tenazmente, quando o
mundo perdeu a tenacidade, o que muitos outros afirmaram em outros tempos.
Mas, mesmo assim, dizer que é uma afirmação baseada em textos é ignorar o
cerne do assunto e ater-se a farrapos de argumento. O ponto crucial nesta
comparação é que a fraternidade de todos os homens implica um certo modo de
ver a vida, afirmado à luz da vida e defendido, correta ou incorretamente, por
apelos constantes a todos os aspectos da vida. A religião que mais fortemente o
defende irá continuar a fazê-lo quando ninguém mais o fizer; isso é bem
verdade, e alguns de nós talvez sejamos perversos o suficiente para ver nesta

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defesa um ponto a favor da religião. Mas nenhum defensor desta visão a vê
como uma filosofia baseada em um texto, ou em centenas deles.

A fraternidade pode ser uma metáfora sentimental. Eu posso estar iludido ao


saudar um camponês de Montenegro como um irmão há muito perdido. Na
verdade, eu tenho cá minhas dúvidas acerca de qual de nós esteve perdido. Mas
a minha ilusão não é uma dedução feita a partir de um texto, ou de vinte textos;
é a expressão de uma relação que, ao menos para mim, parece ser real. E o
mesmo que eu diria da idéia de um irmão, eu diria da idéia de uma esposa.

Parece que é mal-visto começar do começo. Diz-se que são “princípios


acadêmicos e abstratos que nós, ingleses, etcétera e tal”. Por alguma estranha
razão, considera-se pouco prático começar a estudar algo perguntando-se de
quê se trata. Por acaso, contudo, eu não estou nem aí para este tipo de
praticidade; afinal, eu bem sei que ela nem prática é.

Meu homem de negócios ideal não seria um que botasse uma pilha de dinheiro
na mesa e dissesse “isso é dinheiro sonante; sou um homem direto, e não me
interessa se estou pagando uma dívida, dando uma esmola ou comprando um
touro selvagem ou uma sauna portátil”. Apesar da franqueza contagiante do
seu jeito de falar, ao ver o dinheiro vivo eu ainda diria, como um chofer de táxi,
“o que é isto?!”. Eu continuaria a insistir, resmungão que sou, que é uma
questão muito prática saber o que é este dinheiro, o que ele representa, a que ele
se destina ou o que ele declara, qual seria a natureza da transação ou, em outras
palavras, o que cargas d’água o sujeito acha que está fazendo com ele.

Começo, assim, por perguntar, de modo igualmente místico, o quê, em nome de


Deus e dos anjos, um sujeito que se está casando acha que está fazendo. Tenho
que começar por perguntar o que é um casamento, e a simples questão já há de
revelar, provavelmente, que o próprio ato, bom ou mau, sábio ou tolo, é de um
certo tipo; que não se trata de uma pesquisa ou de um acidente; provavelmente
nos daremos conta de que se trata de uma promessa. Podemos defini-lo ainda
melhor ao dizer que é um voto.

Muitos irão responder, imediatamente, dizendo que é um voto feito no calor do


momento. Contento-me, por ora, a retrucar que todos os votos são feitos no
calor do momento. Não estou defendendo os votos, sim definindo o que são;
estou apontando para o fato de que os votos são o tema desta discussão.

Primeiramente, se é recomendável que existam votos, e, depois, que votos estes


deveriam ser. Será que um homem deveria quebrar uma promessa solene? Será
que um homem deveria fazer promessas solenes?

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Trata-se de questões filosóficas; a peculiaridade filosófica do divórcio e do
recasamento, contudo, comparados com o amor livre e a ausência de
casamento, é que um homem quebra uma promessa e faz uma promessa ao
mesmo tempo. É uma filosofia muito alemã, que nos faz lembrar o modo como
o inimigo deseja celebrar a destruição bem-sucedida de todos os tratados com a
assinatura de alguns tratados novos.

Fosse eu quebrar uma promessa, eu o faria sem nada prometer. Mas longe de
mim minimizar a natureza discutível e importantíssima do próprio voto.
Tentarei mostrar, em outro artigo, que esta operação romântica, feita no calor
do momento, é a única fornalha de que pode sair o ferramental básico da
humanidade, a resistência de ferro fundido da cidadania ou o frio aço do senso
comum; não posso, entretanto, negar que a fornalha seja um fogo.

O voto é algo violento e único, ainda que outros que não o voto matrimonial
tenham existido: votos de cavalaria, votos de pobreza, votos de celibato, tanto
pagãos quanto cristãos. A moda moderna, todavia, perdeu este hábito, e os
homens não conseguem perceber, por falta de paralelos, de que tipo de coisa se
trata. A maneira mais simples de colocar o problema é perguntar-se se ser livre
inclui a liberdade de acorrentar-se; um voto, afinal, é um compromisso consigo
mesmo.

Eu poderia ser mal compreendido se dissesse, para simplificar as coisas, que o


casamento diz respeito à honra. O cético concordaria, deliciado, apontando ser
uma luta. E realmente o é; mas é uma luta consigo mesmo. O ponto, contudo, é
que se trata de algo que necessariamente tem um toque de heroísmo, em que a
virtude pode ser traduzida como “virtus”. As lutas, por sua própria natureza,
têm sempre algo que implica um infinito, ou ao menos um potencial infinito.
Quero dizer que a lealdade guerreira é a lealdade que se manifesta na derrota, e
mesmo na desgraça; a lealdade à bandeira é mais devida na hora exata em que
a bandeira está prestes a cair. Nós já aplicamos este princípio à bandeira
nacional, e a questão é se é ou não prudente aplicá-lo à bandeira familiar. É
claro que se pode defender que não se deveria aplicar este princípio a qualquer
uma das duas; que o desgoverno da nação ou o sofrimento do cidadão fariam
com que a deserção da bandeira fosse um ato de razão, não de traição. Digo
apenas que se fosse este o limite da lealdade à nação, muitos de nós já a
teríamos desertado há muito tempo.

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II - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

Dei o título de “A Superstição do Divórcio” aos dois ou três artigos que


publiquei sobre este tema; não se trata de um título tomado ao acaso. Enquanto
o amor livre me parece uma heresia, o divórcio realmente me parece uma
superstição. Não apenas é mais supersticioso que o amor livre, mas é
muitíssimo mais uma superstição que o matrimônio sacramental mais estrito;
dificilmente seria possível exagerar ou insistir demais sobre este ponto.

São os partidários do divórcio, não os defensores do matrimônio, que atribuem


uma santidade rígida e sem sentido a uma mera cerimônia, sem considerar o
próprio sentido da cerimônia. São os nossos oponentes, não nós, que esperam
ser salvos pela letra do ritual, ao invés de pelo espírito da realidade. São eles
que defendem que votos ou abjurações, lealdades ou deslealdades, tudo pode
ser jogado às traças por meio de um rito mágico e misterioso, encenado
primeiro num tribunal e depois numa igreja ou cartório. Há pouca diferença
entre as duas partes do ritual, a não ser o fato de o tribunal ser mais ritualístico,
mas os paralelos mais evidentes mostrarão a qualquer um que se trata da mais
bárbara e primitiva credulidade.

Pode ou não ser superstição que um homem creia que ele deva beijar a Bíblia
para mostrar que irá dizer a verdade. É, contudo, a mais abjeta das superstições
crer que, se ele plantar um beijo numa Bíblia, apenas a verdade sairá de seus
lábios. Seria, certamente, a mais negra e mais amaldiçoada das bibliolatrias
sugerir que um mero beijo num mero livro pudesse alterar a qualidade moral
do perjúrio. No entanto, é precisamente isto que se implica ao dizer que o
recasamento formal altera a qualidade moral da infidelidade conjugal.

Pode ter sido um sinal da Era das Trevas que Haroldo devesse jurar sobre uma
relíquia, ainda que mais tarde fosse abjurar o que jurou. Certamente, no
entanto, esta Era estaria em mais negras trevas ainda se se contentasse com um
juramento feito sobre uma relíquia e uma abjuração feita sobre outra. É,
todavia, este o novo altar que estes reformadores nos edificariam, erigindo-o
sobre as relíquias mofadas e sem sentido de sua lei morta e de sua religião
moribunda.

De qualquer modo, estamos tratando de uma ideia, uma coisa do intelecto e da


alma, que nós percebemos como sendo inalterável por manobras legais.
Tratamos, sim, da idéia de lealdade; talvez seja uma ideia fantástica, ou talvez

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apenas esteja fora de moda, mas é sempre uma ideia que podemos explicar e
defender como ideia.

Já apontei que muitos homens sãos aderem ao nosso ideal no caso do


patriotismo ou do espírito público, da necessidade de salvar o estado a que
pertencemos. O patriota pode acusar, mas não abjurar, o seu país; ele o
amaldiçoa para curá-lo, não para que ele se enfraqueça. Os antigos cidadãos
pagãos se sentiam assim em relação à cidade, e assim se sentem os modernos
nacionalistas em relação ao país.

Até mesmo os meros internacionalistas modernos se sentem assim acerca de


algo, mesmo que seja apenas a nação humana. Nem mesmo um humanitarista
se torna um misantropo e vai morar na jaula dos macacos. Nem mesmo um
comunista ou coletivista vai, desapontado, retirar-se para a sociedade exclusiva
dos castores, por serem os castores comunistas dotados da solidariedade que
mais tem consciência de classe. Ele admite a necessidade de manter-se junto às
criaturas que são como ele e implora que deixem de lado o uso do pronome
possessivo, por mais dolorosos que seus esforços lhe pareçam após um certo
tempo. Mesmo um pacifista não prefere os ratos aos homens, apoiando-se no
fato de ser a sociedade dos ratos tão desprovida da mácula do entusiasmo
guerreiro que sempre vá abandonar o navio que afunda. Resumindo, todos
reconhecem haver um navio, pequeno ou grande, que não se deve abandonar,
mesmo quando cremos que esteja afundando.

Podemos, assim, afirmar que há instituições às quais nos ligamos


permanentemente, assim como há outras às quais nos ligamos
temporariamente. Vamos de loja em loja, procurando o que queremos, mas não
vamos de nação em nação a fazer a mesma coisa, a não ser que pertençamos a
um certo grupo que agora está sendo levado ao extermínio. No primeiro caso,
nossa ameaça é a de deixar de ser freguês; no segundo, nossa ameaça é a de
nunca a abandonar, de permanecer na instituição para todo o sempre. A hora
em que a loja perde seus fregueses é a hora em que a nação precisa de seus
cidadãos; ela precisa deles, contudo, como críticos que sempre permaneçam
para criticar.

Não é a hora de enfatizar a tremenda necessidade deste esforço duplo pela


reforma interna e pela defesa externa; toda a tragédia que vem encobrindo a
terra em nossos dias não é mais que uma terrível ilustração deste fato. As
marteladas vêm agora fortes e velozes, preenchendo o mundo com suas
trovoadas infernais, e permanece o som ferroso de algo inquebrável, mais
profundo e mais alto que tudo o que se esfacela. Podemos amaldiçoar os reis,
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desconfiar dos capitães, resmungar quanto à própria existência dos exércitos.
Mas sabemos que, nos dias que se aproximam, nenhum homem irá abandonar
sua bandeira.

Ao passar da lealdade à nação à lealdade à família, não há dúvida sobre a


primeira e mais evidente das diferenças. A diferença é que a família é algo
muito mais livre. O voto é uma lealdade voluntária; e o voto matrimonial
marca-se, entre os votos ordinários de fidelidade, pelo fato de esta fidelidade
ser também uma escolha. O homem não é apenas um cidadão desta cidade, mas
também um seu fundador e construtor. Ele não é apenas um soldado que serve
uma bandeira, mas é alguém que selecionou pessoalmente, com dedo de artista,
suas cores e combinações, como quem escolhe com carinho as cores de um
vestido.

Se é admissível requerer-lhe que seja fiel à comunidade que o criou, não seria
menos liberal requerer-lhe que seja fiel à comunidade que ele mesmo criou. Se a
fidelidade cívica for, como é, uma necessidade, ela é também, em um certo
sentido, uma restrição. A velha piada contra o patriotismo, a ironia gilbertiana,
parabenizava o inglês por ter demonstrado fino bom gosto ao nascer na
Inglaterra. Plausivelmente, acrescentava “pois ele poderia ser russo”; talvez
fosse interessante ver gente que achasse que poderia passar a ser russo quando
se lhes desse vontade.

Se o senso comum considera natural até mesmo uma lealdade tão involuntária,
não seria de se espantar se considerássemos ainda mais natural a lealdade que,
ela sim, é voluntária.

E o pequeníssimo estado fundado sobre os sexos é ao mesmo tempo o mais


voluntário e o mais natural de todos os estados autônomos. Não é verdade que
o Sr. Brown poderia ser russo; mas é verdade que a Sra. Brown poderia ser a
Sra. Robinson.

Não é difícil perceber que esta pequena comunidade, tão especialmente livre no
tocante a sua causa, forçosamente será especialmente demandante no tocante a
seus efeitos. Não é difícil perceber que o voto feito com maior liberdade é o voto
que é mantido com maior firmeza. A ele estão ligadas, pela ordem natural das
coisas, consequências tão tremendas que nenhum contrato lhe poderia ser
comparado. Não há contrato algum, a não ser o que se diz ser assinado com o
próprio sangue, que possa invocar espíritos das profundezas, ou trazer
querubins (ou gnomos saltitantes) para habitar uma casinha suburbana. Não há
linha traçada a caneta que crie corpos e almas reais, ou que faça os personagens
de um romance ganhar vida.

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A instituição que tanto confunde os intelectuais pode ser explicada pelo simples
fato material (que até mesmo intelectuais conseguem perceber) de que as
crianças costumam ser mais jovens que os pais. “Até que a morte nos separe”
não é uma fórmula irracional para quem quase certamente irá morrer antes de
ver mais que metade da coisa tão fabulosa (ou tão alarmante) que se fez.

Esta é, num esboço rápido e grosseiro, a coisa tão óbvia, aqui apresentada em
benefício de quem não perceba o quanto ela é óbvia.

Bem sei eu que há homens pensantes dentre os que querem mexer no


casamento; e eu espero que alguns dentre eles queiram responder às minhas
indagações. No momento, contudo, faço apenas uma pergunta: será que o
movimento pró-divórcio, no parlamento e nos jornais, mostra um traço
qualquer, uma sombra que seja, destas verdades fundamentais? Será que ele as
vê como um teste real de suas ideias? Será que ele chega a discutir a natureza
de um voto, os limites e os objetos da lealdade, a sobrevivência da família como
um estado pequeno e livre?

Os autores parecem contentar-se em dizer que o Sr. Brown não está confortável
com a Sra. Brown; esta emancipação derradeira, aliás, no caso dos casais
separados, parece indicar apenas que ele continua desconfortável, mesmo sem a
Sra. Brown ao seu lado. Não estamos em um tempo em que o desconforto seja o
teste final da ação pública.

Quanto ao resto, os reformadores mostram, por meio de estatísticas, que as


famílias estão, de fato, tão desordenadas na nossa anarquia industrial que mais
valeria que elas abandonassem qualquer esperança de achar o caminho de volta
para casa. Estou familiarizado com o raciocínio que visa tornar o mal pior
ainda; eu o vejo, por toda parte, conduzindo sempre à escravidão. Se a Ponte de
Londres está quebrada, deveríamos presumir que pontes não devem ligar um
lado ao outro. Se o comercialismo e o capitalismo londrino fizeram uma boa
imitação do Inferno, deveríamos continuar a imitá-los. De todo modo, há quem
mantenha a convicção que a antiga ponte construída entre as duas torres dos
sexos seja a mais digna de todas as grandes obras da terra.

É demasiadamente característico dos duros anos do pré-Guerra que as formas


de liberdade que parecem ter sido sua especialidade sejam o suicídio e o
divórcio. Não estou, no momento, me pronunciando sobre o problema moral de
qualquer um deles; apenas observo, como sinais dos tempos, estes dois
conselhos, verdadeiros ou falsos, que nos dá o desespero: o fim da vida e o fim
do amor. Outras formas de liberdade, enquanto isso, foram sendo cerradas uma

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a uma. A liberdade era a única coisa condenada ao mesmo tempo pelos
progressistas e pelos conservadores.

Os socialistas pareciam mais preocupados com a prevenção de greves, a ser


obtida pela arbitragem estatal; ou seja, acrescentando-se mais um rico para dar
o voto de Minerva entre ricos e pobres. Mesmo ao defender o que eles
chamavam de direito ao trabalho, eles tacitamente abdicaram do direito de
deixar de trabalhar. Os conservadores pregavam o alistamento militar
obrigatório, nem tanto para defender a independência da Inglaterra quanto
para destruir a independência dos ingleses. Os liberais, evidentemente, estavam
principalmente ocupados com a eliminação da liberdade, especialmente no
tocante à cerveja e às apostas.

Brigar era infame e mesmo discutir era arriscado, pois citar qualquer fato atual
e de conhecimento geral poderia levar a um processo por difamação. Enquanto
todas estas portas eram efetivamente fechadas na nossa cara ao longo dos
impecavelmente azulejados corredores gelados e tristes do progresso, as portas
da morte e do divórcio permaneciam, só elas, escancaradas; ou melhor, sendo
cada vez mais e mais alargadas.

Eu não espero que os oponentes do divórcio admitam qualquer semelhança


entre estas duas coisas; o paralelo, contudo, não é irrelevante. Ele pode ajudá-
los a perceber os limites dentro dos quais o nosso instinto moral consegue, nem
que seja apenas para possibilitar a discussão, tratar esta solução tresloucada
como um objeto de desejo normal. O divórcio é, para nós, na melhor das
hipóteses um fracasso, e estamos mais preocupados em descobrir e curar a sua
causa que em completar os seus efeitos. E vemos um sistema que produz tantos
divórcios quanto o nosso como um sistema que leva os homens a se afogar e a
dar tiros na própria cabeça.

Por exemplo, a queixa mais comum que se faz contra o sistema judicial é que os
pobres não conseguem ter acesso a ele. Trata-se de um argumento que eu
normalmente ouviria com simpatia. Mas, ainda que eu condene a lei por ser um
luxo, o meu primeiro pensamento é que o divórcio e a morte são luxos em um
sentido bastante estranho. Não deveria ser uma queixa do pobre que seja
demasiadamente alto o preço do veneno, ou que todos os precipípios de altura
propícia ao suicídio estejam em propriedades particulares de acesso restrito. Há
outros preços e outros precipícios que convêm atacar primeiro. Devo admitir
que, abstratamente, o que é bom para um é bom para o outro, que o que é bom
para o rico é bom para o pobre, mas a minha impressão primeira e mais forte é
que veneno não faz bem a ninguém. Temo que eu puxasse pelo colarinho, num
impulso momentâneo, um pobre funcionário ou artesão que eu encontrasse

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prestes a pular de um precipício, ainda que o fundo do vale já estivesse coberto
com os restos mortais dos duques e banqueiros que pularam antes.

Em um aspecto, contudo, concedo de bom grado, o culto do divórcio difere do


culto à morte: o culto à morte já morreu. Os que eu conheci, quando jovem,
como jovens pessimistas são hoje otimistas envelhecidos. E, o que vem mais a
propósito, mesmo quando estava ainda presente, este culto era limitado; era
coisa de um grupo, numa determinada classe. Sabemos da regra das antigas
comédias: se a heroína enlouquecia vestida de cetim branco, sua confidente
enlouquecia vestida de musselina da mesma cor. Mas quando, em alguma
tragédia do temperamento artístico, o pintor se suicidava vestido de veludo,
nunca se implicava que o encanador devesse se matar vestido de brim. Nunca
foi defendido que a empregada de Hedda Walter devesse agonizar
dolorosamente sobre o carpete (ainda que suas condições de trabalho devam ter
sido bastante desagradáveis), ou que o mordomo de Madame Tanqueray
devesse fazer como um bufão romano e atirar-se sobre sua própria faca de
trinchar. Esta forma particular de bufonaria, romana ou não, foi um privilégio
oligárquico de uma época decadente. O pessimismo, que nunca foi popular,
nem mesmo na moda está ainda. Um destino, porém, bem diferente atingiu a
outra moda, aqueloutra espécie deprimente de liberdade.

Se o divórcio for uma doença, não é mais uma doença chique, como a
apendicite, mas uma epidemia, como o sarampo. Já vimos que os jornais e os
homens públicos, hoje em dia, fazem uma tremenda algazarra ao proclamar a
necessidade de ajudar os pobres a obter um divórcio. Mas por que tanto
ansiariam eles pela liberdade do pobre se divorciar, e nem um pouco por que
ele tenha qualquer outra liberdade? Por que as mesmas pessoas ficam felizes, à
beira das gargalhadas, quando ele se divorcia, e horrorizadas quando ele bebe
uma cerveja? O que o pobre faz com seu dinheiro, o que acontece com seus
filhos, onde ele trabalha, quando ele sai do serviço, tudo isso está cada vez
menos sob o controle dele. Bancos de Empregos, Carteiras de Trabalho,
Seguros-Desemprego e centenas de outras formas de supervisão e inspeção
policial foram combinadas, para o bem ou para o mal, para fixá-lo cada vez
mais estritamente em um determinado lugar na sociedade. Cade vez menos lhe
é permitido procurar outro serviço; por que cargas d’água se lhe quer permitir
que procure outra mulher?! Ele está cada vez mais constrito a obedecer a uma
espécie de lei muçulmana que proíbe a bebida; porque facilitar que ele
abandone a velha lei cristã sobre o sexo?! Qual é o sentido desta imunidade
misteriosa, desta permissão especial para o adultério? Porque a única alegria
que ainda lhe está aberta deveria ser fugir com a mulher do vizinho?! Porque

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ele deveria amar como lhe der na telha, se não pode viver como lhe dá na
telha?!

A resposta, lamento dizê-lo, é que esta campanha social, na maioria senão em


todos os seus proponentes mais proeminentes, baseia-se, neste tema, em um
interesse particular do tipo mais hipócrita e pestilento. Há defensores da
democratização do divórcio que são realmente defensores da liberdade
democrática em geral. Estes, contudo, são a exceção. Mais ainda: eu diria, com
todo o respeito, que são fantoches.

A onipresença do assunto na imprensa e na sociedade política é devida a um


motivo diametralmente oposto ao que é abertamente professado. Os
governantes modernos, que são simplesmente os ricos, mudam muito pouco
em sua atitude em relação aos pobres. É o mesmo espírito que arranca deles os
filhos com o pretexto da ordem e quer lhes arrancar a esposa com o pretexto da
liberdade. Quem deseja, como diz a letra da música satírica, “destruir o lar
feliz”, busca antes de tudo o mais não destruir a fábrica, que não é nem um
pouco feliz.

O capitalismo, é claro, está em guerra contra a família, pela mesma razão que o
levou à guerra contra o sindicato. Este é, realmente, o único sentido em que o
capitalismo está ligado ao individualismo; o capitalismo acredita no coletivismo
para ele mesmo e no individualismo para seus inimigos. Ele quer que suas
vítimas sejam indivíduos, ou, em outras palavras, quer atomizá-los. A palavra
“átomo”, no seu sentido mais claro (que não é nem um pouco evidente) pode
ser traduzida como “indivíduo”. Se restar alguma ligação ou fraternidade, se
houver qualquer lealdade de classe ou disciplina doméstica pela qual o pobre
possa ajudar o outro pobre, estes emancipadores farão o que puder para
afrouxar este laço ou destruir esta disciplina da maneira mais liberal possível.
Se houver tal fraternidade, estes individualistas vão redistribuí-la na forma de
indivíduos; ou, em outras palavras, atomizá-la, reduzi-la a átomos.

Os mestres da plutocracia moderna sabem o que estão fazendo. Eles não estão
cometendo nenhum engano. Eles podem ser inocentados de qualquer acusação
de incoerência. Um instinto preciso e muito profundo levou-os a determinar
que o lar humano é o obstáculo maior diante de seu progresso desumano. Sem
a família não há recurso diante do Estado, que em nosso caso, na modernidade,
é o Estado Servil. Para usar uma metáfora militar, a família é a única formação
em que o ataque dos ricos pode ser debelado. É uma força que forma casais
como os soldados formam esquadras e que, em todos os países agrários,
guardou a casa ou o sítio como a infantaria guardou sua trincheira contra a
cavalaria.

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Como esta força o opera, e o seu porquê, tentaremos explicar no último destes
artigos. Mas é quando ela está prestes a ser destroçada pelos cavaleiros do
orgulho e do privilégio, como na Polônia ou na Irlanda, quando a batalha se
torna mais desesperada e a esperança é mais obscura, que os homens começam
a entender porque este voto selvagem, no seu início, já era mais forte que todas
as lealdades deste mundo; e o que pareceria fugaz como uma aparição é
tornado permanente, na forma de um voto.

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III - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

Há um bom tempo se vem tentando, de modo curiosamente persistente,


esconder o fato de que a França é um país cristão. Certamente há franceses
envolvidos na conspiração, e indubitavelmente houve franceses – ainda que eu
só saiba dos ingleses envolvidos – na tentativa, derivada daquela, de esconder o
fato de que Balzac tenha sido um escritor cristão.

Comecei a ler Balzac muito depois de ter lido seus admiradores, e eles nunca
me haviam sequer insinuado esta verdade. Eu lera que seus livros eram
encadernados em capas amarelas, e seriam “desavergonhadamente franceses”,
ainda que me tenha sido sempre algo um pouco nebuloso entender como ser
francês poderia ser uma coisa desavergonhada para um francês.

Eu lera a descrição mais verídica do “feiticeiro sujo da Comédie Humaine”, e


sobrevi para ver que é verdade. Balzac certamente é um gênio, como os artistas
que ele mesmo descreve, daqueles que conseguem desenhar de tal maneira
uma vassoura, que se sabe que ela foi usada para varrer o local onde ocorreu
um assassinato. Os móveis que Balzac descreve estão mais vivos que os
personagens de muitos dramas.

Para isso eu estava preparado, mas não para uma certa assunção espiritual que
reconheci imediatamente como sendo um fenômeno histórico. A moralidade de
um grande escritor não é a moralidade que ele ensina, mas a que ele considera
evidente e que surge como pano de fundo. O tipo católico da ética cristã
perpassa os livros de Balzac, exatamente como o tipo puritano da ética cristã
perpassa os livros de Bunyan.

Quais seriam as opiniões que defenderiam eu não sei, não mais que eu sei quais
seriam as de Shakespeare; mas sei que ambos estes criadores de um mundo de
multidões o construíram, comparados com outros escritores mais tardios,
baseando-se no mesmo mapa moral fundamental que o do universo de Dante.
Não há dúvida possível para quem os teste usando a verdade que mencionei: as
coisas fundamentais em um homem não são as coisas que ele explica, mas as
coisas que ele se esquece de explicar.

Aqui e ali, contudo, Balzac explica, e explica com aquela concentração


intelectual que o Sr. George Moore nitidamente percebe naquele autor quando
ele se comporta como teórico. E, outro dia, achei em um dos romances de Balzac

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esta passagem que – independentemente de sua perfeita adequação ao estado
de espírito do Sr. George Moore neste momento – me parece uma profecia
perfeita desta época, que poderia perfeitamente ser a epígrafe deste livro: “junto
com a solidariedade da família, a sociedade perdeu aquela força elementar que
Montesquieu definiu e chamou de 'honra.' A sociedade isolou os seus membros
para governá-los melhor, e dividiu para enfraquecer."

Ao longo da nossa juventude e nos anos do pré-Guerra, a crítica corrente seguiu


Ibsen, descrevendo o sistema doméstico como uma casinha de bonecas e a dona
de casa como uma bonequinha. O Sr. Bernard Shaw forneceu uma variação à
metáfora, dizendo que o mero costume mantém a mulher em casa, como
mantém o papagaio na gaiola. As peças e histórias deste período pintaram em
cores vivas uma mulher semelhante a um papagaio em outros aspectos, coberta
de cores vivas, com uma voz irritante, viciada em repetir inúmeras vezes o que
se lhe ensinou a dizer. O Sr. Granville Barker, filho espiritual do Sr. Bernard
Shaw, comentou em sua peça engenhosa "A Herança de Voysey" que a tirania, a
hipocrisia e o tédio seriam os elementos constituintes do “lar inglês feliz".

Deixando de lado o que isto tem de verdade, seria bom insistir que a
convencionalidade assim criticada seria ainda mais característica de um lar
francês feliz. Não é a casa do inglês, mas a do francês que é seu castelo. Poder-
se-ia acrescentar, abordando finalmente a visão ética essencial dos sexos, que a
casa do irlandês é o seu castelo, ainda que tenha sido, ao longo dos últimos
séculos, um castelo sitiado. De qualquer modo, estas convenções, que se
percebe tratarem a domesticidade como algo tedioso, estreito e
antinaturalmente manso e submisso, são particularmente poderosas entre os
irlandeses e os franceses.

Daí será certamente mais fácil, para qualquer pensador lúcido e lógico, deduzir
o fato de que os franceses seriam tediosos e estreitos, e os irlandeses
antinaturalmente mansos e submissos. O Sr. Bernard Shaw, irlandês que vive
entre os ingleses, pode ser convenientemente tomado como exemplo típico da
diferença; e descobrir-se-á indubitavelmente que os amigos políticos do Sr.
Shaw, entre os ingleses, serão de um tipo revolucionário mais radical que os
que ele encontraria entre irlandeses. Podemos então comparar a mansidão dos
fenianos com a fúria dos fabianos.

Este ideal monogâmico mortificante pode até mesmo, num sentido mais
amplo, definir e distinguir toda a subserviência rasa de Clare de toda aquela
revolta flamejante de Clapham. Tampouco precisamos avançar muito para

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entender porque as revoluções são desconhecidas na história da França, ou
porque elas se sucedem rapidamente na política mais vaga da Inglaterra.

Esta rigidez e respeitabilidade certamente serão a explicação desta incapacidade


completa para a explosão ou para a experimentação cívica que sempre marcou
esta aldeia modorrenta de casinhas trancadas que é a cidade de Paris. Isso vale
não apenas para os parisienses, mas também para os camponeses. Vale ainda
mais para outros camponeses na grande Aliança. Os estudantes das tradições
sérvias nos dizem que a literatura camponesa amaldiçoa de modo especial e
singular a violação do matrimônio; e isso deve explicar o ordeiro pacifismo de
carneirinhos de que frequentemente se queixa quanto a este povo.

Falando de modo mais claro, há algo claramento errado no cálculo pelo qual se
teria provado que a dona de casa seria necessariamente tão servil quanto uma
empregada doméstica, ou que visse no homem domesticado alguém sempre
gentil como uma rosa ou conservador quanto a Liga da Rosa. São precisamente
os mais conservadores acerca da família os revolucionários no tocante ao
Estado. Os que são acusados de preconceituosos ou de burgueses tacanhos,
devido a suas convenções matrimoniais, são na verdade os mesmos que são
acusados pela violência e pelas reviravoltas de suas reformas políticas.
Tampouco há qualquer dificuldade em perceber a causa disto.

Trata-se simplesmente de que uma sociedade do tipo do governo, ao lidar com


a família, está lidando com algo quase tão permanente e tão capaz de se renovar
quanto ele mesmo. Pode haver uma política familiar contínua, assim como há
uma política exterior contínua. Em países camponeses a família luta; seria até
mesmo possível dizer que a fazenda luta. Não quero simplesmente dizer que,
em tempos maus e excepcionais, ela se revolta, ainda que isso seja importante.
Era um acontecimento selvagem, mas saudável, quando nas expulsões
irlandesas as mulheres jogavam água fervendo das janelas; era parte de uma
retirada final ao uso de ferramentas particulares como armas públicas. Este tipo
de coisa não é apenas uma briga de faca, mas quase uma briga de garfo e colher.

Talvez fosse neste sentido sombrio que Parnell, naquela piada misteriosa, disse
que na Irlanda todo mundo conhecia o Kettle (como talvez devessem, após suas
glórias posteriores), e, em um sentido mais geral, é bem verdade que se meter
com uma dona de casa acaba nos jogando na água quente. Mas não é destas
crises de lutas corporais que eu estou falando, sim de uma pressão permanente
e pacífica, que vem de baixo, de mil famílias, contra o quadro geral do governo.

Para isso, é essencial que haja um certo espírito de defesa e de privacidade;

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nisso o próprio feudalismo tinha razão, ao perceber que qualquer questão de
honra era necessariamente uma questão de família. Era verdadeiro o instinto
artístico que representou a ancestralidade familiar em um escudo que protege o
corpo. O camponês livre tem armas, ainda que não seja armoriais. Ele não tem
um escudo de armas, mas tem algo a escudá-lo.

Não vejo porque ele não deveria ter, em uma sociedade mais livre e mais feliz
que a atual, ou mesmo que a do passado, um escudo dotado de um belo brazão.
Afinal, vale para a ancestralidade o que vale para a propriedade: o erro não é
que ela seja imposta aos homens, mas que ela lhes seja negada. Capitalismo
demais não significa capitalistas demais, mas capitalistas de menos; e, do
mesmo modo, a aristocracia peca não ao plantar uma árvore familiar, mas ao
deixar de plantar uma floresta familiar.

De qualquer modo, descobre-se que na prática o cidadão doméstico pode


resistir a um cerco, mesmo que o cerco seja feito pelo Estado; isso ocorre porque
ele tem alguém ao seu lado nos bons e nos maus momentos – especialmente nos
maus momentos. Os defensores da idéia de que o Estado pode conseguir ser
dono de tudo e administrador de tudo podem ignorar este argumento o quanto
quiserem; é contudo necessário dizer, com todo o respeito, que o mundo, cada
vez mais, os ignora. Se fosse possível encontrar uma máquina perfeita e um
homem perfeito para operá-la, teríamos um bom argumento para o socialismo
de Estado, ainda que o mesmo argumento servisse também para defender o
despotismo pessoal.

Creio, contudo, que a maioria das pessoas concorde agora que um pouco desta
pressão social de baixo para cima a que chamamos liberdade seja vital para a
saúde do Estado. E é ela que não pode ser exercida completamente por
indivíduos, apenas por grupos e por tradições. Muitos foram estes grupos;
houve os mosteiros, houve as guildas, mas há apenas um tipo, entre todos estes,
que todos os seres humanos têm a inspiração onipresente e espontânea de
construir para eles mesmos: e este tipo é a família.

Era a minha intenção que este artigo fosse o último dos que alinhavam os
elementos deste debate; terei, no entanto, que acrescentar uma curta conclusão
acerca da ausência destes elementos nas propostas práticas (ou nada práticas)
sobre o divórcio. Aqui, basta dizer que elas sofrem da mórbida doença moderna
de sacrificar o normal em benefício do anormal. É fato que a “tirania, hipocrisia
e tédio” de que se queixa não são típicos da domesticidade, sim da decadência
da domesticidade.

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O caso desta queixa em específico, na peça do Sr. Granville Barker, o prova. O
ponto crucial de “A Herança de Voysey" é que não havia uma herança de
Voysey. A única herança que esta família tinha era uma dívida, bastante
desonrosa. Naturalmente, os afetos familiares decaíram quando todo o ideal de
propriedade e probidade decaiu; e é pouco o amor, bem como a honra, entre os
ladrões.

Ainda resta a provar que eles estariam tão entediados se houvesse uma herança
positiva, ao invés de negativa, e se houvessem trabalhado em uma fazenda ao
invés de em uma fraude. E a experiência da humanidade aponta na direção
oposta.

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IV - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO

Já mencionei o famoso, ou antes infame, nobre que teria dito que o povo
deveria comer capim; talvez tenha sido uma sugestão infeliz para um nobre
dar, já que este regime, ao que se saiba, só foi feito por um personagem muito
nobre. Talvez, contudo, haja uma simplicidade seria digna de um sultão, ou
mesmo de um cacique selvagem, nesta solução; é neste toque de inocência
autocrática que eu mais insisti ao tratar das reformas sociais de nossos dias,
especialmente da reforma social conhecida como divórcio.

Minha preocupação principal é com o método arbitrário, mais que com o


resultado anárquico. Assim como o velho tirano mandaria muitos homens
comer capim, o novo tirano faria de muitas mulheres novilhas soltas no pasto.
De qualquer modo, para variar um pouco o simbolismo lendário, este rei de
conto de fadas nunca parece perceber que a coroa de ouro na cabeça é um
símbolo menos, não mais, sagrado e sacramentado que a aliança de ouro no
dedo da mulher.

Esta mudança está sendo obtida pelo governo sumário e até mesmo secreto que
hoje sofremos. A acusação proordial que lhe fazemos é que ainda que se
tratasse realmente de uma emancipação, ela seria uma emancipação apenas na
sua forma. Não tratarei detalhadamente do que dizem, pois outros o podem
fazer, mas concluo apontando, em grandes linhas e em quatro tópicos, as
defesas práticas do divórcio tal como são hoje feitas. Peço apenas ao leitor que
repare que elas têm um único ponto em comum: o fato de que todos os
argumentos também são usados para defender uma reforma social que as
pessoas mais sensatas já estão acusando de ser uma escravidão.

Primeiro: é sintomático que as últimas propostas práticas estejam preocupadas


com o caso dos que já estão separados e com os passos que eles deveriam tomar
para divorciar-se. Há um espírito, que permeia a nossa sociedade de hoje, que
permite à exceção alterar a regra: o exílio afasta o patriotismo, o órfão derruba a
paternidade, e até mesmo a viúva ou a ex-mulher pode destruir a posição da
mulher.

Percebe-se algo desta tendência na misteriosa e desafortunada nação a quem foi


dado tanto mudar, de uma cruzada na Rússia a uma casa de campo em South
Bucks. Disseram-nos para tratar o judeu errante como peregrino, enquanto
tratamos o cristão errante como vagabundo. E este está pelo menos tentando

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voltar para casa, como Ulisses, enquanto aquele está, ao que tudo indica,
fugindo de casa, como Caim.

O desapegado, isolado, amorfo e deslocado é usado em toda parte como


desculpa para alterar o que é comum, comunitário, tradicional e popular. E a
alteração é sempre para o pior. A sereia nunca fica mais humana, apenas mais
piscosa. O centauro nunca se torna mais humano, apenas mais equino. O judeu,
de fato, não consegue internacionalizar a cristandade, só desnacionalizá-la. O
proletário não acha fácil tornar-se um pequeno proprietário; é mais fácil tornar-
se um escravo.

Assim, o pobre homem que não consegue tolerar a mulher que ele escolheu
dentre todas as mulheres do mundo não é encorajado a voltar para ela e tolerá-
la, mas sim a escolher outra mulher que ele possa, depois de um tempo,
recusar-se a tolerar. E em todos estes casos o argumento é o mesmo: o homem
num estado deslocado é infeliz. Provavelmente ele é infeliz por ser anormal,
mas se permite que ele desate o laço universal que manteve milhões de outros
na normalidade. Por ele ter caído em um buraco, permite-se que ele cave túneis,
como um coelho, e desestabilize todo o campo.

Em segundo lugar, como sempre ocorre ao lidar com estas experiências


grosseiras, temos um argumento baseado no exemplo de outros países,
especialmente de países novos. Assim os eugenistas dizem, solenemente, que
houve experiências eugênicas de sucesso nos Estados Unidos. E eles mantém
rigidamente a solenidade, ainda que se recusando ardorosamente que falo sério
quando lhes digo que uma das experiências eugênicas nos Estados Unidos é
uma experiência química, que consiste em transformar um homem negro na
forma alotrópica de cinzas brancas. É uma experiência muito eugênica, já que o
seu objetivo principal é desencorajar uma mistura interracial indesejada.

Mas eu não gosto da experiência americana, por mais americana que ela seja, e
confio e creio que ela não seja nem um pouco tipicamente americana. Ela
representa, imagino, apenas um elemento na complexidade da grande
democracia, ao lado de outros elementos malignos. Assim, eu não fico nem um
pouco surpreso que as mesmas seções estranhas da sociedade que permitem
que um ser humano seja queimado vivo também permitam a exaltada ciência
da eugenia.

O mesmo ocorre com o tema menos palpitante das leis sobre o álcool; dizem-
nos que alguns coloniais primitivos promulgaram a lei seca, que estão agora

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tentando revogar, exatamente como nos dizem que promulgaram leis de
divórcio, que estão agora tentando revogar. No caso do divórcio, pelo menos, o
argumento baseado em precedentes distantes desabou sozinho; já há uma
agitação a favor de menos divórcios nos Estados Unidos, enquanto na
Inglaterra agita-se a favor de mais divórcio.

Digo ainda que, quando se argumenta a partir da necessidade de aumentar a


população, seria bom perceber para onde isso conduz. Afinal, é bastante
duvidoso que a população aumente devido ao divórcio. Não é, contudo, o que
ocorre com a poligamia; na Alemanha, já se defende a poligamia pelo apelo a
esta necessidade. Mas devemos ir além da Alemanha, para examinar algo mais
remoto e mais repulsivo. A mera população, junto com uma espécie de
anarquia polígama, não parecerá uma idéia prática a quem quer que considere,
por exemplo, como a Europa pôde manter-se à frente do resto da raça humana,
em face das miríades caóticas da Ásia. Se a grande população fosse a pedra de
toque do progresso e da eficiência, a China já seria há muito tempo o estado
mais progressista e mais eficiente.

De Quincey resumiu esta enormidade em uma frase, talvez, mais


impressionante, ou mesmo apavorante, que todas as perspectivas da
arquitetura oriental e todos os panoramas dos campos de ópio em meio aos
quais ela surge: “o homem, nessas regiões, é uma erva daninha”.

Muitos europeus, preocupados com o jardim do mundo, temeram que por


alguma fatalidade futura estas ervas se espalhassem e o sufocassem; nenhum
europeu, no entanto, jamais quis que as flores fossem como as ervas. Mesmo se
fosse verdade, assim, que afrouxar o laço conjugal levasse necessariamente a
um aumento da população, mesmo se isso não fosse negado pelos próprios
fatos em muitos países, deveríamos ter uma sólida base histórica para não
aceitar este raciocínio. Deveríamos continuar a suspeitar do paradoxo pelo qual
abolir a família encorajaria a formação de famílias maiores.

Finalmente, creio que parte da defesa da nova proposta foi considerada um


pouco grosseira demais até mesmo por seus defensores; soube inclusive que
eles teriam feito emendas modificando o princípio. Elas seriam basicamente,
primeiro que o homem deveria comprometer-se a dar um pagamento em
dinheiro para a mulher que ele abandonasse e, segundo, que alguma espécie de
magistrado trataria do assunto.

Para o meu proósito, basta notar que há algo do sabor inconfundível da

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sociologia a que resistimos nestes dois tocantes atos de fé: o talão de cheques e o
advogado. Muitos dos reformadores matrimoniais da moda ficariam levemente
chocados com qualquer sugestão de que uma pobre diarista possa recusar este
dinheiro, ou que um juiz bom e justo não tenha o direito de dar este conselho.
Afinal, os reformadores do matrimônio são gente muito distinta, com alguas
honrosas exceções, e nada se encaixaria mais perfeitamente na sua
respeitabilidade bem azeitada que a sugestão de que a traição seja melhor
compensada pela indenização, cavalheiros, a pesada indenização paga pelo Sr.
Serjeant Buzfuz, ou que a tragédia seja mais bem tratada pela arbitragem tão
espiritual do Sr. Nupkins.

Devo ainda acrescentar uma palavra a este esboço apressado dos elementos do
caso. Deixei deliberadamente de lado o argumento e o aspecto mais elevados,
que percebem no matrimônio uma instituição divina, pela simples razão de que
quem crê nisso não crê no divórcio e eu estou discutindo com os que nele
crêem. Não os peço que reconheçam o valor do meu credo, ou de qualquer
credo; eu poderia até mesmo desejar que eles não me pedissem tão
frequentemente que eu reconhecesse algum valor na sua sociedade moderna,
plutocrática, venenosa e sem valor algum. Mas se fosse possível mostrar, como
creio que seja, que uma visão histórica longa e uma experiência política paciente
podem ao menos aucmular evidências científicas sólidas da necessidade vital
do voto matrimonial, então não me é possível conceber tributo maior que o de
quem, em qualquer fé, afirmou flamejantemente desde o mais negro princípio
aquilo que o brilhantismo mais tardio consegue descobrir, lentamente, apenas
no final.

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V - A HISTÓRIA DA FAMÍLIA

A mais antiga das instituições humanas tem uma autoridade que pode parecer
tão selvagem quanto a anarquia. Ela é a única, dentre todas estas instituições, a
começar com uma atração espontânea, e de que se pode dizer que é baseada no
amor, não no medo. A tentativa de compará-la com as instituições coercitivas
que vêm complicando a história recente levou a uma infinita falta de lógica nos
últimos tempos.

Trata-se de algo tão único quanto universal. Não há nada, em nenhuma outra
relação social, que seja sequer paralelo à atração mútua dos sexos, e é ao perder
de vista este fato simples que o mundo moderno caiu em centenas de enganos.

A idéia de uma revolta geral das mulheres contra os homens foi proclamada
com bandeiras e passeatas, como se fosse uma revolta de vassalos contra seus
senhores, de negros contra negreiros, de poloneses contra prussianos ou de
irlandeses contra ingleses; todos agiam como se acreditassem na nação fabulosa
das amazonas. A ideia, igualmente filosófica, de uma revolta geral dos homens
contra as mulheres foi proposta em forma de romance por Sir Walter Besant, e
como livro de sociologia pelo Sr. Belfort Bax.

Ao primeiro toque desta verdade de uma atração aborígene, contudo, todas


estas comparações desabam e se vê como são cômicas. Um prussiano não sente,
logo de cara, que ele só será feliz quando puder passar os dias e as noites ao
lado de um polonês. Um inglês não acha que a casa parece vazia e triste a não
ser que haja um irlandês lá dentro. Um escravagista não sonha, na sua
juventude romântica, com a beleza perfeita de um africano. Um magnata das
ferrovias raramente escreve poemas sobre o fascínio particular de um
carregador de estação de trem.

Todas estas outras revoltas, contra todas estas outras relações, são razoáveis,
para não dizer inevitáveis, por serem relações originalmente baseadas na força
ou no interesse próprio. A força consegue abolir o que a força consegue
estabelecer; o interesse próprio pode rescindir um contrato que foi ditado pelo
interesse próprio. O amor de um homem e de uma mulher, contudo, não é uma
instituição que posssa ser abolida ou um contrato que possa ser rescindido. É
algo mais antigo que todas as instituições e contratos, algo que certamente irá
continuar quando eles não mais existirem.

Todas as outras revoltas são reais, porque persiste a possibilidade de que as

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coisas possam ser destruídas, ou ao menos divididas. É possível abolir os
capitalistas, mas não se pode abolir os homens. Os prussianos podem sair da
Polônia, ou os negros voltar à África, mas um homem e uma mulher vão
sempre permanecer juntos, de um jeito ou de outro, e devem aprender a tolerar-
se mutuamente de alguma maneira.

Trata-se de uma verdade muito simples, e talvez por isso hoje em dia ela passe
desapercebida. A verdade que dela se depreende é igualmente óbvia. Não se
discute por quê a natureza criou esta atração; na verdade, seria mais inteligente
perguntar-se por quê Deus a criou, pois a natureza não teria propósito sem
Deus por trás dela. Falar de um propósito na natureza é tentar, em vão, usar o
feminismo para evitar o antromorfismo. É crer numa deusa por se ser cético
demais para acreditar em um deus.

Esta controvérsia, contudo, pode ser deixada de lado nesta discussão, se nos
contentarmos em dizer que o valor vital que se encontra, afinal, nesta atração é,
evidentemente,a renovação da raça humana.

A criança é uma explicação do pai e da mãe, e o fato de ela ser uma criança
humana é uma explicação dos antigos laços humanos que ligam o pai e a mãe.
Quanto mais humana – ou seja, menos bestial – for a criança, mais legítimos e
duradouros serão estes laços. Assim, quaisquer progressos na cultura ou na
ciência, longe de afrouxar estes laços, irão logicamente estreitá-los. Quanto mais
houver para a criança aprender, mais tempo terá ela de passar na escola natural
onde os aprende, e mais deve tardar a dissolução da parceria de seus mestres.

Esta verdade elementar está hoje escondida sob uma multidão de


intermediários, agindo em função direta ou indireta da falácia elementar de que
tratarei em seguida. Falo da posição primária do grupo humano, tal como ele
persistiu ao longo de eras, enquanto as civilizações ascendiam e decaim;
frequentemente incapaz de delegar o que quer que fosse do seu trabalho, e
sempre incapaz de delegá-lo por inteiro. Nisto, repito, sempre será necessário
que os dois mestres fiquem juntos, enquanto eles tiverem algo a ensinar.

Um bicho marinho qualquer, que simplesmente se desliga da cria e flutua para


longe, poderia flutuar até um tribunal de divórcio submarino ou um clube de
amor livre para peixes. O bicho marinho pode fazê-lo precisamente porque a
sua cria não precisa fazer nada, porque ela não tem que aprender a dançar
polca ou recitar a tabuada. Estou enumerando truísmos, mas truísmos
verdadeiros; as verdades sempre acabam voltando à cena. Afinal, o
emaranhado de substitutos semi-oficiais da verdade que agora encontramos
não é grande o bastante para tapar o buraco. Se as pessoas não conseguem

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cuidar da própria vida, simplesmente não pode fazer sentido pagá-las para
cuidar da vida dos outros, menos ainda para cuidar dos bebês dos outros. Isso é
simplesmente jogar fora um poder natural para pagar por um poder artificial,
como quem rega uma planta com uma mangueira enquanto a protege da chuva
com uma sombrinha.

Tudo isso, na verdade, está baseado em uma ilusão plutocrática de uma oferta
infinita de serviçais. Sempre que aparece um sistema novo qualquer que seja
apresentado como “uma carreira feminina”, o que está realmente sendo
proposto é transformar um número infinito de mulheres em serviçais da
plutocracia ou da burocracia. Em última instância, estamos argumentando que
uma mulher não deveria ser mãe do próprio filho, sim babá do filho dos outros.
Isto, contudo, não tem como funcionar nem no papel. Não é possível que cada
um lave a roupa do próximo, muito menos os babadores. No fim das contas, as
únicas pessoas que conseguem cuidar, ou mesmo de quem se possa dizer que
cuidem, individualmente, de cada criança individual são os seus pais
individuais. A expressão, tal como é aplicada aos que lidam com multidões
cambiantes de criancinhas, é apenas uma graciosa e legítima figura de
linguagem.

Este triângulo de lugares-comuns composto de pai, mãe e filho é indestrutível, e


destrói qualquer civilização que o menospreze. A maior parte dos reformadores
modernos é apenas um amontoado de céticos vazios, que não têm base alguma
sobre a qual reconstruir; seria bom se estes reformadores se dessem conta de
que há algo que eles não conseguem reformar.

É possível derrubar os poderosos de seus tronos. É possível virar o mundo de


ponta-cabeça, e é perfeitamente defensável que esta seja a posição certa para ele.
Contudo, é impossível criar um mundo em que o bebê carrega a mamãe. Não se
pode criar um mundo em que a mãe não tenha autoridade sobre o bebê. É
possível perder tempo argumentando, dando aos bebês o direito de voto ou
proclamando uma república infantil. É até mesmo possível dizer, como o fez
outro dia um pedagogo, que as crianças pequenas deveriam “criticar,
questionar a autoridade e suspender seu julgamento”. Não sei por que ele não
continuou, dizendo que elas deveriam trabalhar para ganhar a vida, pagar
imposto de renda e morrer pela Pátria no campo de batalha, já que
evidentemente o que está sendo proposto é que as crianças não tenham
infância.

Mas, se isso parecer divertido, é possível organizar um “governo


representativo” entre os menininhos e menininhas e dizer a eles que levem o
mais a sério que puder as suas responsabilidades legais e constitucionais.

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Resumindo, é perfeitamente possível ser louco, mas é impossível fazer sentido.
Não se pode realmente levar às raízes este princípio e aplicá-lo à mamãe e ao
bebê. Não é possível aplicar a teoria ao mais simples e mais prático de todos os
casos. Ninguém é louco a este ponto.

Este núcleo de autoridade natural sempre existiu em meio a autoridades mais


artificiais. Ele sempre foi visto como algo literalmente individual, ou seja, como
algo absoluto, que não pode ser dividido. Um bebê não seria sequer um bebê
sem a mãe; seria outra coisa, mais provavelmente um cadáver. Isto sempre foi
reconhecido como algo que tem uma relação peculiar com o governo,
simplesmente por ser uma das coisas que não foram feitas pelo governo e que
poderia, em certa medida, vir a existir sem o apoio do governo. Realmente,
trata-se de algo tão evidente que nenhuma defesa é possível ou necessária. Pois
a defesa que pode ser feita é que não há nada comparável, e nos poderes e
instituições mais elaborados, que são seus inferiores, não encontraremos mais
que leves paralelos.

Assim, a única maneira de transmitir esta idéia é comparando-a com uma


nação, ainda que, comparadas a ela, as divisões nacionais sejam tão modernas e
tão formais quanto os hinos nacionais. É por isso que eu uso frequentemente a
metáfora de uma cidade, ainda que o citadino, em comparação, seja uma
novidade tão recente quanto o funcionário público municipal. Basta notar aqui
que todos sabem por intuição, e admitem por implicação, que uma família é um
fato, algo sólido, dotado de cor e caráter como uma nação.

Esta verdade é comprovada nas experiências mais cotidianas e mais modernas.


Um homem vai dizer “é o tipo de coisa de que os Brown vão gostar”, por mais
intrincada e interminável que seja a novela psicológica que ele possa compôr
sobre os tons das diferenças entre o Seu Brown e a Dona Brown. Uma mulher
vai dizer “eu não gosto que a minha filha frequente a casa dos Robinsons”, mas
ela não vai sempre parar, no meio de suas exaustivas tarefas sociais ou
domésticas, para dintinguir entre o materialismo otimista do Seu Robinson e o
cinismo um tanto ou quanto mais ácido que permeia o hedonismo da Dona
Robinson.

O interior de um lar tem uma cor própria, tão evidente quanto o exterior da
casa. Esta cor é uma mistura, e se um tom prevalecer será geralmente o da
mulher da casa. Mas, como todas as cores compostas, ela é uma cor à parte, tão
distinta quanto o verde é distinto do azul e do amarelo. Todo casamento é uma
espécie de equilíbrio dinâmico, e o acordo a que se chega, em cada caso, é tão
único quanto qualquer excentricidade. Os filantropos que andam pelas favelas
frequentemente percebem este acordo sendo feito aos brados, em plena rua, e

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acham que estão vendo uma briga. Quando metem o colher apanham do
marido e da mulher, o que é bem feito, por não respeitarem a própria
instituição que os trouxe ao mundo.

A primeira coisa a perceber é que esta normalidade gigantesca é como uma


montanha, que pode ser até um vulcão. Todas as anormalidades que se lhe
opõem são como o montinho de terra que marca a toca de uma toupeira, e os
organizadores sociais, com toda a sua autenticidade, parecem-se cada vez mais
com toupeiras.

Mas a montanha também é um vulcão em outro sentido, como o sugerido pela


tradição dos campos fertilizados por lava, no Sul. Ele tem um lado criativo, bem
como um lado destrutivo, e resta apenas, nesta parte da análise, notar o efeito
político desta instituição extra-política, bem como os ideais que ela defendeu,
frequentemente sozinha.

O ideal que ela defende em relação ao Estado é o da liberdade. Ela preserva a


liberdade pela razão simples com que comecei este esboço de análise. É a única
instituição que é ao mesmo tempo necessária e voluntária. É o único dos freios
ao poder do Estado que se renova de modo tão eterno quanto o Estado e de
modo mais natural que ele.

Qualquer homem são há de reconhecer que a liberdade ilimitada é anarquia, ou


melhor, não é nada. A idéia cívica de liberdade é dar ao cidadão uma província
em que ele é livre, um território circunscrito em que ele é rei.

Esta é a única maneira de a verdade se refugiar da perseguição pública e do


homem bom sobreviver ao governo mau. Mas o homem bom, sozinho, não tem
como enfrentar a cidade. Outra instituição deve servir de contrapeso à cidade, e
neste sentido ela é uma instituição imortal.

Enquanto o Estado for a única instituição ideal ele irá conclamar o cidadão a
sacrificar-se, e assim não terá escrúpulos em sacrificar o cidadão.

O estado consiste em coerção, e, no seu próprio ponto de vista, está sempre


certo quando aumenta a coerção. É o caso, por exemplo, do serviço militar
obrigatório. A única coisa que pode ser colocada para limitar ou desafiar esta
autoridade é uma lei voluntária e uma lealdade voluntaria. Esta lealdade é a
proteção da liberdade, na única esfera em que a liberdade pode
verdadeiramente florescer. É um princípio constitucional que o Rei nunca

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morre. É o princípio único da família que o cidadão nunca morre. É necessário
que haja uma heráldica e uma hereditariedade da liberdade, uma tradição de
resistência à tirania. Os homens não devem apenas ser livres, mas nascer livres.
Realmente, há algo na família que pode ser chamado até de anarquista, ainda
que seja mais correto dizer ser algo amador. Assim como ela parece ser algo
vaga acerca de sua origem voluntária, também parece haver algo vago acerca
de sua organização voluntária. A função mais vital que ela desempenha, que
talvez seja a função mais vital que qualquer um possa desempenhar, é a de
educação; mas este tipo de educação fundamental é essencial demais para que
se possa confundi-la com mera instrução.

Sua regra é mais prática que teórica, em milhares de aspectos. Para dar um
exemplo banal, e até engraçado, duvido que algum livro-texto ou código de
regras já tenha contido instruções sobre como botar uma criança de castigo no
canto da parede. Certamente, quando o processo moderno se houver
completado e o princípio coercitivo do Estado tenha extinguido completamente
o elemento voluntário da família, haverá alguma restrição ou regulação estrita
sobre isto. Possivelmente ela determinará que o canto onde a criança vai ficar
de castigo deva ter um ângulo de pelo menos noventae cinco graus.
Possivelmente, ela dirá que a linha de convergência de um canto comum tende
a envesgar a criança.

De fato, tenho certeza de que se eu deixar escapar em um número suficiente de


reuniões sociais que cantos de parede envesgam as crianças, isto rapidamente
se tornará um dogmada ciência popular.

Afinal, o mundo moderno não aceita dogmas baseados em alguma autoridade,


mas aceita de bom grado dogmas baseados em nenhuma autoridade. Se se diz
que uma coisa é assim ou assado de acordo com o Papa ou a Bíblia, ela será
desprezada como superstição sem ser examinada. Mas se, ao contrário,
dissermos que “dizem que”, ou “você não sabia que”, tentando, sem sucesso,
lembrar o nome de algum cientista citado num artigo de jornal, o racionalismo
aguçado da mente moderna aceitará qualquer coisa que lhe seja dita.

Este parêntese não é tão irrelevante como parece, pois é necessário lembrar que
quando um oficialismo rígido irrompe em meio às cessões voluntárias do lar ele
será rígido apenas na ação, enquanto certamente será ao mesmo tempo
excessivamente frouxo na razão. Intelectualmente, ele não será menos vago que
os arranjos amadores do lar; a única diferença é que os arranjos domésticos são,
no único sentido real, práticos, ou seja, são baseados nas experiências passadas.

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Os outros arranjos são o que geralmente é dito científico, ou seja, são baseados
em experiências que ainda não foram feitas. Na verdade, ao invés de invadir a
família com a desastrada burocracia que desgoverna os nossos serviços
públicos, seria muito mais filosófico fazer uma reforma no sentido oposto.

Seria certamente razoável alterar as leis da nação para que elas se pareçam com
as do quarto de brinquedos. As punições seriam muito menos horríveis, muito
mais divertidas, e serviriam muito melhor para fazer com que os homens
percebam que fizeram papel de idiota. Seria uma diferença bem vinda se um
juíz, ao invés de botar um chapéu preto, botasse um chapéu de burro, ou se
pudéssemos botar um banqueiro de castigo olhando para o canto.

Esta opinião, é claro, é rara e reacionária, seja o que isto queira dizer. A
educação moderna é baseada no princípio de que o pai ou a mãe têm mais
chance de serem cruéis que qualquer outra pessoa. Ora, qualquer um pode ser
cruel, mas as maiores chances de crueldade estão nas multidões indiferentes e
sem cor dos completos estranhos e dos mercenários mecanicistas, que agora é
moda chamar de agentes de melhoria: policiais, médicos, deteives, inspetores,
instrutores, etc.

A eles é dado poder arbitrário por existir aqui e ali um pai ou mãe criminosos,
como se não houvesse médicos criminosos ou pedagogos criminosos. A mãe
não toma sempre a melhor decisão sobre a dieta de seu filhinho, e eis que ela
passa ao controle do Dr. Crippen. Pensa-se que um pai não ensina a seus filhos
a mais pura moralidade, o que faz com que se os coloque sob a tutela de Eugene
Aram.

Estes célebres criminosos não são mais raros em suas profissões respectivas que
pais cruéis são na paternidade. Mas o caso é mais forte que isto, e não é sequer
necessário apelar a estes criminosos.

As fraquezas normais da natureza humana explicarão todas as fraquezas da


burocracia e dos governos do mundo todo. O oficial precisa apenas ser uma
pessoa normal para ser mais indiferente em relação aos filhos dos outros que
em relação aos seus próprios filhos, e até mesmo para sacrificar a prosperidade
de outras famílias para avançar a da sua.

Ele pode estar entediado, ele pode ser subornado, ele pode ser brutal, por
qualquer uma das mil razões que já fizeram um homem ser brutal.

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Todo este senso comum elementar é completamente deixado de lado nos
sistemas sociais e educacionais de hoje. Assume-se que o assalariado não irá
abandonar seu trabalho, simplesmente por ele ser assalariado.

Nega-se que o pastor dará a vida por suas ovelhas, ou, já que estamos falando
deste tipo de coisas, que a loba irá lutar para proteger seus filhoes. Querem que
creiamos que as mães são desumanas, mas não que os oficiais são humanos.
Que haja pais desnaturados, mas não paixões naturais. Ou, ao menos, que não
haja nenhuma onde a fúria do Rei Lear ousou encontrá-las: no funcionário
subalterno. Esta é a última descoberta brilhante para a educação das crianças, e
o mesmo princípio que se aplica a elas é aplicado aos pais. Assim como ela
assume que uma criança será certamente amada por todos, com a exceção de
seu pai e sua mãe, ela assume que um homem pode ser feliz com qualquer
pessoa, menos com a mulher que ele mesmo escolheu como esposa.

Assim o poder coercitivo do Estado prevalece sobre a promessa livre da família


como oficialismo formalizado. Este, contudo, não é o mais coercitivo dentre os
elementos coercitivos da comunidade moderna. Um poder externo ainda mais
inescrupuloso e rígido é o do emprego e desemprego na indústria. Um inimigo
ainda mais feroz da família é a fábrica. Entre estas coisas mecânicas modernas a
instituição natural antiga não está sendo reformada, modificada ou mesmo
podada: ela está sendo dilacerada. E ela não está sendo dilacerada no sentido de
uma metáfora verdadeira, como a de um ser vivo preso em uma engrenagem
medonha de uma máquina. Ela está sendo, literalmente, rasgada ao meio, como
quando o marido vai para uma fábrica, a esposa para outra, e a criança para
uma terceira. Cada um deles se torna o servo de um grupo financeiro diferente,
que cada vez mais ganha o poder político de um grupo feudal. Mas enquanto o
feudalismo recebia a lealdade das famílias, os senhores do novo estado servil
recebem apenas a lealdade de indivíduos, ou seja, de homens solitários e até
mesmo de crianças perdidas.

Diz-se, por vezes, que o socialismo ataca a família, o que se baseia em pouco
mais que no acidente de alguns socialistas apoiarem o amor livre. Eu já fui
socialista, não sou mais, e em momento algum eu acreditei no amor livre. É
verdade, acredito, que em um sentido amplo e inconsciente o socialismo de
Estado encoraja a arrogância coercitiva de que venho tratando. Mas se é
verdade que o socialismo ataque a família na teoria, é muito mais verdade que
o capitalismo a ataca na prática.

É um paradoxo, mas um fato puro e simples, que as pessoas nunca reparam em

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algo se sua existência é prática. Homens que apontariam uma heresia calam-se
diante de um abuso. Quem quer que duvide deste paradoxo deve imaginar os
jornais imprimindo, do lado da Lista de Honrarias, uma lista de preços de
baronatos e títulos de cavalheiro, ainda que todos saibam que eles são vendidos
e comprados.

A fábrica está destruindo a família na prática, e não precisa depender de


nenhum pobre teórico enlouquecido que sonhe em destruí-la na teoria. O que a
destrói não é nada tão plausível quanto o amor livre, sim algo que poderia ser
descrido como o medo forçado. É uma punição econômica, mais temível que a
punição jurídica, o que ainda nos pode levar à escravidão como única
segurança.

Desde seus primeiros dias na floresta, este agrupamento humano teve que lutar
contra monstros selvagens, e agora está lutando contra máquinas selvagens. Ele
só conseguiu sobreviver então, e só conseguirá sobreviver agora, através de
uma forte santidade interna, um juramento tácito ou uma dedicação mais
profunda que a da cidade ou da tribo. Mas ainda que esta promessa tenha
sempre estado presente, em um dado momento pivotal da nossa história ela
tomou uma forma especial, que tentarei esboçar no próximo capítulo. Este
ponto pivotal foi a criação da Cristandade pela religião que a criou. Nada
destruirá o triângulo sagrado, e até mesmo a Fé cristã, a mais espantosa
revolução que já aconteceu nas mentes, serviu apenas, num certo sentido, para
virar de cabeça para baixo este triângulo. Ela levantou um espelho místico em
que a ordem das três coisas foi revertida, e acrescentou uma Sagrada Família,
composta de filho, mãe e pai, à família humana composta de pai, mãe e filho.

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