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Historicidade e memorialismo em Baú de ossos


Historicity and memorialism in Baú de ossos
Walderez Simões Costa Ramalho
Mestre em História
Universidade Federal de Minas Gerais
walderezramalho@gmail.com

Resumo: Estudo de caráter introdutório da obra Baú de ossos (1972) de Pedro Nava, com
foco na questão da historicidade e na relação entre história e memória.
Palavras-chave: Historicidade, Memorialismo, Historiografia

Abstract: An introductory essay on Pedro Nava´s Baú de ossos (1972), focusing on the
question of the historicity and the relation betweem history and memory.
Keywords: Historicity, Memorialism, Historiography

A memória e a história são duas formas distintas e privilegiadas de acesso e


compreensão do passado. Mas de que forma podemos compreendê-las? Quais são os pontos
de aproximação e distanciamento entre elas? E de que forma elas contribuem para uma
reflexão sobre o problema maior da temporalidade do humano? Para refletir sobre tais
questões, propomos uma interpretação histórica de uma das obras mais expressivas da
literatura brasileira: Baú de ossos, do médico e escritor juiz-forano Pedro da Silva Nava
(1903-1984) e publicada pela primeira vez em 1972. A hipótese é que o livro constitui uma
“porta de entrada” promissora para se pensar sobre a questão da historicidade do humano.

Esta apresentação constitui uma primeira aproximação ao tema aqui proposto, e


portanto se caracteriza muito mais pelo investimento em certas perguntas do que
propriamente uma busca por respostas definitivas. Primeiro, vamos situar a nossa reflexão no
âmbito da História da Historiografia. A seguir, vamos pontuar alguns aspectos da relação
entre memória e história, entendidas como modos distintos (mas inter-relacionados) de
compreensão do passado. Por fim, veremos como a narrativa memorialista de Nava pode ser
lida à luz dos referenciais aqui propostos.

Os trabalhos de História da Historiografia são em geral concebidos como análises


críticas de obras historiográficas “propriamente ditas”, isto é, que textos que apresentam uma
estrutura identificada como uma narração histórica. Assim, esse campo de estudos se
apresenta como uma autorreflexão do fazer história, o que constitui um objetivo legítimo e
mesmo essencial para o avanço do conhecimento. Entretanto, é possível ampliar o escopo do
campo para analisar formações discursivas variadas, além das narrativas historiográficas
2

stricto sensu. É o que propõe o professor Valdei Lopes Araújo, quando afirma, a partir da
fundamentação teórica de Martin Heidegger, que a História da Historiografia deve se ocupar
sobretudo em analisar um certo conjunto de fenômenos que podem ser agrupados pelo
conceito de historicidade, definido como “a estrutura do acontecer humano, ou a
temporalização de sua temporalidade”.1

O conceito de historicidade é bastante polissêmico. Muitas vezes, o termo aparece


como a ideia de que uma ação ou discurso só podem ser entendidos “no seu tempo”, isto é,
em referência ao contexto em que “se inseriam”. Caso contrário, o sentido do acontecimento é
distorcido, levando a incompreensões que caracterizariam um grave anacronismo. Por outro
lado, o conceito pode ser ampliado em sua significação para se referir a uma estrutura
temporal do ser do homem, isto é, o sentido de sua existência mais própria. É nesse sentido
que se deve entender a oposição heideggeriana entre historicidade imprópria, próxima da
primeira concepção, a qual imagina que o homem vive “no tempo”; e historicidade própria,
entendida como a estrutura temporal do acontecer do Dasein.

Na maioria das vezes, acusa Heidegger, nos encontramos numa “compreensão vulgar
do tempo” segundo a qual imaginamos o homem como um ente simplesmente dado “no
tempo”, como se este fosse uma dimensão do espaço, que faz ocultar sua constituição
originária. Tal compreensão vulgar define o tempo como uma mera sucessão de “agoras”
quaisquer, o que leva a outro problema de se confundir a existência/realidade com o ser-no-
presente, como se este fosse a única dimensão propriamente “real” do tempo. À
“compreensão vulgar do tempo” corresponderia também uma “compreensão vulgar da
história”, pensada como uma mera sucessão de acontecimentos dentro de um modelo “vulgar”
do tempo. Assim, seria função da historiografia apresentar a ligação entre passado e presente,
sendo este o ponto de referência para se interpretar o que se passou.

Em contraposição à perspectiva “vulgar” do tempo e da história, Heidegger propõe


outro horizonte de reflexão, afirmando que somente o entendimento mais sólido do modo de
ser da história enquanto historicidade, permite “concluir de que maneira a história pode
tornar-se objeto possível da historiografia”. 2 Assim, a História da Historiografia deve se
ocupar com as “aberturas historiográficas da história”, isto é, as ações, discursos e
acontecimentos que expressam de modo privilegiado os caracteres propriamente temporais do

1
ARAUJO, V. L. DE. História da historiografia como analítica da historicidade. História da Historiografia,
Ouro Preto, v. 12, n. agosto, p. 34–44, 2013, p. 39, grifos do autor.
2
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis (RJ), Bragança Paulista (SP): Editora Vozes, Editora Universitária
São Francisco, 2012, p. 307, grifos do autor.
3

humano, bem como o desvelamento do modo de ser da história, transformando-se então numa
analítica da historicidade, que

Teria como objeto próprio pensar as diferentes formas de acesso ao passado


e como a experiência histórica revelada nesses momentos pode ser atingida
por uma investigação das formas de continuidade e descontinuidade, isto é,
de transmissão. Portanto, a transformação do tempo em tempo histórico
pode ser pensada como o campo de fenômenos que poderia orientar a
construção de agendas de investigação de longo prazo para uma História da
Historiografia com relativa autonomia.3

Tal proposta de renovação epistemológica poderia ampliar significativamente o


escopo da História da Historiografia para a análise de formações discursivas variadas, uma
vez que a ciência histórica não detém o monopólio da historicidade do Dasein, mas é esta
quem dá origem à primeira, bem como a outras formas menos “metódicas” de narração do
passado, dentre as quais a narrativa memorialista – na medida em que expressa de maneira
especial a experiência da historicidade. Justifica-se, assim, nossa aposta de tomar as
Memórias de Pedro Nava desde uma perspectiva “histórica”, isto é, do ponto de vista da
Teoria e História da Historiografia enquanto analítica da historicidade. Mas antes de partir
para a análise mais detida da obra que propomos investigar, é importante tecer algumas
considerações sobre a relação entre memória e história.

Conforme afirmamos acima, memória e história constituem formas específicas de


acesso ao passado. Elas possuem modos de ser particulares, mas não há consenso sobre como
se daria a relação entre elas. A perspectiva mais aceita atualmente argumenta que não há
oposição, mas sim um diálogo produtivo – ainda que mantendo as suas diferenças na forma de
acessar o passado. Fernando Catroga, por exemplo, soube bem explorar as interseções entre
elas, ao afirmar que:

Só a partir de uma concepção cientificista se pode aceitar esta radical


separação entre a memória e a historiografia. Assim, se é verdade que a
história vivida se distingue da história escrita, o certo é que outras
características, apresentadas como típicas da memória (seleção, finalismo,
presentismo, verossimilhança, representação) também se encontram no
trabalho historiográfico. (...) Afinal, a historiografia contemporânea também
opera com uma perspectiva não contínua de tempo e reconhece a
impossibilidade de se aceitar o vazio entre o sujeito-historiador e seu objeto. 4

Nem a história se configura como um discurso puramente “científico” do que houve,


nem a memória se exime da confrontação com as lembranças dos outros e com os vestígios do
3
ARAÚJO, História da Historiografia como analítica da historicidade, p. 41, grifos do autor.
4
CATROGA, F. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001, p. 40.
4

passado – uma característica que, como veremos, é bastante presente na narrativa de Pedro
Nava. Paul Ricoeur caracterizou como “indecidível” a questão da primazia entre memória e
história, mas destacando que ambas são modos legítimos de acesso ao passado: a memória
como matriz da história; a história instruindo a memória. Ambas contribuem para a
elaboração da experiência da historicidade (própria), palco do diálogo possível entre elas.5

Mas esse diálogo não apaga as especificidades e divergências entre elas, como a
questão e o lugar da verdade. Enquanto o texto historiográfico tem a pretensão de estabelecer
afirmações verdadeiras sobre o passado, utilizando para isso uma série de procedimentos
científicos, a memória, por sua vez, embora também tenha a mesma ambição veritativa,
encontra-se mais suscetível à suspeição do ouvinte/leitor e do próprio autor das memórias, já
que ela não põe entre parênteses “as paixões, emoções e afetos do sujeito-evocador” 6.
Enquanto na narrativa histórica são utilizados uma série de critérios de validação do seu relato
(formas dos argumentos, apresentação e confrontação de fontes, comentários de outros
historiadores, metodologia, notas de rodapé, etc.), na narrativa memorialista o critério
fundamental é o apelo à fidelidade e boa-fé do narrador-evocador. Essa diferença é decisiva
na forma como ambas representam o passado: a história pretende explicar e compreender,
utilizando uma série de procedimentos de cunho científico; diferentemente, a memória “será
sempre axiológica, fundacional, sacralizadora e reatualizadora de um passado que tende a
fundir, no presente, a subjetividade com a objetividade” 7. Ricoeur vai nessa mesma direção,
quando diferencia as pretensões de cada uma: a história de “representar em verdade o
passado”, a memória de “representar o passado com fidelidade”.8

Como foi dito, Baú de ossos foi publicado pela primeira vez em 1972, mas o projeto
de sua escritura iniciou-se em 1968, quando Nava contava quase 65 anos de idade e se
aposentava da carreira de médico reumatologista. Esse projeto foi levado a cabo por Nava até
a sua morte, em 13 de maio de 1984, totalizando seis obras completas 9. Cada uma dessas
obras contempla uma parte da formação de Pedro Nava, e vão desde as reminiscências dos
seus antepassados mais remotos, passando pela sua infância e juventude, e chegando até a sua
maturidade. Mas não se trata de uma narrativa linear, pois são constantes as suspensões do
eixo cronológico principal.

5
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
6
CATROGA. Memória, História e Historiografia, p. 39.
7
CATROGA. Memória, História e Historiografia, p. 40.
8
RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, p. 240-241.
9
Além de Baú de ossos (1972), Balão cativo (1973), Chão de ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo-das-trevas
(1981) e O círio perfeito (1983), além de 36 páginas escritas de Cera das almas, inéditas até 2006
5

No momento em que a obra foi escrita e publicada, o mundo assistia a grandes


transformações, que caracterizaram a famosa geração de 1968. Era o período de consolidação
e recrudescimento da ditadura militar, “que tentava tapar com a censura e a mentira qualquer
discurso inteligente sobre a história do país” 10, e que o próprio Nava elencava como um dos
fatores que o motivaram a escrever suas Memórias. O impacto desse contexto no livro se
percebe pelo próprio fato do autor fazer referências ao seu presente: “À hora em que escrevo
estas lembranças, há astronautas maculando a face da Lua com solas humanas. Pela segunda
vez”.11 Mas limitar nossa leitura histórica da sua obra a esses aspectos não apenas significaria
reduzir o projeto memorialístico naviano, como também limitaria as possibilidades de uma
leitura historiográfica de sua obra (no sentido da historicidade própria discutido acima).

A indicação de que tal leitura se mostra adequada é dada pelo próprio autor, quando,
refletindo sobre o sentido de sua escrita, afirma numa entrevista que “escrever memórias é
libertar-se, é fugir. Temos dois terrores, a lembrança do passado e o medo do futuro. Pelo
menos um, a lembrança do passado, é anulado pela catarse de passa-la para o papel”12.
Expressa-se aí o enlaçamento do passado e do futuro no presente, enlaçamento que aparece
sob o signo do terror e que o autor quer liberar pela experiência da catarse proporcionada pela
escrita das memórias. A evocação do passado responde a uma angústia, ansiosa de encontrar o
tempo perdido e dotá-lo de significação pela narrativa.

Assim, podemos seguir esta pista para propor a seguinte linha de raciocínio: a sua obra
visa (futuridade) expurgar as sombras do passado (o ter-sido) pela escrita (tornar-presente),
que pode dar novos sentidos às experiências vividas pelo evocador. Aqui, vale lembrar a
famosa tese de Paul Ricoeur: “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está
articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna
uma condição da existência temporal”13. É pela composição narrativa das suas memórias que
Nava procura conferir sentidos à experiência do tempo. Com isso, estamos propondo que a
escrita das suas lembranças (mesmo aquelas de caráter mais íntimo e pessoal) permite a Nava
atribuir sentidos não apenas para a sua identidade pessoal na discrepância do tempo, mas
expressa e elabora modos de compreensão da historicidade humana que transcendem o âmbito
da sua intimidade.

10
ARRIGUCCI JR., D. Móbile da memória. In: NAVA, P. Baú de Ossos. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p.
434.
11
NAVA, P. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 279.
12
Retirado de BOTELHO, A. As memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil. In: NAVA,
Pedro. Baú de Ossos. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p. 7.
13
RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010, v. 1, p. 93.
6

Nesse sentido, é interessante refletir sobre a dimensão fortemente coletiva das


Memórias de Pedro Nava. Embora o ato de lembrar seja uma faculdade estritamente pessoal,
elas sempre possuem como referência o mundo e os outros. Com efeito, o próprio fato de Baú
de ossos ter como eixo narrativo principal – entre muitas outras histórias que dele brotam – a
rememoração dos seus antepassados (muitos dos quais Pedro Nava não chegou a conhecer),
dá maior visibilidade à dimensão coletiva de suas memórias, Aliás, uma das inovações mais
significativas das Memórias de Nava seria, segundo José Maria Cançado, que elas extrapolam
uma certa tradição do memorialismo brasileiro em situar os acontecimentos rememorados sob
a gerência de um eu autoconsciente e contínuo, e de conter uma certa autoafirmação pessoal e
do grupo (família e classe social) com o qual o evocador se identifica. Ainda segundo o
crítico, a obra de Nava se direciona “para o aberto e para a universalização da memória e da
sua matéria”.14

Em Baú de ossos, o narrador-Nava enfatiza em vários momentos as descontinuidades


e pluralidades que formam a sua identidade pessoal, e também o acontecer histórico geral. Ao
reconhecer os seus familiares no seu próprio “jeito de ser”, percebe a “si mesmo como um
outro”, e as memórias dos antepassados estão entranhadas no seu próprio ser. Entretanto, vale
ressaltar que a dimensão coletiva da memória (e a alteridade como elemento constitutivo da
identidade pessoal) não se limita aos familiares, mas também faz referências aos grupos
sociais mais amplos em que Nava e seus parentes conviveram e, em vários momentos de Baú
de ossos, encontramos análises preciosas de interpretação do Brasil. Assinale-se, aqui, para
uma verdadeira peça de interpretação da “mineiridade” no início do segundo capítulo da obra.
Tais referências são tão importantes na obra que são partes constitutivas do próprio modo de
Nava narrar o passado e situar a si mesmo na dispersão do tempo. Aliás, esse modo
“heterobiográfico” de figuração da identidade pessoal não deixa de conter paralelo com a
forma de se imaginar a própria identidade brasileira, como aponta alguns de seus críticos. 15
Essa dimensão coletiva da memória e sua integração com a identidade pessoal, a qual vai
sendo tecida ao longo da narrativa, aparece logo na abertura do livro:

Eu sou um homem pobre do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se
não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta
pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o
nome de rua Principal e ficou sendo depois a rua Direita da Cidade de Juiz

14
CANÇADO, J. Memórias videntes do Brasil: a obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.
47.
15
ARRIGUCCI Jr. Móbile da memória; CANÇADO. Memórias videntes do Brasil.
7

de Fora. Nasci nessa rua, no número 170, em frente à mecânica, no sobrado


onde reinava minha avó materna.16

Desde o início, Nava se apresenta com referência a lugares espaciais e referências a


figuras históricas, como o bandeirante Garcia Rodrigues, que dirigiu a abertura do Caminho
Novo, e a Henrique Halfeld, um dos fundadores da cidade de Juiz de Fora e com quem sua
avó materna foi casada. De saída, o narrador-evocador se coloca não como um eu isolado,
mas pleno de historicidade e situado em relação aos outros. O autor compreende a si mesmo a
partir de referências “externas”, como a identificação de traços característicos de seus
antepassados na sua própria formação pessoal.

Além disso, Nava tinha claro que a dimensão coletiva da memória se impõe não
também o seu papel de fortalecer os laços de união entre os indivíduos e a permanência de
certas tradições. Além de coletiva no conteúdo, a memória é o fundamento da existência do
grupo social – e, nesse medida, da própria identidade do narrador:

A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos,
aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada
indivíduo e do grupo com ele estabelece contatos, correlações,
aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico
na construção da tradição familiar. [...] E com o evocado vem o mistério das
associações trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens,
fatos pretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era parte inseparável
e que também renasce quando ele revive – porque um e outro são condições
recíprocas.17

Essa ênfase na coletividade também se encontra no fato de Nava produzir suas


Memórias numa temporalidade que vai além do seu próprio nascimento, apropriando-se de
reminiscências que ele mesmo não produziu ou vivenciou diretamente, mas que são partes
constitutivas de suas memórias e da sua própria identidade. Para tanto, ele se vale de uma
enorme variedade de fontes: as histórias que lhe foram contadas pelos seus próceres, a
consulta em documentos escritos, bem como imagens e fotografias que Nava reuniu ao longo
de toda a vida, e que são elementos estruturantes de sua obra.

O uso constante de fontes já indica uma segunda aproximação entre memória e


história como modo de compreensão do passado. É possível ir além e afirmar que, ao longo
da narrativa, ambas se instruem mutuamente, em vez de se manterem em polos dicotômicos e
irreconciliáveis. Em certos momentos, esse diálogo se explicita, quando Nava faz nova

16
NAVA. Baú de ossos, p. 35.
17
NAVA. Baú de ossos, p. 39.
8

menção ao Caminho Novo que ligava Minas ao Rio de Janeiro, e para tanto faz referência à
obra histórica de Diogo de Vasconcellos, um importante historiador de Minas Gerais 18. O uso
desse recurso faz com que, por um lado, a memória se amplia e seja instruída pela
historiografia e, por outro, essa história ganhe vida na sua interseção com a memória.

Em outra passagem, Nava nos conta a história de seu avô paterno, que foi para o Rio
de Janeiro fugindo da grande seca de 1877 – que acometeu o Ceará e outras províncias do
Nordeste – e abriu na antiga capital uma casa comissária. O narrador esclarece que não teve
oportunidade de conhecer essa casa comissária, mas que havia visitado uma outra, cujo dono
era amigo de seu avô, e a partir desta é que afirma conjecturar o que poderia ser aquela de seu
avô. Mas, para auxiliá-lo, Nava também recorre a um outro tipo de fonte:

Não conheço descrição viva e curiosa das casas comissárias do Rio de


Janeiro como a que delas traçou meu tio afim Heitor Modesto d´Almeida,
com suas reminiscências e as de seu pai, o velho Maneco Modesto. [...] O
estudo de Heitor Modesto era resposta a um inquérito de Gilberto Freyre,
feito quando da preparação de Ordem e progresso. [...] Tive-a em mãos e é
um pouco de lembrança, um pouco pelas referências de Gilberto Freyre, que
rememoro o que ali se dizia das casas comissárias. 19

Mas essa imbricação não poderia levar a exageros. A obra de Nava não poderia ser
classificada como uma narrativa histórica em sentido estrito, e isso nem tanto pela ausência de
elementos formais, mas sobretudo pelo modo como o autor se apropria das fontes que utiliza:
elas estão ali para iluminar aspectos da própria identidade narrativa do sujeito-evocador, algo
que não acontece numa obra de história, que pressupõe justamente o distanciamento entre o
historiador e seu objeto. As perspectivas, motivações e objetivos com que cada discurso
manuseia e seleciona as fontes são sensivelmente distintas:

Atento agudamente nesses retratos no esforço de penetrar as pessoas que


conheci (umas bem, outras mal) e cujos pedaços reconheço e identifico em
mim. Nas minhas, nas deles, nas nossas inferioridades e superioridades.
Cada um compõe o Frankenstein hereditário com pedaços dos seus mortos.
Cuidando dessa gente em cujo meio nasci e de quem recebi a carga que
carrego (carga de pedra, de terra, lama, luz, vento, sonho, bem e mal) tenho
que dizer a verdade, só a verdade e se possível, toda a verdade. 20

Há nessa passagem outra questão que permite aprofundar o diálogo entre o discurso da
memória e da história: a declaração e o lugar da verdade na escrita das Memórias. Porém,
como vimos anteriormente, o lugar da verdade na narrativa memorial não é o mesmo da
18
______. Baú de ossos, p. 151.
19
NAVA. Baú de ossos, p. 89-90.
20
______. Baú de ossos, p. 243.
9

narrativa histórica. Nesta a imaginação se faz também presente na elaboração do passado, mas
está submetida à referência das fontes que ele dispõe. Sem fontes, aliás, não é possível o
trabalho historiador. No discurso memorial ocorre de forma diferente. A utilização das fontes
não representa obstáculo para a imaginação do narrador na reconstituição do passado – o que
se apresenta, aos olhos do historiador, como mais um fator de suspeição, mas que permite ao
sujeito-evocador explorar âmbitos mais profundos da existência humana, destacando as
nuances e detalhes que geralmente não são tematizados pela historiografia, ocupada em
descrever processos mais amplos.

Dessa forma, o passado rememorado ganha em vivacidade, que se expressa pela


atenção ao detalhe e ao inesperado (como as suas belas reflexões sobre o fenômeno da
memória involuntária), assim como o papel maior da imaginação no trabalho de
temporalização da experiência vivida. Um exemplo: apesar de não ter convivido com seu avô
paterno, Nava consegue reconstituir alguns aspectos da sua vida cotidiana, como o caminho
que fazia da casa ao trabalho: “Não é difícil imaginar como ele [seu avô] faria esse caminho
[da casa ao trabalho] se juntarmos à verdade o verossímil que não é senão um esqueleto de
verdade encarnado pela poesia”.21 Uma forma de aproximação do passado a partir de um olhar
mais microscópico e imaginativo, mas nem por isso menos legítima ou reveladora da
experiência do passado.

Ao propor juntar a verdade com o verossímil, Nava abre maior espaço para a
imaginação na refiguração do passado. Ao mesmo tempo, porém, o seu discurso está em
última instância sustentado pelo pacto estabelecido com o leitor, fundado numa relação
“frágil”, já que este possui somente a credibilidade do testemunho, isto é, acreditar na
fidelidade do narrador. Esse pacto de leitura se reflete não apenas pelas declarações
constantes de que está relatando “a verdade”, como também recorre à confrontação com as
lembranças dos outros. Ao relatar um caso envolvendo estudantes de medicina no Rio de
Janeiro, entre os quais seu pai e alguns amigos, o autor faz a seguinte ressalva: “Essa história
eu a ouvi de um contemporâneo de meu Pai, Levy Coelho da Rocha, médico em Belo
Horizonte. Se não estiver conforme, outro, do tempo, que a conte melhor”. 22 A memória não
se exime completamente dessa confrontação com os outros testemunhos, tampouco esta seria
uma característica exclusiva do discurso histórico.

21
NAVA. Baú de ossos, p. 91.
22
______. Baú de ossos, p. 248.
10

A vivacidade que o passado adquire nas Memórias também é produzida por aquilo que
alguns teóricos da história e da literatura denominam como produção de presença. Esse
conceito faz referência à dimensão material das coisas do mundo, isto é, o fato de que os
objetos ocupam um espaço e são tangíveis por mãos humanas ou sentidas pelo corpo – as
emoções, as sensações e os afetos. “’Presence’, in my view, is 'being in touch' - either literally
or figuratively - with people, things, events, and feelings that made you into the person you
are”.23 A presença faz referência a tudo aquilo que escapa ao domínio da linguagem – embora
a linguagem seja também capaz de produzir efeitos de presença –, mas que são também
elementos constitutivos da vida cotidiana e da forma como as pessoas se relacionam consigo
mesmas, com os outros e com o mundo.

O conceito de presença permite-nos perceber melhor uma característica bastante


presente na escrita naviana: o peso da corporeidade na experiência do passado. A dimensão
afetiva e sensual não está de modo algum submetida a uma interpretação puramente
“espiritual” do passado; pode-se dizer, inclusive, que Baú de ossos constitui uma obra
paradigmática de produção de presença do passado, e isso através de certas estratégias
narrativas utilizadas pelo autor, como a utilização extensiva de elementos dêiticos ou
ressaltando as sensações e afetos do narrador 24. Um belo exemplo está na descrição da
“batida”, uma espécie de rapadura típica do Ceará:

Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó


Nanoca é para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e
evocação, talqualmente a madeleine da tante Léonie. Cheiro de mato, ar de
chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina
na lenha dos fogões, gosto d´água de moringa nova – todos tem a sua
madeleine. [...]. Posso comer qualquer doce, na simplicidade do ato e de
espírito imóvel. A batida, não. A batida é viagem no tempo. [...] Docemente
mastigo, enquanto uma longa fila de sombras vem dos cemitérios para tomar
o lugar ao sol das ruas e à sombra das salas amigas. 25

É interessante notar como o autor aproxima o sistema do paladar e da evocação, como


se o gosto da batida fosse muito mais que um prazer momentâneo, mas uma verdadeira
“viagem no tempo”. Por meio das sensações, o passado se faz presente através da memória,
tal qual a famosa madeleine de Marcel Proust – um objeto qualquer que, por meio das
sensações, ativa uma memória de forma involuntária, que nos apossa de forma quase
inevitável, e faz com que o passado se “presentifica”, isto é, como se estivesse materialmente
23
RUNIA, E. Presence. History and Theory, v. 45, n. February, p. 1–29, 2006, p. 5.
24
GUMBRECHT, H. U. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado.
História da Historiografia, Ouro Preto, v. 3, n. 2, p. 10–22, 2009.
25
NAVA. Baú de ossos, p. 57-58.
11

presente. Assim, abre-se uma dimensão do passado que toca os nossos corpos, afetos e
sensações.

Este trabalho partiu do princípio que a historicidade própria do Dasein pode ser
elaborada por outras vias que não seja o discurso historiográfico “canônico”. A memória, ou
melhor, a narrativa memorial, apresentou-se como um suporte privilegiado para essa reflexão.
Sendo ela uma forma de apropriação e elaboração da experiência do tempo diferente do que
faz a história, ambas mantém entre si relações profundas que problematizam uma certa visão
dicotômica entre elas. Nesse sentido, Baú de ossos nos pareceu uma fonte preciosa para se
pensar a questão da historicidade (própria) do humano. Como sugere um dos críticos da obra:
“o grande feito de Nava – enigma de sua arte – parece ser o de arrancar o passado da
imobilidade da coisa morta”.26 Devido à própria natureza deste trabalho, preferimos antes
levantar algumas possibilidades de reflexão, do que propriamente fechar questão sobre o
tema. Trata-se, portanto, de um trabalho inacabado, mas que procurou apontar alguns
caminhos para uma reflexão mais detida, além de ter a modesta intenção de contribuir para a
História da Historiografia e o debate sobre memória e história.

26
ARRIGUCCI Jr. Móbile da memória, p. 473.

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