Resumo: Estudo de caráter introdutório da obra Baú de ossos (1972) de Pedro Nava, com
foco na questão da historicidade e na relação entre história e memória.
Palavras-chave: Historicidade, Memorialismo, Historiografia
Abstract: An introductory essay on Pedro Nava´s Baú de ossos (1972), focusing on the
question of the historicity and the relation betweem history and memory.
Keywords: Historicity, Memorialism, Historiography
stricto sensu. É o que propõe o professor Valdei Lopes Araújo, quando afirma, a partir da
fundamentação teórica de Martin Heidegger, que a História da Historiografia deve se ocupar
sobretudo em analisar um certo conjunto de fenômenos que podem ser agrupados pelo
conceito de historicidade, definido como “a estrutura do acontecer humano, ou a
temporalização de sua temporalidade”.1
Na maioria das vezes, acusa Heidegger, nos encontramos numa “compreensão vulgar
do tempo” segundo a qual imaginamos o homem como um ente simplesmente dado “no
tempo”, como se este fosse uma dimensão do espaço, que faz ocultar sua constituição
originária. Tal compreensão vulgar define o tempo como uma mera sucessão de “agoras”
quaisquer, o que leva a outro problema de se confundir a existência/realidade com o ser-no-
presente, como se este fosse a única dimensão propriamente “real” do tempo. À
“compreensão vulgar do tempo” corresponderia também uma “compreensão vulgar da
história”, pensada como uma mera sucessão de acontecimentos dentro de um modelo “vulgar”
do tempo. Assim, seria função da historiografia apresentar a ligação entre passado e presente,
sendo este o ponto de referência para se interpretar o que se passou.
1
ARAUJO, V. L. DE. História da historiografia como analítica da historicidade. História da Historiografia,
Ouro Preto, v. 12, n. agosto, p. 34–44, 2013, p. 39, grifos do autor.
2
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis (RJ), Bragança Paulista (SP): Editora Vozes, Editora Universitária
São Francisco, 2012, p. 307, grifos do autor.
3
humano, bem como o desvelamento do modo de ser da história, transformando-se então numa
analítica da historicidade, que
passado – uma característica que, como veremos, é bastante presente na narrativa de Pedro
Nava. Paul Ricoeur caracterizou como “indecidível” a questão da primazia entre memória e
história, mas destacando que ambas são modos legítimos de acesso ao passado: a memória
como matriz da história; a história instruindo a memória. Ambas contribuem para a
elaboração da experiência da historicidade (própria), palco do diálogo possível entre elas.5
Mas esse diálogo não apaga as especificidades e divergências entre elas, como a
questão e o lugar da verdade. Enquanto o texto historiográfico tem a pretensão de estabelecer
afirmações verdadeiras sobre o passado, utilizando para isso uma série de procedimentos
científicos, a memória, por sua vez, embora também tenha a mesma ambição veritativa,
encontra-se mais suscetível à suspeição do ouvinte/leitor e do próprio autor das memórias, já
que ela não põe entre parênteses “as paixões, emoções e afetos do sujeito-evocador” 6.
Enquanto na narrativa histórica são utilizados uma série de critérios de validação do seu relato
(formas dos argumentos, apresentação e confrontação de fontes, comentários de outros
historiadores, metodologia, notas de rodapé, etc.), na narrativa memorialista o critério
fundamental é o apelo à fidelidade e boa-fé do narrador-evocador. Essa diferença é decisiva
na forma como ambas representam o passado: a história pretende explicar e compreender,
utilizando uma série de procedimentos de cunho científico; diferentemente, a memória “será
sempre axiológica, fundacional, sacralizadora e reatualizadora de um passado que tende a
fundir, no presente, a subjetividade com a objetividade” 7. Ricoeur vai nessa mesma direção,
quando diferencia as pretensões de cada uma: a história de “representar em verdade o
passado”, a memória de “representar o passado com fidelidade”.8
Como foi dito, Baú de ossos foi publicado pela primeira vez em 1972, mas o projeto
de sua escritura iniciou-se em 1968, quando Nava contava quase 65 anos de idade e se
aposentava da carreira de médico reumatologista. Esse projeto foi levado a cabo por Nava até
a sua morte, em 13 de maio de 1984, totalizando seis obras completas 9. Cada uma dessas
obras contempla uma parte da formação de Pedro Nava, e vão desde as reminiscências dos
seus antepassados mais remotos, passando pela sua infância e juventude, e chegando até a sua
maturidade. Mas não se trata de uma narrativa linear, pois são constantes as suspensões do
eixo cronológico principal.
5
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
6
CATROGA. Memória, História e Historiografia, p. 39.
7
CATROGA. Memória, História e Historiografia, p. 40.
8
RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, p. 240-241.
9
Além de Baú de ossos (1972), Balão cativo (1973), Chão de ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo-das-trevas
(1981) e O círio perfeito (1983), além de 36 páginas escritas de Cera das almas, inéditas até 2006
5
A indicação de que tal leitura se mostra adequada é dada pelo próprio autor, quando,
refletindo sobre o sentido de sua escrita, afirma numa entrevista que “escrever memórias é
libertar-se, é fugir. Temos dois terrores, a lembrança do passado e o medo do futuro. Pelo
menos um, a lembrança do passado, é anulado pela catarse de passa-la para o papel”12.
Expressa-se aí o enlaçamento do passado e do futuro no presente, enlaçamento que aparece
sob o signo do terror e que o autor quer liberar pela experiência da catarse proporcionada pela
escrita das memórias. A evocação do passado responde a uma angústia, ansiosa de encontrar o
tempo perdido e dotá-lo de significação pela narrativa.
Assim, podemos seguir esta pista para propor a seguinte linha de raciocínio: a sua obra
visa (futuridade) expurgar as sombras do passado (o ter-sido) pela escrita (tornar-presente),
que pode dar novos sentidos às experiências vividas pelo evocador. Aqui, vale lembrar a
famosa tese de Paul Ricoeur: “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está
articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna
uma condição da existência temporal”13. É pela composição narrativa das suas memórias que
Nava procura conferir sentidos à experiência do tempo. Com isso, estamos propondo que a
escrita das suas lembranças (mesmo aquelas de caráter mais íntimo e pessoal) permite a Nava
atribuir sentidos não apenas para a sua identidade pessoal na discrepância do tempo, mas
expressa e elabora modos de compreensão da historicidade humana que transcendem o âmbito
da sua intimidade.
10
ARRIGUCCI JR., D. Móbile da memória. In: NAVA, P. Baú de Ossos. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p.
434.
11
NAVA, P. Baú de ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 279.
12
Retirado de BOTELHO, A. As memórias de Pedro Nava: autorretrato e interpretação do Brasil. In: NAVA,
Pedro. Baú de Ossos. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p. 7.
13
RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010, v. 1, p. 93.
6
Eu sou um homem pobre do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se
não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta
pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o
nome de rua Principal e ficou sendo depois a rua Direita da Cidade de Juiz
14
CANÇADO, J. Memórias videntes do Brasil: a obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.
47.
15
ARRIGUCCI Jr. Móbile da memória; CANÇADO. Memórias videntes do Brasil.
7
Além disso, Nava tinha claro que a dimensão coletiva da memória se impõe não
também o seu papel de fortalecer os laços de união entre os indivíduos e a permanência de
certas tradições. Além de coletiva no conteúdo, a memória é o fundamento da existência do
grupo social – e, nesse medida, da própria identidade do narrador:
A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos,
aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada
indivíduo e do grupo com ele estabelece contatos, correlações,
aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico
na construção da tradição familiar. [...] E com o evocado vem o mistério das
associações trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens,
fatos pretéritos, toda a camada da vida de que o vizinho era parte inseparável
e que também renasce quando ele revive – porque um e outro são condições
recíprocas.17
16
NAVA. Baú de ossos, p. 35.
17
NAVA. Baú de ossos, p. 39.
8
menção ao Caminho Novo que ligava Minas ao Rio de Janeiro, e para tanto faz referência à
obra histórica de Diogo de Vasconcellos, um importante historiador de Minas Gerais 18. O uso
desse recurso faz com que, por um lado, a memória se amplia e seja instruída pela
historiografia e, por outro, essa história ganhe vida na sua interseção com a memória.
Em outra passagem, Nava nos conta a história de seu avô paterno, que foi para o Rio
de Janeiro fugindo da grande seca de 1877 – que acometeu o Ceará e outras províncias do
Nordeste – e abriu na antiga capital uma casa comissária. O narrador esclarece que não teve
oportunidade de conhecer essa casa comissária, mas que havia visitado uma outra, cujo dono
era amigo de seu avô, e a partir desta é que afirma conjecturar o que poderia ser aquela de seu
avô. Mas, para auxiliá-lo, Nava também recorre a um outro tipo de fonte:
Mas essa imbricação não poderia levar a exageros. A obra de Nava não poderia ser
classificada como uma narrativa histórica em sentido estrito, e isso nem tanto pela ausência de
elementos formais, mas sobretudo pelo modo como o autor se apropria das fontes que utiliza:
elas estão ali para iluminar aspectos da própria identidade narrativa do sujeito-evocador, algo
que não acontece numa obra de história, que pressupõe justamente o distanciamento entre o
historiador e seu objeto. As perspectivas, motivações e objetivos com que cada discurso
manuseia e seleciona as fontes são sensivelmente distintas:
Há nessa passagem outra questão que permite aprofundar o diálogo entre o discurso da
memória e da história: a declaração e o lugar da verdade na escrita das Memórias. Porém,
como vimos anteriormente, o lugar da verdade na narrativa memorial não é o mesmo da
18
______. Baú de ossos, p. 151.
19
NAVA. Baú de ossos, p. 89-90.
20
______. Baú de ossos, p. 243.
9
narrativa histórica. Nesta a imaginação se faz também presente na elaboração do passado, mas
está submetida à referência das fontes que ele dispõe. Sem fontes, aliás, não é possível o
trabalho historiador. No discurso memorial ocorre de forma diferente. A utilização das fontes
não representa obstáculo para a imaginação do narrador na reconstituição do passado – o que
se apresenta, aos olhos do historiador, como mais um fator de suspeição, mas que permite ao
sujeito-evocador explorar âmbitos mais profundos da existência humana, destacando as
nuances e detalhes que geralmente não são tematizados pela historiografia, ocupada em
descrever processos mais amplos.
Ao propor juntar a verdade com o verossímil, Nava abre maior espaço para a
imaginação na refiguração do passado. Ao mesmo tempo, porém, o seu discurso está em
última instância sustentado pelo pacto estabelecido com o leitor, fundado numa relação
“frágil”, já que este possui somente a credibilidade do testemunho, isto é, acreditar na
fidelidade do narrador. Esse pacto de leitura se reflete não apenas pelas declarações
constantes de que está relatando “a verdade”, como também recorre à confrontação com as
lembranças dos outros. Ao relatar um caso envolvendo estudantes de medicina no Rio de
Janeiro, entre os quais seu pai e alguns amigos, o autor faz a seguinte ressalva: “Essa história
eu a ouvi de um contemporâneo de meu Pai, Levy Coelho da Rocha, médico em Belo
Horizonte. Se não estiver conforme, outro, do tempo, que a conte melhor”. 22 A memória não
se exime completamente dessa confrontação com os outros testemunhos, tampouco esta seria
uma característica exclusiva do discurso histórico.
21
NAVA. Baú de ossos, p. 91.
22
______. Baú de ossos, p. 248.
10
A vivacidade que o passado adquire nas Memórias também é produzida por aquilo que
alguns teóricos da história e da literatura denominam como produção de presença. Esse
conceito faz referência à dimensão material das coisas do mundo, isto é, o fato de que os
objetos ocupam um espaço e são tangíveis por mãos humanas ou sentidas pelo corpo – as
emoções, as sensações e os afetos. “’Presence’, in my view, is 'being in touch' - either literally
or figuratively - with people, things, events, and feelings that made you into the person you
are”.23 A presença faz referência a tudo aquilo que escapa ao domínio da linguagem – embora
a linguagem seja também capaz de produzir efeitos de presença –, mas que são também
elementos constitutivos da vida cotidiana e da forma como as pessoas se relacionam consigo
mesmas, com os outros e com o mundo.
presente. Assim, abre-se uma dimensão do passado que toca os nossos corpos, afetos e
sensações.
Este trabalho partiu do princípio que a historicidade própria do Dasein pode ser
elaborada por outras vias que não seja o discurso historiográfico “canônico”. A memória, ou
melhor, a narrativa memorial, apresentou-se como um suporte privilegiado para essa reflexão.
Sendo ela uma forma de apropriação e elaboração da experiência do tempo diferente do que
faz a história, ambas mantém entre si relações profundas que problematizam uma certa visão
dicotômica entre elas. Nesse sentido, Baú de ossos nos pareceu uma fonte preciosa para se
pensar a questão da historicidade (própria) do humano. Como sugere um dos críticos da obra:
“o grande feito de Nava – enigma de sua arte – parece ser o de arrancar o passado da
imobilidade da coisa morta”.26 Devido à própria natureza deste trabalho, preferimos antes
levantar algumas possibilidades de reflexão, do que propriamente fechar questão sobre o
tema. Trata-se, portanto, de um trabalho inacabado, mas que procurou apontar alguns
caminhos para uma reflexão mais detida, além de ter a modesta intenção de contribuir para a
História da Historiografia e o debate sobre memória e história.
26
ARRIGUCCI Jr. Móbile da memória, p. 473.