Você está na página 1de 21

Os fundadores da historiografia grega antiga:

reflexões sobre história e temporalidade

Lucas Ventura da Silva *


Pedro Dideco Antunes Guettnauer **

RESUMO: Este artigo tem por objetivo refletir sobre o início da historiografia grega, focando em
seus fundadores, Heródoto, Tucídides e Políbio, a partir do conceito de espaço de experiência, pro-
posto pelo historiador Reinhart Koselleck. Com base na abordagem exploratória e qualitativa, pre-
tendemos demonstrar, a partir da temporalidade, como os historiadores gregos tinham o espaço
vivido como ponto fundamental em suas produções, construindo, assim, um novo gênero, antes
desconhecido, a história.

PALAVRAS-CHAVE: História. Historiografia grega. Temporalidade.

THE FOUNDERS OF ANCIENT GREEK HISTORIOGRAPHY:


REFLECTIONS ON HISTORY AND TEMPORALITY

ABSTRACT: This article aims to reflect on the beginning of greek historiography, focusing on its
founders, Heródoto, Tucídides and Políbio, from the concept of space of experience, analyzed by
the historical Reinhart Koselleck. Based on the exploratory and qualitative approach, we intend to
demonstrate, based on temporality, how greek historians had space as a fundamental point in their
productions, thus building a new genre, previously unknown, a history.

KEYWORDS: History. Greek historiography. Temporality.

***
171

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Introdução

R
efletir sobre história e temporalidade nos possibilita perceber as dinâmicas mais
particulares no tempo: a compreensão dos movimentos, mudanças e rupturas na
temporalidade histórica. E principalmente, nos faz compreender que tudo o que
hoje temos por realidade, nem sempre foi assim. No que diz respeito à história e à produção histori-
ográfica, esse caráter de mutabilidade aparece com notoriedade.
Na historiografia identificamos, por meio de sua própria história, que os interesses e necessi-
dades da cada época foram se manifestando nas diferentes obras em diferentes períodos do tempo.
Se pegarmos um caso específico na transição dos séculos XIX e XX, notaremos que em dado mo-
mento o conhecimento histórico esteve voltado a uma ideia de evolução progressiva da sociedade,
onde houve todo o processo de cientificização do conhecimento sobre o tempo. Ao passo que, em
outro momento, a história se interessou por modelos fundamentalmente econômicos, onde a ideia
de acúmulo de bens materiais, criados por um sistema de consumo, não correspondia mais a realida-
de objetiva. Qual é a mais importante? A história científica do progresso ou a história que analisa a
economia e a política? Pois bem, essas questões não existem, porque é uma dinâmica condicionada
pelo próprio correr do tempo, onde as necessidades e os anseios são temporais e se apresentam de
maneiras distintas nas épocas.
É nesse sentido, de percepção da mutabilidade da historiografia, que trazemos um artigo que
tem por objetivo analisar o princípio do registro histórico sistematizado, no caso grego. As próximas
páginas versam sobre reflexões em história e temporalidade, sobre os três historiadores fundadores
da historiografia grega antiga: Heródoto de Halicarnasso (c. 484 – c. 425 a.C.), Tucídides de Atenas
(460 a.C. – 404 a.C.) e Políbio de Megalópolis (200 a.C. – 118 a.C.). Eles propuseram mecanismos à
escrita da história que foram fundamentais para o desenvolvimento posterior do campo.

A antiguidade clássica e suas histórias: tempo e temporalidade no tripé da his-


toriografia grega

O tempo sempre foi motivo de diversas discussões, é tema pujante no pensamento historio-
172

gráfico. Compreender esse fenômeno não é uma tarefa fácil. Afinal, o que seria o tempo? Mas antes
de pensarmos essa conceituação, vamos aqui nos arriscar definir o que é história. Pensar este concei-

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
to é, antes de tudo, pensar em uma ideia bastante polissêmica e mutável. A história, no decorrer de
sua própria trajetória temporal, teve diversos significados, um mais diferente do que o outro. No
entanto, na nossa perspectiva atual, o conceito pode ser relacionado a três definições distintas: a
história ligada à temporalidade, no sentido de passado; mas também pode ser vinculada a narrativas
populares, por fim, a história enquanto possibilidade de reflexão científica, disciplina acadêmica e
campo de conhecimento, dotada de teorias e métodos.
Seguindo essa proposta de polissemia, o conceito de tempo também nos traz muitos signifi-
cados. “Para historiadores, tempo é tanto o elemento de articulação da/na narrativa historiográfica
como é vivência civilizacional e pessoal”1. Para cada grupo social, cultura ou civilização, em diferen-
tes períodos da história, houve uma concepção de tempo. O fato é que ele sempre esteve presente
entre os povos, manifestando-se de maneiras distintas em cada um deles. Nesse sentido, voltaremos
nosso olhar para antiguidade na Grécia clássica e tentaremos compreender as noções de tempo ali
representadas.

Heródoto de Halicarnasso (c. 484 – c. 425 a.C.)

Na antiguidade, tivemos um notável personagem que propôs outras formas de representa-


ção, apreensão e registro do tempo. François Dosse defende que Heródoto de Halicarnasso delineia
um projeto de ruptura: o nascimento de um novo gênero, a história:

Heródoto substitui o reinado de aedo – o poeta contador de lendas e distribuidor do kleos (a glória
imortal para os heróis) – pelo trabalho da pesquisa (historiê), executado por um personagem até então
desconhecido, o histor, que assume a tarefa de retardar o esquecimento dos rastros na atividade dos
homens.2

Esta história, empreendida por Heródoto, é pautada em registros oculares de seu contexto,
na busca da preservação da memória, principalmente da memória vivida, das atitudes de homens e
de tudo aquilo que os cercavam. Nesse sentido, essa história nascente, tornou-se um potente ins-
trumento moralizante e moralizador, sustentado em exemplos de grandes personagens de guerra,
173

1GLEZER, Raquel. “Tempo e História”. Cienc. Cult. Campinas, vol.54, n.2, 2002. ISSN 2317-6660, p. 22-23.
2DOSSE, François. A História. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 8-9.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
figuras essas que, com o tempo, deixaram de ser os deuses do Olimpo e passaram ser a matéria hu-
mana.
Decerto, Heródoto inova, humanizando a noção temporal, substitui os deuses e se coloca
como autor da narrativa histórica. O tempo, a partir disso, passa ser construído de outra maneira,
torna-se experiência sensível, aquilo que pode ser vivido e visualizado pelo o humano. É perceptível
em sua obra a proposta do registro com base no que foi visto, onde a verdade encontrava-se a frente
dos olhos do homem.
O professor Alberto da Costa e Silva, em seu livro Imagens da África, traz logo nas primeiras
páginas um dos relatos do historiador grego em Méore3.

Fui até Elefantina, a fim de ver o que pudesse com os meus próprios olhos, mas para as terras que se
estendem mais para o sul tive de me contentar com o que me disseram em resposta às minhas per-
guntas. [...] Ao sul de Elefantina, o país é habitado por etíopes4, que ocupavam a metade [da ilha] de
Tachampso, a outra metade pertencendo aos egípcios. Acima da ilha há um grande lago e nas praias
ao seu redor vivem tribos nômades de etíopes. Depois de atravessar o lago, voltamos ao Nilo, que
nele deságua. Nesse ponto deve-se desembarcar e viajar ao longo o banco do rio durante quarenta di-
as, por causa das rochas aguçadas, algumas a mostrar-se acima das águas e outras no mesmo nível
destas, o que torna o rio impraticável para embarcações. Após esse percurso de quarenta dias por ter-
ra, volta-se ao barco e, doze dias depois, chega-se a uma grande cidade chamada Méroe, que se afirma
ser a capital dos etíopes.5

Com o trecho acima citado, percebemos a preocupação de Heródoto em uma “atestação da


verdade”, onde a narrativa do tempo foi condicionada no ver, constituindo fator primordial para o
conhecimento: “É ali que encontra as raízes da humanização do tempo efetivo, a participação do
homem numa temporalidade sensível, ao passo que o mito ou a lenda exibiam ciclos atemporais ou
circulares”6.

3A cidade de Méore foi capital do reino de Cuxe, na Núbia. Foi um importante centro caravaneiro e produtor de ferro.
Cf. COSTA E SILVA, Alberto da. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2011.
174

4Palavra aplicava-se aos negros do período.


5COSTA E SILVA, Alberto da. Imagens da África: da Antiguidade ao século XIX.1 ed. São Paulo: Penguin, 2012, p. 17-

18.
6DOSSE, François. op. cit., p. 9-10.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Com essa nova possibilidade de representação e percepção do tempo, outras formas de rela-
ção entre o já vivido enquanto passado e as possibilidades de futuro foram surgindo. Nesse sentido,
o espaço de experiência humano foi se tornando momento propício para seguir os grandes exem-
plos dos grandes personagens e que, sobretudo, não fossem repetidos os supostos erros de um tem-
po já experimentado, alterando, portanto, fortemente as noções de futuro como horizonte de expec-
tativas.7
Assim, compreendendo a temporalidade enquanto um diálogo entre passado, presente e fu-
turo, percebemos, dessa forma, que após o processo de ruptura investido por Heródoto, a apreensão
temporal foi ressignificada. No entanto, é importante dizer que o tempo é uma construção cultural,
sendo vivido e notado de formas distintas em diferentes momentos e lugares, isto é, toda esta mu-
dança que estamos discutindo não aconteceu repentinamente, pelo contrário, foi se apresentando
gradualmente, sento compreendida enquanto um processo.
Este movimento que estamos marcando, deve ser entendido em um contexto mais amplo,
onde não só a história estava surgindo enquanto campo de acontecimentos, mas também a geografia
em Hecateu de Mileto (550 a.C. – 476 a.C.), a filosofia e o direito. As formas de representação e
inovação do pensamento estavam altamente ligadas a um espaço de experiência próprio e particular:
o processo do surgimento da pólis grega. Esse ponto não pode ser visto como secundário, pois mo-
dificou significativamente as relações do humano entre si e com o mundo, portanto, com o tempo.
A pólis, na afirmação de uma ideia cidadã, nos remete e nos faz pensar em um mundo que
tende ser humanizado e humanizador, que alterou as relações do indivíduo, não só entre si, mas,
principalmente, com suas divindades. Vale ressaltar que não significou a negação total dos deuses,
mas alterou consideravelmente a relação com o mesmo. O universo de Heródoto, a pólis do mundo
grego do século V a.C., é mais humanista que Homero (928 a.C. – 898 a.C.). Esse mesmo universo
que clamava por outro discurso, possibilitou a criação de uma narrativa de verdade na afirmação de
uma embrionária identidade cidadã e na persistência da diferença de sentido entre o mythos e o logos:

Com a filosofia surge a preocupação com o ser e com a totalidade do real, visível e invisível, mortal e
imortal e com a história, a preocupação em fixar aquilo que valia a pena ser lembrado sob a ótica
175

7Sobre os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas, Cf. KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de
experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas”. In:______. Futuro Passado: Contribuição à semântica
dos tempos históricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro:
Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006. p. 305-327.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
humana. Essa significativa alteração não pode ser pensada sem a pólis e sua inerente exigência de di-
ferenciação entre o mythos e o logos que caracterizava o nascimento de palavra-diálogo.8

A passagem do mythos ao logos é um processo marcado na historiografia como início da pos-


sibilidade narrativa de humanização do tempo. O mito remonta uma proximidade com o cosmos em
uma perspectiva mágico-religiosa, onde a temporalidade dos homens mostrava-se em equilíbrio dire-
to com a instância cósmica, de forma que homens e deuses apresentavam definições imbricadas,
estando próximos um do outro. Os mitos na Grécia não estavam presentes única e exclusivamente
no divino, pelo contrário, eles permeavam vários aspectos da vida do sujeito, desde suas dores, me-
dos e sentimentos até seu modo de vida e sua ética. Nesse sentido, o que Heródoto fez, e se apre-
sentou posteriormente com clareza, foi compreender e registrar o mundo social de outra forma, não
totalmente desligada do mundo mágico-religioso, mas apresentou um conhecimento do mundo par-
tindo enquanto objeto de análise e narrativa os próprios habitantes desse mundo, os homens.
É incerto afirmar se Heródoto tinha essa diferenciação temporal clara. Possivelmente não,
uma vez que a distinção entre o mythos e logos só veio a acontecer mais tarde. A historiadora, já citada,
Flávia Maria Shelee Eyler, defende que nem mesmo os gregos tinham uma noção unívoca desses
conceitos. Defende que “o termo mythos, deste as epopéias até a primeira metade do século V a.C.,
era sinônimo de palavra”9 , isto é, o mesmo que logos. Apenas com Píntaro, poeta grego, a ideia de
mythos adquiriu sentido de palavra sedutora e de verdade duvidosa.
Heródoto tornou-se amplamente conhecido por conta de sua História, obra distribuída em
nove livros. Ele narrava o que percebia em seu presente, as Guerras Médicas10. Na segunda metade
do século V a.C., quando começou a escrever sua obra, houve a preocupação com os conflitos entre
os gregos e os povos bárbaros. Por mais que tenha existido ali uma preocupação com a afirmação
grega na luta contra os bárbaros, Heródoto trouxe consigo uma proposta bastante diferente da epo-
péia de Homero. Ao contrário da obra homérica, o autor de História lançou mão do discurso e as-
sumiu o papel de construtor principal da narrativa. Logo no princípio de sua obra o autor grego de-
clara sua finalidade central:

8EYLER, Flávia Maria Schelee. “Heródoto de Halicarnasso (484 a.C. – 430/420 a.C)”. In: PARADA, Maurício (Org.).

Os historiadores clássicos da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio, 2013, p. 10.


176

9Ibid., p. 18.
10 Guerras Médicas, Persas ou Greco-Persas são os nomes dados aos conflitos entre os antigos gregos e o Império de

Aquemênida, considerado o primeiro Império Persa, durante o século V a.C. ocorridos na região do mediterrâneo. Os
conflitos surgiram com o objetivo de conter a expansão Persa em direção ao Ocidente.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações
praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos
Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os
motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros.11

Não é pouco dizer que o espaço de experiência vivido e enfrentado por Heródoto já não es-
tava mais tão sustentado na afirmação das divindades míticas, tendo como pano de fundo o nascente
mundo político da cidade grega. “Ele vivia na pólis, uma criação grega que se inicia ainda no tempo
de Homero no século VIII a.C., como uma tentativa de minimizar a interferência divina constante e
imprevisível nas ações humanas”12 . É importante reiterar, portanto, que esse processo não se apre-
sentou como um abandono das divindades, mas sim, ditou outras possibilidades de relação com o
mundo e com o tempo, dessa forma, com a temporalidade.
Para tentar pensar as causas e os motivos da Guerra, Heródoto partiu de um pressuposto
bastante próximo do trazido por Homero na Ilíada. Vemos que, nesse sentido, ele ainda continuou
vinculado a uma percepção mítica grega. Todavia, sua relação com os mitos aconteceu de maneira
distinta, tendo em vista, para que ele pudesse trazer legitimidade e veracidade a sua obra, era neces-
sário criar um arcabouço metodológico fundamentalmente humano por meio do qual pudesse pen-
sar as fontes e selecioná-las.
O escritor da História foi um viajante, passou pelo norte, até o Mar Negro e a região da atual
Ucrânia, além de ter conhecido o norte da África e a atual Palestina. Toda sua trajetória possibilitou
o registro e descrição de várias culturas e grupos humanos, algumas ainda pouco conhecidas, exem-
plo disso são os pigmeus africanos. Sobre esse grupo, o professor Alberto da Costa e Silva traz mais
um relato do historiador grego:

[Dois jovens líbios resolveram explorar o deserto em busca da nascente do Nilo.] Com boas provi-
sões de água e de víveres, eles percorreram essa região, chegaram àquela onde vivem os animais sel-
vagens e, depois, começaram a caminhar pelo deserto, com o zéfiro a soprar-lhes na face. Tendo cru-
zado, no decorrer de muitos dias, uma grande extensão de areia, viram finalmente numa planura al-
gumas árvores. Chegaram junto de uma delas e começaram a lhe colher os frutos. Estavam nisso
177

11HERÓDOTO. História. Tradução: Pierre Henri Larcher. eBooks Brasil. 2006, p. 30.
12EYLER, Flávia Maria Schelee. op. cit., p. 11.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
quando foram atacados por uma gente pequenina, mais baixa do que os homens de estatura média.
Capturados pelos assaltantes, que falavam uma língua incompreensível, os dois líbios foram levados
por vastos alagadiços até um vilarejo onde todos eram baixinhos e de pele negra. A aldeia ficava à
margem de um grande rio, no qual havia crocodilos.13

Outro ponto que merece ser levantado, está no processo de investigação empreendido por
Heródoto. A formulação do discurso presente em sua obra traz consigo importantes marcas da tra-
dição oral. A oralidade é trazida como uma espécie de “fazer história”, altamente vinculada ao tes-
temunho visual. No entanto, não podemos dizer que sua obra foi totalmente fundamentada no oral,
ele utilizou da oralidade enquanto instrumento integrante de sua História, mas não se limitou ao “ou-
vir dizer” e trouxe como fator principal para sua construção discursiva o testemunho visual:

Assim, a narrativa histórica pretende fazer crer que o olho escreve, o que leva a conceder o primado à
percepção, à oralidade, sobre a escrita, que é apenas secundária. Quando se falta o ver, resta a possi-
bilidade do recurso ao que ouvimos dizer, o que ainda reforça a preeminência da oralidade.14

Podemos perceber que o espaço temporal onde vivia Heródoto era, de certa forma, favorá-
vel para uma possibilidade de pensamento sustentada em algo mais objetivo e sistemático. “Regis-
tramos também que o conceito grego de natureza (physis), naquele momento, obrigava o pensamento
a ultrapassar as experiências sensoriais e exigia uma compreensão por meio de uma investigação
empírica”15. Dessa maneira, então, fica clara a existência da necessidade de assimilação dos fenôme-
nos por meio da observação, trazendo, assim, outro caráter na percepção das coisas e do tempo.
A História de Heródoto significou pesquisa e investigação sobre os reais motivos dos confli-
tos entre os gregos e os povos considerados bárbaros. Ele humanizou a temporalidade na constru-
ção do tempo histórico. Não à toa, em sua Oratória, Cícero o batizou como o “pai da história”. O
grego que fez de sua produção uma alegoria investigativa, constituiu uma obra que não somente
nasceu para preservar a memória dos acontecimentos e de homens reais, mas também substituir o
texto poético da exaltação de deuses por um texto relato fundador da Clio, onde possibilitou a cons-
178

13COSTA E SILVA, Alberto da. op. cit., p. 18-19.


14DOSSE, François. op. cit., p .10.
15EYLER, Flávia Maria Schelee. op. cit.,p. 13.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
trução de um novo conceito que se apresentou e vem se apresentado até hoje, motivo de discussões
e debates acerca da compreensão do mundo e das coisas, a história.

Tucídides de Atenas (460 a.C. – 404 a.C.)

Tucídides ou Tucídides de Atenas é mais um autor que viveu o século V a.C. e isso pode nos
dizer muito. Ele escreveu o que observou em sua trajetória de vida, sendo sua obra uma espécie de
registro daquele que testemunhou diretamente os acontecimentos de sua época. Acompanhou passo
a passo do conflito entre as cidades de Esparta e Atenas, lideres respectivamente das ligas do Pelo-
poneso de Delos, a conhecida Guerra do Peloponeso.
Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides empreendeu uma história dotada de certe-
zas e concretude, investindo em uma narrativa que instiga taxativamente o leitor que aquilo que está
sendo lido é verdadeiro e preciso, pois quem o escreveu viveu a guerra inteira e acompanhou o cur-
so dos acontecimentos. François Dosse16 defende que o historiador grego faz da verdade a razão de
ser do seu texto, estando na busca da exatidão dos fatos, no que efetivamente aconteceu. Nesse sen-
tido, o autor compôs um texto o qual se apresenta na fala dos eventos, dando voz a tudo aquilo que
se manifestava enquanto palpável, onde os fatos falavam por si:

Delimitando o campo de investigação ao que teria percebido, Tucídides reduz a operação historiográ-
fica a uma restituição do tempo presente, resultante de uma supressão do narrador, que se retira para
deixar que os fatos falem melhor. No próprio nascimento do gênero histórico, portanto, encontra-
mos essa ilusão de uma autossupressão do sujeito historiador e de sua prática de escrita, com o intui-
to de dar ao leitor a impressão de que os fatos falam por si mesmos. Pura transversalidade, o trabalho
do historiador parece anular-se na narrativa constitutiva de seu objeto.17

É interessante percebermos alguns pontos colocados por Dosse, principalmente, quando fala
sobre determinado efeito de supressão da figura do historiador na obra tucididiana. De fato, o pen-
samento do historiador grego traz consigo certa crença na possibilidade de produção embasada em
uma descrição profunda dos fatos, mas não estamos falando de qualquer descrição, é uma dinâmica
179

16DOSSE, François. op. cit., p .14.


17Ibid., p. 15.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
que não leva em conta a subjetividade do escritor. Evidentemente, não podemos esperar uma subje-
tividade, tal qual compreendemos hoje, de alguém que viveu no século V a.C., mas o que estamos
discutindo é que, o pensamento construído por Tucídides, traz o aspecto descritivo com tanta força
que parece que o historiador é apenas uma espécie de copista da voz dos fatos. A temporalidade
para ele está no que acontece, no objetivo, distante do mitológico. Desse modo, o tempo para Tucí-
dides é o tempo dos acontecimentos, dos fatos, do real e do tangível:

Deve-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais níti-
das, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens esta-
rem sempre inclinados, enquanto engajados numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois
que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado, para quem jul-
ga por fatos reais, que a presente guerra terá sido mais importante que qualquer outra ocorrida no
passado.18

Como vemos, há na obra tucididiana certa inclinação para a ideia de precisão histórica, toda-
via, dentro do próprio fragmento encontramos indícios que nos ajudam compreender um dos moti-
vos que o levou produzir uma história galgada em verdades. Há no horizonte de expectativas de
Tucídides o intuito de legitimar a Guerra do Peloponeso como sendo a guerra das guerras, como a
mais significativa ocorrida até ali. Desse modo, como a produção historiográfica não é isenta de
temporalidade, isto é, de diálogo temporal, podemos perceber a presença da vontade de construção
de memória, sustentado na projeção de uma imagem futura da guerra. Dessa maneira, contribuindo
na formação da identidade grega. Vale ressaltar que é um ateniense escrevendo sobre uma guerra
entre Esparta e Atenas.
O que o historiador de Atenas fez, prática bastante comum na historiografia antiga, dessa
maneira realizado também por Heródoto, é o que atualmente chamaríamos de história imediata,
guardando as especificidades historiográficas. Ele sustentou sua narrativa na descrição de registros
visuais de acontecimentos, sobretudo militares, de conflitos de homens contra homens. Nessa pers-
pectiva, Tucídides construiu seu texto legitimando-se enquanto a pessoa certa para escrever a verda-
de sobre a guerra, afirmando sua condição de testemunha, levando o leitor a acreditar que o que está
sendo dito é uma verdade, uma vez que foi escrito por alguém presente.
180

18TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução: Mário da Gama Kury. 4 ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 14.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Trata-se, principalmente, de estabelecer os fundamentos da credibilidade e veracidade de seu relato.
Ao afirmar que viveu a guerra inteira, Tucídides, afirma sua condição de presença, de testemunha di-
reta dos acontecimentos. [...] Tucídides quer convencer seu leitor de que seu relato é, acima de tudo,
verdadeiro e preciso, e somente é verdadeiro e preciso porque, dotado de capacidade de bem obser-
var e bem avaliar, acompanhou todas as etapas da guerra.19

Em seu quinto livro, Tucídides afirma: “Vivi a guerra inteira, tendo uma idade que me per-
mitia formar meu próprio juízo, e segui-a atentamente, de modo a obter informações precisas”20.
Percebemos que o historiador grego além de ter objetivo de dar credibilidade ao seu relato, afirman-
do que buscou a melhor forma para seus registros, cria uma espécie de metodologia considerando-se
capacitado para tal, pois a guerra fez parte de sua própria trajetória de vida, que por conta disso, seus
relatos seriam carregados de verdade, sendo a descrição real do conflito mais importante acontecido
até ali. Nesse sentido, a obra tucididiana difere-se, um tanto quanto, da de Heródoto.
É possível que Tucídides, ainda no princípio da vida, ouviu Heródoto contar sua História.
Fazendo um contraponto entre os dois historiadores gregos, vamos perceber que apresentaram pro-
postas distintas.
Como vimos, a investigação para Heródoto é parte intrínseca de sua narrativa. Ele considera
que a história deve estar pautada em um constante processo de pesquisa e investigação, levando em
consideração as variadas versões sobre um mesmo assunto. Por esse motivo, presenciamos na obra
herodotiana a proposta do registro da oralidade, apresentando o que hoje entendemos por história
oral, guardando as especificidades historiográficas. Em contrapartida, Tucídides propôs outra cons-
trução narrativa, distante da proposta pelo historiador de Halicarnasso, opondo-se a ideia do registro
de variadas versões:

Diante da constatação de que, Tucídides afirma ter construído seu relato não se baseando nos depo-
imentos de qualquer informante disponível, mas sim partido dos fatos que ele próprio presenciou,
181

19MAGALHÃES, Luiz Otávio de. “Tucídides (460 a.C. – 404 a.C.)” In: PARADA, Maurício (Org.). Os historiadores clássi-

cos da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio, 2013, p. 34.


20TUCÍDIDES. op. cit., p. 313.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
submetendo tais fatos ao mais escrupuloso exame, de forma a alcançar a maior exatidão, precisão, a-
cribia, possível.21

Toda esta tendência para uma precisão na produção historiográfica, leva-nos a perceber que
a busca por uma verdade histórica foi mais presente na obra de Tucídides do que na de Heródoto.
Enquanto o primeiro buscava registrar os fatos com sua própria versão, considerada por ele a mais
próxima da verdade; o segundo buscou ouvir o diferente, investigou a oralidade e cogitou possibili-
dades. É importante colocar que os dois, tanto Tucídides quanto Heródoto, de certa forma, estavam
preocupados em construir de uma verdade histórica, mas defendemos que, nesse aspecto, a precisão
é muito mais perceptível na obra tucididiana.
Vale ressaltar, também, que a ideia de escrever junto aos acontecimentos existe em ambos.
Tanto na História quanto na História da Guerra do Peloponeso, Heródoto e Tuídides escreveram con-
temporaneamente aos acontecimentos, no entanto, partem de parâmetros metodológicos distintos.
Estamos discutindo autores do século V a.C. período onde a minoria do mundo social era al-
fabetizada. Heródoto, por sua vez, em suas viagens, lia sua História para o público e, possivelmente,
como já colocado, Tucídides o presenciou. No entanto, o historiador de Atenas considerou Heródo-
to um logógrafo, alguém que se propõe amaciar os ouvidos de que os excuta, embelezando o texto,
aproximando-o do poético. Para Tucídides, essa prática da narrativa do fabulo se distanciava da bus-
ca pela verdade, servindo apenas para encantar ouvidos. Diz Tucídides:

À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de
que os fatos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de
um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas, e de outro
considerando que os logógrafos [os historiadores mais antigos eram considerados logógrafos, porém
a partir de Tucídides a palavra ganhou conotação pejorativa] compuseram as suas obras mais com a
intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade [acredita-se que esteja fazendo alusão a He-
ródoto] uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e eles em sua maioria enveredaram,
com o passar do tempo, para a região da fábula, perdendo, assim, a credibilidade.22
182

21MAGALHÃES, Luiz Otávio de. op. cit., p.35.

22TUCÍDIDES. op. cit., 2001, p. 14.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
De certa forma, Tucídides inova, propõe a construção do discurso distante das molduras do
belo da poesia, respalda seu texto rejeitando os pressupostos da narrativa poética acreditando que o
que ele estava construindo configurava-se um relato verdadeiro e preciso dos acontecimentos de seu
tempo. Levando-o afirmar que seu texto se distanciava do fabuloso, sendo ele o resultado de uma
tarefa complexa de descrição do que de fato aconteceu, do verdadeiro:

O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de
vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de
acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode aconte-
cer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem
quer que deseje ter uma idéia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia volta-
rão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano,
julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre
útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio.23

Podemos considerar que a partir da História da Guerra do Peloponeso, o tempo começou a ser
registrado de outra maneira. O tempo dos acontecimentos, no registro como testemunha visual do
curso dos fatos, tornou-se aspecto fundamental na produção historiográfica. “Tucídides, portanto,
quer ser reconhecido como inaugurador de uma nova modalidade de registro dos acontecimentos,
comprometido não com o prazer nem com o deleite de ouvintes, mas apenas com o relato do ver-
dadeiro” 24.
Com essa mudança na percepção e no registro temporal, a própria ideia da história enquanto
magistra vitae foi sendo fortemente construída e aprimorada, uma vez que, o horizonte de expectati-
vas tucididiano vislumbrava uma espécie de imortalidade de sua obra, na ideia de que seu valor per-
maneceria intacto no decorrer do tempo. Para ele, por mais que seu pensamento não estivesse pau-
tado em pressupostos poéticos e fabulares, estava, pelo contrário, sustentado na atividade do relato
da verdade. E isso bastava.
Para bem compreendermos as propostas do historiador de Atenas, dentro de seu espaço-
tempo específico, é necessário empreendermos uma análise acerca de sua trajetória, entretanto, pou-
co sabemos sobre sua vida. As fontes mais significativas, que nos dão alguma margem de percepção
183

23Ibid., p. 14.
24MAGALHÃES, Luiz Otávio de. op. cit., p. 40.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
de sua biografia, foram apresentadas pelo próprio historiador em seu livro, A História da Guerra do
Peloponeso. Isso aconteceu por um motivo simples, havia a necessidade de criar uma espécie de dinâ-
mica de autolegitimação, até porque, sua construção narrativa tinha por intuito a busca constante
por determinada verdade e a descrição da vida do autor fazia parte desse processo, na ideia de confi-
gurar-se enquanto alguém preparado e capacitado para tal ofício. Para tanto, no decorrer de sua o-
bra, Tucídides adiciona pequenas colocações sobre sua vida. Logo no princípio de seu texto, diz:

O ateniense Tucídides escreveu a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começan-


do desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais importante que todas as
anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas em todos os sentidos; além disto, obser-
vava os demais helenos aderindo a um lado ou ao outro, uns imediatamente, os restantes pensando
em fazê-lo.25

Tucídides foi alguém que viveu na Grécia do século V a.C., dessa maneira, assim como He-
ródoto, mais uma vez a pólis grega surgiu como pano de fundo no processo de modificação da per-
cepção e registro temporal. Ao se apresentar como ateniense, ele se afirmou como legítimo cidadão
de Atenas, “como indivíduo dotado das prerrogativas associadas à condução e gestão da cidade, da
pólis”26. Esse fato, a partir do momento que se afirmou como tal, colocou-se como alguém envolvido
nos assuntos e acontecimentos da cidade grega. Assim, esse espaço de experiência vivenciado por
ele, foi essencial para a construção da narrativa presente em seu texto, além de ter sido fundamental,
também, para a percepção e apreensão do mundo que o cercava e, sobretudo, do tempo.
Sabemos que no ano de 424 a.C., Tucídides foi estratego27 na Trácia28. Podemos considerar
que este cargo equivale hoje uma espécie de comandante militar. Essa posição só poderia ser ocupa-
da por pessoas eleitas, com a exigência de idade mínima não sendo aberto para todos os cidadãos.
“Ser eleito estratego era indício de envolvimento e destaque nas arenas políticas em que se manifes-
tavam os cidadãos de Atenas”29. Posto isso, por meio de indícios, percebemos que Tucídídes era

25TUCÍDIDES. op. cit., p. 1.


26MAGALHÃES, Luiz Otávio de. op.cit., p. 33.
27 “Na antiga Atenas (Grécia), título atribuído ao general do exército que era eleito magistrado anualmente. [Histó-

ria] Grécia Antiga. Designação de cada um dos dez magistrados que, responsáveis por assuntos militares, eram eleitos
184

pelo povo. [Militar] Estrategista; aquele que possui grande conhecimento em estratégia”.Dicionário Online de Português.
<https://www.dicio.com.br/estratego/>. Acesso em 23. dez. 2018.
28A Trácia foi uma antiga região do sudeste da Europa. Atualmente localizada entre a Grécia, Turquia e Bulgária.
29MAGALHÃES, Luiz Otávio de. op. cit., p. 33.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
ativamente envolvido com a defesa da pólis grega. Ser eleito para esse cargo era significativo, isso
representava sua posição em um grupo seleto de pessoas.
Mais tarde, destituído de seu cargo, Tucídides foi exilado passando aproximadamente vinte
anos em sua propriedade na Trácia, retornando em 404 a.C.. Foi nesse período que escreveu sua
História da Guerra do Peloponeso. Há historiadores, como François Hartog30, que defendem a tese que o
momento do exílio foi de fundamental importância para a sua composição, permitindo conhecer os
dois lados do conflito acompanhando melhor o curso dos acontecimentos.
Levando em conta a trajetória de vida de Tucídides, o espaço de experiências vivido por ele
foi indispensável para a construção de seu pensamento sustentado na busca por verdades. Apenas o
fato de ter ocupado o cargo de estratego, por quase 1/3 de sua vida, já nos dá margem para compre-
ensão de que sua noção sobre temporalidade era particular e que sem ela sua obra não seria possível.
Ele arquitetou não só a imagem da guerra, porém, sobretudo, a sua própria imagem. Tucídi-
des tinha por objetivo, a construção de uma memória acerca da guerra, apresentando-a como mais
significativa que todas as anteriores, propondo, dessa maneira outros parâmetros para a história,
sendo durante muito tempo compartilhado pelos historiadores. O tempo, a partir dele, começou a
ser registrado em outros moldes, tornou-se mais humanizado, distante daquele proposto por Heró-
doto. O tempo para Tucídides era pautado no material, no concreto, no mensurável. Portanto, pen-
sando no século V a.C., foi ele, certamente, um notável personagem na construção da história e do
próprio papel de historiador.

Políbio de Megalópolis (200 a.C. – 118 a.C.)

Políbio ou Polibio de Megalópolis foi um personagem que viveu a transição do século III
a.C. para o II a.C., tornando-se um importante historiador na antiguidade clássica, por conta princi-
palmente do método desenvolvido por ele presente em suas obras, trazendo uma novidade para a
historiografia até então produzida, a história pragmática. Foi autor de inúmeros textos ao longo de
sua vida, sendo notavelmente conhecido por sua maior obra, as Histórias, a qual dois terços foram
perdidas. Dividida originalmente em quarenta livros, versavam em torno de uma problemática prin-
185

30Cf. HARTOG, François. Evidência da História: O que os historiadores veem. Tradução: Guilherme João de Freitas Tei-
xeira. 1ª ed. São Paulo: Autêntica, 2005.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
cipal: como e de que maneira o Império Romano conseguiu estender seu domínio em grande parte
de terra habitada em tão pouco tempo, em menos de 53 anos?
Nesse sentido, Políbio ocupava um lugar no tempo e no espaço bastante privilegiado para
pensar esta questão, sobre a rápida ascensão do Império Romano. Ele “estava bem situado na trans-
versal entre a civilização grega em declínio a qual ele provinha e a civilização romana em expansão a
qual acabou por aderir, a ponto de se tornar um defensor ferrenho de seus valores”31. Essa posição
ocupada por ele, configurando-se um espaço de experiência particular, condicionou a observar uma
dinâmica fundamental para sua obra: as mudanças e contradições de seu tempo a partir desse lugar
intermediário, numa espécie de junção de dois mundos, o grego e o romano.
Entre os historiadores que estamos discutindo, Políbio efetivamente propôs uma reflexão
acerca do método na produção e processamento do material historiográfico, segundo ele “a história
deve resolver uma equação e fornecer os elementos da explicação, hierarquizar as causas do fenô-
meno observado e evitar ser apenas uma pintura externa ou pura enumeração de peripécias”32. Para
ele, deve existir uma hierarquia no tratamento do material histórico para o conhecimento do mundo,
sendo que, esse mesmo mundo só poderia ser conhecido se fossem primordialmente descobertas as
causas que o forjou.
Para François Dosse, a história pragmática polibiana pode ser compreendida em três impera-
tivos. São eles: “explicar, pela exposição das causas e dos feitos dos acontecimentos; julgar, pela a-
preciação da justiça e da oportunidade das decisões e dos atos dos homens; e advertir, pela inserção
de preceitos na narrativa histórica”33.
No sentido pragmático, Políbio acaba dividindo a história em história “fabulosa” e “séria”.
Sendo a história “fabulosa” aquela encontrada na narrativa de construções míticas, na filiação com
os deuses e divindades; contrapondo-se a história “séria”, sendo a única presente no âmbito pragmá-
tico, atendendo, assim, os caminhos metodológicos exigidos por ele. Dessa forma, o historiador de
Megalópolis propôs uma construção histórica pautada na demonstração, podendo ser comprovada
por meio de um sistema hierarquizado.
Desse modo, é interessante percebermos que Políbio trouxe uma percepção de tempo alta-
mente humanizado, um tempo que pode ser refletido e sistematizado racionalmente pelo homem,
186

31DOSSE, François. op. cit., p .42.


32Ibid., p. 42.
33Ibid., p. 43

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
podendo ser mensurado e medido por mãos humanas. A construção narrativa presente na historio-
grafia polibiana traz consigo uma espécie de tempo matemático, onde as causas e consequências dos
acontecimentos são exportas em meio a equações pela qual os motivos e efeitos dos fatos podem ser
comprovados.
Políbio, nesse sentido, propôs caminhos a serem seguidos por historiadores que desejassem
escrever a real história, a pragmática:

Baseando-se em suas próprias experiências, Políbio sintetiza os requisitos necessários ao historiador


que também desejasse elaborar uma história pragmática: erudição, fundada na consulta a livros e ou-
tros documentos escritos, de arquivo, como os tratados entre Roma e Cartago, ou epigráficos, como
a inscrição de Lacínio; observação pessoal de cidades e acidentes geográficos, investigação aliada ao
questionamento a testemunhas oculares; e experiência própria na política e na guerra.34

Para apreensão e compreensão dos acontecimentos, Políbio formulou um método e o cha-


mou de apodítico, que se apresentava como um sistema demonstrativo, de organização e apresenta-
ção de provas. Mas para isso, propôs algumas categorias necessárias para a construção narrativa.
Sendo elas, modo do desenvolvimento dos fatos, causas, agentes, tempo e local. Dentre esses cita-
dos, podemos destacar principalmente o segundo, as causas. Compreender as causas dos aconteci-
mentos é ponto fundamental em sua obra. O fenômeno da causalidade no pensamento polibiano é
elemento chave, sendo condição primeira para explicação histórica.

[...] os eventos, guerras, batalhas, assédios, ou seja, todos os detalhes históricos não têm interesse se-
não à medida que se estudam as concepções e os planos; a narração é mero passatempo sem valor. A
história não deve ser uma exposição de fatos, mas a pesquisa dos raciocínios que acompanham cada
ação, e essa busca deve ser demonstrativa. Assim, o método apodítico exige que a história das práxeis
seja substituída pela dialépseis e dos syllogismoí, dois termos utilizados para definir causa.35

Para o historiador grego, portanto, a descrição dos fatos não configurava um pondo de
grande relevância, sendo as reflexões sobre as causas tópico indispensável à prática historiográfica.
Para ele, o historiador só consegue dar significado e sentido ao fato se encontrar suas causas. A bus-
187

34SEBASTIANI, Breno Battistin. “Políbio (200 a.C. – 118 a.C.)” In: PARADA, Maurício (Org.). Os historiadores clássicos
da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio, 2013, p. 53.
35Ibid., p. 56

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
ca causal de Políbio configura-se parte intrínseca de seu pensamento. Assim, percebemos que sua
obra é menos descritiva e mais analítica, para os patrões do período. Portanto, Políbio também ino-
va ao submeter sua construção narrativa às problemáticas colocadas pelo historiador pautadas em
um novo modo de se fazer e pensar a história:

Devemos dar menos importância, quando escrevemos ou lemos a história, à narrativa dos fatos em si
do que àquilo que aconteceu, acompanhou ou se seguiu aos acontecimentos; pois, se tirarmos da his-
tória o porquê, o como, aquilo em vista do qual o ato foi executado e seu fim lógico, o que sobra não
passa de virtuosismo, algo que não pode se tornar objeto de estudo; isso distrai momentaneamente,
mas não serve para absolutamente nada no futuro.36

Outro aspecto interessante em seu pensamento está na origem das causas. Para ele as causas
de acontecimentos históricos partem do âmbito humano, e não natural. Podemos, dessa maneira,
compreendê-la enquanto um conjunto de operações mentais que precedem o acontecimento. Esse
dado é bastante significativo. A temporalidade para Políbio é tão humana, que o fez defender que as
mudanças históricas não provinham da ordem natural ou física. É interessante que esse debate nos
dá margem para discussão sobre a ideia de cultura, sendo ela fundamentalmente humana, distante do
natural, assim como os acontecimentos históricos. Portanto, bem como a cultura, o acontecimento
histórico tem sua origem e construção na vontade dos homens:

Políbio considera também que as causas resultam de operações mentais que antecedem a ação, numa
concepção intelectualista e psicologizante, e nega o fato de que fenômenos de ordem física ou mate-
rial possam ser apresentados como causas. Ao contrário dos fenômenos naturais, as causas estão li-
gadas à imaginação criadora, à razão e a uma vontade estritamente subordinada ao entendimento.37

No que diz respeito à temporalidade, de todos historiadores que analisamos até aqui, certa-
mente, a teoria polibiana apresenta a humanização efetiva do tempo. A partir do momento que Polí-
bio considera que as causas de acontecimentos históricos partem de pressupostos psicológicos da
própria matéria humana, o homem passa a ser entendido, então, como agente histórico responsável
pelas mudanças no mundo construído por ele.
188

36DOSSE, François. op. cit., p. 43.


37Ibid., p. 44-45.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Pautando o indivíduo como agente histórico, o historiador grego, racionaliza o tempo. A
temporalidade para Políbio estava sustentada no logos, no racional e mensurável. Portanto, para
compreender o sucesso ou fracasso na vida pública ou no conflito, ele propôs praticamente uma
ordem fixa em apresentação lógica:

Interessado em compreender as razões do sucesso e do fracasso na política e na guerra, Polóbio e-


xamina as condições de um e outro, ampliando o vocabulário psicológico então corrente. O primeiro
deriva do cumprimento de um programa inteligente, norteado pelo noûs, a faculdade suprema, ou se-
ja, a capacidade de discernir a ocasião exata para o maior triunfo com o mínimo de esforço, preferen-
cialmente servindo-se de astúcia e não da força. A inteligência tem por auxiliares a previdência, o juí-
zo, a perspicácia, a precaução, a aplicação, a reflexão e a audácia. O fracasso deriva de duas fontes: da
privação das competências para o sucesso, ou seja, por defeito ou ausência de capacidade intelectual;
e dos vícios cuja intromissão compromete as funções superiores: negligência, inércia, embriaguez,
lascívia, covardia, preguiça, precipitação, temeridade, fúria, fatuidade e obtusidade.38

É curioso percebermos, na construção narrativa dos historiadores que estamos discutindo,


Heródoto, Tucídides e Políbio, como no correr do tempo essas pessoas foram se afastando do mito-
lógico. A dinâmica de afastamento do mythos, para uma espécie de racionalização do tempo, é bastan-
te presente no pensamento e obra polibiana. Vimos que para analisar a política e a guerra, Políbio
utilizou um mecanismo psicológico para compreender as causas tanto do sucesso quanto do fracas-
so. Esse mecanismo, por sua vez, partia de pressupostos cognitivos gerando um processo de racio-
nalização temporal. Nesse sentido, o historiador de Megalópolis se afastou, em sua obra, notada-
mente do mundo dos deuses, do mythos.
Políbio foi um nome significativo para historiografia grega antiga. Como vimos, ele propôs
outros caminhos para produção, registro e reflexão sobre o tempo. “Como para Heródoto ou Tucí-
dides, a história é subsumida em Políbio por duas categorias: a alétheia, a verdade, a realidade bruta, e
a diké, a realidade normatizada, a justiça”39. Ele foi inovador para seu tempo. Subjugar sua obra com
nossos olhos presentificados não tem grandes dificuldades, pelo fato de termos uma disparidade
temporal de centenas de milhares de anos. No entanto, nessa perspectiva, devemos compreender
189

38SEBASTIANI, Breno Battistin. op. cit., 2013, p. 56-57.


39DOSSE, François. op. cit., p. 47.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
que Políbio foi forjado por uma temporalidade de conflito particular, onde de um lado o mundo em
queda, o grego, e de outro, a ascensão de um novo império, o romano.

Considerações finais

Como pudemos perceber a história foi sendo apreendida de diferentes maneiras na antigui-
dade grega. Dessa forma, o tempo foi sendo representado, vivido e percebido de maneiras distintas,
ora mítico, ora humano e ora quase matemático. Por meio da historiografia, conseguimos perceber
que os interesses e necessidades foram se modificando durante o correr da história e, por isso, cada
historiador se colocou de maneiras distintas na construção de suas narrativas.
Heródoto deu voz ao humano, no entanto, esse humano ainda acreditava em seus deuses, no
mitológico e no divino. Ele produz uma história onde trouxe a afirmação narrativa humana, ao pas-
so que, não se distanciou totalmente de suas divindades. História para Heródoto é investigação e
verdade, construída por meio da experiência sensível, imbricada tanto ao mythos quanto ao logos.
Tucídides foi um historiador dos acontecimentos. Acreditava que estava escrevendo o relato
da verdade do conflito mais significativo de todos os conflitos, a Guerra do Peloponeso. Ele deu
voz aos fatos, fez com que falem por si só, isto é, a construção efetiva de uma verdade histórica.
Sobre as divindades, Tucídides certamente se distanciou, acreditando que a voz da verdade não po-
deria estar vinculada a narrativa dos deuses e sim na instância material.
Políbio foi o historiador da causalidade, Defendia que para o entendimento histórico era in-
dispensável à análise das causas dos acontecimentos. Ele propôs uma história pautada na distância
da fábula, uma história que insere o tempo em uma equação estabelecida pelo próprio homem, hu-
manizando efetivamente a noção temporal.
Em linhas gerais, portanto, Heródoto foi um historiador do tempo humanizado, Tucídides
do tempo dos acontecimentos e Políbio do tempo das causas. Os diferentes interesses, nos diversos
períodos de tempo, foram se apresentando notoriamente nas obras desses historiadores. Fazendo
paralelo entre o primeiro e o último, percebemos que são claramente distintos, enquanto o tempo
para Heródoto era humano e mítico, para Políbio era humano e altamente mensurável. Finalmente,
o que todos esses homens fizeram, um diferente do outro, foi tentar compreender o seu tempo vivi-
190

do e com isso fundaram a Clio construindo este novo gênero, antes desconhecido, a história.

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com
Bibliografia

BARROS, José D'assunção. O Tempo dos Historiadores. Petrópolis: Vozes, 2013.


COSTA E SILVA, Alberto da. Imagens da África: da Antiguidade ao século XIX.1 ed. São Paulo:
Penguin, 2012.
DOSSE, François. A História. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2012.
EYLER, Flávia Maria Schelee. “Heródoto de Halicarnasso (484 a.C. – 430/420 a.C)”. In: PARA
DA, Maurício (Org.). Os historiadores clássicos da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio,
2013. p. 9-31.
GLEZER, Raquel. “Tempo e História”. Cienc. Cult. Campinas,vol.54, n.2, 2002. ISSN 2317-6660.
HARTOG, François. Evidência da História: O que os historiadores veem. Tradução: Guilherme João
de Freitas Teixeira. 1ª ed. São Paulo: Autêntica, 2005.
HERÓDOTO. História. Tradução: Pierre Henri Larcher. eBooks Brasil. 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução:
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Com
traponto-Ed. PUC-Rio, 2006.
MAGALHÃES, Luiz Otávio de. “Tucídides (460 a.C. – 404 a.C.)”. In: PARADA, Maurício (Org.).
Os historiadores clássicos da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio, 2013. p. 32-50.
SEBASTIANI, Breno Battistin. “Políbio (200 a.C. – 118 a.C.)”. In: PARADA, Maurício (Org.). Os
historiadores clássicos da história. Vol. 1. Petrópolis: Vozes: Puc-Rio, 2013. p. 51-67.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução: Mário da Gama Kury. 4 ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.

Ensaio recebido em: 09/2020 ♦ Artigo aprovado em: 11/2020

191

Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nº 12, pp. 171-191, Jul./Dez. 2019 | www.poderecultura.com

Você também pode gostar