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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

A amizade como instrumento de poder


político e financeiro no mundo romano:
uma análise comparada a partir das Cartas de Cícero e Plínio,
o Jovem

Mayan Rodrigues Melo Braga

Rio de Janeiro
2022
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

A amizade como instrumento de poder político e financeiro no


mundo romano: uma análise comparada a partir das Cartas de
Cícero e Plínio, o Jovem

Mayan Rodrigues Melo Braga

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Comparada do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ)
como requisito para a obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr.º Deivid Valério Gaia

Rio de Janeiro
2022
3

Membros da banca
Titulares

Prof. Dr. Deivid Valério Gaia (UFRJ – PPGHC) - orientador

Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves (UFRJ)

___________________________________________________________________________
Prof. Draª Lorena Lopes da Costa (UFRJ)

Suplentes
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fabio de Souza Lessa (UFRJ)

Prof. Drª. Renata Lopes Biazotto Venturini (UEM)


4

Agradecimentos

Aos meus pais, pelo apoio incondicional;


À minha irmã, Mayara, que tem sido meu alicerce nesses tempos difíceis;
Aos meus 13 pedaços do céu, meus gatos, amores e luzes da minha vida;
Ao professor Deivid Gaia, pela orientação e confiança no meu trabalho durante os últimos 7
anos e por ter me acolhido não só como aluna, mas como amiga;
Ao professor Sinvaldo Souza, por ter sido responsável por me guiar rumo ao sonho do
magistério;
Ao programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ, pelo zelo e atenção durante
a minha caminhada acadêmica, assim como ao programa de bolsas de pós-graduação da
CAPES, sem o qual teria sido impossível traçar meu caminho até aqui. De igual maneira,
agradeço aos colegas do LHIA, por todo intercâmbio de conhecimento e auxílio, os quais me
ajudaram de inúmeras maneiras;
A Thiago Pereira, pelo apoio emocional e material durante parte desta pesquisa;
À Suelen Anjos, minha amiga e fiel companheira durante todo o percurso da minha vida
acadêmica, por ter deixado tudo mais alegre;
A David Motta, por tornar-me leve em meio ao caos.
5

O homem é, antes de econômico, um ser social (Aristóteles).

I beg to dream and differ from the hollow lies (Green Day).
6

Resumo

A presente dissertação tem como objetivo analisar, em perspectiva comparada, as


formas pelas quais a amizade se tornava um instrumento de poder político e financeiro no
mundo romano, a partir do estudo das Cartas de Cícero e Plínio, o Jovem. Dessa forma,
visamos compreender as singularidades, diferenças e proximidades entre os casos estudados,
mediante a metodologia comparativista proposta por Marcel Detienne e nos apoiando nas
categorias conceituais próprias do mundo romano, como por exemplo, fides e officium, dentre
outras. Assim, procuramos demonstrar como a amicitia funcionava como meio para o acesso
ao controle das esferas do poder político e financeiro na transição entre o final da República e
o Império.

Palavras-chave: Amizade; Cícero; Plínio, o Jovem; Poder; Finanças na Roma Antiga.


7

Abstract

The current dissertation aims to analyze, in a compared perspective, in which ways


friendship became an instrument for political and financial power in the Roman world, from
the study of the Letters of Cicero and Pliny, the Younger. Therefore, this paper aims to
comprehend the singularities, differences and similarities among the studied cases using the
Comparative Approach proposed by Marcel Datienne and leaning on the proper conceptual
categories from the Roman World, like fides and officium. Thus, this study sought to
demonstrate how amicitia worked as a means for access to the control of the financial and
political power during the transition from the Republic to the Empire.

Keywords: Friendship, Cicero, Pliny the Younger, Power, Banking in Ancient Rome.
8

Sumário
INTRODUÇÃO___________________________________________________________10
PARTE 1. Documentação, conceitos e considerações teórico – metodológicas________19
1.1 Documentos e métodos __________________________________________________19
1.1.1 Cícero e Plínio: a documentação nos seus recortes temporais e espaciais_____19
1.1.2. Gênero documental e metodologia de análise__________________________25
1.2 Problemática e conceitos nos autores_______________________________________34
1.2.1 A amizade em Cícero_____________________________________________34
1.2.2 A amizade em Plínio, o Jovem______________________________________39
1.3 Debate Historiográfico___________________________________________________42
1.3.1 A História Antiga e a História Econômica_____________________________42
1.3.2 A Sociologia e Antropologia como caminhos interdisciplinares para a História
Antiga____________________________________________________________________46
1.3.3 A amizade na perspectiva histórica___________________________________49

PARTE 2. A amizade como instrumento de poder em Cícero______________________53


2.1 O contexto ciceroniano__________________________________________________53
2.1.1 Breves considerações sobre o autor __________________________________53
2.1.2 Relações de poder e disputas políticas________________________________55
2.1.3 Amizade em tempos difíceis________________________________________60
2.2 A amicitia a partir das Epistulae ad Atticum e das Epistulae ad Familiares________67
2.3 Interesses em jogo: análise textual_________________________________________67
2.3.1 Cícero e Apio Claudio Pulcro_______________________________________67
2.3.2 Cícero e Marco Júnio Bruto: amizade durante o proconsulado de Cícero na
Cilícia____________________________________________________________________72
2.3.3 Cícero e Públio Cornélio Dolabela___________________________________77
2.3.4 Questões financeiras______________________________________________81

PARTE 3. A amizade como instrumento de poder em Plínio, o Jovem______________87


3.1 A Roma de Trajano_____________________________________________________87
3.1.1 Breves considerações sobre o autor________________________________________87
9

3.1.2 Relações de poder e terreno político__________________________________89


3.1.3 Amizade em tempos de paz_________________________________________93
3.2 A amicitia a partir das Epistulae de Plínio, o Jovem__________________________100
3.3 Interesses em jogo: análise textual________________________________________100
3.3.1 Plínio e seu círculo de amigos______________________________________100
3.3.2 Plínio e Trajano: amizade durante a administração de Plínio na Bitínia_____108
3.3.3 Questões financeiras_____________________________________________113

CONSIDERAÇÕES FINAIS| ______________________________________________120


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS________________________________________132
10

Introdução

O presente tema é fruto de uma pesquisa iniciada ainda na graduação em História,


entre os anos de 2015 a 2018, que visava compreender as características sociais das transações
financeiras na época de Cícero. Por meio do estudo sistemático da relação entre credores e
devedores no século I a.C., foi possível, então, verificar que a amicitia desempenhava um
papel fundamental, tanto para o estabelecimento dos vínculos políticos e financeiros entre os
agentes, quanto para a manutenção de privilégios e assistência em momentos de necessidade.
Para chegar a estes desdobramentos, partimos do princípio de que cada transação
política e financeira possui significados sociais, conforme apresentado pelo antropólogo e
professor da UFRJ Federico Neiburg.1 Assim, acreditamos, de acordo com a tese polanyiana,
que todas as sociedades possuem economias mergulhadas em um conjunto de valores morais
que orientam as transações, sejam elas financeiras, econômicas ou mesmo políticas. Dessa
forma, a reprodução de meios ou ferramentas para controle político ou financeiro se torna
mais importante, em alguns casos, que a intenção de lucro pessoal.
Portanto, a utilização dos estudos sobre amizade e finanças oriundos da Sociologia e
da Antropologia foram muito importantes para avaliar as complexas relações entre credores e
devedores na Roma tardo-republicana, como as obras de Marcel Mauss, Karl Polanyi e
Maurice Godelier, que serão expostas ao longo da pesquisa. Nesse sentido, a partir do
entendimento sobre como a amicitia se configurava necessária para tais relações, e, na
maioria dos casos, se tornava o pilar dos esteios políticos e econômicos, surgiu o interesse de
estudá-la mais profundamente, como conceito e categoria do mundo romano.
Entretanto, apesar de flertarmos com alguns estudos econômicos e antropológicos
modernos, não os utilizaremos como base teórica para a presente pesquisa. Ao invés disso,
decidimos nos ancorar em aportes da própria História Antiga, como os estudos relativamente
recentes sobre o papel da amizade no mundo político e financeiro romano. Para tal, é
indispensável que recorramos aos trabalhos de autores como Koenraad Verboven, Peter Brunt
e David Konstan2 para a análise da amizade na Roma do último século republicano. Do

1
Ver: NEIBURG, F. Os sentidos sociais da economia. Horizontes das ciências sociais no Brasil–Antropologia.
São Paulo: ANPOCS/Barcarolla/Discurso Editorial, 2010, p. 1-34.
2
Ver: VERBOVEN, K. The Economy of Friends. Economic Aspects of Amicitia and Patronage in the Late
Republic. Latomus, 2002; BRUNT, P. Amicitia in the Late Roman Republic. The Cambridge Classical
Journal 11, 1965; KONSTAN, D. Friendship in the classical world. Cambridge University Press, 1997.
11

mesmo modo, nos baseamos, em especial, nos estudos de Andrew Wallace-Hadrill, Richard
Saller 3e Renata Venturini sobre amizade e patronato na Roma Imperial do século II.
Nosso diálogo também será estabelecido, na análise comparada, com os conceitos de
Poder Simbólico e de Ciclo de Reciprocidade, oriundos respectivamente de Pierre Bourdieu e
Marshall Sahlins, 4 uma vez que manteremos nossa proximidade com a Sociologia e a
Antropologia Econômica, campos indispensáveis ao desenvolvimento da nossa pesquisa.
Por conseguinte, a presente dissertação tem como centro de estudo a amizade
enquanto conceito e ferramenta de poder político e financeiro no mundo romano, tomando
como recortes temporais, numa perspectiva comparada, os séculos I a.C. e a transição entre os
séculos I e II d.C.. Nossa documentação reside, a saber, no conjunto epistolar de Cícero e de
Plínio, o Jovem. Nosso principal objetivo é a comparação das menções a trocas políticas e
financeiras presentes no corpus documental, dentro do contexto das relações de amicitia e
seguindo categorizações específicas, mapeando continuidades e rupturas no processo de
estabelecimento dessas relações. Dentro dessa esfera, catalogamos as redes de contato que se
formavam através da amicitia e officium na região do Mediterrâneo, tendo Roma como
epicentro, procurando entender quem são os agentes envolvidos nas transações, de onde eram
e quais possíveis interesses podem ser visualizados nos contextos de troca.
Consequentemente, comparamos os processos de reciprocidade na documentação a
partir de uma categorização dos tipos de troca e interesses envolvidos nas relações. Nesse
sentido, nossa problemática reside na compreensão sobre como as redes de amicitia, como
pequenas estruturas, influenciavam na formação de apoios políticos e financeiros nos dois
contextos em questão e como, em cada um destes, tais redes se mantinham. Nossa hipótese
principal é a de que o estabelecimento e crescimento das redes de amizade no século I a.C.
respondia às demandas de um contexto de crise, no qual as redes de apoio eram necessárias
para a manutenção de cargos, posições e auxílio financeiro. Assim, tais redes perdem relativa
importância no século II d.C., já que houve uma variação no contexto político e social,
tornando a atmosfera romana relativamente mais estável.
Além disso, acreditamos que a amicitia funcionava como elemento propulsor da
realização de interesses coletivos, servindo como uma estratégia grupal para a manutenção de

3
Ver: WALLACE-HADRILL, Andrew. Patronage in Roman society: from Republic to Empire. Routledge
London, v. 63, 1989; SALLER, R. Personal patronage under the early empire. Cambridge University Press,
2002.
4
Aqui, destacamos os seguintes trabalhos: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Perspectiva, 1974; SAHLINS, M. Stone age economics. Routledge, 2017.
12

status e privilégios. Desse modo, a coletividade estruturava os jogos de poder da Roma


Antiga, e se colocava como uma estrutura que funcionava independentemente dos interesses
individuais. De forma geral, ela atuava como ferramenta para o acesso ao controle das esferas
políticas em cada um dos contextos selecionados.5
Nosso diálogo também será estabelecido, na análise comparada, com os conceitos de
Poder Simbólico e de Ciclo de Reciprocidade, oriundos respectivamente de Pierre Bourdieu e
Marshall Sahlins, 6 uma vez que manteremos nossa proximidade com a Sociologia e a
Antropologia Econômica, campos indispensáveis ao desenvolvimento da nossa pesquisa.
Com relação à História Comparada, área de concentração a qual essa pesquisa se
vincula, convém reiterar que utilizaremos o método comparativo experimental de Marcel
Detienne a fim de estabelecermos uma análise de cunho comparatista, de acordo com a
proposta da pesquisa. Para Detienne, essa abordagem permite que o historiador se depare com
um campo de experimentação de comparáveis, que respondem a configurações específicas,
que podem personificar, inclusive, determinadas ausências. Dessa forma, o método
experimental consegue fazer emergir diferenças e semelhanças a respeito dos contextos
sociais analisados na pesquisa, tornando-se, assim, uma ótima ferramenta para o estudo
comparativo ao qual nos propomos.7
Em sua obra Comparar o incomparável, o autor lança a proposta de um
comparativismo construtivo, trabalhado em conjunto, que dê conta do estudo e da comparação
de sociedades afastadas no tempo e espaço, no qual podem ser feitas comparações sincrônicas
ou diacrônicas; em seu estudo sobre a religião greco-romana, por exemplo, Detienne procurou
estudar cada divindade não apenas segundo suas particularidades específicas, mas em
conjunto com suas ações e os lugares ocupados por estes no panteão 8.
Nesse método comparativo experimental, o primeiro passo é a eleição de uma
configuração específica, anterior às próprias instituições, que pode ser remetida a diferentes
sociedades e temporalidades. Em nosso caso, essa configuração reside no conceito de
amicitia. O segundo passo remete à escolha do conjunto de comparáveis que respondem a

5
A hipótese de que os interesses coletivos estavam acima dos individuais na Roma Antiga vem sido defendida
por autores como Koenraad Verboven, Miriam Griffin e Richard Saller e tem sido tema recorrente dos estudos
sobre trocas e reciprocidade nos últimos anos. Essa idéia parte, de forma basilar, dos aportes sociológicos e
antropológicos que vem sendo discutidos ao longo das últimas décadas sobre temas como Troca, Amizade,
Economia e Moralidade.
6
Aqui, destacamos os seguintes trabalhos: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Perspectiva, 1974; SAHLINS, M. Stone age economics. Routledge, 2017.
7
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias e Letras, 2004: p. 9-10
8
DETIENNE, M. Op. cit., p. 12
13

essa configuração – que, aqui, seriam os processos de amicitia em duas temporalidades


distintas na sociedade romana: os séculos I a.C. e II d.C9.
A partir de então, procura-se pela rede de significados polissêmicos, pontuando,
inicialmente as diferenças entre os processos, o que é, nas palavras de Detienne, um trabalho
experimental. Assim, elegendo um conjunto de comparáveis, o historiador pode se dedicar a
comparações sincrônicas ou diacrônicas, observando, segundo seus objetivos, como diferentes
eventos se comportam diante de um conjunto de variáveis 10.
Dessa forma, a presente pesquisa se propõe a desenvolver um tripé avaliativo para os
processos analisados, no esquema diferenças x semelhanças + singularidades de cada
processo, seguindo as etapas do método comparativo experimental de Detienne.
Exposta a nossa metodologia, também convém inserirmos a importância do conceito
amicitia para o mundo romano nas duas temporalidades escolhidas. 11 O século I a.C. foi um
período marcado por sucessivas crises de ordem política, econômica e social. À grave crise
geral, sucederam-se grandes problemas financeiros. As cartas de Cícero são ricas fontes de
informações acerca do assunto: de fato, o número de menções a embates políticos, dívidas e
trocas entre a elite da época é significativo, e são justamente elas que nos levam a visualizar
grandes redes de contatos entre os agentes, que se estendiam por todo o Mediterrâneo. O que
mantinha este esquema, vale lembrar, era a obrigação de retribuir o officium ofertado –
assegurado pela fides, como um contrato moral firmado entre as partes12. Assim, havia uma
“obrigação não – obrigatória” de oferecer e retribuir a ajuda dada em momentos de
necessidade13. As trocas efetuadas em tais redes de amizade poderiam ir, por exemplo, desde
auxílios financeiros e empréstimos até indicação de cargos políticos e outros tipos de ajuda.
Dessa forma, devemos entender a amicitia romana como um conceito indissociável e
mesmo dependente da fides. Era impossível estabelecer uma relação de amizade sem que
houvesse uma linha de compromisso mútuo e bem firmado entre as partes – o que permitia
que os interesses de ambas estivessem assegurados e bem servidos. Por isso, a amicitia se
revestia, em grande parte dos casos, de um caráter utilitário; envolvia, portanto, mais do que o

9
Op. cit., p. 12.
10
Op. cit., p. 30-45.
11
Tal conceito será analisado em pormenores na parte 1 da presente pesquisa.
12
VENTURINI, R. Relações de poder em Roma: o patronato e a clientela. Classica-Revista Brasileira de
Estudos Clássicos, v. 11, n. 11/12, 1999, p. 301.
13
A “obrigatoriedade não – obrigatória” é um conceito antropológico cunhado por Marcel Mauss e utilizado para
explicar a forma como se dão as obrigações sociais como deveres morais implícitos. Para entender melhor o
conceito, ver:DOUGLAS, M. No free Gift: introduction to Marcel Mauss’s essay on the Gift. Risk and Blame,
New York: Routledge, 1992.
14

simples sentimento fraterno ou de afeição 14. Em outras palavras, a amizade deveria ser
valorosa, útil, às partes envolvidas.
Entretanto, tal caráter utilitário se diferia daquilo que a Teoria Clássica Econômica
pontua como sendo a regra utilitarista15, uma vez que a busca pelo lucro não fazia parte do
primeiro plano das necessidades do homem romano. Por outro lado, mesmo que para que se
pudesse haver lucro ou qualquer benefício de viés financeiro, era necessário manter uma
relação, e era precisamente a busca pela manutenção das relações de amicitia que assegurava
o caráter de interesse inerente às trocas efetuadas. Os chamados officia residiam, portanto, no
princípio da reciprocidade: esta era a base para a manutenção de tais relações. Dentro destas,
são trocados favores, auxílios, cargos, dentre outros aspectos, e muitas destas relações eram
primordiais para a manutenção de status e posições políticas16. Marcel Mauss pontua que esse
é um tipo de economia moral, que responde às necessidades de uma época e de uma sociedade
complexa como a romana; o autor lembra que as trocas baseadas nos officia têm sua origem
nos primórdios da história de Roma, nas trocas feitas entre familiares e pessoas do mesmo
clã17. Os mutua officia permaneceram, assim, durante os séculos seguintes, como parte da
tradição romana, sendo encontrados em diferentes tipos de relações.
Há de se notar também que, para além da corrente utilitária, alguns autores apontam
que a amicitia romana também poderia ser estabelecida com base no fator de afeição e
afinidade, dado que estamos falando de um tipo de relação social, heterogênea, em sua forma.
Para alguns deles, as trocas entre amigos eram vantagens da relação, não seu objetivo
primeiro.18 Há ainda alguns autores que buscam fundir ambas as ideias, considerando tanto o
elemento afetivo quanto o interesse em uma troca de favores recíprocos 19. Nesse sentido, a
presente pesquisa se aproxima dessa última corrente, selecionando e analisando, entretanto, os
casos relativos à amicitia utilitária.
A passagem do século I d.C. ao II d.C, foi, de forma contrária ao período ciceroniano,
uma época marcada por uma estabilidade política e econômica. Nesse meio, é comum a
utilização do termo pax romana para se referir ao sentimento gerado no contexto que se inicia
14
O caráter utilitário da amicitia romana é fortemente defendido por Koenraad Verboven em The Economy of
Friends. Economic Aspects of Amicitia and Patronage in the Late Republic. Latomus, 2002.
12
A Teoria Clássica Econômica se pauta na ideia de homo oeconomicus, segundo a qual o que motiva o homem
a se desenvolver é puramente a busca pelo lucro e interesses individuais.
16
BRUNT, P. Amicitia in the Late Roman Republic.The Cambridge Classical Journal 11, 1965, p. 14.
14
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva.Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 112-126.
18
Ver:BRUNT, P. Amicitia in the Late Roman Republic.The Cambridge Classical Journal 11, 1965, p. 1-20;
16
Ver: GRIFFIN, M. De Beneficiis and Roman Society. The Journal of Roman Studies, 93, 92-113, 2003;
KONSTAN, D. Aamizade no mundoclássico. Odysseus, 2005; WILLIANS, C. A. Reading Roman Friendship.
Cambridge University Press, 2012.
15

com a ascensão de Nerva em 96 a.C e que tem seu auge sob os governos de Trajano e
Adriano.20 Entretanto, o poder do princeps não era totalitário, e o Senado ainda possuía um
papel vital no desenvolvimento da política romana da época.
De fato, o panorama da Roma na época de Plínio, o Jovem, nos é fornecido de maneira
surpreendente em suas Cartas. Nelas, apesar da linguagem erudita e de seu formato de
criação, temos menções a muitas trocas entre amigos do escopo político do autor, além de
muitos trechos sobre dívidas e obrigações políticas. E, nesse contexto, assim como no de
Cícero, podemos visualizar uma dinâmica de relações sociais que residiam no intercâmbio de
favores conhecidos como officia. Estes, apesar de sua similaridade com o conceito
republicano, faziam parte de uma rede de serviços prestados dentro de uma hierarquia política
mais estruturada, na qual existiam amigos “maiores e menores”, como o próprio Plínio
mencionou em suas cartas.21
Essa hierarquia correspondia às relações de patronato e clientela, sistema no qual o
imperador era o grande patrono de todos. Os “amigos do imperador” 22 faziam parte de um
escopo selecionado de cidadãos da elite romana, em posições mais ou menos próximas a ele,
que variavam segundo sua função.23
Segundo Andrew Wallace-Hadrill, o poder imperial era exercido com base em certos
tipos de conduta, que possuíam, por sua vez, ambições distintas de acordo com a imagem que
o governante queria passar. Nesse sentido, isso servia para demarcar proximidade com
aqueles que poderiam exercer algum benefício para o imperador, enquanto outros assinalavam
uma distância social bem definida. De acordo com Wallace-Hadrill, Trajano ressignificou os
officia amicorum por prestar respeito e deferência por amigos mais do que qualquer outro
imperador já havia feito até então.24
Apresentados os pressupostos básicos que nortearam essa pesquisa, cabe nesse
momento expor a divisão que foi feita para cada uma de suas partes.
Na primeira parte da dissertação apresentaremos as propostas teóricas e metodológicas
que orientam o trabalho de pesquisa. Depois de algumas conversas com professores do
PPGHC, chegamos à conclusão de que seria importante a elaboração de um capítulo teórico

20
Tal conceito, de acordo com Hannah Cornwell, teve sua origem ainda na República e, posteriormente, passou
por uma mudança semântica importante no Império.
21
Plin., Let., 2, 6; Plin., Let., 7, 3; Plin., Let., 7, 17.
22
Plin., Let., 1, 18.
23
WALLACE-HADRILL, A. Civilis princeps: between citizen and king. The Journal of Roman Studies, v. 72,
1982, p. 32.
24
WALLACE-HADRILL, A.Op. Cit., p. 33.
16

que precedesse as análises de casos, em virtude da escassez de trabalhos sobre economia


antiga no Brasil que tenham como base teórica preceitos da Sociologia e da Antropologia. A
crítica de muitos historiadores se direciona ao fato de que a utilização de estudos
contemporâneos dessa área para a pesquisa em História Antiga seria anacrônica. Acreditamos,
entretanto, que, estabelecendo limites necessários, podemos utilizar as contribuições de outras
Ciências Humanas para o entendimento de muitas características das sociedades ao longo do
tempo.
No entanto, tendo em vista que esta dissertação é vinculada a um programa de pós-
graduação em História, preocupamo-nos igualmente com a elaboração de um quadro teórico-
conceitual na área, que nos proporcione bases para a interpretação dos documentos em
consonância com as supracitadas teorias. Afinal, como já mencionado anteriormente, a
presente pesquisa possui um forte caráter interdisciplinar, inclusive coerente com as linhas
mestras do PPGHC: não por acaso, os pressupostos de Marcel Detienne – um dos defensores
deste diálogo – foram escolhidos como aporte metodológico. Por isso, mostra-se
imprescindível a utilização de conceitos próprios do mundo antigo, como de amicitia, mutua
officia, fides e beneficia, cujos significados serão analisados em seus devidos contextos.
A segunda parte é dedicada ao estudo da amicitia e das redes de amizade encontradas
nas cartas de Cícero, uma vez que entendemos que tais redes eram extremamente necessárias
para a configuração de muitas relações financeiras no período em questão - problemática que
também será abordada na terceira parte. Acreditamos que, mesmo selecionando dois recortes
temporais específicos, como a Roma tardo-republicana e a Roma imperial de Trajano,
podemos estender a nossa análise ao período intermediário entre eles, uma vez que
mobilizaremos conceitos que perpassam por essas temporalidades.
Utilizaremos uma perspectiva historiográfica que tem como foco as relações sociais,
partindo do pressuposto de que a economia romana continha valores morais, que estavam
intimamente imbricados às relações financeiras, conforme atenta Konraad Verboven25.
Na terceira parte, a discussão será em torno das relações de amizade estabelecidas em
um contexto diferente, a saber, a Roma de Plínio, o Jovem. Aqui, nossa principal hipótese, ao
comparar contextos distintos da sociedade romana, é a de que a formação e o estabelecimento
das redes de amizade respondiam às demandas sociais, políticas e econômicas específicas de
cada temporalidade. Ao comparar processos distintos de estabelecimento de um mesmo
objeto social – nesse caso a amicitia, mediante a operação dos corpora epistolares,

25
Op. Cit., p.13.
17

objetivamos demonstrar os meios pelos quais tal objeto era mobilizado em resposta a uma
demanda de interesses coletivos específicos.
Por fim, mobilizaremos alguns estudos da Sociologia e da Antropologia para que
possamos compreender as relações de amizade que se desenrolavam na Roma de Plínio, o
Jovem, assim como fizemos em relação ao contexto de Cícero. Destacaremos a importância
da tomada da economia moral como âmbito indispensável à análise das redes de amizade
romanas. Aqui, nos utilizaremos do método comparativo experimental (MCE) para criar os
quadros comparativos dos processos de estabelecimento das relações de amizade no mundo
romano, destacando as diferenças e similitudes entre os processos, de forma a entendermos o
modus operandi da amicitia em dois contextos distintos.
Nossa preocupação principal é entender os meios que determinavam o aparecimento
das relações de amizade de acordo com demandas contextuais específicas. Partiremos do
princípio, primeiramente, do qual as redes de amizade contribuíam e em muitos casos eram
até essenciais para a formação dessas relações; a problemática a ser desenvolvida neste último
capítulo é a de compreender como as redes de amicitia, como pequenas estruturas,
influenciavam na formação de trocas nos dois contextos em questão e como, em cada um
destes, tais redes se mantinham. Dessa forma, objetivamos entender a importância das redes
de amizade per se e além; como estas se formavam nos dois contextos analisados e de que
forma determinavam, em um plano maior, o funcionamento do mundo político e financeiro
romano.
Por fim, determinamos que seria importante salientar a grande importância da temática
escolhida para a pesquisa, no campo dos estudos da antiguidade no Brasil, em especial, no
que diz respeito à área da História Econômica. Os estudos sobre economia romana são
pontuais e ainda possuem pouca adesão no país, se comparando a outros campos de
conhecimento. No entanto, é uma área de estudo que cresce em produção bibliográfica em
outros países, sobretudo na França e nos Estados Unidos. Ainda, grande parte dos trabalhos
em História Econômica se atém à quantificação e trabalhos com números, dados, taxas de
juros, etc.
Nos aproximamos, por outro lado, do pressuposto de que a economia romana continha
preceitos morais, sendo necessária a análise das relações financeiras e econômicas como
relações sociais, analisadas com base em teorias sociológicas e antropológicas, como
salientado pelos trabalhos sobre amicitia e economia moral romana de Konraad Verboven.
Inovamos, assim, no que diz respeito à utilização de estudos sociais sobre trocas e
18

reciprocidade, que trazem à luz características da sociedade romana ainda pouco conhecidas.
Analisar o mundo antigo através de outras áreas das Ciências Humanas – especificamente a
Antropologia e a Sociologia – demonstra a viabilidade e proficuidade do diálogo
interdisciplinar para a compreensão de sociedades multiculturais.
No Brasil, a utilização da documentação epistolar para análise de contextos
econômicos é relativamente escassa, e se encontra, em grande parte, relacionada a trabalhos
sobre escravidão e economia escravista. A presente pesquisa se posiciona de forma original,
uma vez que não identificamos, até o momento, produção bibliográfica nacional que analise
sistematicamente o corpus documental em questão através da ótica escolhida. Por serem
documentos originais e de escrita pessoal e privada, as cartas nos oferecem ricas informações
sobre a vida econômica e diversos outros âmbitos da vida social romana, facilitando, também,
que tomemos como base para análise estudos de viés antropológico. Nelas, encontramos
desabafos, motivações, exposições claras sobre dívidas e uma gama de sentimentos subjetivos
por parte do autor, bem como falas específicas sobre amizade e finanças – o que nos é de
especial interesse para a análise das relações sociais da época.
Atualmente vivemos em um momento de tensões políticas em nosso país, que
contribui para pensarmos sobre a complexidade das trocas entre sociedade e indivíduo e as
diferentes esferas de ação construídas pelos agentes sociais. Ainda, em um crescente
movimento de ascensão do neoliberalismo no mundo, consideramos de fundamental
importância a presente pesquisa, pois esta dialoga com o conhecimento sobre os meios que
fazem da Economia uma Ciência Social, revestida de significados sociais e que não se pauta
somente no utilitarismo das sociedades capitalistas.
19

PARTE 1

Documentação, conceitos e considerações teórico – metodológicas

1.1 Documentos e métodos

1.1.1 Cícero e Plínio, o Jovem: a documentação nos seus recortes temporais e espaciais

O sumo epistolográfico de Cícero e de Plínio, o Jovem, foi redescoberto em períodos


diferentes, porém sua utilização seguiu um padrão comum; no caso das cartas do Arpinate,
temos um resgate ao final do século XVIII das cópias e manuscritos feitos por Petrarca, que
os conservou e difundiu pela Europa do início da Idade Moderna26. Tais manuscritos
passaram a ser considerados como uma forma propriamente literária pelo escopo humanístico
no final deste contexto27. Em relação às cartas de Plínio, sua descoberta deu-se por volta do
final do quinto século, período no qual foram manuscritas por escolásticos – as transcrições
sobreviveram, apenas em parte, até o século XVI, passando por reedições nos séculos
posteriores.28
Tais escritos passaram a ser utilizados como fonte documental pela historiografia de
forma recorrente na segunda metade do século XX, quando as cartas antigas começaram a ser
estudadas em grande escala. Uma nova historiografia, apoiada no desenvolvimento da
chamada Nova História e dos estudos pós-coloniais deu espaço para a progressiva inserção
deste gênero na documentação.
Segundo Georg Iggers, essa progressiva inserção da epistolografia como fonte
historiográfica foi fruto do conjunto de transformações que envolveram a guinada
epistemológica do período: novas demandas sociais requeriam novos olhares sob as
possibilidades de pesquisa histórica 29.
No que concerne às cartas da Antiguidade romana, tal período resgatou a grande
quantidade de missivas de autores como Cícero, Sêneca e Plínio, o Jovem, utilizadas para o
estudo de variadas problemáticas em seus próprios contextos – desde questões quantitativas,

26
CAVALLO, G., FEDELI, P., GIARDINA, A. Lo spazio letterario di Roma antica. Salerno, 1989, p. 466.
27
O viés literário das cartas antigas passa a ser questionado no início da era contemporânea e remanesce nas
críticas tecidas à epistolografia até hoje. Falaremos sobre isso no decorrer do texto.
28
REYNOLDS, L; WILSON, N. Scribes and Scholars: A guide to the Transmission of Greek and Latin
Literature. Oxford University Press, 2013, p. 318.
29
IGGERS,G. Historiography in the twentieth century: From scientific objectivity to the postmodern challenge.
Wesleyan University Press, 2005, p. 73.
20

como a análise das taxas de juros na Roma antiga, até aquelas que envolviam usos e costumes
dessa sociedade.
A obra epistolar ciceroniana conta com mais de 900 cartas conservadas, e é dividida
em trinta e sete livros, organizada em quatro grupos: a) dezesseis livros destinados a
familiares e amigos (Ad familiares); b) dezesseis dirigidos ao amigo Ático (Ad Atticum); c)
três livros de textos enviados a Quinto, irmão de Cícero (Ad Quintumfratrem) e d) dois livros
a Bruto (Ad Brutum)30. O período de escrita vai do ano de 68 a.C. a 43 a.C.
Situando-as em seu contexto, as cartas de Cícero são produtos de um período de
intensa agitação política e social, a segunda metade do século I a.C. Sua importância
documental reside no fato de que nelas temos a maior quantidade de informações disponíveis
sobre a vida romana da época, em número muito maior do que em qualquer outro documento
do período. As relações humanas nos são expostas de maneira abundante, de forma que
podemos analisar como elas se desenvolviam no palco político e econômico da elite ao redor
de Cícero31.
As cartas desempenhavam um papel fundamental para esse escopo social: eram elas o
principal meio de comunicação à distância da época, servindo de intermediação entre as
pessoas, garantindo o repasse de uma variedade infinita de informações. A quantidade de
missivas escritas ou ditadas por Cícero ao dia poderia chegar a dez ou mais, segundo Guy
Achard. 32 É claro que tal número poderia variar consideravelmente de acordo com as
circunstâncias, mas ele nos é suficiente para compreendermos a importância das
correspondências na Roma da tardo-república. Apenas uma pequena parte de todas as
missivas escritas por Cícero sobreviveu até os nossos dias. Para John Hall, essa pequena parte
corresponderia apenas a um por cento da atividade epistolográfica do arpinate, levando em
consideração os anos de sua carreira política 33.
As cartas romanas dessa época ainda guardavam semelhanças com os modelos
epistolográficos gregos, principalmente em relação à construção do conteúdo. Também era
comum que, em alguns casos, a escrita da carta se desse no idioma grego, ou que guardasse
conteúdos como frases ou expressões de tal escrita. Isso se explica pelo fato da língua grega

30
A coletânea de cartas aos familiares conta com 435 cartas, enquanto as Cartas à Ático somam 426. As cartas
ao irmão Quinto e a Bruto perfazem um total de 53.
31
É importante esclarecer que a documentação analisada na pesquisa, a saber, as Cartas de Cícero e Plínio, o
Jovem, fazem parte de um âmbito elitista e senatorial. As relações descritas nelas, portanto, residem
exclusivamente nesse meio e é a elas que nos referimos quando tratamos de redes de amizade.
32
ACHARD, G. La communication à Rome. Les Belles Lettres, 2006, p. 139
33
HALL, J. Politeness and politics in Cicero's Letters. OUP USA, 2009, p. 16.
21

ser de comum vivência para a elite romana daquela época 34. Porém, as cartas romanas se
diferenciavam das gregas em muitos aspectos; entre os homens de poder da política romana
elas funcionavam como meios para estabelecer e manter vínculos de officia e necessitudo35.
Era por meio delas que terminologias relacionadas à amizade foram criadas e difundidas pela
sociedade romana36. Com o tempo, as cartas da elite tardo-republicana se tornaram uma
referência para a escrita de missivas das gerações posteriores.
Quanto à sua difusão, as cartas de Cícero podem ser classificadas como públicas ou
privadas dependendo das circunstâncias e do destinatário. Aquelas dirigidas a grandes
políticos de seu meio por vezes eram públicas e mais de uma cópia era feita, de forma que a
difusão alcançasse o objetivo do remetente37. Como exemplo, temos as cartas com
declarações extensas de amicitia e apoio, que percorriam o meio político da época, assim
como as cartas de recomendação. Estas eram, de maneira proposital, expostas a público em
determinadas situações, como forma de angariar apoios e serviços de membros da elite 38.
Ainda assim, a privacidade das cartas a políticos era mantida em muitas situações.
As cartas a Ático, em contrapartida, são, em sua maioria, privadas, assim como a
maioria das cartas a sua esposa, Terência e a seu irmão, Quinto. Nelas, nos são revelados os
desafetos e angústias de Cícero em relação a outros membros da elite romana, seus
sentimentos mais profundos e uma série de especificidades sobre sua vida e de outros ao seu
redor. É nestas missivas que podemos ter uma visão melhor sobre o mundo das finanças da
época, pois Cícero nos expõe relatos de seus e de outros endividamentos. Além disso, tais
escritos nos dão uma visão complexa sobre o funcionamento de nosso objeto, a amicitia –
nesse sentido, veremos que, na época do Arpinate, nem sempre um amigo era, de fato, “um
amigo”.39
De acordo com Michael Von Albrecht, é possível que muitas destas cartas privadas
tenham sido destruídas, em virtude de seu conteúdo sensível ou comprometedor40. A maioria
delas era enviada por escravos ou servos de confiança de Cícero 41, bem como por amigos que
estivessem de passagem pela residência ou pelo local de estadia deste.

34
COTTON, H. Greek and Latin Epistolary Formulae: Some Light on Cicero's Letter Writing. The American
Journal of Philology, v. 105, n. 4, 1984, p. 409.
35
Falaremos sobre tais conceitos no capítulo 2.
36
HALL, J. op.cit., p. 19.
37
MORELLO, R. Writer and addressee in Cicero’s. The Cambridge Companion to Cicero, 2013, p. 213.
38
VON ALBRECHT, M. Cicero's Style: A Synopsis. Followed by Selected Analytic Studies. Brill, 2003, p. 71.
39
Trata-se da chamada amizade utilitária, da qual falaremos no capítulo 2.
40
VON ALBRECHT, M.op.cit., p. 70.
41
Como seu escravo, e mais tarde liberto, Tirão.
22

Quanto ao estilo da escrita, este também variava de acordo com o grau de intimidade
entre os correspondentes, do nível de escolaridade do destinatário e do tema da carta 42. É
comum o uso de humor e ironia nas cartas a Ático, seguindo o chamado Sermo Cotidianus, a
linguagem mais aberta e coloquial falada pelos membros da aristocracia romana 43. O emprego
de tal linguagem nos ajuda a visualizar máximas ou expressões de pensamento comuns da
época, como frases e ditos populares, principalmente nas missivas mais íntimas. Nas cartas de
tema mais formal ou dirigidas a homens importantes do palco político, o estilo e o tom dos
escritos mudam, seguindo um viés mais retórico.44
Além disso, o estilo das cartas ciceronianas se alterava de acordo com o humor de seu
remetente e de influências externas. Von Albrecht atenta para o fato de que, após a morte da
filha Túlia, as cartas de Cícero assumem um tom frequentemente mais pesaroso e solene,
mesmo nas cartas a Ático 45. Nesse momento, não vemos mais a ironia que tanto caracterizava
a correspondência entre amigos.
Aqui é importante notar que as cartas nos revelam a forma como Cícero sempre estava
ciente dos assuntos que diziam respeito a seus aliados ou inimigos. Nelas, vemos como o
nosso autor tentava influenciá-los, de forma a concluir seus objetivos. Essa circulação de
informações só era possível graças a uma extensa rede de amigos, que repassavam notícias e
informações particulares ou oficiais. A amicitia, dessa forma, era uma das bases que
sustentava a grande movimentação de informações na República romana 46. Ela é uma peça
indispensável para entendermos a configuração epistolar do período.

***

A obra epistolar de Plínio, o Jovem47 conta com 247 cartas e é dividida em dez livros.
As missivas dos nove primeiros livros são dirigidas a 105 destinatários diferentes, enquanto o
décimo livro é um compilado de missivas a Trajano e suas respostas, do qual faz parte

42
Como exemplo citamos uma carta de Cícero a Ático, privada, que possui o mesmo conteúdo de uma enviada,
no mesmo momento, a Catão, porém apresentando diferenças de estrutura e estilo: comparar Cic., Let. Att,5.20. e
Cic., Let. Fam,15.4.
43
HALL, J. op.cit., p. 11.
44
VON ALBRECHT, M.op.cit., p. 54
45
Op.cit., p. 119.
46
POLO, Francisco. Circulation of Information in Cicero’s Correspondence of the Years 59–58 bc. In: Political
Communication in the Roman World. Brill, 2017. p. 104.
47
A partir daqui trataremos o autor pelo seu nome principal - Plínio, de modo a evitar repetições contextuais.
23

também o famoso discurso Panegírico. Sua obra abrange um período de cerca de dez anos, de
96-97 a 108 d.C48.
Algumas cartas escritas após a morte de Domiciano foram publicadas posteriormente;
no geral, o contexto de sua obra permeia a transição do governo de Nerva para Trajano e nos
mostra um período de crise política, a qual este tentou solucionar. Após esse momento, temos
uma valorização dos feitos do imperador, o que corrobora com a tese da chamada pax romana,
que passa a caracterizar um momento de relativa estabilidade política, de continuação de uma
grande expansão do território romano, marcado por intensa atividade militar e reformas
urbanas. Porém, é importante notar que, mesmo nesse contexto, os embates na arena política e
os conflitos entre senadores e o imperador ainda remanesciam como em épocas
antecedentes49.
Além disso, as cartas de Plínio nos são importantes para a compreensão das mudanças
relativas à literatura e à cultura de sua época. Nesse sentido, sua obra é constituída por
verdadeiros ensaios literários, construídos na forma epistolar, que nos apontam o modo como
a própria atividade epistolográfica se desenvolveu ao longo do tempo.
Muitas das cartas plinianas foram escritas partindo de um único tema, construídas para
serem apreciadas e divulgadas por um público específico, geralmente membros da elite
imperial ou mesmo amigos. Todas foram editadas e disponibilizadas pelo próprio Plínio para
divulgação50. Essa é uma das características que diferenciam as cartas dos autores em questão:
enquanto Plínio se atém geralmente a um único assunto, Cícero dá lugar a uma gama extensa
de assuntos por carta.
Segundo Elaine Fantham, era comum, no contexto pliniano, a prática de escrita de
cartas “artísticas”, literárias, que eram trocadas entre amigos. Em tais cartas, havia a
preocupação com as representações sociais dos indivíduos – e é precisamente em Plínio que
conseguimos notar que essa preocupação é deveras constante. A auto-representação em
missivas foi, de fato, uma característica desse período da cultura romana 51.Dessa forma, as
cartas de Plínio foram criadas e editadas a fim de passarem uma imagem ideal de seu autor e

48
A investigação histórica divide os campos de estudo a partir das cartas de Plínio em quatro áreas: sociedade e
economia; prosopografia; cultura e a nova doutrina cristã; este último devido ao fato de Plínio haver sido o
primeiro autor não cristão a escrever sobre o desenvolvimento e a repressão imposta à nova religião.
49
SOLDEVILA, R. Retouching a Self-portrait (Or How to Adapt One’s Image in Times of Political Change):
The Case of Martial in the Light of Pliny the Younger. In: Political Communication in the Roman World. Brill,
2017. p. 258.
50
FANTHAM, E. Roman literary culture: from Cicero to Apuleius. JHU Press, 1999, p. 196.
51
FANTHAM, E. op.cit., p. 197.
24

contexto. Mesmo assim, temos uma boa visão da exposição de suas relações com outros
homens da esfera política, que caracterizam as trocas da amicitia.
Diferentemente das cartas de Cícero, as de Plínio seguem um estilo um pouco mais
rígido, menos livre de comunicação aberta com o destinatário, o que é explicado pelo intuito
de publicação e pelo teor literário das mesmas. Ainda assim, alguns historiadores, como
Adrian Sherwin-White, destacam a influência das cartas do arpinate sob a escrita de Plínio.
Para este autor, Plínio selecionou a obra epistolar de Cícero e se utilizou de sua herança,
tomando por emprestado elementos de estilo e comunicação 52.
Apesar de a influência ciceroniana ser, de fato, inegável na obra de Plínio, é necessário
estabelecer, de acordo com a crítica contemporânea, alguns pontos de distinção, que conferem
à obra epistolar de Plínio um caráter singular. Jennifer Ebbeler sintetiza o debate ao dizer que

Enquanto Sêneca escreveu cartas eruditas para a posteridade, longe


da confusão e agitação do fórum, as cartas de Cícero são, em contrapartida,
cotidianas e efêmeras. As cartas de Plínio diferem tanto das de Cícero
quando das de Sêneca: elas evitam o abertamente político, mas são ainda
sobre a vida cotidiana. Plínio empurra Cícero e Sêneca para fora do caminho
para criar uma situação [apropriada] para a originalidade de sua contribuição
(EBBELER, 2001, p. 77).

Assim, autores modernos costumam apontar para a originalidade das cartas de


Plínio, o qual herdou uma variedade de práticas de redação de cartas, desde as cômicas até as
refinadas e formais53. Não havia, até sua época, um gênero epistolar propriamente dito, que
pudesse servir de referência para a escrita de missivas. Além disso, Plínio se utilizou de outros
aportes literários para a configuração de suas cartas; segundo Ilaria Marchesi, ao fazer isso,
“Plínio criou uma nova forma de epistolografia literária ao mesmo tempo em que se inscreveu
em uma tradição literária estabelecida, mas eclética”.54
Dessa forma, a escolha da documentação epistolar como base para o entendimento de
questões relacionadas ao âmbito da amicitia e do poder se faz profícua mediante o estudo de
situações relacionadas ao cotidiano dos autores. Assinalamos assim, que a grande quantidade
de menções a relações de amizade presentes em ambas as obras foi o principal motivo para

52
SHERWIN-WHITE, A. Pliny, the Man and his Letters. Greece & Rome, v. 16, n. 1, 1969, p.77.
53
Alguns autores que corroboram com essa tese são Casquero (1983, p. 400), Arcos Pereira (2008, p. 351),
Marchesi (2008, p. 7) e Gibson e Morello (2012, p. 78).
54
MARCHESI, I. The art of Plinys letters. Cambridge university press, 2008, p. 241.
25

sua escolha. Por serem documentos originais, as cartas nos oferecem ricas informações sobre
vários âmbitos da vida social romana, facilitando, também, que tomemos como base para
análise estudos de vieses interdisciplinares, como a Antropologia, a Sociologia e a Literatura.
Nas missivas, encontramos desabafos, motivações, exposições claras sobre inúmeros temas e
uma gama de sentimentos, bem como falas específicas sobre o contexto da época e seus
personagens – o que nos é de especial interesse para a análise de quaisquer tipos de relações
sociais.
Utilizaremos duas edições para o trabalho com as fontes documentais: tanto para as
cartas de Cícero quanto para as de Plínio recorremos à Loeb Classical Library, com a tradução
de Sir Dr. Shakleton-Bailey para o escopo ciceroniano e de Betty Radice para o pliniano. Em
ambos os casos também utilizamos as traduções da Editoral Gredos, com traduções,
respectivamente para o caso de Cícero e Plínio, de Miguel Rodríguez-Pantoja Márquez
(Cartas a Ático); José A. Beltrán (Cartas aos familiares) e Julián González Fernández.
Para o contexto de Cícero, selecionamos as cartas nas quais podemos analisar a
instituição da amicitia e seus conceitos complementares, como mutua officia, benevolentia,
beneficium, commendatio e necessitudo. Nas relações com Marco Júnio Bruto (expostas nas
cartas a Àtico selecionadas e estudadas a partir do caso dos credores de Salamina) e Apio
Claudio Pulcro, estudaremos a forma como a gestão da amicitia impactava diretamente nas
estruturas políticas e pessoais de poder na Roma tardo-republicana entre os anos de 58 a 48
a.C..
Para a análise da gestão das relações de amicitia na Roma de Trajano selecionamos as
cartas nas quais são expostos os conceitos de liberalitas, amore, benevolentia, beneficium e
commendatio. Além disso, daremos atenção especial à relação do autor com seus amigos e
com o imperador Trajano, de forma a compreender os interesses e benefícios por trás das
relações entre estes. Nesse caso, nosso recorte temporal se estabelece entre os anos de 97-108
d.C..

1.1.2 Gênero documental e metodologia de análise


Uma carta é uma expressão de si. Nela, o autor pode expor toda série de sentimentos,
pensamentos, emoções; pode nos dar acesso a informações sobre sua vida e época. Na
historiografia, a carta é um documento original, não derivado de qualquer outro, é autêntico
em toda a sua forma. Assim, se tomarmos como exemplo a quantidade de missivas
remanescentes da antiguidade romana, podemos imaginar o quão fértil é esse terreno para o
26

historiador: a quantidade de temas que podem ser estudados a partir delas é, de fato,
grandiosa. As cartas são consideradas os documentos mais expressivos aos quais se tem
acesso, segundo classificação de Robert C. Angell e Ronald Freedman (1971, p. 294-295),
junto com as biografias, os diários e as autobiografias.
A utilização de cartas como documentação pela historiografia se interpõe entre a
fronteira da História e da Literatura. Na Antiguidade grega a carta já possuía um caráter
literário e retórico: nas escolas de retórica, modelos de cartas eram criados com vistas no
desenvolvimento de um padrão educado de escrita. Tais modelos influenciaram a escrita de
cartas na sociedade romana, principalmente a partir do florescimento de sua literatura no
século I a.C55. À essa influência, foram adicionados ou reformulados padrões e significados, o
que conferiu à carta romana características singulares.
Uma dessas características é flexibilidade, e, no caso das cartas privadas, assim como
de algumas literárias (como as de Plínio), a escrita epistolar assume uma grande variedade de
temas e formas. Um de seus traços específicos é que se confira como um meio de
comunicação entre pessoas distantes, encurtando distâncias espaciais ou temporais entre
remetente e destinatário 56.
Trinidad Arcos afirma que, na Antiguidade Romana, a carta podia servir como reflexo
de um determinado ethos, revelando ao destinatário sua personalidade e anseios, além de
manifestar características de certos contextos. Além disso, por meio desse gênero textual, o
autor poderia demonstrar seu ânimo e escrever com franqueza, em especial nas cartas
privadas. Estas, por sua vez, mantendo o caráter privado e devido a tal franqueza, não podiam
ser divulgadas ou lidas por terceiros sem autorização do remetente, preservando-se a
característica de segredo deste gênero, excetuando-se os casos em que as cartas eram
propositalmente divulgadas. 57
Quanto à sua forma, havia diferenciações substanciais em relação a quem recebia a
carta; a forma de tratamento variava de acordo com a idade do destinatário (jovem ou idoso)
ou a posição dele dentre os conhecidos do remetente, fosse ele um filho, um pai, ou amigo. A
forma também mudava em casos de cartas oficiais 58.

55
KENNEY, W.J., CLAUSEN, W.V. (org.). The Cambridge history of classical literature Vol II: latin literature,
Late Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 247.
56
ARCOS, T. De Cicerón a Erasmo: La configuración de la epistolografía como género literario. Canarias:
Boletín Millarés Carlo, 2008, p. 8.
57
ARCOS, T. Op.cit., p.10.
58
Op.cit., p.13.
27

Outra característica importante do gênero epistolar é a brevidade e a clareza na


comunicação. Apesar de Cícero ter escrito um número imensurável de longas cartas – fato que
sintetiza a singularidade da escrita do Arpinate, todas continham um pedido de desculpas pela
necessidade do ato de extensão do conteúdo. Em geral, a brevidade era uma característica
epistolar comum na época, que se estendeu até os dias de Plínio, o Jovem59.
A partir do século XIX a “literacidade” das cartas passou a ser questionada. Alguns as
consideravam parte da literatura apenas se o conteúdo fosse remetido a um padrão literário
comum ou se fosse intenção do autor que fossem publicadas em um rol literário. Tal
discussão permanece viva até os dias de hoje – não se pode falar em um gênero literário
padronizado e muitos não o consideram como um gênero, de fato; assim, o estudo de cartas na
literatura acabou ganhando uma importância menor, como aconteceu na área da História60.
Como já dito, o uso de cartas pela historiografia só tomou forças a partir da segunda metade
do século XX. Hoje em dia o gênero epistolar é tratado como um gênero literário primário e
muitos estudiosos ainda o inserem no âmbito da para-literatura. Na verdade, há uma carência
latente no que diz respeito ao estudo deste gênero na atualidade.
Ao analisar as correspondências antigas, o historiador deve ter em mente o que
afirmou Michel Perrot: estas, embora se constituam como testemunhos importantes de uma
sociedade, também são escritas de forma muito pouco transparente, através de manipulações
do discurso61. Afinal, a escrita da carta em si é uma escolha discursiva: nem tudo pode ser
dito, e só é dito o necessário. Tais manipulações do discurso são descritas por Patrick
Charaudeau como “encenações do ato de linguagem”. Para ele, há cálculos e escolhas que são
feitas na escrita de uma carta: o que dizer?, como dizer?, como ele vai reagir?. Assim, na
análise epistolar, o historiador deve se atentar para a intenção daquilo que está sendo colocado
em questão na carta. “De que maneira isso está sendo veiculado, ou, qual será a intenção
estratégica de manipulação (de convencimento)?”62
Um exemplo de como a escrita epistolar é variante no que tange a tais escolhas são as
correspondências trocadas entre Cícero e seu amigo Ático e entre Cícero e Dolabela. À
Dolabela, Cícero tece uma série de elogios, procurando firmar o laço de amizade com este. Na
Carta VIII 13, Cícero chega a afirmar: “Tens que saber que nada me é mais agradável que tu,

59
KENNEY, W.J., CLAUSEN, W.V.Op.cit., p.13 p. 760.
60
WHITE, P. Cicero in letters: epistolary relations of the late republic. Oxford University Press, 2010, p. 98.
61
PERROT, M (org.). Introdução. In: História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Grande
Guerra. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 55.
62
CHARAUDEAU, P. Uma teoria dos Sujeitos da Linguagem. In: Análise do discurso: fundamentos e práticas.
Hugo Mari [et al]. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso, FALE/UFMG, 2001. p. 27.
28

Dolabela”. Se tomadas isoladamente, as cartas à Dolabela dariam prova de um sentimento de


afeição e de amizade “desinteressada” por parte de Cícero. Porém, analisando as cartas a
Ático, temos a real configuração do caso: para o melhor amigo, Cícero é claro e aberto –
Dolabela lhe é insuportável. Tolerável apenas para a manutenção de seus interesses.
Assim, de acordo com Ângela Maria de Castro Gomes,

A escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão


integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua verdade”. (...) O
que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo
registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de “dizer
o que houve”, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou,
retrospectivamente, em relação a um acontecimento (GOMES, 2004, p. 14).

Para Michel Foucault, a carta é uma maneira de o remetente se manifestar a si próprio


e aos outros. Assim, para o autor, escrever uma carta implica em uma necessária introspecção,
a partir do momento em que há escolhas que são feitas sobre o que dizer ou não. Assim, a
carta é “uma abertura de si que se dá ao outro”, que permite a construção de uma narrativa de
si63.
No trabalho heurístico, portanto, o historiador deve levar em conta as características da
escrita epistolar e as relações entre o discurso de seu autor e seu contexto. Outro ponto
importante é a análise das relações entre o autor da carta e seu destinatário. Assim, somente a
partir de um estudo sistemático da documentação epistolar, das cartas enviadas e das
recebidas, das redes e relações entre os sujeitos, é possível fazer uso deste gênero no estudo
de um objeto específico. A carta é um corpo em ação, com uma dialética particular, ao mesmo
tempo vazia - pois é codificada -, e expressiva. Dessa forma, é importante considerar que os
fatos escritos tanto por Cícero quanto por Plínio não apresentam dados acontecidos factuais, e
sim possibilidades, que devem ser analisadas de acordo com o contexto histórico e com outros
aportes documentais.
Para a análise do corpus documental epistolar, escolhemos como metodologia de
leitura e seleção de textos a Análise de Conteúdo conforme proposta por Laurence Bardin.
Nesse sentido, o levantamento das informações sobre as trocas inerentes relações financeiras
foi feito após a coleta e catalogação qualitativa das menções específicas na documentação.
Segundo a autora, a técnica da Análise de Conteúdo nos proporciona o levantamento de

63
FOUCAULT. M. Ditos e escritos. São Paulo: Forense Universitária, 1983, p. 149-159.
29

informações que possam estar escondidas ou subtendidas no texto 64 – o que, no nosso caso, se
torna extremamente importante, dado que a documentação epistolar tem um caráter específico
de subjetividade, que é inerente do próprio gênero literário – analisar um conteúdo assim
requer o cuidado com pré-julgamentos ou falsas interpretações, uma vez que a factualidade do
que está sendo dito pelo autor só se prova mediante a comparação com documentos de outros
gêneros.
Seguindo a proposição desse método de análise, nosso primeiro passo foi categorizar
as informações relevantes encontradas nos documentos – escolhemos fazer isso mediante
unidades de análise separadas por datação e tipos de relação, que foram reunidas em dois
grandes catálogos: um relativo às cartas de Cícero e, outro, às cartas de Plínio. Após essa
etapa, partimos para a descrição de cada uma das relações encontradas. O último passo da
metodologia residiu, por fim, na interpretação dos dados reunidos – para tanto, utilizamos o
auxílio da bibliografia escolhida para o estudo do nosso tema.
Segundo Bardin, a Análise de Conteúdo (AC) é um conjunto de instrumentos
metodológicos que se aperfeiçoa constantemente e que se aplicam a discursos diversificados,
principalmente na área das Ciências Sociais, com objetivos bem definidos e que servem para
desvelar o que está oculto no texto, mediante decodificação da mensagem65. Essa metodologia
consiste em tratar os textos selecionados a partir de um roteiro. Este se inicia com uma pré-
análise, que nós, historiadores, chamamos de etapa heurística, a saber, a seleção de
documentos. Logo após, formulam-se as hipóteses e objetivos da pesquisa. A segunda etapa
consiste na exploração da documentação de forma a aplicar uma segunda metodologia, mais
técnica, que, no nosso caso, é o método comparativo experimental, do qual falaremos
posteriormente. A última etapa, por fim, requer a interpretação do conteúdo selecionado.
Segundo Bardin, esse tipo de metodologia pode ser aplicado a pesquisas de cunho qualitativo
e quantitativo66.
A primeira etapa desse processo, a qual Bardin denomina de pré-análise, possui uma
série de fases, que podem ser adaptadas pelo pesquisador de acordo com o que se procura.
Tais fases seriam:
1. Leitura flutuante;

2. Escolha dos documentos;

64
BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3ª. Lisboa: Edições, v. 70, n. 1, 2004, p. 223.
65
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977: p. 38
66
Op.cit., p. 66
30

3. Formulação de hipóteses e dos objetivos;

4. Referenciação dos índices e elaboração de indicadores;

5. Preparação do material.

A fase dois, a escolha dos documentos, consiste “nas operações de codificação,


desconto ou enumeração, em função de regras previamente formuladas” 67. A fase três,
“formulação de hipóteses e objetivos”, já aborda o tratamento dos resultados obtidos e
interpretação, ligando tais resultados ao escopo teórico, permitindo avançar para conclusões
que levem ao avanço da pesquisa.
O método também orienta que a pesquisa leve à formação de um material de apoio
elaborado, como índices e catálogos, que podem ajudar na interpretação dos textos
selecionados. Nesse sentido, selecionamos, na primeira fase ou “pré-análise” a categoria com
a qual iríamos trabalhar, como a amizade. Após a seleção da espacialidade e da temporalidade
da pesquisa, passamos para a escolha do aporte documental, a saber, as cartas de Cícero e
Plínio, o Jovem, partindo do pressuposto da regra da homogeneidade e da pertinência, ou seja,
selecionamos todos os excertos encontrados na documentação sobre relações de amizade e de
poder e logo as categorizamos por tipos de relações e suas conexões umas com as outras. Essa
categorização permite que o problema seja decodificado, desvelado para ser resolvido.
No processo de exploração do material, também aplicamos uma segunda metodologia,
a saber, o método comparativo experimental de Marcel Detienne, a fim de estabelecermos
uma análise de cunho comparatista, de acordo com a proposta da pesquisa. Para Detienne,
essa abordagem permite que o historiador se depare com um campo de experimentação de
comparáveis, que respondem a configurações específicas, que podem personificar, inclusive,
determinadas ausências68. Dessa forma, o método experimental consegue fazer emergir
diferenças e semelhanças a respeito dos contextos sociais analisados na pesquisa, tornando-se,
assim, uma ótima ferramenta para o estudo comparativo ao qual nos propomos.
Em sua obra Comparar o incomparável, Detienne lança a proposta de um
comparativismo construtivo, trabalhado em conjunto, que dê conta do estudo e da comparação
de sociedades afastadas no tempo e espaço, no qual podem ser feitas comparações sincrônicas
ou diacrônicas; em seu estudo sobre a religião greco-romana, por exemplo, o autor procurou

67
Op.cit., p.48
68
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias e Letras, 2004, p. 8.
31

estudar cada divindade não apenas segundo suas particularidades específicas, mas em
conjunto com suas ações e os lugares ocupados por estes no panteão.
Em sua proposta, Detienne prega a aproximação entre historiadores e antropólogos,
uma vez que estes últimos já utilizam o comparativismo como método em seu campo. Para
ele,

Quando um estudioso opta por fazer anatomia comparada, ele não começa
fazendo um julgamento de valor sobre os diversos órgãos que pretende
considerar em todas asespécies animais. Um linguista que trabalha em uma
gramática comparada, seja a das línguas do Cáucaso ou do mundo indo-
europeu, para estabelecer traços específicos recorre tanto à morfologia como
à fonética, e também ao vocabulário. Ele seria ligeiramente ridículo caso
chegasse a dizer que “só se pode comparar o que é comparável”. Um
historiador usa isso sem a menor preocupação. Além do mais, desde década
de 20, do séc. XX, os historiadores mais reputados se regozijam de retomar a
fórmula, embora ela proíba a comparação além do círculo estreito do
imediatamente“comparável”, um horizonte restrito à opinião dominante de
um meio e de um saber garantido de antemão diante do que é incomparável.
Nenhum antropólogo recorre a tal provérbio. A fórmula pareceria
incongruente até na boca do mais encarniçado defensor de seu “terreno” ou
de sua concessão (DETIENNE, 2004, p. 9, 10).

Assim, para ele, os objetos comparáveis não são temas, e sim mecanismos e
articulações entre os elementos analisados. São, em suas palavras, “placas de encadeamento
decididas por uma escolha, uma escolha inicial”69. Detienne afirma que, nesse sentido, a
História Comparada não deve servir para encontrar leis gerais e sim para analisar micro
sistemas de pensamento, compreender culturas em relação a outras, em suas diferenças e
semelhanças; para ele, a compreensão de casos distantes produz espaços de inteligibilidade e
reflexão muito valiosos ao historiador. Suas críticas são, portanto, contundentes ao
individualismo na História Comparada, bem como uma chamada a um trabalho multifocal. O
comparativismo experimental de Detienne se baseia em um trabalho que leva em conta uma
série de problemas que perpassam diferentes objetos de pesquisa, estabelecendo um campo de
experimentação comparada entre historiadores e antropólogos. Segundo Regina Bustamante e

69
Op.cit., p. 58
32

Neyde Them, o inovador em Detienne é o trabalho coletivo apontado como proposta ao


trabalho historiográfico; “é um convite à mudança no modo de se fazer História” 70.
Sabemos que há, além de uma resistência ao método comparativo por parte de muitos
núcleos de pesquisa, uma grande dificuldade na junção de áreas de conhecimento em um
trabalho coletivo, no campo acadêmico brasileiro. Ainda assim, o método experimental pode
ser aplicado e se mostra profícuo na elaboração de pesquisas de caráter individual, como é o
nosso caso, pois nos permite compreender paralelos e contrastes de processos históricos, além
de lidar com múltiplas possibilidades, de forma a construir uma História mais ampla. Assim, a
metodologia de Detienne mantém a sua utilidade em um nível de análise necessário para o
descobrimento de diferenças e semelhanças em processos sociais, políticos e econômicos.
No método comparativo experimental, o primeiro passo é a eleição de uma
configuração específica, anterior às próprias instituições, que pode ser remetida a diferentes
sociedades e temporalidades. Em nosso caso, essa configuração reside no conceito de
amicitia. O segundo passo remete à escolha do conjunto de comparáveis que respondem a
essa configuração – que, aqui, seriam os processos de amicitia em duas temporalidades
distintas na sociedade romana: os séculos I a.C. e II d.C. A partir de então, procura-se pela
rede de significados polissêmicos, pontuando, inicialmente as diferenças entre os processos, o
que é, nas palavras de Detienne, um trabalho experimental. Assim, elegendo um conjunto de
comparáveis, o historiador pode se dedicar a comparações sincrônicas ou diacrônicas,
observando, segundo seus objetivos, como diferentes eventos se comportam diante de um
conjunto de variáveis.
Dessa forma, os processos de amicitia em Cícero e Plínio, o Jovem, como conjunto de
comparáveis, serão submetidos a avaliações para análise de como se estabelecem e como se
mantém em dois contextos distintos, quais são as suas características definidoras e até que
ponto se diferenciam ou se afastam ambos os processos. Assim, avaliaremos como cada um
destes responde ao seu contexto específico, e como são utilizados como ferramentas de
manutenção de poder e status, tanto político quanto financeiro. Nesse sentido, partiremos do
pressuposto de Peter Burke de que a História Comparada não pode se centrar apenas em
diferenças e semelhanças, mas deve atentar-se ao contexto e as formas de conexão entre os
objetos de análise, definindo também a singularidade destes; dessa forma, as analogias são

70
THEML, N; BUSTAMANTE, R. História comparada: Olhares plurais. Revista de História Comparada, v. 1,
n. 1, p. 3, 2007.
33

fundamentais na comparação de situações específicas 71. Assinalar as especificidades dos


processos demarca, assim, a nossa escolha pela vertente sociológica e antropológica da
História Comparada. Marshall Sahlins mostra, nesse sentido, que ao comparar processos
distintos, deve-se respeitar as singularidades de cada um destes, que são frutos de suas
próprias historicidades72.
Dessa forma, a presente pesquisa se propõe a desenvolver um tripé avaliativo para os
processos analisados, no esquema diferenças x semelhanças + singularidades de cada
processo, seguindo as etapas do método comparativo experimental de Detienne. A seguir,
propomos um protótipo para a compreensão do método empreendido.

Configuração remetida à sociedade romana: amicitia

Temporalidades: século I a.C e século II d.C

1ª etapa 2ª etapa

Estabelecimento das diferenças entre os processos de Estabelecimento das similaridades entre os processos
estabelecimento e manutenção da amicitia. de estabelecimento e manutenção da amicitia.

Técnicas metodológicas segundo o método experimental comparativo

Aplicar variáveis: contexto do século I. a.C. Aplicar variáveis: contexto do século II. d.C.

Definir atuação da configuração para a manutenção Definir atuação da configuração para a manutenção
de relações de poder de relações de poder

Definir especificidades dos processos Definir especificidades dos processos

Assim, a amizade romana se manifesta como uma forma de envolvimento social que
requer o estabelecimento de vínculos políticos e financeiros para a manutenção do poder de
seus agentes. A partir dessa compreensão, escolhemos nos ancorar nos pressupostos da
Sociologia e da Antropologia Econômica, já que, concordando com Koenraad Verboven
(2002), as relações de amizade no mundo romano devem ser analisadas sob o prisma social e
antropológico73. Definimos, portanto, a construção de um diálogo posterior e sucinto com o
conceito de Poder Simbólico segundo Pierre Bourdieu, a fim de entender os delineamentos

71
BURKE, P. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992: p.6
72
SAHLINS, Marshall. Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70, S/D: p.10
73
Da mesma forma, Theda Sckopol defende o uso de uma sociologia histórica comparativa, para o trabalho
comparativo. Ver: Sckopol, T. Doubly Engaged Social Science: The promise of comparative historical analysis.
New York: Cambridge University Press, 2003.
34

epistemológicos sobre o funcionamento destas esferas, entendidas como instituições sociais.


Da mesma forma, utilizaremos alguns autores do campo da Antropologia e da Sociologia,
como Marcel Mauss, Karl Polanyi e Marshall Sahlins, que nos oferecem uma gama de
trabalhos sobre as questões relativas à amizade e à reciprocidade no mundo antigo e moderno.

1.2 Problemática e conceitos nos autores


1.2.1 A amizade em Cícero

Conceituar a amizade romana da era tardo-republicana não é tarefa fácil. Como toda
categoria pertencente às relações humanas, trata-se de uma instituição heterogênea – de fato,
existiam e ainda existem diversas formas de amizade. Portanto, consideramos necessário
salientar a que tipo de amizade em específico nos referimos: na presente pesquisa
analisaremos as trocas desenvolvidas entre amigos da mesma esfera e status social, as
chamadas relações simétricas. Desconsideramos, assim, as relações entre patronos e clientes e
entre pessoas de níveis sociais diferentes, uma vez que nosso intuito é exemplificar a
importância da amizade como instrumento de poder no palco político romano, e, para isso,
escolhemos trabalhar com o círculo de amigos íntimos de nossos autores, aqueles que foram
essenciais para a manutenção das alianças pessoais.74
As relações de amizade simétricas são definidas pela Antropologia como um conjunto
de relações que se desenvolvem entre pessoas iguais, de mesmo âmbito e status social, que
mantêm interesses em comum75. Nesse sentido, nossa documentação fornece uma vasta lista
de personagens que se enquadram nessa categoria: são homens da elite romana, pertencentes
ao alto escopo político, que mantém a necessidade de fortalecer os vínculos entre as principais
famílias de seu meio. Tais homens formam o grupo de amigos ao qual iremos nos ater – os
amicii de Cícero e de Plínio, O Jovem.

74
Aqui analisaremos as principais características do conceito de amicitia nas duas temporalidades escolhidas; no
capítulo 2, trabalharemos tal conceito em conjunto com a nossa documentação. Em Plínio, abriremos uma
exceção para expor brevemente a relação patrons-cliens entre este e o imperador Trajano, ponto que
consideramos de suma importância. Porém, nos ateremos sempre à análise das relações simétricas entre os
agentes.
75
Reforçamos aqui a conexão entre os estudos antropológicos sobre a amizade e a presente pesquisa,
Abordaremos os aportes teóricos da pesquisa no terceiro subtópico deste capítulo. Para entender as
características das relações simétricas e assimétricas entre amigos ver LEVI, Giovanni. Reciprocidad
mediterránea. Hispania, v. 60, n. 1, 2000; e MAUSS, Marcel. The gift: The form and reason for exchange in
archaic societies. Routledge, 2002.
35

É importante debatermos aqui o conceito de amizade romana: diferentemente do nosso


próprio entendimento sobre a amizade, geralmente atrelado a noções de cunho emocional, a
amizade romana possuía características singulares e complexas. Segundo Koenraad
Verboven, a amizade romana – em latim amicitia –, deve ser entendida como um fenômeno
complexo. Para Craig Willians, a amizade romana é um sistema de categorias, e estas devem
ser interpretadas de acordo com as relações que as constituem. Essa complexidade, para o
autor, foi responsável por fazer da amicitia romana um referencial para o estudo da amizade
no mundo ocidental por séculos. Afinal, diferentemente dos gregos, que não tinham uma
palavra específica para a amizade (utilizando phília – amor para este tipo de relação), os
romanos criaram seu próprio léxico – o que é vital para compreender a importância desse tipo
de relação naquela sociedade 76.
Entretanto, a palavra amicitia abordava um conjunto extenso de relações 77. Não havia,
por exemplo, uma palavra que definisse o grau de uma amizade, como “melhor amigo” ou
“menor amigo”78. O conceito era tão amplo que, paradoxalmente, na Roma tardo-republicana
palavra amicus era utilizada, mesmo entre inimigos políticos ou desafetos pessoais 79. Sendo
assim, é necessária uma análise cuidadosa sobre cada tipo de relação presente na
documentação e suas relações com a vida pessoal do autor e seu contexto.
Em termos gerais, a amicitia romana se desenvolveu através de um sistema político
cuja base remanescia na necessidade de se manter laços de união em tempos difíceis. De
acordo com Ronald Syme, as próprias facções políticas romanas se uniram mais pela
vantagem em suprir interesses e favores mútuos (officia) do que por ideologias em comum80.
Nesse sentido, Peter Brunt afirma que, em muitos casos, a palavra amicus no epistolário
ciceroniano significava apenas um “companheiro político” 81.
O próprio Cícero demonstrava, em suas cartas, uma preocupação constante com a
manutenção de vínculos sociais – manter a amizade com as famílias da elite romana e com
grandes famílias de equites era fundamental para que seu poder político não esmorecesse e

76
WILLIAMS, C A. Reading Roman Friendship. Cambridge University Press, 2012, p. 45.
77
De acordo com David Konstan, “the Roman word for friendship, derives from the verb amare, "to love"
(Cicero, De amic. 26; cf. Partitiones oratoriae on caritas and amor as the constitutive elements of amicitia) but
even the superficial connections that gentility denominated as amicitia "took their name by external analogy
from the true affection which is the primitive significance of the word”.
78
De acordo com Craig Willians, “optimus amicus means ‘the best kind of friend’, not ‘the best of my friends”.
79
VERBOVEN, K.Op.cit., p. 10.
80
SYME, R. The roman revolution. Oxford Paperbacks, 2002, p. 157.
81
BRUNT, P. Amicitia in the Late Roman Republic. In: Proceedings of the Cambridge philological society.
Cambridge University Press, 1965. p. 15.
36

para que seus interesses fossem supridos82. Ele sabia que sua posição política e social
dependia disso83. Assim, preservar a amicitia com estes correspondia a manter apoio político
e financeiro, dois tipos de suporte extremamente necessários no cenário conturbado do último
século da República romana.
O cenário de crise política demandava que o homem romano possuísse, entre os seus,
garantias de auxílio em momentos difíceis. Essa demanda criava então a necessidade de se
manter redes de apoio – o que era feito mediante o estabelecimento de relações de amicitia,
que se ancoravam, por sua vez, no princípio da fides.
Entender a essência da fides, como valor moral pertencente à área dos conceitos
morais ou políticos, é também singularmente importante para a nossa análise sobre a amicitia.
Para os antigos romanos, a fides se revestia de caráter divino: a deusa era a personificação do
conceito – ela estabelece a noção de compromisso como base da sociedade e da ordem. A
fides, como base da amizade romana, estava imbuída de um sentimento de dever, juramento,
pacto e fidelidade à palavra 84. Na literatura republicana, a fides geralmente aparece como a
garantia da palavra dada; a bona fides, uma das características básicas do direito romano,
transmite a ideia de genuinidade, honestidade em cumprimento da palavra dada 85. Anna Clark
em sua obra Divine Qualities, salienta que a fides era, na República Romana, tanto uma
realidade concreta quanto um conceito moral, mais denso e mais importante que a tão
conhecida Libertas86.
Dessa forma, as relações de amicitia estavam enraizadas no solo da fides romana; isso
significava que havia uma obrigação moral em se cumprir a palavra dada a um amigo. Essa
obrigação se relacionava a prestar auxílios e retribuir sempre com gratia87 a ajuda recebida.
Para Verboven, a amicitia é um tipo de amizade instrumental, baseada necessariamente na
reciprocidade (mutua officia)88. Assim, há um substancial utilitarismo na amizade romana: as
redes de amigos estavam ligadas pelos princípios da confiança e da lealdade, personificadas
pela fides; entretanto, essa ligação só era mantida devido a interesses em comum 89.

82
Sobre a rede de amigos de Cícero, consultar o Capítulo 2.
83
WOOD, N. Cicero's social and political thought. University of California Press, 1991, p. 181.
84
PEREIRA, Maria Helena. Estudos de história da cultura clássica. Fundação Caloreste Gulbenkian, 1965, p.
332.
85
Op.cit., p. 323.
86
CLARK, A. Divine qualities: Cult and community in Republican Rome. Oxford University Press, 2007, p. 36.
87
Falaremos mais sobre o conceito de gratia no Capítulo 2.
88
VERBOVEN, K.Op.cit., p. 12.
89
Op.cit., p. 30.
37

É importante frisar que é exatamente esse tipo de amizade que tomaremos como
referência para a análise das relações na documentação. Porém, isso não significa que o
utilitarismo recorrente nas cartas seja um padrão único para a amizade; como já dito, existem
diversos tipos de relações dentro dessa categoria, que não podem ser conceituadas em sua
totalidade. Cícero mantinha muitas amizades afetuosas – a principal nos é revelada pela sua
relação com Ático. David Konstan, salientando o caráter afetivo de tais relações chegou a
afirmar que as trocas entre amigos eram vantagens da troca, não seu objetivo primeiro.90 Peter
Brunt considera que o fator da afeição é a base das relações de amicitia91. Já Koenraad
Verboven e Richard Saller assinalam que as trocas poderiam sim ser vantagens de uma
relação, porém, o interesse em uma troca de favores recíprocos era o componente-chave da
manutenção das relações de amizade 92.
Em seu tratado filosófico De amicitia, escrito a pedido de seu amigo Ático, Cícero
disserta, em forma de diálogo, sobre o papel e a necessidade da amicitia para as relações
sociais e políticas entre os romanos; tenta, por sua vez, dissociar o conceito de amizade da
noção de utilitas, construindo uma imagem da amicitia “ideal”. O diálogo se dá entre Caio
Lelio e seus dois genros, Quinto Mucio Escévola e Caio Fanio, figuras conhecidas do círculo
dos Cipiões, que exaltam a figura de Cipião Emiliano como o exemplo do bom amigo. Em
seu diálogo, Cícero situa como base da amicitiaa virtus – para Lelio, a principal voz da
conversa, Cipião era o exemplo do homem bom, correto, que personificava o ideal da virtus
romana. Na obra, a amizade é colocada como bem maior depois da sabedoria. Cícero a coloca
como um sentimento puro, natural, afetivo, que é a base das relações entre as pessoas e é
engendrada pela própria natureza e a ela ligada, argumento utilizado por ele para descartar o
caráter utilitário da mesma93.
É interessante notar, porém, que apesar de negar a origem utilitária da amicitia, ele
não o faz de forma completa, reconhecendo que, dela, pode, de fato, nascer algo de utilitário,
que provenha da necessidade. Nesse sentido, é dever dos amigos se ajudarem e se sustentarem
em tempos de adversidade e conflitos: “Nossa amizade não nasceu, pois, da utilidade, mas a
utilidade a seguiu”94.

90
KONSTAN, D. Friendship in the classical world. Cambridge University Press, 1997, p. 122.
91
BRUNT, P. Op.cit., p. 352. SALLER, R. Op.cit., p. 32.
92
VERBOVEN, K.Op.cit., p. 30.
93
OAKLEY, S. (1992). J. G. F. POWELL (ed. tr.): Cicero: On Friendship and the Dream of Scipio (Laelius de
Amicitia and Somnium Scipionis). Edited with an Introduction, Translation and Commentary. Warminster: Aris
& Phillips, 1990.
70
Cic. De Amicitia. Cap. XIV. As amizades nascem da semelhança de costumes.
38

Dessa forma, Cícero reconhece que, embora a utilidade não seja a motivação principal
para se firmar uma amizade, ela a pode preceder. Esta amizade, para ele, é uma
correspondência, uma linha recíproca de “amor e bons serviços” 95; porém, esta, em suas
palavras, não pode ser um balanço entre despesa e receita – ou seja, não se deve esperar da
amizade que haja sempre algo em troca. O caráter utilitário desta, portanto, é um tipo de
“bônus” que surge das boas relações, e não a sua origem.
Porém, o discurso ciceroniano sobre o ideal de amicitia, respondia às demandas
políticas e sociais de seu contexto. Ao versar sobre em quais bases os laços de amizade
deveriam se formar, Cícero delimitava um padrão moral de argumentação filosófica a ser
seguido pelos leitores de seu tratado96. Não devemos, porém, tomar a amicitia como um
conceito revestido apenas por este viés ideal. A complexidade do termo exige a análise de
casos reais a partir da documentação disponível – é, de fato, através das cartas privadas de
Cícero que conseguimos entender que o conceito vai muito além do que o nosso autor até
então nos mostrou em seu tratado.
As redes de amizade delimitavam o padrão da política romana, segundo Andrew
Wallace-Hadrill. Para que as eleições romanas ocorressem, por exemplo, era necessário que
cada um ativasse seu círculo de amigos e se colocasse no sistema de obrigações 97. Esse
sistema de obrigações, característico da amicitia era personificado pelos mutua officia, ou
serviços mútuos, que cada homem deveria prestar a seus amigos, obedecendo à regra moral da
fides.98Essa regra valia mesmo para inimigos políticos; segundo Brunt, a amicitia perpassava
por lados políticos distintos, e mesmo assim se mantinha alinhada de acordo com os interesses
em questão99.
Para Konstan, Cícero se movia sempre entre a amizade e a troca de benefícios,
“defendendo sua integridade tanto por se abster de ofender um suposto amigo quanto por ser
cuidadoso com relação a quaisquer dívidas genuínas de gratidão que possa ter”100. Esse é um
panorama comum da sociedade romana da tardo-república. Cícero fazia parte de uma rede de
amizades que se espalhava pelo Mediterrâneo antigo; segundo Verboven, tais redes são
definidas como “configurações informais de contatos que podem ser utilizados para atingir

71
Cic. De Amicitia. Cap. XVI. Quais são os limites da amizade.
96
Op.cit., p. 14.
97
WALLACE-HADRILL, A. Patronage in Roman society: from Republic to Empire. Routledge London, v. 63,
1989, p. 78.
98
KONSTAN, D.Op.cit., p. 123.
99
BRUNT, P. Op.cit., p. 352.
100
KONSTAN, D.Op.cit., p. 130.
39

objetivos específicos; não havia autoridade comum e seus membros eram formalmente
independentes”101. Tais redes eram, em suas palavras “locais de cooperação”, que tinham
como objetivo preservar privilégios e garantir interesses semelhantes.102

1.2.2 A Amizade em Plínio, O Jovem

O papel do homem romano na Antiguidade dependia de sua posição na hierarquia


social, do status de sua família e da capacidade de manter relações pessoais que validassem e
garantissem essa posição. De acordo com Peter Garnsey, existia uma obrigação implícita em
tais relações – a de prestar suporte aos seus envolvidos. Essa obrigação, que é uma disposição
moral, é uma das bases da amicitia103. Nesse sentido, é um lugar-comum que, ao se analisar a
amizade romana do período imperial, se tome como exemplo discursivo o tratado De
Beneficiis, de Sêneca, um documento que valida o olhar romano da época sobre o conceito e
suas implicações.
O conceito de amizade - tanto em Cícero quanto em Plínio – era indissociável do
conceito de beneficia. Segundo Miriam Griffin, este era personificado pela troca de bens e
serviços feita entre duas ou mais pessoas, e foi uma característica importante da sociedade
romana tanto na República quanto no período Imperial104. De acordo com Sêneca, a amizade
deveria se pautar nas regras baseadas no dar, no receber e no devolver os benefícios
concedidos corretamente105. A troca de benefícios e favores, assim como a reciprocidade entre
amigos eram, assim, cruciais para a prática da amicitia106.
Mesmo se tratando de um tratado moral, onde a amizade é idealizada (como aconteceu
no De Amicitia, de Cícero), o De Beneficiis nos fornece certo padrão para entendermos o
funcionamento das relações sociais da época. Nele, Sêneca é latente ao destacar a importância
da reciprocidade na amizade. Nesse sentido, Richard Saller afirma sobre a obra de Sêneca: “It
is clear that amicus, beneficium, officium, meritum and gratia can be used as signs of
reciprocal exchange relationships”. 107

101
VERBOVEN, K. Op.cit., p. 23.
102
Op.cit., p. 23.
103
GARNSEY, P.; SALLER, R. The Roman Empire: economy, society and culture. University of California
Press, 2014, p. 173.
104
GRIFFIN, M. De Beneficiis and Roman Society. The Journal of Roman Studies, v. 93, 2003, p. 92.
105
Sen. De Beneficiis, 1.4.2.
106
GRIFFIN, M.Op.cit., p. 92.
107
SALLER, R. Op.cit., p. 126.
40

Essa troca recíproca de favores e serviços deve ser analisada de acordo com o tipo de
relação existente. Segundo Wallace-Hadrill, existia uma grande diferença entre as trocas feitas
entre iguais, ou seja, entre membros de uma mesma posição social e aquelas feitas dentro de
uma relação de dependência onde não há simetria, como é o caso das relações entre patronos e
clientes108. Na sociedade Imperial, as redes de amizade constituídas de forma simétrica
geralmente envolviam membros mais ou menos próximos do centro de poder do Estado
romano109. Como já frisamos, daremos atenção especial a esse tipo de relação, nos
aproximando do círculo de amigos íntimos de Plínio, o Jovem, que mantinham o mesmo
status social que este.
Plínio estava diretamente ligado ao círculo de amigos do imperador Trajano e possuía
uma posição privilegiada nele. Porém, não possuía o mesmo status do poder imperial, ou seja,
estava em uma posição inferior à de Trajano. Nesse sentido, a historiografia das últimas
décadas tem analisado tal relação como um vínculo entre cliente e patrono, representado,
respectivamente, por Plínio e o imperador 110. Assim, Plínio desempenhava, para Trajano, a
mesma função de outros funcionários, mantendo seu status no poder político, sem
desenvolver uma amizade propriamente afetiva com seu superior. É notável, nesse sentido, a
disparidade entre a escrita das cartas de Plínio a Trajano, sempre repletas de elogios e
referências, e as respostas de Trajano, demasiadamente formais 111.
A amicitia mantida entre Plínio e o imperador, dessa forma, poderia não conter um
caráter afetuoso, porém ainda assim estava assentada nos princípios da fides e da gratia. O
contexto político da época demandava que o círculo de amigos do imperador resguardasse tais
valores, uma vez que tensões políticas entre o senado e o imperador eram comuns e por isso
se fazia necessário manter uma rede de apoio político112.
Salientando o papel da amicitia na Roma de Plínio, Renata Venturini afirma que:

A amicitia, que poderíamos traduzir muito genericamente por amizade,


sugeria diversas formas de envolvimento social. Quando nos referimos à
instituição da amicitia já deixamos transparecer tal diversidade. Ela
significava uma relação entre os amici, na qual a afetividade vinha se ligar às
determinações pragmáticas da vida. Ela não era apenas um laço subjetivo de
afeição, mas era também uma ligação objetiva baseada na assistência mútua
e na fides, isto é, na lealdade entre os amici (VENTURINI, 2005, P. 146).

108
WALLACE-HADRILL, A, Op. cit. p. 77.
109
GRIFFIN, M. Op. cit. p. 96.
110
Op. cit. p. 99.
111
Op. cit.
112
NOREÑA, C. The Social Economy of Pliny’s Correspondence with Trajan. American Journal of Philology:
The Johns Hopkins University Press, 2007, p. 242.
41

Dessa forma, para que uma relação de amicitia fosse estabelecida, os membros
envolvidos deveriam necessariamente cumprir uma série de obrigações em favor uns dos
outros. Tais obrigações eram geridas com base na confiança mútua, personificada pela fides.
Nas cartas plinianas encontramos uma série de relações que se estabeleceram com base nesse
princípio e nos ajudam a enxergar o funcionamento das redes de amizade da época.
Na carta 2.6, por exemplo, Plínio comenta sobre a estratificação da amizade ao
mencionar que existem amigos ‘maiores’ e ‘menores’ na visão social romana113. Ele critica
essa postura, afirmando que não seria correto classificar os amigos 114. Porém, de acordo com
Julián González, essa visão era comum na sociedade de Trajano, e os amigos “menores” eram
os clientes, enquanto os “maiores” correspondiam a ligações simétricas115.
A respeito desta distinção, Wallace-Hadrill afirma que a mesma não era nem analítica
e nem objetiva; as linguagens da amizade eram aplicadas da mesma forma para uma
infinidade de casos diferentes, nos quais houvesse a obrigação moral de retribuir os benefícios
concedidos por um amigo. No caso de Trajano e seu círculo de amigos, do qual Plínio fazia
parte, existiam trocas efetuadas entre aqueles mais próximos do imperador e aqueles não tão
próximos, o que, caracterizaria um conjunto de relações de clientelismo. Porém o autor é
categórico em salientar que nem todas estas residiam no esquema clientelista, como era o caso
de inúmeros contatos entre amigos de igual status.116
O contexto pliniano diferia em grande parte do de Cícero 117, porém a necessidade de
se manter no jogo político era a mesma. Assim, Saller aponta que o papel político e social de
um amigo residia na força da reciprocidade investida na relação: como os amigos eram
obrigados a retribuírem os favores, todos os beneficia distribuídos e ganhos se tornavam uma
segurança contra infortúnios e em tempos de necessidade 118.

113
Nam sibi et paucis opima quaedam, ceteris vilia et minuta ponebat. Vinum etiam parvolis lagunculis in tria ge
nera discripserat, non ut potestas eligendi, sed ne ius esset recusandi, aliud sibi et nobis, aliud minoribus amicis
-
nam gradatim amicos habet aliud suis nostrisque libertis. Animadvertit qui mihi proximus recumbebat, et an pr
obarem interrogavit. Negavi.'Tu ergo' inquit 'quam consuetudinem sequeris?'Eadem omnibus pono; ad cenam en
im, non ad notam invito cunctisque rebus exaequo, quos mensa et toro aequavi.
114
Há uma intencionalidade moral na escrita desta carta. Mesmo que Plínio pensasse diferente, ele não o diria
publicamente.
115
GONZÁLEZ, J. Introducción. In: Plinio el Joven. Cartas. Introducción, traducción y notas de Julián
Fernández González. Madrid: Editorial Gredos, 2005, pág. 138.
116
WALLACE-HADRILL, A, Op. cit. p. 77
117
Falaremos do contexto histórico de nossos autores nos Capítulos 2 e 3.
118
Op. cit. p. 24.
42

É importante salientar, no entanto, o cuidado que se deve ter ao analisar as relações de


amicitia nas cartas de Plínio, O Jovem. Como expresso por Peter Brunt, Plínio buscava criar
uma auto-imagem valorosa, se preocupando em construir uma moldura de si baseada nas
principais virtudes romanas.119 Sendo assim, visualizamos uma certa tendência em aumentar
regras sociais – de fato, a maior parte das cartas em que o autor menciona a concessão de
benefícios e sua retribuição são cartas de recomendação. Segundo Griffin, entretanto, a
intenção de Plínio era não apenas a valorização de sua própria imagem, mas criar condições
para o estabelecimento de futuros apoios.120Dessa forma, seja qual fossem as intenções
plinianas, suas cartas nos oferecem um grande panorama das relações que se desenvolviam na
Roma da transição do primeiro século; através delas conseguimos analisar os códigos sociais
que geriam os laços de amizade à época.
No decorrer dos capítulos que se seguem, estudaremos de forma detalhada as
variações nas relações de amicitia nos contextos de Cícero e Plínio, O Jovem. Em ambos os
casos a formação de redes de amizade responde a interesses políticos e financeiros e sua
manutenção deriva de interesses coletivos. Dessa forma, a amicitia romana se configurava
como uma ferramenta de poder, uma verdadeira instituição social e política, com diferenças
singulares entre os contextos demarcados, respondendo às demandas de cada época.

1.3 Debate Historiográfico

De que forma a amicitia se configurava como um instrumento de poder político e


econômico no mundo romano? Quais interesses políticos e financeiros sustentavam as redes
de amizade? Para responder a estas questões, fez-se necessário o estudo dos princípios
norteadores da História Econômica e da Sociologia, campos que mantém conexões com
outras Ciências Sociais e vêm sendo utilizados nas últimas décadas por historiadores da
Antiguidade que buscam compreender o mundo romano a partir de seus aspectos sociais.

1.3.1 A História Antiga e a História Econômica


O estudo de questões relativas à economia e às finanças no mundo romano teve sua
impulsão a partir de meados do século XX, principalmente em virtude da importância que o

119
BRUNT, P. Op.cit., p. 255.
120
GRIFFIN, M. Op.cit., p. 104.
43

método serial passou a ter para a escrita da História. Nos anos 1960, foram pioneiros os
trabalhos de Claude Nicolet sobre os negócios da elite romana ligados à terra, onde,
especialmente em sua tese de doutorado, o autor lançou mão de estudos quantitativos para a
análise do sistema econômico romano 121. Mais tarde, apropriando-se da perspectiva de
Nicolet e indo mais além, Jean Andreau desenvolveu, a partir dos anos 1980, um estudo
sistemático sobre o mundo financeiro romano entre os séculos III a.C. e III d.C., apresentando
o universo de transações financeiras privadas ligadas ao mercado de crédito dos ricos
romanos122. Até então, tanto Nicolet quanto Andreau tinham como foco a economia e o
mercado formal de crédito romanos, dentro da perspectiva de uma História Global.
Nos últimos anos, o mercado informal de crédito passou a ser estudado e, nesse
sentido, particularidades das transações financeiras passaram a destacar-se, como as trocas
realizadas em redes de amizade. Os trabalhos de Koenraad Verboven e Marine Ioannatou
foram notórios em tais análises, pois inseriram a importância de uma perspectiva social para
os estudos relativos aos aspectos econômicos e financeiros da sociedade romana, através de
uma metodologia mais qualitativa.
Verboven, em sua obra The Economy of friends: economic aspects of Amicitia,
desenvolveu uma análise sobre a importância das redes de amizade para a estruturação do
mercado de crédito romano, enquanto Ioannatou destacou a importância de princípios morais
para as transações financeiras, a partir de um estudo sistemático das cartas de Cícero em sua
obra Affaires d’argent dans La correspondance de Cicéron123. A partir de então, observou-se
que os estudos sobre as trocas financeiras do mundo antigo romano não deveriam pautar-se
em análises de cunho estritamente racionalista, uma vez que, em tais transações, eram
inseridos preceitos morais e, em alguns casos, visualizam-se questões relativas à manutenção
do poder político e status da elite.
No âmbito da História da Economia romana, tanto quantitativa quanto qualitativa, é
um lugar-comum considerar o debate entre as correntes primitivista e modernista, conhecido
como Bücher-Meyer Controversy, o qual sempre se fez presente. Considerando que a
economia romana seja de base pré-capitalista, ambas as correntes dialogam com os
pressupostos do que a tornaria singular; enquanto os primeiros ressaltam as diferenças entre a
economia antiga e a moderna, estes últimos – os modernistas – tendem à comparação com a
121
NICOLET, C. L'ordre équestre à l'époque républicaine (312-43 av. J.-C.).Paris: E. de Boccard, 1966.
122
ANDREAU, J. La vie financière dans le monde romain. Les métiers de manieurs d'argent (IVe siècle av. J.-
C.-III e siècle ap. J.-C.). Vol. 265. No. 1. Ecoles françaises d'Athènes et de Rome, 1987.
123
IOANNATOU, M. Affaires d'argent dans la correspondance de Cicéron (l'aristocratie senatoriale face a
sesdettes). Diss. Paris: Paris 2, 1997.
44

economia capitalista do século XIX, apontando as similaridades entre elas 124. Esse debate é
discutido pelos clássicos referentes ao mundo econômico romano – e aqui destaco, nesse
sentido, os trabalhos de Moses Finley, Jean Andreau, Claude Nicolet e Peter Garnsey, bem
como os trabalhos de alguns historiadores brasileiros especialistas nas questões econômicas
da Antiguidade romana, como Ciro Flamarion Cardoso, Norberto Luiz Guarinello, Fabio
Duarte Joly, Deivid Valério Gaia e José Knust.
Ainda que tal discussão seja considerada ultrapassada por alguns, muitos trabalhos
ainda apresentam traços de influências de uma ou outra corrente; e aqui é importante salientar
que não há um único viés de análise da economia – ambas as correntes podem dispor de
perspectivas similares e complementares em suas análises, e não raro encontramos obras em
que os autores dialogam com questões relativas a ambas.
A corrente dos chamados historiadores primitivistas, defendida por autores como
Finley e Garnsey, atribui à produção agrícola o papel de base da economia antiga. Para eles,
não havia produção mercantil relevante, pois, os romanos, por exemplo, consumiam quase
tudo que produziam; além disso, havia a ausência de uma “classe empresarial” que
controlasse os lucros da produção. Tal lucro, controlado por uma aristocracia de base
fundiária, era reinvestido apenas na produção agrícola e não em outras formas de produção. A
agricultura, para o romano antigo, era a forma tradicional e mais segura de se obter ganhos,
ainda que não fosse a única.
Na visão dos primitivistas, Roma era uma “cidade-consumidora”, e isso se devia à
influência da política da Urbs sob o mercado – que é o ponto destacado por estes
historiadores: há de se considerar que a influência política impunha limites à produção
mercantil125. E para o entendimento dessa questão, é fundamental a análise dos aspectos
políticos, econômicos e sociais da sociedade romana de acordo com suas características
singulares. É interessante notar que muitos historiadores primitivistas rejeitam o uso de
teorias econômicas, elaboradas no período moderno, para o estudo da economia antiga; para
eles, este seria o mesmo que incorrer no temido anacronismo.
O pensamento de Finley sobre a economia clássica, influenciado por Max Weber,
parte do princípio de que a produção, principalmente a agrícola, escoava para o consumo local
e não para o comércio entre as cidades. Segundo ele, as cidades eram centros de consumo que

124
REIBIG, A. The Bücher-Meyer controversy: the nature of the ancient economy in modern ideology.Tese de
Doutorado. Universityof Glasgow, 2001.
125
REIBIG, A. Op. cit. p. 23.
45

sobreviviam através de impostos e rendas, mais do que pela atividade comercial, sendo
pequeno o comércio entre as regiões.
Para Ciro Flamarion Cardoso, esse modelo é bastante refutável e, nesse sentido, a
Arqueologia teve um papel fundamental. A partir dos anos 1980, os achados arqueológicos do
Mediterrâneo comprovaram que existia, de fato, um fluxo comercial intenso na região,
principalmente a partir do século II a.C., permitindo concluir que o nível da atividade
econômica ali era deveras avançado, em função dos resultados da expansão territorial
romana126.
Por outro lado, de acordo com a perspectiva modernista, podemos visualizar traços
semelhantes entre a economia antiga e a moderna, especialmente tomando como ponto de
análise a economia capitalista do século XIX. Para tais historiadores, a economia romana,
apesar de primitiva, tinha traços de um “pré-capitalismo”, anterior àquele desenvolvido a
partir do mercantilismo do século XVI. Alguns deles chegam a argumentar que de fato
existiam formas de produção mais complexas – como evidencia Norberto Guarinello 127.
Exemplos de tais formas seriam, além da propriedade tradicional camponesa, (a villa) e da
média propriedade escravista que se expandiu após as Guerras Púnicas e durou até o século II
d.C, também o latifúndio, existente durante a República e que resistiu até o Principado. Tanto
a villa quanto este último teriam sido formas de desenvolvimento de forças produtivas e
trocas mercantis128.
Dessa forma, podem-se encontrar paralelos entre a economia antiga romana e a
economia derivada do nascimento do capitalismo: para os modernistas, é o grau de
desenvolvimento da economia romana o principal ponto a ser explorado – o modelo de
produção escravista, por exemplo, é um dos pontos de comparação. Mikhail Rostovtzeff,
historiador que defendia as ideias dessa corrente, pregava que a economia antiga era
comparável à economia moderna em muitas de suas características, descrevendo seus
pressupostos mesmo em termos capitalistas 129.
Há críticas tecidas para ambas as vertentes. Podemos pensar em até que ponto são
coerentes os parâmetros utilizados por ambas para a análise da economia romana – uma vez
que tanto primitivistas quanto modernistas utilizam a economia capitalista como “medida

126
CARDOSO, C. Existiu uma economia romana?Phoinix,v. 17, n. 1, 2011, p. 11.
127
GUARINELLO, N. A economia antiga e a arqueologia rural: algumas reflexões. Classica-Revista Brasileira
de Estudos Clássicos, v. 7, 1994, p. 276.
128
Op. cit. p. 277.
129
REIBIG, A. Op. cit. p. 55.
46

ideal”, sem mencionar que estes últimos ainda tomam como referências alguns elementos da
sociedade moderna - assim, ignoram, certas vezes, as determinações singulares dos espaços
analisados. A presente pesquisa propõe considerar os estudos desenvolvidos por cada uma
destas correntes, sem, no entanto, se apegar a padrões de medida para avaliar a economia e as
relações financeiras derivadas dela. Propomos, em contrapartida, uma comparação interna,
levando em conta as particularidades de cada ambiente estudado, estabelecendo comparações
apenas dentro do período relativo à documentação, a fim de evitar generalizações.

1.3.2 A Sociologia e Antropologia como caminhos interdisciplinares para a


História Antiga

A utilização da Sociologia e da Antropologia como caminhos interdisciplinares para a


História se solidificou na década de 1970, com base na influência da guinada epistemológica
do período, marcado pelo surgimento da História Cultural e pela aproximação da História
com outras Ciências Sociais. Formou-se, assim, uma História polida, tomada pelas críticas
dos Annales nas décadas anteriores e se afastando da visão hegemônica com a qual tanto
havia trabalhado desde o século XIX.
Por sua vez, tamanha a influência das Ciências Sociais no período, a Nova História
fora delineada por historiadores que mantiveram um contato direto com teorias de âmbito
social. Foi como ocorreu, por exemplo, com as teorias relativas ao poder, desenvolvidas pelo
filósofo Michel Foucault. Ao mesmo tempo, uma série de historiadores resgatou os trabalhos
do filósofo marxista Antonio Gramsci, se apoiando em suas considerações sobre a dominação
do Estado e suas estratégias de poder130.
Tanto Foucault quanto Gramsci se basearam em pressupostos da Ciência Política em
seus estudos. Naturalmente, a Ciência Política – que já havia se redefinido e bebido da fonte
da sociologia e da antropologia modernas – passou a influenciar em escala maior os trabalhos
em História Política. As ciências se mesclavam e se redefiniam, naquele momento, com base
em contribuições diversas oriundas dos estudos sobre as sociedades humanas. Esse contorno
passou a ser cada vez mais evidente a partir da década de 1980, quando começam a esmorecer
as pesquisas em História Econômica e da velha História Política 131.

130
VAINFAS, R.; CARDOSO, C. Novos domínios da história. Elsevier Brasil, 2011, p. 47.
131
Op. Cit. p. 55.
47

Nessa mesma década despontaram os trabalhos do sociólogo Pierre Bourdieu, que já


haviam tomado fama nos anos 1970. Assim como Gramsci, Bourdieu se debruçou sobre as
questões ligadas à dominação do Estado e sua reprodução, desenvolvendo o conceito de
habitus132 para explicar a violência simbólica exercida pelo poder – sobre este, passa a
analisar as diferentes estratégias simbólicas de dominação.
Para definir seus conceitos, Bourdieu se utilizou não só da Ciência Política, como
também da Sociologia e da Antropologia. A contribuição destas para o campo da História
veio concomitantemente: os conceitos de habitus e Poder Simbólico passaram ser utilizados
com freqüência do campo da História a partir da década de 1990 e estão presentes de forma
constante nas pesquisas até hoje.
Nesse mesmo momento, a terceira geração dos Annales continuava buscando fora da
historiografia os modelos teóricos para se pensar as relações entre Estado e Sociedade – são
resgatados e utilizados na Nova História Política trabalhos como os de Tocqueville, Hannah
Arendt, Max Weber, Norbert Elias e Louis Althusser. A esse resgate uniu-se a nova corrente
marxista da década de 1970, que lançaram novas discussões sobre o político e o Estado,
tomando por teorias os novos desenvolvimentos das Ciências Sociais. 133
Convencionou-se que uma nova Historia seria ancorada, portanto, numa sociologia
histórica do poder e numa Antropologia Cultural e Política. 134 Segundo Francisco Falcon,
novas possibilidades teóricas surgiram a partir dos trabalhos de Clifford Geertz, Marshall
Sahlins, Louis Dumont, Georges Balandier e Pierre Clastres135. Para ele,

Poder e política passam assim ao domínio das representações sociais e de


suas conexões com as praticas sociais; coloca-se como prioritária a
problemática do simbólico — simbolismo, formas simbólicas, mas
sobretudo o poder simbólico, como em Bourdieu. O estudo do político vai
compreender a partir dai não mais apenas a política em seu sentido
tradicional, mas, em nível das Representações sociais ou coletivas, os
imaginários sociais, a memória ou memórias coletivas, as mentalidades, bem
como as diversas práticas discursivas associadas ao poder (FALCON, 1997,
p. 118).

132
Para uma melhor compreensão desse conceito, ver: BENNETT, T. Habitus clivé: aesthetics and politics in the
work of Pierre Bourdieu. New Literary History, v. 38, n. 1, p. 201-228, 2007. Trataremos desse conceito e das
expressões do poder simbólico no Capítulo 2.
133
CARDOSO, C. et al. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de janeiro: Campus, v. 1, n.
997, p. 508, 1997, p. 118.
134
Op. Cit. p. 119.
135
Op. Cit.
48

Na História Antiga, entre as décadas de 1960 e 1980, Moses Finley e Peter Brunt já
utilizavam aportes da Sociologia e da Antropologia em seus trabalhos. Em sua obra O mundo
de Odisseu (1977), Finley aplicou conceitos desenvolvidos por Bronislaw Malinowski,
Marcel Mauss e Karl Polanyi para analisar a sociedade grega arcaica. Em A Economia Antiga
(1985), partindo dos estudos de Polanyi, Finley argumentou que as sociedades clássicas não
possuíam uma economia de mercado, pois a mesma estaria mergulhada (se utilizando do
conceito polanyiano de Embeddeness) em uma rede de relações sociais. Em 1986, o autor
publicou um ensaio intitulado Anthropology and the Classics, no qual defendia a
Antropologia como área teórica e metodológica a ser utilizada pelo historiador da
Antiguidade. 136
Essa defesa foi feita igualmente por historiadores como Jean-Pierre Vernant e Pierre
Vidal-Naquet, que aplicaram uma abordagem antropológica aos estudos da Grécia Antiga,
entre as décadas de 1960 a 1980. Junto a eles, Marcel Detienne proclamava que a História não
poderia virar as costas ou ignorar as contribuições da Antropologia para o estudo das
sociedades antigas137. Nesse sentido, Detienne defendeu uma História que compreendesse as
estruturas sociais, políticas e econômicas das sociedades antigas com base em uma crítica dos
conceitos modernos da Antropologia e da Sociologia 138.
Miriam Griffin atenta para o fato de que, apesar dessa utilização de categorias sócio-
antropológicas para o estudo da Grécia Antiga ter tomado um grande espaço entre os
historiadores da Antiguidade nas últimas décadas, ainda há uma grande resistência por parte
dos estudiosos da Roma Antiga 139. Nesse sentido, foram pioneiros os trabalhos de Peter Brunt
sobre a amizade romana, tomando como base alguns conceitos da Antropologia, como
obrigação e reciprocidade. Nos anos 1990, Koenraad Verboven fez uma defesa vigorosa sobre
o uso de conceitos sociológicos e antropológicos para o estudo da sociedade romana, em sua
obra The economy of friends: Economic aspects of amicitia and patronage in the Late
Republic, na qual busca analisar de que forma as obrigações da amicitia eram
economicamente úteis para a sociedade da Roma republicana. 140

136
KONSTAN, D. Op. Cit. p. 3-4.
137
DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Idéias& letras, 2004.
138
JOLY, F. Marcel Detienne e o experimento da comparação. Cultura Histórica e Patrimônio. V.2, 2013, p. 53.
139
GRIFFIN, M.Op. Cit. p. 93.
140
Verboven utiliza vários conceitos sócio-antropológicos, sem, no entanto, tomar alguma teoria como
referência.
49

Para o estudo da Roma Imperial, os trabalhos de Richard Saller têm se aproximado de


alguns conceitos sociológicos para a análise dos sistemas de patronato e clientela, como, por
exemplo, a questão da obrigação, da reciprocidade e da gratia inerentes à amicitia –
características defendidas igualmente por Verboven141.
A utilização de tais conceitos por estudiosos da Roma antiga ainda é bastante debatida
atualmente e criticada por alguns; em tais críticas, reside o argumento do anacronismo
relacionado ao uso de teorias modernas. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de José
Knust, segundo o qual,

O fato de partirmos dos problemas e categorias do presente para


estudar o passado não é um problema insolúvel para o historiador, pelo
contrário, é o que possibilita seu estudo. Por outro lado, porém, não é pela
sua imediata aplicação que tais categorias (...) permitem o estudo dos
períodos anteriores. Não podemos fazer uma identificação simples das
realidades antigas com as categorias do presente capitalista (...) É uma
postura crítica perante a sociedade do presente que permite tal metodologia.
Como Bloch disse ter ouvido certa vez de Henri Pirenne, o erudito que
escolhe passar pelo seu mundo de olhos vendados merecerá no máximo o
título de útil antiquário – e deverá renunciar ao de historiador (KNUST,
2016, p. 22).

Dessa forma, entendemos que categorias como amizade, graça e reciprocidade são
fenômenos sociais comuns às sociedades humanas ao longo da História, devendo ser
analisadas de acordo com seus contextos específicos, levando em conta todas as variáveis
possíveis de uma determinada situação. Portanto, as contribuições de autores da Sociologia e
da Antropologia que nos orientam teoricamente (como as obras de Marshall Sahlins e Pierre
Bourdieu) não serão utilizados como modelos fixos; nossas hipóteses não seguem um padrão
- os estudos sobre amizade e reciprocidade aqui utilizados para o entendimento sobre as redes
de amizade na Roma Antiga servirão como linhas de pensamento orientadoras de algumas
análises. Acreditamos na contribuição profícua dos estudos sobre as relações humanas
desenvolvidos entre os séculos XX e XXI por sociólogos e antropólogos, em especial as
noções sobre amizade, poder e reciprocidade.

1.3.3 A amizade na perspectiva histórica


Em geral, na área da História Antiga romana, os estudos sobre amizade se dividem
temporalmente: enquanto na República a amizade romana é analisada com base no conceito

141
GRIFFIN, M.Op. Cit. p. 93.
50

de amicitia, no período imperial os historiadores costumam dar ênfase ao sistema de


patronato.

Os temas relacionados à amizade romana tomaram força a partir da segunda metade do


século XX. Nesse sentido, foi pioneiro o trabalho de Jacques Michel, Gratuité em droit
romain, tese publicada em 1962, na qual considerava a amicitia como uma relação
instrumental baseada na gratia e na fides e reconhecia os mutua officia como característica
inerente das relações de amizade.
Foram essenciais, entre as décadas de 1970 a 1980, os estudos de Peter Garnsey sobre
as redes de amizade que sustentavam o sistema de patronato na Roma Imperial. Em 1970
Garnsey publicou a obra Social Status and Legal Privilege in the Roman Empire, derivada de
sua tese de doutorado, na qual avaliava a forma como as leis romanas serviam aos interesses
da elite imperial; nela também deu atenção especial à relação patrons-cliens, considerando
que havia uma obrigação moral implícita nesse tipo de vínculo, assim como na instituição da
amicitia142.
Garnsey reforçou essa idéia em ensaios posteriores. Ao lado dele, Richard Saller deu
atenção especial às relações de patronato do período Imperial, investigando a forma como
estas impactavam a vida social, política e econômica dos romanos até o terceiro século.
Juntos, publicaram, em 2014, a obra The Roman Empire: economy, society and culture, que
continua sendo um marco nos estudos da sociedade romana entre os séculos I d.C. a III d.C.
Para Saller, havia uma característica fundamental na amizade romana que deveria ser levada
em consideração: o interesse recíproco, por parte das elites, na manutenção de suas
necessidades e de seu status político. Saller é o primeiro historiador a diferenciar a amizade
afetiva daquela chamada de utilitária 143.
Na década de 1970, Peter Brunt retomou as considerações de Ronald Syme sobre a
amizade romana, propondo, entretanto, um estudo mais pragmático sobre tal categoria. Em
seu ensaio Amicitia in the Late Roman Republic, Brunt defende a ideia de uma amizade
utilitária que seria a base das relações entre os homens da elite romana, e que seria
responsável por garantir um sistema eleitoral eficaz e a continuidade do status das famílias,
mediante a renovação constante de votos de amizade. Entretanto, apesar de inovar ao expor o
conceito de amizade utilitária, Brunt acreditava que o fator afetivo ainda era a base de toda e

142
GARNSEY, P. Legal privilege in the Roman Empire. Past & Present, n. 41, 1968, p. 3-24.
143
GRIFFIN, M. Op. Cit. p. 97.
51

qualquer relação de amicitia.144Nesse sentido, seu pensamento se diferenciava de Richard


Saller.
Na década de 1980, Jean Andreau deu início a um estudo sistemático sobre o mundo
financeiro romano entre os séculos III a.C. e III d.C., apresentando o universo de transações
financeiras privadas ligadas ao mercado de crédito dos ricos romanos. Em sua tese, afirma
que a organização financeira romana era subordinada a agentes ligados entre si por laços de
amizade, parentesco ou mesmo de negócios, e que os bancos só agiam em nível municipal 145.
Nesse sentido, Andreau destaca, por vezes, o papel da amicitia para o estabelecimento dessas
relações. Nesse mesmo período, John D’Arms publicou seu The Seaborn commerce of ancient
Rome: studies in archaeology and history, no qual enfatizou a importância da amicitia e da
clientela na organização das atividades comerciais.
Nos anos 1990 cresceu de forma abundante a quantidade de trabalhos que davam
atenção a aspectos da sociedade romana como a amizade. Miriam Griffin desenvolveu um
estudo sistemático sobre a amizade em Sêneca, dando atenção especial ao conceito de
beneficia. A partir de seus ensaios, outros historiadores passaram a analisar a importância de
algumas categorias para o estudo da amizade. Assim como Saller, Griffin deu importância ao
caráter recíproco das relações, apontando que os officia feitos a amigos deveriam
obrigatoriamente ser retribuídos. 146
Assim como a autora, Andrew Wallace-Hadrill se debruçou sobre as relações de
amizade, em especial o patronato, ocorridas entre o círculo de amigos de Tácito e Suetônio.
Em sua obra Patronage in Ancient Society, Hadrill reforça a obrigatoriedade gratuita existente
na fides como sustentáculo da amizade. Também faz uma distinção contundente entre as
relações simétricas e assimétricas de amizade, situando o sistema de patronato nesta última
categoria147.
Contudo, até então, não havia uma obra geral que tratasse do tema amizade na História
Romana. Até que, em 1997, David Konstan publica seu Friendship in the Classical World,
que se torna um grande marco nos estudos sobre amizade no mundo clássico, tanto grego
quanto romano. Porém, Konstan se aproxima de Peter Brunt ao afirmar que o utilitarismo das
relações não nascia com a amizade, mas era fruto secundário desta. Mesmo assim, reafirma o
compromisso estabelecido entre as partes em uma relação de amicitia e nos oferece um

144
KONSTAN, D. Op. Cit. p. 123.
145
VERBOVEN, K. Op. Cit. p. 29.
146
GRIFFIN, M. Op. Cit. p. 85.
147
KONSTAN, D. Op. Cit. p. 126.
52

excelente estudo sobre as categorias romanas inerentes à amizade, a saber, a fides, liberalitas,
amor, gratia e beneficia148.
No ano de 2002 é publicada a tese de Koenraad Verboven, da qual já falamos: The
Economy of friends: economic aspects of Amicitia, na qual o autor lança mão, de maneira
inovadora, de conceitos oriundos da Sociologia e da Antropologia para a compreensão sobre o
impacto da amizade no sistema econômico e financeiro romano da tardo-república. Apesar de
não se ater a um padrão teórico, Verboven utiliza termos próprios destas ciências e faz um
chamado para que outros historiadores utilizem tais conhecimentos no campo historiográfico.
O trabalho de Verboven é inovador no que tange ao uso de uma perspectiva social
para análise de relações financeiras, as quais, até então, eram tão somente estudadas pela
vertente da História Econômica. Mesmo que Richard Saller tenha utilizado alguns conceitos
oriundos da sociologia para a sua análise do sistema de patronato, ele não os validou como
Verboven, que utilizou os princípios da Antropologia Econômica ao falar sobre a amizade.
Não à toa, no mesmo ano Marcel Detienne lança o seu Comparer l'incomparable, no
qual faz o mesmo apelo: para ele, a História teria muito a ganhar se entrasse em compasso
com a Antropologia e dela reaproveitasse seu escopo teórico. Em sua obra, Detienne lança a
proposta de um comparativismo construtivo, trabalhado em conjunto, que dê conta do estudo
e da comparação de sociedades afastadas no tempo e espaço, no qual podem ser feitas
comparações sincrônicas ou diacrônicas; em seu estudo sobre a religião greco-romana, por
exemplo, Detienne procurou estudar cada divindade não apenas segundo suas particularidades
específicas, mas em conjunto com suas ações e os lugares ocupados por estes no panteão; para
isso, se utilizou de estudos antropológicos sobre religião e magia 149.
Em 2012, Craig Williams publica o livro Reading Roman Friendship, no qual faz um
estudo lexical sobre os conceitos que a amicitia abarcava, tomando como base uma série de
documentos antigos, de Catulo a Fronto, e inovando ao considerar inscrições públicas antigas,
gravadas em paredes ou pedras, que fornecem um panorama sobre as relações de amizade da
Roma Antiga – não só entre membros da elite, mas entre a gente comum.
É inaugurado, dessa forma, um novo momento para os estudos sobre a amizade no
mediterrâneo antigo: a partir dos anos 2000, cresceu o número de trabalhos que tomariam
como base de apoio os conceitos trabalhados por sociólogos e antropólogos nessa área.

148
Op. Cit.
149
DETIENNE, M. Op. Cit. p. 25.
53

PARTE 2

A amizade como instrumento de poder em Cícero

2.1 O contexto ciceroniano – anos 58 a 48 a.C.


2.1.1 Breves considerações sobre o autor

Marcus Tullius Cicero nasceu em Arpino, pequena província na região do Lácio em 3


de Janeiro de 106 a.C.. É considerado um dos personagens mais importantes do período final
da República Romana – sua atuação no senado foi uma das peças-chave para o desenrolar dos
acontecimentos da época. Cícero, vindo de uma família de ordem equestre não romana, foi o
primeiro a cumprir todas as magistraturas do Cursus Honorum – dessa forma, era um Homo
Novus. Assim, por não pertencer a uma família tradicional romana, foi alvo de chacota e
preconceitos durante sua atuação no senado, conforme nos mostra a documentação
remanescente sobre sua vida.
Além disso, ficou conhecido principalmente pela sua educação - foi um intelectual
político, admirado pelos seus trabalhos filosóficos150, bem como pelos seus famosos
discursos; do mesmo modo, trouxe muitos dos pensamentos da filosofia grega para Roma,
(muitos historiadores defendem que Cícero introduziu os preceitos da filosofia grega em
Roma) e pelas suas traduções de obras gregas. Da mesma forma, seus modelos de prosa,
léxico e sintaxe revolucionaram as letras latinas, e marcaram um estilo de prosa particular,
que ficou conhecido como estilo ciceroniano.
De acordo com Anderson Esteves, a contribuição de Cícero para a historiografia da
época também foi única. Nesse sentido, o arpinate elabora uma historia ornata, com base na
tradição literária helênica, mas que obedecia a uma verdade retórica. Assim, seria permitido
ao historiador, de acordo com Cícero, realçar, adequar e até mesmo complementar as lacunas
dos fatos, de acordo com o sentido que se desejasse obter. Isso porque a História deve
conduzir a uma moral, servindo como processo orientador da vida. 151
As portas da vida pública de Cícero foram abertas pela sua eloquência política e
jurídica. Sobre sua carreira no Cursus Honorum, sabemos que Cícero iniciou todas as etapas
com a menor idade possível: foi questor aos 31 anos (75 a.C.) - trabalhando na Sicília, e lá

150
Ainda que alguns estudiosos duvidem da originalidade de suas obras.
151
ESTEVES, A. Cícero e a narrativa da história. Rio de Janeiro: Phoinix, v. 19, n. 1, p. 86, 2013.
54

obteve fama com as sete orações proferidas contra o então governador da Sicília, Cornélio
Verres. As orações ficaram conhecidas como Verrinas (In Verrem) e são consideradas a obra-
prima da oratória ciceroniana. Também na Sicília, obteve um grande reconhecimento por
parte do povo local, sendo louvado pela sua excelente gestão, segundo consta nos
documentos. Ademais, tornou-se edil aos 37 anos (69 a.C.); pretor aos 40 anos (66 a.C.) e
Cônsul aos 43 anos, em 63 a.C., ano em que proferiu as famosas Catilinárias (In Lucium
Catilinam) contra Sérgio Lúcio Catilina, acusado de conspiração contra a República – este foi
o maior triunfo político de Cícero como cônsul. Após denunciar a conjuração, Cícero é
alcunhado com o título de Pater Patriae, ou Pai da Pátria, título outorgado pela primeira vez
em toda a história de Roma até então. No ano de 60 a.C., é convidado por Júlio César a ser o
4º membro do triunvirato, juntamente com Pompeu e Marco Licínio Crasso. Cícero recusa a
oferta, temendo que o triunvirato produzisse algum mal para a República.
Ao longo de sua correspondência, Cícero demonstra uma preocupação constante com a
manutenção de seu patrimônio e status, como era comum para os homens públicos de sua
época. Além disso, possuía casas de campo, villas152, sítios, obras de arte e dispunha de uma
grande biblioteca particular. Os gastos para aquisição e manutenção destes eram, sem dúvida,
exorbitantes, o que fazia com que Cícero contraísse empréstimos com frequência, mantendo
várias dívidas; muitas delas nos são relatadas em suas cartas. A sua grande villa no Palatino,
da qual o arpinate se gabava de poder, dela, ver toda a cidade de Roma, foi comprada no ano
de 62 a.C., por três milhões e meio de sestércios. 153 Além disso, Cícero possuía inúmeras
outras propriedades ao longo da costa do Lácio 154.
Para arcar com tantas despesas e dívidas, Cícero tinha como fonte de renda as locações de
propriedades rurais e urbanas, as quais adquiriu com o dote de sua mulher, Terência; também
arrendava muitas insulae no centro de Roma. Além disso, Cícero também era credor, e do
empréstimo de dinheiro a juros conseguiu formar um enorme capital. Sua renda também
contava com pagamentos e dinheiro concedido como “presente” pelos seus serviços de
advogado. Também contava com um grande número de heranças, cujo valor total era
estimado em cerca de vinte milhões de sestércios. Em seu governo na Cilícia, pôde juntar
outros dois milhões e duzentos mil sestércios.155

152
Das quais as mais conhecidas são as do Palatino, de Túsculo e de Fórmia, de onde geralmente Cícero escreve
suas correspondências.
153
CIC. Ad fam, V 6,2.
154
Ibid., p10.
155
Ibid., p 12.
55

Apesar de tantas cifras acumuladas, Cícero não pode ser considerado sequer como um dos
mais ricos de sua época. Nesse sentido, Shackleton Bailey afirma que Cícero era, na verdade,
moderado com seus gastos e consumos, se comparado com a maioria dos homens ricos de sua
época. Inclusive em seus cargos públicos e em seu governo na Cilícia, Cícero era prudente em
seus gastos – o autor afirma que mesmo o benefício em dinheiro que adquiriu enquanto
procônsul na Cilícia foi bem modesto em relação ao que geralmente os procônsules
ganhavam.
Em relação à sua rede de amigos, esta era, de fato, complexa. De amizades afetuosas,
como aquela demonstrada a Ático até as chamadas relações utilitárias, sua rede de contatos
era extensa. Um exemplo a ser mencionado que revela a complexidade da amicitia no autor
nos é dado por Claudia Beltrão em seu texto Retórica, Ética e Política no Pro Sulla de
Cícero. Segundo a autora, Cícero defendeu muitos casos em sua atuação como advogado
devido à obrigação que a amicitia impunha.
Nesse sentido, é abordada a forma do argumento complexio no discurso de Cícero em
defesa de Sula, e a autora cita alguns pontos que nos são necessários, a saber, o papel da
amicitia nas relações entre acusado e defesa, por exemplo. P. Sula, acusado de participação na
catilinária do ano anterior, tinha, para além da defesa de Cícero, “um grupo de amici
influentes em Roma, para além de sua posição privilegiada como cunhado de Pompeu” 156.
Assim, ao defender Sula, Cícero teria como vantagem a fortificação de sua amicitia com este,
além de firmar laços com outros homens poderosos de Roma, tendo a oportunidade, inclusive,
de construir uma imagem favorável de si mesmo e de seu caráter, no contexto da campanha de
Clódio contra si157. É interessante notar que, teoricamente indo contra a amicitia que tinha
com a parte acusatória, no caso os Torquatti, Cícero se justificou salientando o dever que seu
trabalho demandava. E ainda, mesmo após a absolvição de Sula, a amicitia entre Cícero e os
Torquatti se manteve, já que mantinham interesses em comum.

2.1.2 Relações de poder e disputas políticas

O período compreendido por nosso recorte temporal – os anos de 58 a 48 a.C. – foi, de


uma grande maneira, marcado por uma tensão notória no seio do escopo político romano. O
último século da República romana reuniu grandes guerras civis, violência em massa e o

156
BELTRÃO, Claudia. Retórica, Ética e Política no Pro Sulla de Cícero. Rio de Janeiro: Phoinix, 2006, p.88.
157
Ibidem., p.91
56

retorno de um governo autocrático. De fato, como prenunciado várias vezes por Cícero, a
sociedade de sua época vivenciou um período de colapso no sistema republicano – o poder
concentrado nas mãos de uma pequena elite foi o objeto de disputas que levaram a uma
fratura irreparável nas arestas daquele modelo político.158
Apesar disso, historiadores modernos atentam para o fato de que se deve levar em
consideração, igualmente, o florescimento das diversas artes e das letras159 na sociedade
romana do período, bem como o surgimento de inovações na política de Estado, como, por
exemplo, a idéia de que o governo era responsável por assegurar a alimentação dos cidadãos e
a manutenção de códigos políticos para a administração das inúmeras províncias que agora
faziam parte de seu território 160. A história do último século da República não deve se ater,
portanto, somente à narrativa da crise inerente ao contexto.
Cabe a nós comentar sobre o contexto geral de nosso recorte temporal, e, para isso, é
inevitável retomarmos a história da política romana do período. Os anos 50 do primeiro
século assistiram a uma declarada junção dos papeis militares e políticos da elite romana.
Dentro deste palco, a ascensão de Pompeu e César teve um papel fundamental para a
transformação da política romana; provenientes de famílias da elite, ambos executaram de
forma rigorosa seus papéis como generais e ganharam destaque dentro do senado 161.
Em 59 a.C. César e Pompeu se juntaram a Marco Licínio Crasso e formaram o
primeiro triunvirato162, uma aliança política para a manutenção e expansão de seus poderes no
senado romano. Para Mary Beard, a proposta do trio seguia a linha dos interesses que já
residiam na república desde que generais como Sula tomaram o poder; nesse sentido, a
necessidade de defender e ampliar o território fez com que enormes recursos financeiros e
militares fossem entregues a comandantes individuais ano após ano. Assim, César e Pompeu
passaram a comandar legiões inteiras e corriam em busca de poder autocrático, a medida que,
ao passar dos anos, conquistavam a lealdade das mesmas 163.
Em 53 a.C. a aliança entre eles se desfaz, levando a luta intensa que culminou em uma
grande guerra civil; as crises derivadas a partir daí seriam definitivas para o descontrole
político que tomou conta do período.

158
BEARD, M. SPQR: Uma História Da Roma Antiga. São Paulo: Planeta, 2017, p. 209.
159
Para as quais Cícero foi o nome mais importante em seu desenvolvimento.
160
Op. Cit. p. 216.
161
HAVELL, H. Ancient Rome. The Republic. 1 ed. New Kanark - Escócia: Geddes & Grosset, 2003, p. 544.
162
Para o qual Cícero foi convidado, mas recusou a proposta.
163
BEARD, M. p. 252.
57

Nesse cenário, Cícero figurava como um homem importante no senado romano,


principalmente a partir de seu consulado em 63 a.C., durante o qual teve um papel decisivo
em desmantelar a Conspiração de Catilina, recebendo o título de Pater Patriae. Os anos
seguintes se mostraram politicamente vantajosos para o Arpinate. Em 62 a.C. adquire uma
mansão de seis milhões de sestércios, com o auxílio financeiro de Caio Antônio Híbrida e
Públio Sila. 164É importante salientar, nesse sentido, que tanto Caio Antônio, seu colega de
consulado em 63 a.C. quanto Públio Sila, questor na época, colaboraram com Cícero no
desfecho da Conspiração de Catilina.
Em troca do empréstimo para a compra da mansão, Cícero se comprometeu a
conseguir do senado uma prorrogação do mandato de Antônio na administração da província
da Macedônia. Quanto a Públio Sila, assume sua defesa mediante a acusação que este sofria,
de extorsão e desvio de fundos públicos do mesmo território165. As cartas remetidas no final
de 62 a.C. nos fornecem um panorama dessas relações, que não serão analisadas aqui, mas
certamente fornecem informações importantes sobre um dos aspectos menos honestos da
política romana: as administrações provinciais 166.
No início de 61 a.C., Cícero desempenha outro papel decisivo: dessa vez, ao
testemunhar contra Públio Clódio Pulcro, pelo episódio conhecido como o sacrilégio da Bona
Dea. As relações entre Cícero e Clódio passaram a ser revestidas de uma animosidade ímpar
entre as partes – este último teria uma posição contumaz a favor do desterro de Cícero em 58
a.C. Ambos jamais viriam a se reconciliar 167.
Cícero constava com louvor dentre o círculo de amigos de Pompeu e César. De acordo
com o filólogo José A. Beltrán, Cícero definia a relação com ambos em termos de amicitia. A
relação com Pompeu era vista como cordial, uma vez que jovens da nobreza, simpatizantes
dos conjurados de Catilina, chamavam Cícero de “Cneu Cícero 168” em uma alusão a

164
A mansão de Cícero respondia a uma demanda social relativa ao estabelecimento do status da elite romana.
Localizada no Palatino, bairro residencial da alta aristocracia, se tornou símbolo da posição que Cícero ocupava
naquele meio.
165
BELTRÁN, J. A. Cartas a los familiares. Introducción. Madrid: Gredos, 2008, p. 17.
166
Há inúmeros exemplos do esforço que Cícero fazia para constituição de laços de amicitia com vistas a
vantagens políticas e financeiras. As relações com Caio Antônio Híbrida e Públio Sila são só algumas das
diversas que encontramos em seu compilado epistolar. Com o propósito de clarificar nossa problemática,
daremos atenção a somente três destas relações: respectivamente a amicitia entre Cícero e Apio Claudio Pulcro,
Marco Júnio Bruto e Públio Cornélio Dolabela, que serão analisadas no decorrer do capítulo.
167
Apesar disso, Cícero fez esforços constantes para manter uma relação de amicitia com Apio Claudio Pulcro,
irmão de Clódio, inicialmente a pedido de Pompeu. Essa relaçãoterá ênfase no segundo subtópico deste capítulo.
168
“Cn. Ciceronem”
58

Pompeu169. Segundo Thomas Mitchell, era provável que a aliança entre César e Pompeu,
estabelecida no Primeiro Triunvirato e solidificada pelo matrimônio entre Pompeu e Júlia,
filha de César, fosse vista pelo arpinate como uma esperança para a preservação da concórdia
ordinum derivada de seu consulado. A necessidade de manter a amicitia com o maior general
de sua época se fez presente nas inúmeras cartas dirigidas a este, cuja maioria foi tornada
pública pelo próprio Cícero 170.
Apesar disso, de acordo com Mitchell, a amizade entre Cícero e Pompeu deve ser vista
como uma relação sem afetividade intrínseca. Como analisamos no primeiro capítulo, a
amicitia política dos romanos não necessariamente envolvia emoções afetivas. Nesse caso, o
autor atenta para o fato de que, ao contrário de Cícero, que era zeloso no envio de missivas
com elogios a Pompeu e cartas públicas em seu favor, o mesmo não ocorria do contrário: o
general era frequentemente frio em suas respostas ao arpinate e cabe citar que, provavelmente,
não concordava com a exaustiva auto-promoção de Cícero171. Mesmo assim, a amicitia entre
os dois se manteve firme por anos, ao menos até a Batalha de Farsália.
Inicialmente a relação com César também se fazia amistosa. Em uma de suas cartas ao
seu irmão Quinto, Cícero menciona a ‘divina’ generosidade de César, ao nomear Quinto como
legado de seu conselho militar, em meados dos anos 50, justamente em um momento onde
este necessitava enxugar as suas dívidas. 172 César também dirige inúmeros elogios públicos a
Cícero durante o período e ambos trocariam composições literárias – em 54 a.C. Cícero
escreve um pequeno poema sobre a invasão da Bretanha.
Na mesma época, o arpinate passa a colaborar com o projeto urbanístico de César, o
Foro Julio, que serviria para as votações no Campo de Marte173. Além disso, como veremos
mais a frente, César teve um papel importante como credor de Cícero. As relações entre
ambos só iriam se desgastar no decorrer da Guerra Civil iniciada em 49 a.C.

169
Op. Cit. p. 282. Em uma das cartas mais emblemáticas sobre essa relação (Cart, a Át.. I 16, 11), Cícero diz a
Ático que Pompeu era um grande amigo seu. Para uma melhor análise da relação entre ambos, ver RAWSON.
B. The Politics of friendship: Pompey and Cicero, Sidney, 1978.
170
MITCHELL, T. N. Cicero, Pompey, and the rise of the first triumvirate. Cambridge: Traditio, v. 29, 1973, p.
1; 10.
171
Op. Cit. p. 9. A diferença na comunicação entre Cícero e Pompeu é a mesma notada naquela entre Cícero e
Marco Júnio Bruto, da qual falaremos mais tarde. A falta de reciprocidade nas palavras entre as missivas
geralmente responde à demanda de status político. Nesse meio, Pompeu angariava maior poder e prestígio em
relação a Cícero e, assim, não precisava recorrer às estratégias comunicativas comuns nos escritos do Arpinate,
que era um homem – novo. Ver MITCHELL, T. N. p. 9-10.
172
Cart. a. Quin. III 5, 3-4.
173
BELTRÁN, J. p. 300. Ver Cart. a Át. IV 16,8.
59

Entretanto, apesar dos esforços contínuos em manter as suas relações de amizade,


Cícero não foi capaz de evitar uma manobra encabeçada por Clódio, em março de 58 a.C, o
qual apresentou uma proposta de lei que condenava ao exílio e à confiscação de bens todo
aquele que houvesse condenado um cidadão romano à morte sem julgamento. Aprovando-a o
senado, Cícero foi imediatamente perseguido pelos homens de Clódio, fugindo de Roma e
tendo suas propriedades no Palatino, Túsculo e Fórmia saqueadas e incendiadas174.
O período do exílio de nosso autor nos é descrito com detalhes preciosos em suas
cartas, em especial aquelas endereçadas a Ático e à sua esposa e filhos. De modo geral, foi um
momento de acometimento de uma intensa depressão. Apesar das cartas que pediam o auxílio
de Pompeu em seu retorno, este provavelmente considerava um péssimo momento para o
trato da questão. No ano seguinte, entretanto, Pompeu se colocou a favor do retorno do
arpinate, que consegue voltar a Roma em setembro de 57 a.C.175.
É importante notar, nesse sentindo, que, apesar da passividade de Pompeu em prestar
auxílio a Cícero, muitos outros amigos do arpinate arriscaram as suas vidas na tentativa de
ajudá-lo. Segundo Kathryn Tempest, esse foi o caso de Marco Lênio Flaco, que acolheu
Cícero em sua residência em Brundísio, apesar da proibição da Lex Clodia de exsilio
Ciceronis176. Em suas cartas, Cícero menciona a eterna gratidão que teria para com Lênio.
Anos mais tarde, acaba atuando como mediador para que Lênio conseguisse uma alta quantia
de empréstimo 177.
Em novembro desse mesmo ano, homens de Clódio atacaram novamente a
propriedade de Cícero no Palatino, que estava em reconstrução, além de incendiarem a casa
de seu irmão, Quinto. O próprio Cícero, ao mesmo mês, é assaltado na Via Sacra pelos
homens de Clódio. Esses acontecimentos demonstram, segundo Andrew Lintott, que a
violência no seio político romano havia se institucionalizado 178. Para sobreviver, o homem
romano da tardo - república deveria se forjar de instrumentos capazes de manter a segurança
de sua posição política. As relações humanas, nesse espectro eram, portanto, as formas
basilares de sustentação política da época. É nesse sentido que a amicitia possuía um papel
mais do que relevante na construção de benefícios para os agentes envolvidos179.

174
Op. Cit. p. 64.
175
Op. Cit. p. 307.
176
TEMPEST, K. Cicero: Politics and Persuasion in Ancient Rome. London: A&C Black, 2011, p. 122.
177
Car. a Át. 20, 21, vi. 1, 3.
178
LINTOTT, A. The crisis of the Republic: sources and source-problems. Cambridge Ancient History, v. 9,
1994, p. 13.
179
BRUNT, P. p. 15.
60

Nos anos seguintes ao seu retorno, Cícero faria o possível para estreitar suas relações
de amizade, conforme nos mostram a grande quantidade de cartas de elogio e recomendação a
partir de 56 a.C. É a partir deste ano que vemos o desenrolar das trocas que serão analisadas
ao longo deste capítulo, duas delas ao decorrer do proconsulado de Cícero na Cilícia.
É importante destacar que o contexto de crise na política romana do último século foi
tema de diversas discussões ao longo das últimas décadas. Gèza Alfoldy e Peter Brunt
defenderam que o colapso republicano se deu a partir da luta política entre optimates e
populares e, nesse sentido, a violência política foi o fator determinante para o fracasso deste
modelo, à medida que esgotou as bases de administração do imperium180.
Erich Gruen, em seu The Last Generation ofthe Roman Republic propõe uma revisão
desta tese, ao afirmar que, apesar da luta política ter sido um dos fatores determinantes do
colapso, esta já ocorria desde o século anterior e já estava naturalizada na sociedade romana.
Para ele, o fator chave que desencadeou a fratura republicana foi a Guerra Civil entre César e
Pompeu, um acontecimento excepcional, que foi capaz de desorientar e colocar em cheque o
poder e a gestão da aristocracia romana. Nesse sentido, a vitória de César teria determinado os
rumos que levariam a uma mudança no modelo político da época181.
Em sua obra Roman Republics, na qual Harriet Flower propôs uma nova periodização
para a história da República romana, a autora parte de uma visão mais abrangente, e afirma
que o que ocorreu no último século não pode ser descrito apenas como resultado de batalhas
políticas. Para ela, as causas do esmorecer da República partem de processos sociais,
religiosos, econômicos e culturais, que têm seus próprios significados, cada qual com sua
inerente importância para o desfecho dos acontecimentos finais daquele século 182.
Não nos cabe aqui apontar as causas da crise republicana; porém consideramos
necessária uma análise da visão de diferentes historiadores ao longo do tempo. Em virtude do
nosso recorte temático, que reside nas relações de amicitia entre homens da elite romana, é
inevitável nos posicionarmos no cerne da questão política. Dessa forma, daremos atenção
especial ao significado político da amizade, bem como as implicações desta em ganhos
materiais e simbólicos naquele meio.

2.1.3 Amizade em tempos difíceis

180
ALFÖLDY, G. Historia social de Roma. Madrid: Alianza, 1987, p. 131; BRUNT, P. Op. Cit. p. 10.
181
GRUEN, E. The last generation of the Roman Republic. University of California Press, 1974, p. 74.
182
FLOWER, H. Roman republics. New Jersey: Princeton University Press, 2011, p. 81.
61

O desgaste do modelo político republicano fora anunciado diversas vezes por Cícero;
em suas cartas a Ático, por exemplo, é comum encontrarmos as queixas e lamentos deste em
relação a seu contexto. De acordo com Kathryn Tempest, a política da sociedade romana de
meados do último século estava dividida entre os senadores que tentavam tomar as rédeas do
setor administrativo estatal e os generais empenhados em possuir destaque na política 183.
Nesse meio, por volta de 59 a.C. Cícero já reclamava de sua função, aparentando uma
postura de cansaço; aqui, já não temos o mesmo arpinate que tanto era ativo nas discussões e
trabalhos senatoriais. Essa situação se agrava após seu exílio 184.
Ainda assim, a preocupação em se manter atento ao curso da política e solidificar os
laços de amizade com seus colegas senadores era constante. As inúmeras cartas públicas de
elogios, tão freqüentes pelas suas mãos fazem parte do somatório de tentativas de estreitar a a
relação com os homens mais importantes de sua época, de acordo com Jean Andreau 185. Para
Peter Brunt, esse esforço constante faz parte de uma série de estratégias de manutenção das
relações políticas no mundo romano 186.
Como todo homem da elite política, Cícero era constante na busca pela manutenção de
seu status, o que também significava a gestão de uma vida confortável aos moldes do luxo
aristocrático. Além de inúmeras propriedades, consta em suas cartas a aquisição de artigos de
luxo e compra de bibliotecas, bem como o empréstimo de dinheiro a juros a muitos amigos.
Além dos empréstimos, a contratação de dívidas era freqüente. A Ático, a menção a estas
fazia parte de sua rotina187.
Dessa forma, tanto para manter boas relações políticas como para assegurar a
manutenção de sua vida financeira, era necessário que Cícero fizesse bom uso da amicitia
como estratégia para tal; de acordo com Nicholas Rauh, o político romano da tardo república
fazia uso dos tradicionais laços de amizade através de quatro vertentes de um mesmo
espectro: beneficia (favores e auxílios mútuos); gratia (obrigação que se tinha pelos favores
recebidose doados); necessitas (dependência) e obligatio, tanto para propósitos políticos
quanto para financeiros188.

183
TEMPEST. K. Op. Cit., p. 102.
184
Op. Cit., p. 115.
185
ANDREAU, J. Baking and business in the Roman world. Trad. Janet Lloyd. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003, p. 141.
186
BRUNT, P. Op. Cit., p. 39.
187
PANTOJA-MÁRQUEZ, M. Introducción. Cartas a Ático, Madrid: Gredos, 2008, p. 11.
188
RAUH, N. Cicero's business friendships: economics and politics in the late Roman Republic. Milão: Aevum,
v. 60, n. Fasc. 1, 1986, p. 4.
62

Segundo Verboven, a complexidade do espaço republicano romano criava a


necessidade de se estabelecer redes de contato entre pessoas da mesma esfera social. Para ele,
tais redes eram essencialmente importantes para a manutenção do patrimônio das elites
romanas, e serviam como uma superestrutura, na qual diversos agentes eram integrados. Tal
estrutura dependia dos laços de amizade que eram construídos 189.
David Konstan e Koenraad Verboven frisam que tais laços remanesciam nos
princípios da mutua officia, conceito este que era relacionado ao ato de conceder e devolver
os favores prestados pelos amigos, na mesma proporção em que estes eram doados. A mutua
officia pressupunha uma obrigação personificada pela fides, que fazia com que a ajuda
prestada sempre fosse retribuída190.
O costume de construir e manter laços de amizade fazia parte da moral e da tradição
política romana. Para Peter Brunt, existia uma regra social diretamente relacionada a um
senso de obrigação moral para com aqueles com os quais se criava alguma conexão; nesse
sentido, Cícero concedia um lugar especial às obrigações prestadas aos amigos, como parte do
cumprimento da fides191. Essa moral também figurava na tradição política romana.
Tais conexões, segundo o autor, podem ser exemplificadas pela quantidade de
casamentos entre as famílias da elite romana, que formavam, em suas palavras, uma “teia”;
esta era tão intrincada que as relações entre as famílias podem ter sido universalmente
abrangentes. Essas teias de relações eram responsáveis pela manutenção do status, das
propriedades e do poder político de tais famílias, que controlavam a arena política romana 192.
Em tempos de instabilidade política, tais redes eram indispensáveis para a manutenção
do poder das elites romanas. Em longo prazo, de acordo com Verboven, a amicitia romana
estava imbuída nas relações políticas e econômicas de tal forma que era impossível tomá-la
como uma instituição à parte193. Entretanto, a amizade romana não era constante em muitos
casos; segundo Brunt, no contexto de instabilidade política e econômica romano, muitas
alianças eram desfeitas, na mesma proporção em que se faziam. Por isso, era necessário que o
político romano se esforçasse em manter suas redes de contato sempre ativas a seu favor 194.

189
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 250.
190
KONSTAN, D. Op. Cit., p. 125 ; VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 12. Nas Cartas de Cícero, a palavra comumente
utilizada para a reciprocidade de favores é officium.
191
BRUNT, P. Op. Cit., p. 39.
192
Op. Cit., p. 39.
193
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 214.
194
BRUNT, P. Op. Cit., p. 39.
63

Isso dependia do quanto os agentes envolvidos estavam dispostos a servirem numa


rede de interesses mútuos; como já apontado, tais redes favoreciam a manutenção do poder
das famílias que governavam Roma. Esse benefício coletivo servia, de acordo com Andrew
Wallace-Hadrill e Peter Brunt, como base para o padrão da política romana na época de
Cícero195. Nesse sentido, Wallace Hadrill aponta que a eleição de um cargo senatorial, por
exemplo, exigia a ativação da rede de obrigações de cada família da elite romana. Mesmo
assim, a importância das redes de amizade para o sistema político da época não pode ser
totalmente calculada. Entretanto, os grupos de famílias e até os indivíduos por si só poderiam
ter acesso aos recursos controlados pelo Estado romano, como poder, dinheiro e status,
através de vínculos de amizade e patrocínio 196.
Dentro dessa estrutura de redes de contato, as cartas de recomendação
desempenhavam um papel singular: serviam como ferramentas de mediação para pedidos de
auxílio entre amigos. Em Cícero, encontramos muitas delas; porém selecionamos a carta
enviada a Públio Césio, provavelmente filho de um cavalheiro romano de Ravena que
conquistou a cidadania romana através da ajuda do pai de Pompeu, no ano de 90 a.C. 197.
Apesar de não sabermos muito sobre este personagem, Cícero menciona que mantém boas
relações com este, e a ele recomenda os serviços de outro amigo, Públio Messieno, do qual
também não temos informações. A carta, porém, nos revela características importantes sobre
tais relações:

Cicero saúda a Públio Césio198,

A Públio Messieno, cavalheiro romano adornado com todas as qualidades e


meu amigo íntimo, o recomendo com uma recomendação mais veraz
possível. Em nome de nossa amizade e da amizade que me une ao seu pai, te
peço que o acolha debaixo de sua proteção e zele por seu patrimônio e pelo
seu bom nome. Com isso, ganharás um homem de bem e digno da sua
amizade, assim como eu ficaria sumariamente agradecido. (Cic., Let. Fam,
13. 51)199

195
WALLACE-HADRILL, A. Op. Cit., p. 78; BRUNT, P. Op. Cit., p. 42.
196
WALLACE-HADRILL, A. Op. Cit., p. 78.
197
DENIAUX, E. Clientèles et pouvoir à l'époque de Cicéron. Lyon: Persée-Portail des revues scientifiquesen
SHS, 1993, p. 395.
198
O lugar e data de escrita desta carta são incertos, porém o filólogo tradutor, José Beltrán, considera que
estapoder ter sido escrita entre 52 e 50 a.C., mediante consulta em escritos prosopográficos.
199
“P. Messienum, equitem R. omnibus rebus ornatum meumque perfamiliarem, tibi commendo ea commendatio
ne quae potest esse diligentissima. peto a te et pro nostra et pro paterna amicitia ut eum in tuam fidem recipias e
iusque rem famamque tueare. virum bonum tuaque amicitia dignum tibi adiunxeris mihique gratissimum feceris
64

A recomendação de Messieno a Públio Césio nos oferece um breve panorama do


funcionamento da amicitia e sua relação com o coletivo: o pedido é feito não só em nome da
amizade que une Cícero ao destinatário, mas em nome da amizade entre as famílias, quando o
arpinate cita o pai deste. Além disso, a recomendação oferece a oportunidade de uma conexão
de favores com a família de Messieno; ao aceitá-la, Públio Césio não só ganharia mais um em
seu círculo de aliados, mas renovaria a sua disponibilidade para com Cícero.
Para Verboven, a amizade romana pressupunha uma obrigação moral de responder ou
devolver o que foi dado na forma de serviços e pagamentos200. Em uma de suas cartas a
Quinto Metelo Céler201, Cícero afirmou que a reciprocidade na amizade consiste em receber e
devolver a disponibilidade de algo feito entre “pares”, ou seja, uma relação entre dois
indivíduos:

Não sei em que consiste para você a reciprocidade na amizade. Em


minha opinião, consiste em receber e devolver uma disponibilidade mútua
(...) Além disso, por decreto gostaria que recordasse de meu comportamento
depois da sua partida: quais intervenções fiz no senado em relação a ti, o que
eu disse nas assembléias de cidadãos, a carta que te enviei. Quando
reflexionares sobre tudo isso, julga, por favor, se em sua última visita a
Roma você respondeu a tudo isso com suficiente reciprocidade (...) e
inclusive contribuí, de minha parte, para que tudo isso assim acontecesse –
que o meu inimigo, por ser teu irmão, fosse restituído ao cargo mediante um
senado consulto. Por conseguinte, não é que eu tenha atacado o seu irmão,
mas que eu tenha respondido a agressão deste. Em relação a você, não fui
“volúvel” como diz, e sim constante. (...) Busquei em todo momento a sua
amizade, me esforcei para que você enxergasse o alto grau da minha
(amizade). Mantenho a minha boa disposição e, enquanto você quiser, nela
perseverarei. Estarei mais disposto a renunciar a raiva que tenho de teu
irmão em favor da sua amizade do que sacrificar um pingo do nosso afeto
mútuo por causa dessa inimizade” (Cic., Let. Fam, 2. 5. 2)202

200
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 20.
177
Governador da Gália Cisalpina e Cônsul em 60 a.C. Os Metelos faziam parte da alta aristocracia romana.
Cícero mantém uma comunicação constante com este destinatário.
202
“quod autem ita scribis:pro mutuo inter nos animo,' quid tu existimes esse in amicitia mutuum, nescio, equide
m hoc arbitror, cum par voluntas accipitur et redditur. ego si hoc dicam, me tua causa praetermisisse provincia
m tibi ipse levior videar esse; meae enim rationes ita tulerunt, atque eius mei consili maiorem in dies singulos fr
uctum voluptatemque capio; illud dico, me, ut primum in contione provinciam deposuerim, statim, quem ad mod
um eam tibi traderem, cogitare coepisse. nihil dico de sortitione vestra; tantum te suspicari volo, nihil in ea re p
er conlegam meum me insciente esse factum. recordare cetera, quam cito senatum illo die facta sortitione coege
rim, quam multa de te verba fecerim, cum tu ipse mihi dixisti orationem meam non solum in te honorificam sed e
tiam in conlegas tuos contumeliosamfuisse.(...)ego te mihi semper amicum esse volui, me ut tibi amicissimum ess
e intellegeres laboravi. maneo in voluntate et, quoad voles tu, permanebo citiusque amore tui fratrem tuum odiss
e desinam quam illius odio quicquam de nostra benevolentia detraham”
65

Dessa forma, Cícero recordou a Metelo todas as suas ações feitas em prol deste, e
pediu para que ele refletisse se o estava respondendo com a devida reciprocidade. Tentou,
pois, reafirmar a sua disponibilidade dentro da relação de amicitia, dizendo que esta nunca
sofreu abalo algum. Justificou os conflitos com o irmão de Metelo e afirmou que se esforçou
para demonstrar as suas ações em favor deste, com boa disposição, e que continuaria fazendo
isso. Afirmou que preferia sanar rapidamente o conflito entre si e o irmão de Metelo em prol
da amizade do que sacrificar o “afeto recíproco” por uma inimizade. Há, aqui, a associação da
amicitia com a reciprocidade e com um sentimento afetuoso, que pressupõe certa afinidade
entre as partes envolvidas em uma rede de amizade. Essa associação é presente, de fato, em
todo o corpus epistolar de Cícero. Porém, é importante salientar que tal “afeto” estava ligado
a um pressuposto moral de respeito e obrigação para com um compromisso firmado.
Nesse sentido, os interesses envolvidos entre as partes podem ser transparecidos pelo
contexto: a carta é enviada em janeiro de 62 a.C., meses após a Conspiração de Catilina, como
uma resposta a uma anterior acusação de Metelo em relação à falta de clemência de Cícero
para com os conspiradores. Metelo assegura sua amicitia para com Cícero, apesar de se
colocar contra seus desígnios, assim como o fez também o seu irmão. Apesar disso, Cícero
mantém um tom apaziguador, já que era de seu interesse a manutenção de seu vínculo pessoal
com os Metelos; por tal vínculo, acabara de renunciar ao proconsulado na Gália Cisalpina em
favor de Metelo, que, por sua vez, mantinha tal dívida moral com o arpinate203.
Mais tarde, tal vínculo se mostraria benéfico para Cícero: o irmão de Metelo foi um
dos que lutaram pelo retorno de Cícero do exílio; cabe mencionar que os Metelos mantinham
um estreito vínculo com Pompeu, um dos primeiros no círculo de amizades de Cícero: a
terceira esposa de Pompeu e mãe de seus três filhos era irmã de Quinto Metelo 204.
Ao comentar a relação de Cícero com Quinto Metelo Céler, o filólogo José Beltrán
expõe o conceito de amizade romana entre teoria e prática. Segundo ele,

Por mais que a amizade possa se expressar em termos de sentimento


afetuoso – e por mais que em seu tratado De Amicitia Cícero renuncie a uma
concepção utilitária da mesma – na realidade cotidiana se tratava de uma
reciprocidade de serviços. Assim, quando Cícero afirmou sua amizade por
Metelo, o que ele queria assinalar era a sua disponibilidade e a sua pretensão
de receber o equivalente. (BELTRÁN, J. 2008, P. 280)

203
BELTRÁN, J, Op. Cit., p. 279.
204
Mucia Tercia. Pompeu se divorciaria dela em dezembro de 62 a.C., alegando infidelidades por parte da
esposa. O caso minou as relações entre este e os Metelos, que acabaram se convertendo em inimigos. Para a
relação de Pompeu com os Metelos ver: TWYMAN, Briggs L. Pompey: A Political Biography. 1982.
66

Assim, a ligação entre Cícero e os Metelos se mostrou politicamente benéfica para


ambos os lados: enquanto Quinto Metelo consegue, mediante a ajuda de Cícero, o
proconsulado na Gália, o arpinate recebe o favor de sua família ao retorno do exílio. Além
disso, manter o vínculo com os Metelos significava também, naquele momento, zelar pela
manutenção da amicitia com Pompeu.
Segundo Verboven, temos aqui uma faceta importante sobre as relações de amizade da
época de Cícero: existia um vínculo que ligava geralmente mais de dois agentes; entre uma
relação, havia, como pano de fundo, um extenso número de outras relações de amicitia que
garantiam um pilar fundamental para que as transações políticas e financeiras ocorressem.
Ainda, para o autor, as redes de amizade na Roma republicana deveriam ser mantidas e
constantemente renovadas, de modo que o poder político e a vida financeira da elite pudessem
ser sustentados; para que uma relação dialética pudesse existir, era necessário que um
conjunto de outras relações existissem anteriormente e formassem seu sustentáculo 205.
As decisões sobre qual credor escolher, por exemplo, ou em qual propriedade investir
provinham de informações guiadas por uma rede de amicii e mais que isso – para o autor, tais
decisões eram tomadas com base na confiança, na solidariedade e na reciprocidade que
emanavam das redes de amizade Nesses casos, a reciprocidade servia como peça-chave para a
manutenção das redes, para que os indivíduos envolvidos nestas continuassem a interagir em
uma base mais ou menos regular, um padrão.
Assim, para o autor,

Uma relação diádica pessoal baseada na confiança, solidariedade e


reciprocidade só poderia sobreviver enquanto os parceiros continuassem a
interagir de forma mais ou menos regular. Officia simbólicas, como
pequenos presentes, conversa social, presença em celebrações familiares e
assim por diante, expressando a vontade do parceiro em continuar o
relacionamento, desempenhavam um papel importante para alcançar a
continuidade em um relacionamento voluntário. De certa forma, todos os
beneficia trocados entre amigos, inclusive os mais valiosos, tinham um
aspecto simbólico, levando uma mensagem de solidariedade, confiança e
reciprocidade, constituindo um compromisso de continuidade da relação.
(VERBOVEN, 2002, p. 348)

205
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 348.
67

Portanto, as recomendações, bem como as demonstrações de amizade serviam como


ferramentas para a manutenção das redes de contato no Mediterrâneo do século I a.C., e a
reciprocidade era o elo que conservava tais redes; a officia demonstrada pode ser entendida
como um capital simbólico entre as relações, algo indispensável a estas. Dessa forma, os
mutua officia dos romanos aparecem como um processo social instituído, expressão de uma
coletividade, da qual imanava um conjunto de relações, políticas, econômicas e sociais.

2.2 A amicitia a partir das Epistulae ad Atticum e das Epistulae ad Familiares


2.3 Interesses em jogo: análise textual
2.3.1 Cícero e Ápio Claudio Pulcro

Ápio Claudio Pulcro era o filho mais velho do cônsul de 79 a.C. (partidário de Sila) e
irmão de Clódio, famoso inimigo de Cícero. De acordo com José Beltrán, apesar da família
ter ficado sem recursos até a década de 60 a.C., Ápio Claudio logrou uma notável carreira
pública, através de uma excelente política matrimonial: suas irmãs se casaram com dois
importantes nobres romanos, Lúculo e Metelo Célere, e suas filhas se uniram a Marco Júnio
Bruto e o filho mais velho de Pompeu. Além disso, Ápio Claudio conseguiu a candidatura ao
senado em 63. a.C., sendo pretor em 57 a.C. e cônsul em 54 a.C. Culminou a sua carreira
política em 50 a.C., alcançando a censura, período em que entrou em conflitos com os
partidários de César.206
Interessa-nos, entretanto, uma parte específica de sua vida política: seu legado como
governador da Cilícia entre 53 a.C. e 51 a.C. De acordo com Andrew Lintott, o governo de
Ápio Claudio em tal província foi desastroso; além de se envolver em escândalos de
corrupção e desvio de dinheiro, o irmão de Clódio também permitiu que alguns credores,
como Públio Matinio e Marco Scaptio, cobrassem juros abusivos da população da ilha de
Salamina, em Chipre, além de conceder o comando de uma cavalaria inteira a Scaptio. Assim,
os credores, que na verdade agiam liderados por Marco Júnio Bruto, instauraram um
verdadeiro terror no território, se utilizando de violência para agir em prol de seus
interesses. 207
O proconsulado de Ápio Claudio na Cilícia foi sucedido pelo de Cícero. Ao sair de
Roma, o conflito entre César e Pompeu havia acabado de começar; em seu retorno da
206
BELTRÁN, J. Op. Cit., p. 326.
207
LINTOTT, A. Op. Cit. p. 419.
68

província, tal conflito se encontraria irreparável. Em suas cartas a Ático, Cícero se empenha
em certificar-se de que seu posto não duraria mais de um ano, o que de fato ocorreu.
Apesar do interesse latente com a própria reputação, Katryn Tempest ressalta que
Cícero fez o possível, pelo menos de acordo com a documentação, em gerir a província da
Cilícia de forma justa.208 De fato, ao deixar seu legado, a população da província prestou
honras a seu governo, notoriamente discrepante em relação ao governo do antecessor, Ápio
Claudio. Além de equilibrar a economia da região, Cícero resolveu os problemas de débito da
ilha de Salamina, caso sobre o qual falaremos em nossa análise de sua relação com Marco
Júnio Bruto.
Dessa forma, as medidas iniciais tomadas por Cícero em seu governo na Cilícia
demandaram a reversão da crise proporcionada por Ápio Claudio. Inicialmente, sua
disposição em se colocar contra as atitudes de seu predecessor gerou uma certa animosidade
entre ambos. Ainda assim, é notório, na documentação, o esforço que Cícero faz para manter
uma relação em bons termos com seu colega. Enquanto reclama de Ápio Claudio em suas
cartas a Ático, o tom muda em relação àquelas escritas ao primeiro. De forma constante,
Cícero declara a sua amicitia, promete zelar pela reputação deste e de sua família. 209
De acordo com John Hall, a linguagem amável e cordial entre ambos não é indicativo
de uma relação feliz;210 ao contrário, havia uma rixa entre ambos desde o episódio da Bona
Dea e o conflito se fazia presente.211 Como então, podemos entender a amicitia professada
por Cícero a Ápio Claudio? Como exposto por Peter Brunt, as relações políticas na Roma da
tardo república eram vulneráveis e suscetíveis a mudanças de rumo a todo o momento; assim,
a segurança política e financeira da aristocracia romana dependia das ligações que eram feitas
entre as famílias, que não respondiam necessariamente a sentimentos de afeto. 212Além disso, a
cordialidade na escrita ciceroniana era parte de um padrão formal de comunicação, uma
“convenção aristocrática”, nas palavras de J. Hall. 213
Dessa maneira, a amizade entre Cícero e Ápio Claudio poder ser entendida como uma
relação estritamente utilitária, na qual ambas as partes procuravam manter certo nível de
officium, a fim de assegurar seus interesses pessoais. Essa manutenção “das aparências” de
uma amizade política era feita de forma privada ou pública, tendo esta última um peso maior.

208
TEMPEST, K. Op. Cit. p. 153.
209
TEMPEST, K. Op. Cit. p. 154.
210
HALL, J. Op. Cit., p. 140.
211
A reconciliação política entre ambos foi feita por Pompeu durante o consulado de Ápio Claudio.
212
BRUNT, P. Op. Cit., p. 22.
213
HALL, J. Op. Cit., p. 140.
69

Nesse sentido, é interessante notar que existe uma discrepância em relação às formas
de tratamento e tom das cartas entre as partes, bem como das atitudes de Ápio Claudio em
relação a Cícero. Preocupado em obter informações sobre a província, Cícero faz uma viagem
de duas semanas sobre o território e se empenha em marcar um encontro formal com o
predecessor, que, além de não comparecer à ocasião combinada, não remete carta alguma a
fim de prestar justificativas.214
A dificuldade na comunicação com Ápio Claudio faz Cícero reclamar de forma
contumaz; de fato, o arpinate passa a questionar a conduta de seu colega, lançando mão da
franqueza narrativa, ainda que sem perder o tom respeitoso. De acordo com Hall, Cícero
passou a se comunicar de forma assertiva com Ápio Claudio, o qual, por sua vez, não
demonstrava o mesmo zelo que o arpinate em seus esforços. Pelo menos não aos olhos de
deste, o qual, em fevereiro de 50 a.C., cansado da falta de reciprocidade, rechaçou a conduta
do colega:

Gostaria que me considerasse não só como um amigo, mas como um


grande amigo. Não sobram dúvidas de que me esforçarei com todos os tipos
de atenções, de modo que você veja que é realmente assim. Mas, em troca,
se você continua dando a impressão de estar menos comprometido com os
meus interesses do que eu estive com os seus, acabo por dispensar a sua
preocupação (...) ainda sim, não irá conseguir que eu me mostre menos
favorável a você; conseguirá, ao invés, que eu me sinta indiferente. Escrevo-
te com certa liberdade, confiante na consciência do dever cumprido e nos
meus sentimentos em relação a você, os quais, fundados em bom juízo, os
conservarei enquanto assim o desejar. (Cic., Let. Fam, 71. 3. 7)215

Cartas como essa são constantes na comunicação de Cícero para com Ápio Claudio; o
esforço em manter o officium, entretanto, não parecia ser recíproco. Cícero reclama tanto da
falta de reconhecimento que suas ações têm para o colega quanto da não – atuação deste em
lhe declarar seus laços de amizade. Ainda assim, Cícero reafirma a sua disponibilidade em
cuidar dos interesses de Ápio Claudio. Nas palavras de Hall, as cartas de Cícero a Ápio

214
BELTRÁN, J. Op. Cit., p. 326.
215
“sed ut ad rem redeam, me tibi non amicum modo, verum etiam amicissimum existimes velim. profecto omnibu
s officiis meis efficiam, ut ita esse vere possis iudicare. tu autem si id agis, ut minus mea causa, dum ego absim,
debere videaris, quam ego tua laborarim, libero te ista cura(...)haec ad te scripsi liberius fretus conscientia offic
i mei benevolentiaeque, quam a me certo iudicio susceptam, quoad tu voles, conservabo.”
70

Claudio são um exemplo do que seriam os chamados “desacordos amigáveis”, tão presentes
na cultura política romana. 216
Além disso, apesar de criticar a política de Claudio na Cilícia, bem como sua falta de
reciprocidade na amizade, Cícero jamais entra em confronto direto com este; ao contrário, em
suas cartas ao colega, destaca sempre a generosidade deste (liberalitas) em ter feito o possível
para administrar a região, apesar de professar uma opinião totalmente contrária nas cartas
enviadas a Ático.217
Esse traço da relação entre os dois homens pode ser explicado pela posição que cada
um ocupava na hierarquia do poder romano. Ao contrário de Ápio Claudio, que fazia parte de
uma das grandes famílias da nobreza romana, Cícero era inferiorizado rotineiramente pela sua
condição de novus homo. Em suas réplicas a Cícero, além de negar a falta de reciprocidade
relatada por este, Claudio o acusa de arrogância;218 segundo Hall, a verdade era que Ápio
Claudio, assim como outros homens da nobreza romana, fazia questão de demarcar sua
superioridade em relação ao arpinate.219 Na visão do irmão de Clódio, era Cícero quem
deveria render maior respeito ao aristocrata.220
E, de fato, Cícero o fez, como pregavam as regras da tradição política. De acordo com
Tempest, Cícero tentava engendrar aquela relação, como parte de sua estratégia política. Essa
afirmativa pode ser analisada em uma das cartas enviadas a Ápio Claudio, datada de abril de
50 a.C.:

O que poderia ser mais conveniente para os meus interesses que


estreitar-los com um membro da mais alta nobreza e de um prestígio
reconhecidíssimo, cujos recursos, qualidades, filhos, parentes e amigos
próximos podem me proporcionar importantes distinções e uma notável
proteção? Porém, ao lutar pela sua amizade não busquei essas vantagens
como por uma espécie de astúcia, pois os vínculos mais importantes são a
coincidência de gostos, a amabilidade no trato, o prazer de viver e o gosto
por uma boa mesa, as conversas em companhia, uma profunda cultura
literária... além destes vínculos privados, estão, enfim, os públicos: uma
reconciliação na qual um passo em falso por simples imprudência não possa
ser chamado de perfídia. (Cic., Let. Fam, 73. III. 10)221

216
HALL, J. Op. Cit., p. 145.
217
VER Cart. a Át., 5. 17.6.
218
Ver resposta de Ápio Claudio em: Cart. fam.,
219
HALL, J. Op. Cit., p. 149.
220
Essa postura se assemelha à que Marco Júnio Bruto teria para com Cícero, como veremos adiante.
221
“quod si id est maximeastuti, omnia ad suam utilitatem referre, quid mihi tandem erat utilius, quid
commodismeisaptiusquamhominisnobilissimiatquehonoratissimiconiunctio, cuius opes, ingenium, liberi, adfines,
propinquimihi magno vel ornamento velpraesidio esse possent? quaetamen ego omnia in expetendaamicitia tua
71

De acordo com David Konstan, a estratégia discursiva presente em muitas das cartas
de Cícero, relativa ao estreitamento de laços de amizade, era comum no mundo romano da
tardo-república. Nelas, reside a teoria do compromisso desinteressado, aonde o mesmo em si
já vale como beneficium. Porém, segundo o autor, tal discurso não funcionava na prática.
Ainda que as qualidades de uma amizade fossem exaltadas entre os amicii, aquilo que valia,
de fato, para que uma relação política pudesse ser bem sucedida estava apoiado em um tripé
de atos: o zelo em cumprir com a obrigação do officium, a disponibilidade na ajuda prestada
através dos beneficia e, por fim, o sentimento de gratia, que deveria ser professado, de forma
pública e privada, mediante demonstrações de amizade.222
A falta do cumprimento destes passos, visualizada na postura de Ápio Claudio para
com Cícero nos revela uma característica importante de tais relações: a amicitia romana
respondia a regras mais ou menos tácitas de comportamento moral, que eram estabelecidas e
regidas por aqueles que detinham o maior status na arena do poder político. 223 Nesse sentido,
enquanto Ápio Claudio pouco tinha a perder com a falta de reciprocidade em relação a Cícero
(talvez uma rachadura na relação com Pompeu), Cícero precisava assegurar a sua posição em
um contexto político violento e inseguro: nos anos de 51 a.C. e 50 a.C., a discussão e os
temores políticos estavam voltados para a questão da sucessão de César nas Gálias. De fato, o
atrito entre César e Pompeu estouraria na Guerra Civil iniciada no ano seguinte, em 49 a.C..
Nesse contexto, Cícero se preocupou especialmente com a relação entre a amizade e a
lealdade política. A fim de proteger sua posição, de acordo com John Hall, estabeleceu laços
estreitos tanto com os afiliados a Pompeu quanto os de César; nesse sentido, a amizade com
Ápio Claudio Pulcro, apesar das dissensões, se tornou necessária a fim de se manter na rede
de amigos de Pompeu, o que proporcionava, ao arpinate, um caminho seguro caso a política
deste finalmente tomasse os rumos da república. 224
Para Verboven, casos como estes mostram que, no último século da República, a
amicitia contornou os procedimentos formais e forneceu ajudas necessárias onde as

non astutiaquadam, sedaliquapotiussapientiasecutus sum. quid? illa vincula, quibus


quidemlibentissimeastringor, quanta sunt, studiorumsimilitudo, suavitasconsuetudinis, delectatio vitae
atquevictus, sermonis societas, litterae interiores! atquehaecdomestica; quid illa tandem popularia,
reditusinlustris in gratiam, in quo ne per imprudentiamquidemerraripotestsinesuspicioneperfidiae.”
222
KONSTAN, D. Op. Cit., p. 123.
223
Op. Cit., p. 130.
224
HALL, J. Op. Cit., p. 182.
72

instituições políticas falharam. 225 Ela foi, de acordo com Richard Saller, “um corolário da
falha das instituições romanas” 226, que acabou por gerar uma obrigatoriedade implícita no
cumprimento de seus padrões. Nesse meio, ela surge como uma ferramenta para alavancar e
proteger a posição política dos indivíduos, bem como desempenhava um papel singular em
garantir uma série de vantagens, materiais ou simbólicas, entre estes.

2.3.1 Cícero e Marco Júnio Bruto


Marco Júnio Bruto é uma figura emblemática na história da Roma tardo-republicana,
apesar de serem poucos os escritos sobre a sua vida. Membro de uma das principais linhagens
da gens Junia era filho de Servília, irmã de Catão, levando o mesmo nome de seu pai. Sua
carreira política se iniciou quando passou a trabalhar como assistente de seu tio Catão, na
época em que este foi governador da ilha de Chipre. Desde então, passou a enriquecer através
de empréstimos de dinheiro a juros altos. Além disso, inicialmente Bruto se alinhou com a
facção dos optimates, se colocando contra a figura de Pompeu, que havia matado seu pai em
77 a.C., durante as proscrições de Sila. Mais tarde, entretanto, se posicionará em favor de
Pompeu durante o clímax da guerra civil entre este e Júlio César. 227
A relação de Bruto e Cícero sempre foi marcada por um sentimento recíproco de
amizade afetuosa; não à toa, em 46 a.C., Cícero dedica ao amigo um tratado de oratória que
leva o seu nome. A primeira menção a Bruto na epistolografia ciceroniana aparece no ano de
51 a.C., em uma das cartas endereçada a Ático. Este último, inclusive, foi o pilar da relação
entre os dois, uma vez que possuía interesse em adentrar na rede de amizades de Bruto.228
Ao chegar na província da Cilícia, Cícero encontrou uma situação aterradora: além de
uma sociedade arrasada pela má administração de Ápio Claudio Pulcro, informantes o avisam
da calamidade ocorrida na cidade de Salamina, na ilha de Chipre; lá, os credores Públio
Matinio e Marco Scaptio haviam acabado de utilizar uma força militar, concedida pelo
próprio Ápio Claudio, para cobrar de forma violenta uma antiga dívida contraída pela cidade.
Durante vários dias, cinco senadores foram presos na cúria da cidade, e lá pereceram por

225
VERBOVEN, 2011, Op. Cit., p. 478.
226
SALLER, R. Op. Cit., p. 14.
227
CLARKE, M. The Noblest Roman. Marcus Brutus and his Reputation. London: Thames & Hudson, 1981, p.
6; 25.
228
Cic. Att. 6,1,7. Ver: BAÑOS, J. Cicerón y Bruto: historia de um desencuentro. Madrid: Castro Llano, 2016, p.
3.
73

inanição. A reação imediata de Cícero foi ordenar a retirada das forças de Scaptio,
administrando uma maneira de resolver os problemas daquela cidade. 229
Públio Matinio e Marco Scaptio eram libertos que atuavam como credores em Roma e
em determinado momento passaram a estabelecer relações financeiras com Bruto, até que este
os enviou para desenvolverem atividades de crédito em Salamina. Essa atitude era algo
recorrente em Roma; aristocratas romanos que pela lei não podiam fazer empréstimos a outras
províncias geralmente se utilizavam de libertos pra isso, pois o liberto respondia por si. Lá,
Matinio e Scaptio atuavam como intermediários de Bruto, emprestando a juros altos para os
governadores e políticos locais: os empréstimos eram feitos com juros altíssimos que
chegavam a 48% ao ano. Quando os devedores de Salamina não conseguiam pagar o
montante, os credores firmavam novos contratos, nos quais constavam a quantidade restante
mais os juros a 4% (além dos juros regulares, também eram cobrados os juros compostos).
Essa atividade ilegal gerou uma crise enorme de débito em Salamina.230
Scaptio passou a fazer exigências que Cícero considerou intoleráveis, como a
liberação de um exército pessoal para si. As dificuldades para os devedores de Salamina se
solidificaram, e Cícero dispôs um edito que obrigava a fixação da taxa máxima de 1% de
juros ao mês - 12% ao ano nos contratos para os salaminianos. A firmeza de Cícero acabou
fazendo com que Scaptio admitisse que era apenas um representante de Bruto – é interessante
notar que até então nem Cícero e nem o povo de Salamina sabiam que era Bruto que
encabeçava essas operações ilegais. A surpresa e o espanto de Cícero são grandes e definem
uma nova forma de lidar com a situação por parte de Cícero, que passa a se mostrar mais
cauteloso/passivo na forma de lidar com a situação.231
As reclamações de Cícero em relação a Bruto passam a ser constantes nas cartas a
Ático. Cícero tenta convencer Bruto a parar com as atividades ilegais, e este não lhe dá
ouvido. É interessante a forma quase que “sentida” com a qual o arpinate se expressa quando
fala de Bruto a Ático – existe algo de rancoroso em suas palavras e ao mesmo tempo há um
medo de que aconteça algo que possa romper tal relação.232 Cícero reclama da grosseria de
Bruto ao responder suas cartas e essa arrogância marca também uma distância social e pessoal
entre eles, de acordo com José Baños. Segundo o autor, é Bruto aquele que parece mais
interessado em marcar essa distância. O motivo? A arrogância de Bruto se justifica no

229
ANDREAU, J. Banking and business in the Roman world. Cambride University Press: 1999, p. 93.
230
ANDREAU, J. Op, Cit., p. 95.
231
BAÑOS, J. Op. Cit., p. 5.
232
Cart. a Át.116.6. 2.
74

sentimento que cada membro das famílias ilustres de Roma sentia pelos homines novi, como
era o caso de Cícero, que, apesar de todo destaque político e intelectual em sua carreira no
senado, não vinha de uma família nobre.233
Por outro lado, Bruto pertencia a uma das famílias mais tradicionais de Roma: entre
seus ancestrais se encontrava ninguém menos que Lúcio Junio Bruto, considerado o fundador
da República Romana. Além disso, Bruto era sobrinho de Marco Pórcio Catão (o Jovem, líder
dos optimatese da oligarquia senatorial), cunhado de Lépido (futuro triúnviro) e genro de
Ápio Claudio Pulcro – além de sua origem nobre, suas relações estavam entre o escol da
sociedade romana. 234
O entendimento sobre essa diferenciação e hierarquização social, é fundamental para a
compreensão da amicitia estabelecida entre homens da elite romana. Ainda que pertencentes a
uma mesma esfera política, Cícero e Bruto tinham raízes diferentes que os separavam de
forma marcante e influenciavam, dessa forma, a base de suas relações.
A relação entre ambos se torna ainda mais tensa quando Bruto chega a pedir para que
Cícero consiga uma vaga pública no governo de Chipre para Scaptio. Cícero imediatamente
nega. As palavras de Cícero quanto a isso são claras e profundas – diz que sofreria muito pela
cólera de Bruto, mas sofreria muito mais ao ver a província sendo arrasada pelas operações
ilegais deste e de seus intermediários.235Andreau traz atenção para o possível interesse de
Bruto por trás deste pedido: ao pedir um cargo público para um de seus intermediários, este
queria assegurar que não haveria prejuízos financeiros em suas atividades, e,
consequentemente, garantiria que ele mesmo não tivesse riscos financeiros, uma vez que, o
dinheiro emprestado pelos intermediários era seu236.
O entrave entre Cícero, Bruto e os credores de Salamina permaneceu durante todo o
primeiro semestre do ano de 50 a.C.. Cícero tentou convencer Scaptio a aceitar a cobrança de
1% de juro mensal conforme o edito ao mesmo tempo que Bruto e Escapio o pressionam para
que o dê um cargo público. Porém Cícero não cede à pressão e se recusa a dar-lhe o cargo – se
nem a seus amigos ele havia agido de tal forma, “quanto mais a homens como esses”, dizia.
Porém, há uma notável mudança no tratamento da questão por parte do arpinate, da qual já
falamos; Andreau ressalta que o caso dos credores de Salamina mostra como até mesmo um

233
Sobre tal arrogância ver: Cart. a Át. 117. 6. 3. Em Cart. a Át.114. 5. 21 Cícero afirma ao amigo que “se
horrorizou” ao descobrir a atividade de Bruto por trás das transações ilegais ocorridas em Salamina.
234
Op. Cit., p. 10.
235
Cart. a Át. 115.6.1
236
ANDREAU, J. Op. Cit., p. 225.
75

governador “relativamente” honesto como Cícero poderia ser levado a procrastinar para não
desagradar alguém de seu círculo político. 237
A última carta que faz referência ao episódio de Salamina data de junho do ano 50
a.C.. Cícero, pelo menos no restante das cartas que chegaram até nós, não menciona mais
assunto a Ático. Sendo assim, nada se sabe a respeito dos rumos que tomaram os credores de
Salamina, Matinio e Scaptio, exceto que, posteriormente ambos foram mortos em Roma. 238
Apesar da frustração e do sentimento de decepção em relação a Bruto, Cícero não
deixa de demonstrar a sua amicitia para com ele. Nesse sentido, o officium de Cícero em
relação a este continua sendo exercido, independente do malgrado que o amigo o tenha feito.
Em uma carta pública endereçada a Marco Célio, edil curul no ano de 50 a.C., Cícero
expressa a sua disposição em estreitar os vínculos de amizade com Bruto:

(...) Tens me advertido de que sinto carinho por Bruto. Que motivo
há para que não esteja entre os meus desejos o acolher como amigo a um
homem que está no apogeu da existência, das riquezas, de sua carreira, de
seu talento, de filhos, parentes e amigos, e que, antes de tudo é um colega
meu, que tem contribuído para a gloria de nosso colégio de áugures e para o
desenvolvimento de nossa ciência? (Cart. a fam.93. 2. 13)239

Os beneficia derivados da amizade de Bruto, dessa forma, são caracterizados por


Cícero como ganhos tanto materiais quanto simbólicos, uma vez que, de acordo com Katryn
Tempest, o arpinate tinha muito a ganhar na manutenção de tal amizade. Tanto a amicitia
proclamada a Ápio Claudio quanto àquela feita a Bruto residem em um movimento
estratégico para que Cícero tivesse, a seu favor, a influência dos dois grandes homens, uma
vez que Claudio e Bruto faziam parte da mesma família. 240
Esse movimento é também expresso no trecho da seguinte carta, datada de 50 a.C. e
endereçada a Ático:

Por Ápio Claudio tenho feito tudo, desde sempre com honradez, mas
também com bom gosto. Pois não o odeio, e também estimo a Bruto, e a

237
Op. Cit., p. 227.
238
RAUH, N. Op. Cit., p. 4.
239
(...)Brutum a me amari intellegis. quid est causae cur mihi non in optatis sit complecti hominem florentem aet
ate, opibus, honoribus, ingenio, liberis, propinquis, adfinibus, amicis, conlegam meum praesertim et in ipsa coll
egi laude et scientia studiosum mei?
240
TEMPEST, K. Op. Cit., p. 154.
76

Pompeu, o qual me insiste de maneira surpreendente; por Hércules que cada


dia o aprecio mais! (Cart. a Át. 116. 6. 2)241

As três figuras do excerto faziam parte de uma mesma rede de contatos; Claudio e
Bruto mantinham um vínculo pessoal com Pompeu: enquanto a filha de Ápio Claudio era
casada com o filho deste, Bruto residia do lado daqueles o apoiavam no senado. Por isso, não
era vantajoso que Cícero entrasse em atrito com estas partes. Com o tempo, o arpinate logrou
uma reconciliação maior com Ápio Claudio e Bruto, após extensas demonstrações públicas e
privadas de amicitia242. Essa reconciliação foi exaltada por Ático,243 a quem Cícero responde
“me alegra muitíssimo que você aprove a minha discrição com Ápio Claudio e a minha
generosidade para com Bruto”.244
Essa generosidade, descrita através do conceito de liberalitas, é utilizada por Cícero
como sinônimo de beneficium, e exprime um caráter de generosidade, como uma exaltação
dos serviços prestados a um amigo.245 Essa expressão, caracterizada nas cartas públicas que
versavam sobre a figura de Bruto, bem como aquelas endereçadas posteriormente a este, era,
de acordo com John Hall, uma estratégia a fim de reduzir o elemento de confronto em seu
trato com tais homens. Ainda, para o autor, existia em Cícero uma habilidade em transmitir
uma imagem polida de si mesmo, uma aparência de equilíbrio e moderação que tinha uma
ressonância bem ampla no palco político romano. 246
Nesse sentido, é importante notar que Cícero escreve a partir de uma posição inferior;
os homens a quem ele declara sua amicitia possuem mais que uma disposição em retribuir o
officium de Cícero: eles possuem força política, econômica e militar. Esse fato explica a falta
de sincronia entre as comunicações, sendo Cícero aquele que sempre toma as rédeas do ato de
expor a sua disponibilidade como amigo.247Para Verboven, essa expressão dos officia contida
nas remessas de cartas ciceronianas fazem parte de um conjunto de táticas retóricas utilizadas
para suavizar as relações e manter seus aliados políticos a seu favor. 248
Acima de tudo, é importante considerar que tais relações são reflexos de uma época de
crise, na qual, apesar dos desafetos, ambas as partes tentavam, a todo custo, solidificar uma

241
“pro Appio nos hic omnia facimus honeste tamen sed plane libenter. nec enim ipsum odimus et Brutum amam
us et Pompeius mirifice a me contendit quem me hercule plus plusque in dies diligo.”
242
Op. Cit., p. 155.
243
Cart. a Át. 115.6.1
244
quod meam βαθύτητα in Appio tibi, liberalitatem etiam in Bruto probo, vehementer gaudeo.”
245
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 218.
246
HALL, J. Op. Cit., p. 189.
247
Op. Cit., p. 190.
248
VERBOVEN, K. Op. Cit. p. 340.
77

segurança política, e por vezes financeira, dentro das redes de amigos que se espalhavam pelo
Mediterrâneo. A análise da relação entre Cícero e Bruto nos mostra que o caráter da amicitia
entre as partes era, de fato, essencialmente político e utilitário. Baños questiona mesmo as
declarações privadas de afeto de Cícero para com Bruto; segundo ele, o afeto declarado nada
mais era do que simples retórica, já que a falta de reciprocidade de Bruto era notória, assim
como ocorreu no caso de Ápio Claudio Pulcro. 249

2.3.3 Cícero e Públio Cornélio Dolabela


Públio Cornélio Dolabela foi uma importante figura da gens Cornelia. De início ligado
às causas dos optimates, acabou por escolher se tornar tribuno da plebe ao ser adotado pela
casa dos Lêntulos, se posicionando ao lado da política de Júlio César, a partir de 47 a.C.. A
partir de sua função, tentou realizar mudanças consideráveis na constituição romana, como a
abolição das dívidas durante a guerra civil entre César e Pompeu. 250 A abolição das dívidas
era um plano recorrente nas propostas dos populares, aos quais Dolabela se juntou. A
proposta gerou uma dissensão no senado, entre os apoiadores da proposta e aqueles que a
viam como algo absurdo, em sua maioria optimates.251
Conhecido popularmente por possuir um caráter duvidoso e ser dado aos prazeres e
luxos, Dolabela era frequentemente criticado por muitos homens do senado romano, como
Cícero, por exemplo. A relação entre ambos se estabeleceu de uma maneira improvável e
respondeu, como veremos, às necessidades de ambas as partes. No ano de 50 a.C., Cícero se
empenhara em encontrar um novo marido para a filha, Túlia, ao que o arranjo, encabeçado
por sua esposa Terência, acabou apontando para a figura de Dolabela. Cícero se incomoda
com a escolha, e reclama a Ático, seu amigo: “era a última pessoa que eu esperava”. 252
Dolabela seria o terceiro e último marido de Túlia; o casamento se firmaria pouco
antes do início da Guerra Civil, em 50 a.C. e seria marcado por escândalos, relacionados à
conduta do genro de Cícero. Dentre estes escândalos, uma série de acusações sobre
libertinagens e traições. De sua relação com Dolabela, Túlia daria à luz a um menino, em

249
BAÑOS, J. Op. Cit., p. 24.
250
Essa tentativa também advinha de um interesse pessoal: cercado de dívidas e pressionado por seus credores,
sua proposta se justifica em si.
251
Para Cícero, tal medida era imperdoável. Ver: Chisholm, Hugh. Dolabella, Publius Cornelius. Encyclopædia
Britannica. (11th ed.). Cambridge University Press, p. 386.
252
Cart. a Att., 15 V 6.
78

maio de 49 a.C., que acabaria por nascer prematuro de sete meses, e não resistiu. De modo
geral, o casamento não se mostrou uma união feliz.253
Apesar das diferenças de pensamento, modo de vida e visão política, Cícero e
Dolabela encabeçaram uma relação de amicitia a partir da união familiar. De acordo com
John Collins, essa união respondia a uma política que era desenvolvida por e para as grandes
famílias romanas. O casamento, assim, desempenhava um papel primordialmente político e
eram comuns absolutamente comuns os divórcios estabelecidos à causa de um rompimento
político ou pessoal entre as famílias. 254
Como um novus homo, Cícero precisava manter seu reconhecimento e aceitação nos
círculos da nobreza romana. Assim, o arranjo do casamento de Túlia com Dolabela o
colocaria no cerne da família Cornélia. 255 Além disso, como assinala John Hall, a vantagem
de Cícero nessa relação era a de que este possuía maior auctoritas em relação à Dolabela, uma
vez que sua idade e posição no senado romano eram superiores. Por outro lado, Dolabela
havia alcançado uma posição importante perante César, se tornando um de seus principais
apoiadores.256
A aliança estabelecida entre as partes mostrou-se benéfica não só para Cícero e
Dolabela, mas como para outros agentes, como, a exemplo, Júlio César. Este último deu à
Dolabela uma rápida promoção, a fins de angariar a aceitação e apoio do arpinate ao seu
projeto político. Assim, Dolabela passou a servir como intermediário entre Cícero e César.257
Para Cícero, reinava a vantagem política de estar protegido por César, ainda que seu
apoio imediato a Pompeu existisse. Dessa forma, a segurança de sua posição política estava
garantida mediante os vínculos estabelecidos com Pompeu e César. De acordo com Hall, essa
foi uma jogada arriscada, pois poderia forjar a imagem de Cícero como instável e isento. No
contexto caótico da política romana, não tomar um lado poderia acarretar em prejuízos de
ordem moral.258

253
COLLINS, J. Tullia's engagement and marriage to Dolabella. The Classical Journal, v. 47, n. 5, 1952, p. 164.
Após se divorciar de Dolabela, em 45 a.C., Túlia daria à luz a outro menino. Semanas depois, a filha de Cícero
não resiste e morre devido à complicações do parto. Sugere-se que a criança também não tenha vivido muito, já
que não é mencionada por Cícero em suas cartas.
254
COLLINS, J. Op. Cit., p. 165.
255
Aqui é importante destacar que, apesar do aval de Cícero, o casamento foi definido por Terência e Túlia, uma
vez que as mulheres romanas tinham o direito a aceitarem ou não as sugestões de matrimônio. Nesse sentido,
ambas tiveram um papel ativo na escolha do candidato.
256
HALL, J. Op. Cit., p. 184.
257
COLLINS, J. Op. Cit., p. 166.
258
HALL, J. Op. Cit., p. 185.
79

A situação se agravava pelo fato de Dolabela e Ápio Claudio Pulcro serem inimigos
pessoais, o que poderia minar não só a relação de Cícero para com este, mas os laços de
amizade com Pompeu. Felizmente, para Cícero, o casamento de Túlia com Dolabela não foi
criticado por Ápio Cláudio, o qual concedeu uma boa disposição em relação à Cícero. 259
Não demorou muito tempo até que Cícero lamentasse a escolha feita por Túlia. Em
uma série de cartas endereçadas a Ático, o conteúdo das reclamações é constante, e vai desde
o rechaço da conduta promíscua de Dolabela até a reprovação de suas propostas políticas,
como o já mencionado cancelamento de dívidas. 260De fato, Ático já havia alertado o amigo
sobre os vícios de Dolabela; porém, como aponta Collins, o matrimônio entre Túlia e este
havia ocorrido meio a um turbilhão de acontecimentos, e a ausência de Cícero em Roma,
ocasionada por seu proconsulado na Cilícia, culminou no atraso e na perda de informações
relativas ao matrimônio, que foi estabelecido antes que o arpinate pudesse dar a palavra
final. 261
Além disso, à medida que a Guerra Civil avançava, Cícero se questionou
frequentemente sobre que lado deveria tomar. Aconselhado por Ático a aguardar o desenrolar
dos acontecimentos, ele decide confiar em Dolabela e terminar de efetuar o pagamento do
valor do dote de Túlia. A relação com Dolabela ainda é politicamente necessária – depois da
derrota das tropas de Pompeu na Farsália, Cícero decide abandonar o acampamento com a
confiança que lhe oferecia Dolabela – alguns dizem que foi Dolabela quem provavelmente
conseguiu com que César permitisse o retorno de Cícero à Itália.
Certamente, portanto, as relações com seu genro ainda eram extremamente
necessárias. São inúmeras, nesse contexto as declarações lisonjeiras e reafirmação dos laços
de amizade de Cícero a Dolabela, como o excerto a seguir:262

Pois sempre te quis tão bem quanto você possa compreender, e agora me
sinto tão animado com os seus últimos feitos que nunca havia sentido um
afeto mais ardente. Pois não há nada, acredite, mas bonito, nada mais belo

259
Em 49 a.C., Dolabela acusou Ápio Claudio Pulcro de violação da soberania popular. O processo culminou na
absolvição de Claudio.
260
De acordo com Shackleton Bailey, uma das irritações mais notáveis causadas por Dolabela a Cícero foi a sua
defesa da proposta de erguer uma estátua em honra a Clódio, inimigo pessoal do arpinate. Ver: PANTOJA-
MÁRQUEZ, J. Cartas a ático. Introducción. Madrid: Gredos, 2008, p. 11.
261
COLLINS, J. Op. Cit., p. 169.
262
Porém, conforme assinala Michael Albrecht, todas as cartas escritas por Cícero a Dolabela eram de âmbito
privado. Isso se explica, segundo o autor, pela acirração partidária que tomava conta da política republicana
durante a Guerra Civil. Nesse sentido, expressar apoio público a uma figura complexa como Dolabela poderia
incorrer em problemas para Cícero.Ver: VON ALBRECHT, M. Cicero's Style: A Synopsis. Followed by Selected
Analytic Studies. Brill, 2003, p. 68.
80

nem nada mais digno de afeto do que a sua virtude. (Cart. a Fam. 326 IX
14)263

.
O tom bajulador e exagerado da carta fazia jus ao officium que Cícero prestava a
Dolabela, e era uma expressão daquilo que o arpinate pretendia diante de um contexto tão
incerto; de acordo com Pantoja-Márquez, existia uma busca, por parte de Cícero, em assinalar
sua posição diante de Dolabela, bem como seu apoio a este.264
Entretanto, o teor dos escritos direcionados a Dolabela diferem substancialmente
daqueles que Cícero redige à Àtico, sobre o mesmo. Irritado com as atitudes do genro, Cícero
reclama a Ático:“(...) e eu me aflijo. Consumido pela boa disposição daquela criatura tão
desgraçada; creio que nunca tenha nascido nada parecido.” (Cart. a Át., 231 XI 25)265
Com o tempo, o comportamento político demagógico e prejudicial de Dolabela, que ia
na contramão dos valores republicanos de Cícero, aliado a seus escândalos pessoais, tornaram
a relação entre ele e seu sogro cada vez mais frágil. No ano de 46 a.C., o divórcio entre
Dolabela e Túlia se tornara inevitável.
A relação estabelecida entre Cícero e Dolabela nos fornece um panorama sobre o
funcionamento da amizade romana na tardo república e algumas de suas características; em
primeiro lugar, a diferença entre as formas de tratamento e o padrão de comportamento entre
Cícero e o genro nos ajudam a perceber que a amicitia demandava uma igualdade política e
de status quo, porém essa igualdade não era relativa ao estrato social do homem romano.
Apesar de ambos pertencerem a uma esfera importante do senado e possuírem o mesmo status
político, Cícero, na condição de novus homo sempre teria que se adiantar em oferecer
demonstrações de sua amizade e apoio, pois a superioridade de Dolabela era inerente à sua
gens, da mesma forma como ocorreu em relação a Bruto.266
Dessa forma, ainda que tais relações fossem consideradas simétricas no sentido
político, elas eram hierarquizadas, de acordo com a tradição da nobreza romana. Para

263
“quamquam, mi Dolabella (haec enim iocatus sum) libentius omnis meas, si modo sunt aliquae meae laudes, a
d te transfuderim quam aliquam partem exhauserim ex tuis. nam cum te semper tantum dilexerim, quantum tu int
ellegere potuisti, tum his tuis factis sic incensus sum, ut nihil umquam in amore fuerit ardentius. nihil est enim,
mihi crede, virtute formosius, nihil pulchrius, nihil amabilius.”
264
PANTOJA-MÁRQUEZ, M. Cartas II: Cartas a ático. Madrid: Gredos, 2008, p. 412.
265
“ego huius miserrimae †facultate† confectus conflictor. nihil umquam simile atum puto. quoi si qua re consul
ere aliquid possum, cupi a te admoneri.”
266
COLLINS, J. Op. Cit., p. 169.
81

Dolabela, diferente de Cícero, um homem-novo, não haveria tantos prejuízos de valores


morais dado o rompimento da relação.
Em segundo lugar, a amicitia romana não pressupunha concordância política, nem ao
menos um sentimento de afeição. Era comum, como vimos, que laços de amizade fossem
estabelecidos mesmo entre agentes de grupos distintos, como foi o caso de Cícero e
Dolabela. 267 Nesse caso, o estabelecimento de um vínculo de amicitia obedecia aos interesses
tanto individuais quanto coletivos; estes últimos, para Peter Brunt e Koenraad Verboven,
eram a base da manutenção do sistema de officia romana, já que o funcionamento deste
dependia do grau de apoio mútuo entre as famílias. 268
Igualmente importante era o fato de que a amicitia não era uma instituição insolúvel;
ao contrário, de acordo com Tempest, contratos sociais e acordos políticos eram rompidos
frequentemente no último século da República romana. O funcionamento da amicitia
dependia, assim, do contexto político e social, bem como dos interesses envolvidos na
relação.269
Desse modo, a manutenção de tais interesses dependia do quanto as partes estavam
dispostas a cumprir com os deveres relativos aos mutua officia, conforme exposto por
Verboven. Ao officium oferecido por um amigo, deveria-se demonstrar o sentimento de
gratia, que, como vimos, na prática significava demonstrações públicas ou privadas de
amizade, bem como auxílio em tempos difíceis. A tais conceitos unem-se os beneficia
derivados da ajuda mútua empregada entre amigos.

2.3.4 Questões financeiras

“Te digo somente que, se nossos amigos cumprem com seu dever, não nos faltará
dinheiro”, escreveu Cícero a sua esposa, Terência, em novembro de 58 a.C..270 A carta, escrita
desde o exílio em Tessalônica, versava sobre os rumos financeiros da família. Preocupado
com sua esposa e filhos, após a destruição de suas propriedades, Cícero recomenda que
Terência se utilize da amizade com Pompeu e César, bem como de homens como Públio
Cornélio Lêntulo Espínter e Cneu Plâncio. A carta, que possui um tom pesaroso e ao mesmo

267
De acordo com David Epstein, a inimizade fazia parte da esfera da amicitia romana na época ciceroniana.
Nesse sentido, era comum que muitos “amicii” se detestassem. Não existia, segundo sua análise um sentimento
afetuoso que fosse implícito a uma relação de amicitia.Ver: EPSTEIN, D. Personal enmity in Roman politics,
218-43 BC. Routledge, 1987.
268
BRUNT, P. Op. Cit., p. 23; VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 345.
269
TEMPEST, K. Op. Cit., p.
270
Cic., Let. Fam, 8. XIV. 1. “tantum scribo: sierunt in officio amici, pecunia non dent.”
82

tempo esperançoso, já que existia uma confiança plena de que seus amigos o ajudariam, nos
fornece a chave para o entendimento sobre como a amizade romana poderia servir como base
para a resolução de questões econômicas: a amizade, de acordo com Cícero, pressupunha
também auxílio financeiro em tempos difíceis.
Segundo Verboven, ainda são poucos os estudos que versam sobre a importância das
redes de amizade para a construção de relações financeiras no mediterrâneo antigo. Mesmo
assim, segundo o autor, todo estudo sobre a amicitia na Roma Antiga menciona, na maioria
das vezes, formas de trocas financeiras entre amigos, o que nos leva a entender o papel do
processo de estabelecimento das relações de amizade na organização do mundo financeiro
romano.271
Para entender como tais redes interferiam e mesmo serviam como base para a
construção de relações financeiras, precisamos, antes de tudo, entender como funcionavam as
obrigações morais entre os homens da elite romana. Aqui, portanto estudaremos uma forma
de amizade específica – aquela em que há uma reciprocidade simétrica, ou seja, desenvolvida
entre pares de igual status. Não abordaremos, como já falado, as relações entre patronos e
clientes, já que estas são caracterizadas como assimétricas e envolvem, obrigatoriamente, uma
relação de poder e subserviência moral.
Alguns autores, como David Konstan, sugerem mesmo diferenciar a amizade romana
da prática do clientelismo – para ele, um cliente poderia ser chamado de “amicus”, porém um
amigo verdadeiro não poderia ser chamado de cliente272. No caso de Cícero e seus amigos,
estes estavam em igualdade de status tanto político quanto social. Assim, nossa análise é
centrada na importância das amizades simétricas como instrumentos de poder no mundo
financeiro.
Tanto as relações de amizade simétricas quanto as relações de clientelismo e patronato
são, para Verboven, subdivisões de uma classe geral de relações sociais que pode ser
encontrada em qualquer sociedade 273. Esse pressuposto já fora esclarecido amplamente por
Karl Polanyi. Em sua obra A subsistência do homem e ensaios correlatos, Polanyi salienta
que todas as sociedades, tanto pré quanto capitalistas possuem economias substantivas, ou
seja, suas relações econômicas podem ser estudadas a partir de um contexto político ou social.

271
VERBOVEN, Op. Cit., p. 13
272
KONSTAN, D. Op.Cit., p.329.
273
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 7
83

Em muitos casos, a reprodução social ou valores morais são mais importantes que a intenção
de lucro pessoal274.
Ademais, no mundo romano, não havia uma distinção clara entre o poder político e o
econômico. Nesse sentido, Ciro Flamarion Cardoso exalta as palavras de Polanyi e salienta
que, antes do capitalismo, todas as organizações políticas ou todas as formações econômico-
sociais eram desenvolvimentos locais, mesmo no Império romano. Eram “universos
enclavados, garantindo um mundo cheio de contrastes”. Na economia do mediterrâneo antigo,
a reprodução do sistema dependia de diversos mecanismos que, hoje em dia, seriam
considerados fatores “extraeconômicos”. Assim, Cardoso demonstra que, na Antiguidade
Clássica, não existia a ideia de universalização do lucro; os mercados eram, assim, traços
secundários da vida social, e não o fator mais importante dela 275.
Desse modo, as crises políticas eram comumente precedidas de crises econômicas. A
primeira do último século aconteceu logo após a Guerra Social, em 91 a.C. A crise financeira
de 63 a.C. coincidiu com o consulado de Cícero, momento de crise determinado pelas
tentativas de golpes de Estado por parte de Catilina e seus apoiadores. Já a de 59 a.C.
coincidiu com o agravamento das tensões políticas oriundos do embate entre Júlio César e
Pompeu. A onda de violência decorrente dos confrontos da Guerra Civil fez com que muitos,
por precaução, depositassem suas reservas de dinheiro fora da Itália, gerando uma nova crise
de liquidez. Júlio César se aproveitou então do momento para pregar sua política de abolição
de dívidas, projeto que conquistou muitos indivíduos. Nesse momento, grande parte da alta
aristocracia romana, bem como equestres e senadores, estava atolada em dívidas – fazendo o
próprio Cícero parte desse grupo276.
Existia, ainda, uma noção de honra atrelada à noção de crédito. A obrigação moral de
pagar uma dívida ou um auxílio prestado estava diretamente ligada à honra que existia entre
as partes, em especial, no que tange ao devedor. Tanto na Roma de Cícero, quanto na de
Plínio, havia uma execração pública daqueles que não “honravam com suas dívidas”. Atender
aos prazos contratuais de um empréstimo envolvia a fides da palavra dada, e o
descumprimento da obrigação do pagamento acarretava na exposição pública do devedor,
como forma de punição à sua honra277.

274
POLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 55.
275
CARDOSO, C. Existiu uma economia romana? Rio de Janeiro, Phoinix, 2011, p. 33.
276
HARRIS, W. The Late Republic in: The Cambridge economic history of the Greco-Roman world. Cambridge:
Cambridge University Press, 2007.
277
BRUNT, P. Op. Cit. p. 12.
84

Citando Marcel Mauss, Verboven atenta para o fato de que, conforme exposto pelo
antropólogo, em sua análise sobre as trocas no Direito romano, os mutua officia
pressupunham uma obrigação personificada pela fides, que fazia com que a ajuda prestada
sempre fosse retribuída. Existia, portanto, uma moral contratual operante nas transações que
envolviam auxílios ou empréstimos na Roma antiga278.
Nesse sentido, Eric Sabourin, ao abordar a relação entre as noções de troca e
reciprocidade na obra de Mauss, salienta que existe uma moral, um valor ético atrelado à
transação econômica, em determinadas sociedades. Essa é, em seu ver, uma moral relacionada
às coletividades, às famílias, e não aos indivíduos em si, o que conduz a uma dialética social
particular 279. Existia, pois, uma associação da moralidade com a reciprocidade que rompia
com a ideia do autointeresse único.
Essa associação é latente na epistolografia ciceroniana. As menções à reciprocidade de
favores financeiros e políticos são constantes e, geralmente, pressupõem uma obrigação moral
de responder ou devolver o que foi dado na forma de serviços e pagamentos.
Um exemplo a ser mencionado nesse sentido é a importância da figura do fiador nas
relações financeiras da época. O termo, derivado da palavra latina fidere, que significa
confiar, designava aqueles que atuavam como mediadores numa transação; 280 estes deveriam
garantir o cumprimento dos prazos e deveres contratuais e deveriam ser responsáveis pelo
pagamento da dívida caso o devedor não cumprisse com a sua parte. De acordo com Deivid
Gaia, esse conceito está ligado à coletividade, “ao conjunto da vida social”. No contexto da
vida financeira, a fides pode ser traduzida como confiança, crédito.281
Essa confiança era comumente divulgadaentre as correspondências da época. Não raro
o devedor também incluía declarações de amicitia a seu fiador, para que o vínculo entre os
dois permanecesse sólido o suficiente para a manutenção da garantia da dívida.

278
VERBOVEN, Op. Cit., p. 25.
279
SABOURIN, E. Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 23, n. 66, 2008, p. 135.
280
Não à toa, a raiz fidere é a mesma da palavra fides, que personificava o conceito moral romano, já abordado
neste capítulo.
281
GAIA, D. Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare Nostrum: História e
Integração no Mediterrâneo Antigo, v. 1, 2010, p. 96.
85

É o caso, por exemplo, da relação entre Cícero e Públio Lêntulo. Em diversas cartas,
Cícero reafirmava seu compromisso com Lêntulo, lembrando-o constantemente de seu dever
como amicus282 e reafirmando sua amizade:

(...) e ao que me obriga a amizade e a minha conveniência, estou disposto a


colaborar nos assuntos que são de interesse daquele cuja colaboração você
mesmo considerou oportuna (...) meu afeto por Pompeu, benéfico e desejado
por ele, considero correto e sincero. Pompeu é um autêntico amigo seu e, sob
seu consulado, você conseguirá, se não me engano, tudo o que quiser.
Nesses assuntos você sempre me terá ao seu lado e não negligenciarei nada
que te diga respeito. Portanto, não temo importunar a quem considera
satisfatória, inclusive por interesse próprio, a minha gratidão (Cic., Let.
Fam, 19. I. 8)283

Os excertos acima nos mostram diferentes facetas de uma relação de amicitia da qual
se desenvolve uma relação financeira: em primeiro lugar, a amicitia era professada e, ao
mesmo tempo, subjetivamente ou não, também cobrada. Cobrar a reciprocidade da ação é, em
muitas cartas, algo recorrente. Nos casos citados, vemos Lêntulo como fiador de uma dívida
de Cícero, com Pompeu. Cícero não só ressaltava a sua amicitia com seu remetente, mas
também lhe falavada importância de sua relação com Pompeu e do compromisso deste para
consigo. Ao final, garantia que Lêntulo poderia se beneficiar de uma relação com este. Assim,
vemos duas necessidades inerentes nessa teia de relações: a primeira consistia na manutenção
da amicitia com um fiador tão importante quanto Lêntulo; a segunda indicava a manutenção
da confiança e da relação do fiador para com o credor, nesse caso estabelecida pelo eixo
Lêntulo-Pompeu. Ao tecer promessas de apoio a Lêntulo mediante a recomendação de
Pompeu como credor, Cícero nos faz perceber a complexidade desse tipo de relação –
existiauma dialética particular entre os agentes que extrapolava o nível da interação entre
credor e devedor.

204
Cic., Let. Fam, 20. I. 9; Cic., Let. Fam, 15. I. 5ª; Cic., Let. Fam, 17. I. 6; Cic., Let. Fam, 18. I. 7; Cic., Let.
Fam, 19. I. 8; Cic., Let. Fam, 20. I. 9; Cic., Let. Fam, 56. I. 3.
283
“ego quidem, ut debeo et ut tute mihi praecepisti et ut me pietas utilitasque cogit, me ad eius rationes adiungo
, quem tu in meis rationibus tibi esse adiungendum putasti sed te non praeterit, quam sit difficile sensum in re pu
blica, praesertim rectum et confirmatum, deponere.me hercule amor erga Pompeium apud me valet, ut, quae illi
utilia sunt, et quae ille vult, ea mihi omnia iam et recta et vera videantur;Pompeium tibi valde amicum esse cogn
ovi, et eo tu consule, quantum ego perspicio, omnia, quae voles, obtinebis, quibus in rebus me sibi ille adfixum h
abebit, neque a me ulla res, quae ad te pertineat, neglegetur; neque enim verebor, ne sim ei molestus, cui iucund
um erit etiam propter se ipsum, quom me esse gratum videbit.”
86

Assim, a importância da amicitia vai além do nível das relações diáticas. Cada laço
entre dois amigos só pode ser compreendido através das redes de contatos que envolvem
ambos os lados de uma relação. Não é, portanto, apenas a relação entre duas pessoas que
define a credibilidade de um credor ou devedor dentro da elite romana, e sim, toda uma rede
de amigos e familiares284.

284
VERBOVEN, K. 2002, p. 349
87

PARTE 3
A amizade como instrumento de poder em Plínio, o Jovem

2.1 O contexto pliniano – anos 97-108 d.C..


2.1.1 Breves considerações sobre o autor
Plínio, o Jovem, nasceu em 61 d.C., durante os últimos anos do governo de Nero e
passou sua infância e juventude sob os governos dos imperadores Vespasiano, Tito e
Domiciano, sob os quais Roma vivenciou um período turbulento, marcado pela tirania política
da dinastia Flaviana e por crises políticas e sociais, passando pelos infortúnios da peste
(durante o governo de Tito) e da erupção do vulcão Vesúvio (governo de Vespasiano). Esta,
que destruiu as cidades de Herculano, Pompeia e a pequena cidade litorânea de Estábia,
incidente no qual veio a falecer seu tio, Plínio o Velho, ficou marcada na memória do jovem
Plínio, que ao evento fez dedicar suas memórias em um dos relatos de suas cartas.
Acerca de sua idade adulta, Plínio vivenciou um período de relativa estabilidade
política e social: comparado ao período anterior a Nerva, dominado pelo caos político e pela
tirania dos flavianos, o novo período desvelou-se no que fora chamado de pax romana. Plínio
iniciou sua entrada no Cursus Honorum ainda no governo de Domiciano e executou diversas
funções importantes sob o governo de Trajano, momento de continuação de uma grande
expansão do território romano, marcado por intensa atividade militar e reformas urbanas,
caracterizando um período que viria a ser conhecido como o auge do poderio imperial e da
glória romana. Apesar disso, a história sobre tal momento é relativamente escassa, tendo seus
historiadores se preocupado com o registro dos momentos anteriores – quase nada nos restou
como documento do período dos governos de Nerva e Trajano, remanescendo uma grande
parte entre os escritos do próprio Plínio.285
Assim, nosso autor viveu grande parte de sua vida durante a felicitas temporum,
mantendo um contato permanente com o imperador Trajano, conforme vemos nas trocas de
correspondências entre ambos. Ademais, ele se tornou assessor do próprio imperador,
recebendo o título de áugure em 103 d.C. Entre 109 e 113 d.C. (data aproximada), se ocupou
de seu legado dado por Trajano - a administração da província da Bitínia/Ponto. O contato de
Plínio com este é bem personificado em seu famoso Panegírico a Trajano.

285
Grimal, P. História de Roma. 2011, p. 160.
88

No âmbito financeiro, Plínio aparece nas próprias cartas como sujeito credor e devedor
e uma de suas primeiras citações que envolvem dívidas é o caso dos empréstimos que o autor
tomava com sua sogra, Pompeia Celerina, dona de grandes propriedades. Por exemplo, na
carta XIX do livro III, Plínio revela seu desejo de adquirir algumas terras e efetuar certas
reformas em suas propriedades; para isso, “não seria difícil conseguir” dinheiro: ele pediria a
sua sogra, e menciona que o capital dela proveniente era como se fosse seu, o que nos leva a
entender que era um hábito de Plínio recorrer a ela como fonte de empréstimo. As relações
financeiras de Plínio, dessa forma, também residiam em seu âmbito familiar e são reflexos das
transações entre credores e devedores na Roma do período286.
Contudo, é importante estabelecer uma diferenciação entre a vida financeira de Plínio
em relação à de Cícero. Isso porque, para os padrões da época, Plínio era, de fato, um dos
homens mais ricos de seu tempo, enquanto a fortuna de Cícero não somava um terço dos bens
daquele. Assim, tanto o poder político quanto o econômico eram maiores em Plínio, e
determinavam, portanto, a forma como ele lidava com sua rede de amizades, já que dispunha
de um status maior.
Em relação à tal conjunto de amizades, temos menções tanto aos amigos literários de
Plínio, como Tácito e Suetônio, quanto a uma gama de cavaleiros e políticos romanos de
diferentes regiões, mas, sobretudo, àqueles que mantinham igual status em relação ao nosso
autor. Contudo, mesmo em ambientes onde poderia existir uma desigualdade de padrões, em
se tratando do sistema de patronato e clientela, era comum que houvesse a distribuição de
favores recíprocos entre as partes, conforme assinala Renata Venturini. Assim, isso implicava
no estabelecimento de alianças de uma forma que fizesse com que as partes envolvidas
pudessem angariar benefícios de acordo com as suas necessidades 287.
Nesse sentido, de acordo com Venturini, tais relações decorrem do estabelecimento da
fides e da amicitia, e fazem parte de uma esfera política na qual o status ou a condição social
são determinantes para o sucesso do indivíduo 288. Portanto, a posição que cada um ocupa na
escala social determinava as condições e as formas pelas quais a amizade desempenhava seu
papel durante a Roma pliniana. Dessa forma, tais premissas mantém estreita proximidade com
o padrão romano do século I a.C, a saber, em relação ao contexto ciceroniano.

286
DUNCAN-JONES, R. The finances of the Younger Pliny. Papers of the British School at Rome, v. 33, p. 177,
1965.
287
VENTURINI, R. Relações de poder em Roma: o patronato e a clientela. Classica-Revista Brasileira de
Estudos Clássicos, v. 11, n. 11/12, p. 299, 1999.
288
Op. Cit., p. 301.
89

2.2.1 Relações de poder e terreno político

Para muitos, falar sobre a Roma imperial entre os finais do século I d.C. e início do
século II d.C. significa abordar, primeiramente, as conseqüências da queda de Domiciano
sobre a vida política romana. De fato, houve uma importante e gradual mudança nas bases da
política imperial, sobretudo no que diz respeito à forma como as relações entre homens do
meio passaram a se desenrolar desde então.
Nesse sentido, é comum a utilização do termo pax romana para se referir ao
sentimento gerado no contexto que se inicia com a ascensão de Nerva em 96 a.C e que tem
seu auge sob os governos de Trajano e Adriano. Tal conceito, de acordo com Hannah
Cornwell, teve sua origem ainda na República e, posteriormente, passou por uma mudança
semântica importante no Império 289. Para a autora, a pax estava intimamente relacionada ao
imperialismo romano, se fundindo numa retórica importante que respaldava as ações dos
imperadores290.
É importante considerar, desse modo, que a pax usualmente referida nas cartas
plinianas deve ser tomada com um teor crítico. Apesar da notável melhoria nas relações
políticas após a morte de Domiciano, estando o senado em uma melhor posição, o campo de
debates e disputas ainda vigorava. A pax, assim, não correspondia a um critério homogêneo e
temporalmente regular: há que se avaliar as circunstâncias do contexto.
De fato, houve uma mudança importante no campo político da Roma de Plínio, o
Jovem. Sob o governo de Domiciano (81-96 d.C.), os funcionários públicos e senadores
viveram um período de constante terror, pois o imperador se fazia obcecado com idéias de
perseguição, fato que o fez recorrer à censura e violência a quem fosse considerado opositor
de seu governo291.
Mesmo assim, Domiciano conseguiu manter certa estabilidade no território imperial,
administrando bem as cidades e lançando providências que seriam retomadas por Trajano. É
de se notar, nesse sentido, que tanto Plínio, o Jovem, quanto outras figuras importantes do

289
Segundo a autora, na Roma da tardo-república, a noção de pax estava atrelada à idéia de reconciliação entre os
povos e entre as esferas políticas, o que nos é retratado de forma abrangente nas obras de Cícero. Para ela, a
noção de pax cambiou de forma singular até a constituição das formas políticas imperiais, como é possível ver na
redefinição do conceito a partir de Augusto, a qual, a partir de então, se relacionará cada vez mais com as
ambições imperiais (CORNWELL, 2017, p. 157).
290
CORNWELL, H. Pax and the Politics of Peace: Republic to Principate. Oxford University Press, 2017, p.
162.
291
LE ROUX, P. Império Romano. L&PM: Porto Alegre, 2009, p. 25.
90

cenário político tiveram suas carreiras alavancadas sob o governo de Domiciano, fato que
comprova o apoio destes àquela política que fora, posteriormente, tão criticada 292.
É inegável, entretanto, que Nerva e Trajano equilibraram as forças da esfera política
romana. Esta, por sua vez, se dividia entre a figura autocrática do imperador e os senadores;
não havia um poder totalitário e absoluto e o governante, assim como os antigos cônsules da
República, tinha a tarefa de negociar com o senado sobre os rumos de tudo que envolvia a
gestão imperial. Para Mary Beard, nesse sentido, não houve mudança fundamental na
estrutura da política do senado romano entre o final do século I a.C e o final do século II
d.C..293
O fim do governo autoritário de Domiciano e a ascensão de Nerva foi um período
marcado por um senso de euforia e esperança, por parte, em especial, das famílias da elite
romana. Apesar se ser retratado como um governante sério e benevolente, o novo imperador
teve dificuldades em manter a ordem em Roma, em virtude da rebelião que tomou conta do
exército, que exigia medidas favoráveis à classe 294.
A mensagem era clara: para ser bem sucedido em seu governo, o imperador deveria
contar com o apoio do exército. Assim, a solução para o apaziguamento do conflito foi a
adoção de Marcus Ulpius Traianus, que seria elevado ao posto de novo imperador. Na época,
Trajano era governador da Germania Superior e era um general popular tanto entre suas
legiões quanto entre o povo. Foi o primeiro imperador de origem não-itálica, proveniente da
região da Hispânia.295
Segundo Dião Cássio, a relação entre Trajano e o povo foi marcada por uma
afabilidade, enquanto que a dignidade foi a base de seu trato com o senado. Assim, “ele foi
amado por todos”.296 De fato, seus dezenove anos de governo foram marcados pela boa
relação que manteve junto ao senado, bem como por uma boa administração do território e
dos recursos públicos.
Sob sua gestão, Roma vivenciou um período de esplendor cultural e atingiu sua
extensão territorial máxima até então. Apesar de poucos registros sobre tal época terem

292
Para Mary Beard, os discursos sobre os feitos dos imperadores, construídos pela historiografia da época,
devem ser analisados com cautela; era comum que se interpusessem imagens de imperadores de forma a destacar
ou negativar características de um ou outro, com base nas intenções do escritor e de seu governante. Nas
palavras da autora, constituiu-se um lugar-comum rechaçar os feitos dos imperadores assassinados, enquanto que
aqueles que foram bem sucedidos por outros eram louvados. Ver: BEARD, M. SPQR: uma história da Roma
antiga. Planeta: São Paulo, 2017, p. 334.
293
BEARD, M. Op. Cit., p. 330.
294
SCARRE, C. Chronicle of the Roman Emperors. Thames & Hudson: London: 1995, p. 87.
295
SCARRE, C. Op. Cit., p. 88.
296
Cassius Dio LXVIII.15
91

remanescido, sabemos que expressões como a literatura e a arquitetura floresceram no


território romano. Dentre seus muitos feitos, Trajano restaurou o sistema de estradas na Itália,
conectou províncias através de obras de construção de pontes e transformou a capital, Roma,
no centro político e cultural do Império. Ademais, suas obras arquitetônicas foram inúmeras.
Além disso, ele providenciou um auxílio para crianças pobres, a partir da utilização de
recursos imperiais, em um programa que ficou conhecido como Alimenta. O esquema,
inicialmente idealizado por Nerva, continuou a funcionar por quase duzentos anos depois e se
constituiu num dos exemplos mais memoráveis de política social na Roma antiga. 297
É nesse cenário que Plínio, o Jovem, atuou como funcionário público, sempre
mostrando sua plena adesão à política imperial, ainda que demonstre vez ou outra, certa
nostalgia pelo passado republicano.298 Para ele, o governo de Trajano foi personificado pela
cooperação entre o senado e o imperador, em um clima de concórdia. É notório, nesse sentido,
que Plínio tentou legitimar o governo através da construção de uma imagem de Trajano como
o príncipe ideal. 299
Em 97 d.C. Plínio foi nomeado como administrador do tesouro público, localizado no
templo de Saturno, cargo o qual desempenhou por três anos. Em 100 d.C., foi nomeado
cônsul e a partir desse ano toma lugar em diversos processos junto ao senado romano, numa
intensa atividade judicial, enquanto Trajano se encontrava empenhado na conquista da
Dácia.300
A partir de 101 d.C., atua como assessor do prefeito de Roma e também do próprio
Trajano, até que, em 103 d.C. é nomeado áugure. Nesse mesmo ano, é encarregado de cuidar
do canal do Tibre e suas margens, bem como do esgoto da cidade de Roma, um dos postos
mais importantes da administração romana. 301 É durante o desempenho dessa nova função que
Plínio é chamado por Trajano para ocupar a administração da província da Bitínia-Ponto,
cargo sobre o qual falaremos mais tarde.
Dentro da dinâmica imperial, as relações sociais residiam no intercâmbio de favores
conhecidos como officia. Estes, apesar de sua similaridade com o conceito republicano,
faziam parte de uma rede de serviços prestados dentro de uma hierarquia política mais

297
Op. Cit., p. 95.
298
GONZÁLEZ, J. Plínio El Joven. Cartas. Introducción. Editorial Gredos: Madrid, 2005. P. 15.
299
Op. Cit., p. 16.
300
Op. Cit., p. 22.
301
Op. Cit., p. 23.
92

estruturada, na qual existiam amigos “maiores e menores”, como o próprio Plínio mencionou
em suas cartas.302
Essa hierarquia correspondia às relações de patronato e clientela, sistema no qual o
imperador era o grande patrono de todos. Os “amigos do imperador”303 faziam parte de um
escopo selecionado de cidadãos da elite romana, em posições mais ou menos próximas a ele,
que variavam segundo sua função. 304
Segundo Andrew Wallace-Hadrill, o poder imperial era exercido com base em certos
tipos de conduta, que possuíam, por sua vez, ambições distintas de acordo com a imagem que
o governante queria passar. Nesse sentido, alguns tipos de comportamento serviam para
demarcar proximidade com aqueles que poderiam exercer algum benefício para o imperador,
enquanto outros assinalavam uma distância social bem definida. 305
As regras para tal processo não eram bem definidas e seguiam as linhas de interesse do
governante. De acordo com Wallace-Hadrill, Trajano resignificou os officia amicorum por
prestar respeito e deferência por amigos mais do que qualquer outro imperador já havia feito
até então.306
Ainda assim, havia uma diferenciação que se fazia latente entre este e seu círculo de
amigos. A título de exemplo, Julián González atenta para o fato de que o tom das cartas de
Trajano era sempre superior às de Plínio e o imperador não devia deferências àquele que
chamava de “amigo”.307 Essa diferenciação residia na necessidade de demarcar o status de
cada um dos agentes envolvidos em uma rede de amizades, estabelecendo o lugar de cada um
na hierarquia social, tal qual vimos acontecer na República, tomando nossa análise da relação
entre Cícero e Bruto.
Para Richard Saller, esse tipo de relação desempenhava um papel político importante,
não só no estabelecimento de uma hierarquia que atendia aos interesses imperiais, mas como
uma base para a manutenção de privilégios e interesses dos grupos dominantes. Era pela
reciprocidade inerente de tais relações que as famílias da elite ao redor do imperador
conseguiam manter seu status econômico e político.308

302
Plin., Let., 2, 6; Plin., Let., 7, 3; Plin., Let., 7, 17.
303
Plin., Let., 1, 18.
304
WALLACE-HADRILL, A. Civilis princeps: between citizen and king. The Journal of Roman Studies, v. 72,
1982, p. 32.
305
WALLACE-HADRILL, A.Op. Cit., p. 33.
306
Op. Cit., p. 40. De acordo com Plínio, Trajano se despediu de um prefeito, certa vez, com um beijo, algo não
usual para um imperador romano (pan.85).
307
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 17.
308
SALLER, R. Op. Cit., p. 331.
93

Tal como Saller, Wallace-Hadrill afirma que a rede de amizades que ancorava o
sistema de patronato na Roma de Plínio se tornou um instrumento pelo qual as atividades do
Estado eram geridas. Nesse meio, o acesso à rede era controlado pelo imperador, que
administrava também a forma como os recursos eram disponibilizados. 309
Assim, de acordo com Renata Venturini:

A amicitia se mostra, portanto, como um instrumento de ação


política, e, neste caso, o caráter mais ou menos desinteressado destas
amizades não é uma especialidade romana. Todavia, o que caracteriza Roma
é que o homem político, na ausência de partidos organizados, utiliza-se deste
recurso para estender sua influência e se ligar a um maior número de
pessoas. A amicitia não repousa sobre relações construídas ao acaso; trata-se
de uma verdadeira organização que impõe a seus membros obrigações
variadas (VENTURINI, 1999, p. 301).

A tais obrigações respondiam um número considerável de famílias senatoriais, que,


em sua maioria, obtinham vantagens na relação com o imperador. Segundo Mary Beard, o
relacionamento entre este e os demais, porém, era marcado por uma frágil estabilidade. Caso
permanecessem realistas, as famílias da elite romana poderiam lograr alguma recompensa e,
no mínimo, manter sua posição no cenário político. Nesse sentido, como pontua a autora, era
melhor travar batalhas no passado, contra imperadores que se podiam demonizar. O presente
requeria cautela e colaboração.310
É nesse meio que Plínio, o Jovem, se esforçou em cultivar suas amizades e não há
dúvidas de que obteve êxito: o sucesso da carreira política de Plínio, de Domiciano a Trajano
é bem aparente. A seguir, teceremos algumas considerações sobre a forma como Plínio geria e
cultivava os seus officia amicorum.

3.2.2 Amizade em tempos de paz

Ao contrário do contexto ciceroniano, marcado por instabilidades em diversos níveis


da vida social, a Roma de Plínio, o Jovem, gozava de uma estabilidade particular. Entretanto,
é necessário pontuar que tal estabilidade, ao menos no âmbito político, foi tema comum em
discussões ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, tomou lugar a importância dos embates

309
WALLACE-HADRILL, A.Op. Cit., p. 33.
310
BEARD, M. Op. Cit., p. 421.
94

entre Senado e Imperador, e a relevância do primeiro para o funcionamento da administração


pública.
Dessa forma, estudos mais recentes apontam para a influência que as famílias
senatoriais exerciam no controle das ferramentas de acesso ao mundo político da época.
Portanto, Richard Talbert pontua que tais grupos possuíam e exerciam uma grande influência
política, a qual nenhum imperador poderia administrar sem também estar envolvido. Assim, o
autor nos lembra que, para todo imperador que se colocou contra o poder senatorial, o destino
reservou um fim trágico.311
De fato, é necessário pontuar a importância das interações entre imperador e senado
em nossa análise sobre a amizade da Roma pliniana. Patrick Le Roux sustenta que o senado
romano jamais se reduziu a uma mera ferramenta institucional, pois o exercício do poder não
se manifestava somente através do controle dos meios de propaganda política. Da mesma
forma, não existia uma política que lhes assegurasse impunidade, e, portanto, os jogos de
poder dependiam dos laços que se estabeleciam entre os agentes públicos. 312
O imperador, por sua vez, tinha seu prestígio, estima, popularidade e reconhecimento
repousados sobre o respeito que mantinha em relação aos interesses do Senado e do povo.
Assim, caso houvesse um clima de arbitrariedade, uma conspiração poderia surgir. Entretanto,
o Senado como instituição geralmente não se colocava de forma incisiva contra os princípios
que regiam o sistema imperial, pois já se integrava a ele de forma orgânica. 313
Porém, a construção da imagem do imperador variava de acordo com o papel que ele
desejasse representar frente à sociedade. Assim, conforme nos lembra Andrew Wallace-
Hadrill, por vezes o soberano se passava por um simples cidadão, enquanto que, em outras,
ele fazia questão de demarcar uma distância social entre si e o senado. Tais ferramentas de
construção da imagem pública serviam como estratégias para a resolução de seus
interesses. 314 Nesse sentido, o autor destaca que havia, de fato, uma certa autocracia no
Império Romano, que nos revela que, propriamente, o imperador possuía em suas mãos um
tipo de poder superior e único.
As interações entre Imperador e Senado podem ser analisadas, dentre outros meios,
pelo entendimento do conceito de officia amicorum, que aparece diversas vezes nas cartas de

311
TALBERT, R. The senate of imperial Rome. Princeton University Press, 1987, p. 110.
312
LE ROUX, Patrick. Império romano. L&PM Pocket, 2009, p. 32.
313
LE ROUX. P. Op. Cit., p. 33.
314
WALLACE-HADRILL, A. Civilis princeps: between citizen and king.The Journal of Roman Studies 72,
1982, p. 32.
95

Plínio, o Jovem. Para Wallace-Hadrill, esse conceito personifica as relações sociais na Roma
Imperial, e se refere a uma espécie de “etiqueta” de serviços, que existe numa relação, na
qual, obrigatoriamente, o imperador é o superior e os demais inferiores. Essa idéia aplicava-se
mesmo ao círculo de amigos mais íntimos do imperador.315
Assim, configura-se esse tipo de relação como pertencente a um sistema de patronato,
no qual o imperador é o grande patrono de todos os cidadãos do império, a estes não devendo
nada. Em teoria, portanto, era permitido que os amigos prestassem seus serviços a este, porém
tais oferecimentos faziam parte de uma obrigação e sistema de privilégios. 316
O caso do imperador Trajano, todavia, era peculiar. De acordo com Plínio, em seu
governo, foi concedida 'in omnia familiaritatis officia', fazendo com que os amigos do
príncipe ficassem mais próximos deste317. Dessa forma, Trajano logrou uma relação
harmoniosa com o Senado, relação esta que foi louvada pela posterioridade.
Nesse sentido, Louis Hairmand comenta que a amizade na Roma Imperial só pode ser
entendida através do estudo do sistema de patronato, uma vez que a hierarquia entre as partes
era a base deste318. Dessa forma, ainda que a nossa pesquisa tenha como norte a avaliação das
amizades a nível simétrico, consideramos essencial pontuar que, diferentemente da Roma
Republicana, o poder do princeps norteava toda a complexa rede de relações sociais do
período. Assim, o modus operandi do patronato regia a amizade na época de Plínio.
De acordo com Renata Venturini, a amicitia da época pliniana respondia a um
conjunto de obrigações recíprocas, que residiam no conceito de officium, que tinha um valor
moral e contratual. Dessa maneira, os benefícios concedidos pelo patrono deveriam,
obrigatoriamente, serem pagos mediante apoio em circunstâncias necessárias. De acordo com
a autora, no campo político esse apoio poderia ser tanto direto, na forma de auxílio eleitoral,
quanto indireto, através de recomendações. 319
Em Plínio, o Jovem, as cartas de recomendação tinham um papel fundamental para o
estabelecimento e manutenção da amicitia. Nesse sentido, Virgínia Pereira nos lembra que,
em sua maioria, tais recomendações eram feitas em razões de amizade e exprimiam,

315
WALLACE-HADRILL, A.Op. Cit., p. 40.
316
Op. Cit., p. 40.
317
Pan. 85.
318
HARMAND, L. Un aspect social et politique du monde romain: le patronat sur les collectivitéspubliques.
Revue de Philologie, de Littérature et d'Histoire Anciennes 33, 1959, p. 385..
319
VENTURINI, R. Relações de poder em Roma: o patronato e a clientela. Classica - Revista Brasileira de
Estudos Clássicos 11.11/12, 1999, p. 300.
96

constantemente, o desejo de que os empenhos de Plínio em favor de seu protegido fossem


reconhecidos.320
Um dos exemplos de commendatio que prefigura nossa análise sobre a amicitia, é a
carta de Plínio a Víbio Máximo 321. Nela, Plínio se dirige a seu amigo, um cavaleiro romano, e
pede para que este conceda uma promoção a um de seus amigos, Arriano Maturo, homem de
“destacada virtude”. A moeda de troca seria a posição de Plínio e deste homem “virtuoso”
como seus bons devedores:

“Te rogo (Vibio Máximo) para que o conceda (Arriano Maturo) uma
distinção dessa natureza na primeira ocasião em que for possível;
encontrarás em mim e também nele, devedores agradecidíssimos” (Plin.,
Let., III, II. p. 154)322.

Assim, Plínio reclama por um favor à Vibio. Máximo, com o qual mantém uma
relação de amicitia e afirma que, caso ele de tal forma o ajude, estaria disposto a tomá-lo
como credor, bem como recomendá-lo a Maturo. A amicitia, dessa forma, poderia valer como
uma moeda de troca de favores e se inseria como um ponto presente nas relações financeiras –
como poderia Plínio estabelecer uma troca mais favorável do que sua idoneidade como
devedor em troca de um favor amistoso?
Dessa forma, pode-se visualizar a importância das redes de amizade também para o
âmbito financeiro na Roma de Plínio. Nesse sentido, a fides funcionava no âmbito das
relações que se ligavam por meio das atividades financeiras – as partes em acordo eram
envoltas por um sentimento de reciprocidade em comum, que determinava uma assistência
mútua em prol de uma mesma necessidade – o pagamento da dívida.
De fato, existe uma boa quantidade de menções à vida financeira romana nas Cartas
plinianas. Nesse sentido, Julián González pontua que Plínio, o Jovem, diferentemente de seu
tio, não soube combinar muito bem negotia e studia, reclamando frequentemente que a

320
PEREIRA, V. Plínio e a sombra tutelar de Cícero. Ágora. Estudos Clássicos em Debate, 2006, p. 100.
321
Plin., III.II.
322
Cuius generis quae prima occasio tibi, conferas in eum rogo; habebis me, habebis ipsum gratissimum debitor
em. Quamvis enim ista non appetat, tam grate tamen excipit, quam si concupiscat.
97

administração dos negócios atrapalhava seus deveres como amigo. Louvava, dessa forma, o
otium cum dignitate, a qual dizia ser a base ideal da vida de todo homem público.323
Como homem público, Plínio mantinha uma comunicação freqüente com seus amigos,
dentre os quais destacaram-se Tácito e Suetônio. Estes, entretanto, relacionavam-se a um
círculo de relações privadas, de caráter afetivo. Assim, ainda que a liberalitas de Plínio fosse
concedida a estes, era ainda mais amplamente propagada por entre os amigos de seu escopo
político.324
Tais amigos o ajudaram desde o início de sua carreira política; da mesma forma, Plínio
também se utilizava da amizade com o imperador Trajano para fazer concessões a alguns
deles. Em carta a um de seus amigos literatos, Cornélio Ticiano, Plínio menciona que era
comum utilizar a amizade do príncipe para este fim. 325 Assim, a amicitia em Plínio também
pode ser entendida para além das relações diáticas.
Outro exemplo nesse sentido encontra-se em uma carta de Plínio a Suetônio:

Você demonstra a sua alta consideração por mim ao pedir, com


tamanha delicadeza, que eu transfira a seu parente, Cesênio Silvano, o
tribunato militar, que consegui através do senador Neracio Marcelo (...);
Ademais, entendo que recairá sobre a minha glória, se esse fato chega ser
conhecido, que meus amigos não somente são capazes de exercer um
tribunato como também de concedê-lo (...). Assim, desejo que seu presente
para ele (Neracio Marcelo) seja tão grato como foi o meu para ti (Plin., Let.,
III.VIII). 326

Neste trecho, encontramos quatro camadas de relações complexas, todas abrangidas


pelos laços de amicitia. Esse é um traço fundamental do conceito, o qual gostaríamos de
destacar. Dessa forma, temos um pedido inicial de Suetônio, para que Plínio concedesse um
cargo público a um de seus parentes, de nome Cesênio Silvano. Entretanto, para que o pedido
fosse realizado, ele menciona que teria de recorrer a outro agente, o senador Neracio Marcelo.

323
GONZÁLEZ, J. Introducción. In: Plinio el Joven. Cartas. Madrid: Editorial Gredos, 2005, pág. 15.
324
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 15.
325
Plin., Let.,
I.XVII.Pulchrum et magna laude dignum amicitia principis in hoc uti, quantumque gratia valcas, aliorum honor
ibus experiri.
326
Facis pro cetera reverentia quam mihi praestas, quod tam sollicite petis ut tribunatum, quem a Neratio Marce
llo clarissimo viro impetravi tibi, in Caesennium Silvanum propinquum tuum transferam
(...)Praeterea intellego mihi quoque gloriae fore, si ex hoc tuo facto non fuerit ignotum amicos meos non gerere
tantum tribunatus posse verum etiam dare (...)cui cupio tam gratum esse munus tuum, quam tibi meum est.
98

Por fim, Suetônio ficaria em dívida de retribuição não somente com Plínio, mas para com este
último.
Nesse sentido, é importante avaliar a rede de interações e interesses que compõem esse
quadro. Plínio menciona que, ao conceder o favor para o amigo Suetônio, seu nome obteria
glória e reconhecimento. Ao mesmo tempo, para conceder o favor a seu parente, Suetônio
dependia não só de sua relação com Plínio, mas de seu bom contato com Neracio Marcelo, o
qual, por sua vez, poderia criar um vínculo de amicitia com o amigo de Plínio.
Assim, cada um dos agentes envolvidos nessa teia de relações fazia valer seu interesse,
que se completava através da amicitia em comum. Portanto, a instituição da amizade exigia,
obrigatoriamente, uma reciprocidade, a fim de que os interesses de todos os lados fossem
sanados. Para Renata Venturini, o laço que unia e fazia com que tal sistema de reciprocidade
funcionasse era a fides, uma vez que, dentro dele, os interesses gerados dependiam da
lealdade entre os agentes.327Dessa forma, segundo Louis Hairmand, os laços pessoais criados
dentro do sistema de amizade e patronato na época de Plínio faziam com que a operação do
aparato político romano funcionasse de maneira profícua. 328
Assim, enquanto as partes envolvidas obtinham benefícios políticos e materiais claros,
havia também a questão dos ganhos imateriais inerentes a esse tipo de relação, como status,
idoneidade no caso de uma transação financeira, poder pessoal, manutenção de vínculos, etc.
Para Wallace-Hadrill, os beneficia gerados nesse espectro de relações respondiam a
necessidades variadas em um contexto no qual, na prática, não havia distinções de status
social entre patrono e cliente. Assim, enquanto que, na teoria, tais relações seguem preceitos
bem definidos impostos pelo papel da fides, no dia a dia do homem romano da época pliniana
elas eram mais fluidas.329
Nesse sentido, o autor pontua que, apesar do termo patronato ser utilizado para
abranger todas as relações de amicitia no seio político, a distinção entre amici e clientes era
feita de forma natural, e ambas as expressões eram utilizadas dentro da mesma linguagem de
amizade, confiança e obrigação. Esse sistema, em suas palavras, era responsável por mediar
os recursos do Estado romano através das interconexões pessoais. 330 Dessa forma, o papel da
amicitia se tornava mais extenso, atingindo a macro organicidade do poder público.

327
VENTURINI, R. Op. Cit., p. 300.
328
HAIRMAND, L. Op. Cit., p. 385.
329
WALLACE-HADRILL. A. Op. Cit., p. 77.
330
Op. Cit., p. 78.
99

Essa amicitia respondia ao conceito exposto por Sêneca em seu De Beneficiis.


Segundo o filósofo, o sistema de benefícios angariados entre amigos acontecia de forma
orgânica, e também independia dos laços afetivos que um agente poderia ter pelo outro. 331 Em
relação a essa idéia, David Konstan afirma que, o que importava na arena das relações era a
manutenção dos vínculos com quem pudesse garantir vantagens materiais e imateriais, a
saber, os homens de poder da esfera política. 332
Essa manutenção era feita através de algumas estratégias, como o envio de cartas de
recomendação e elogios, demonstrações públicas de apoio e, principalmente, através dos
contatos firmados entre amigos em comum. Assim, a amicitia respondia a uma dialética
particular de interesses.
Tal dialética já fora discutida por Moses Finley, que afirmava que era a elite romana a
responsável por fornecer os meios para o controle dos recursos do Estado. Assim, na Roma de
Plínio, a benevolência tampouco era desinteressada, uma vez que o conjunto de relações entre
amigos reforçava a estrutura entre poder e autoridade predominante naquela sociedade. 333
Para Richard Saller, isso se explica pelo fato de as instituições governamentais serem
mediadas por indivíduos. Assim, mesmo que estes não tivessem acesso ao centro do poder
imperial, controlado pelo princeps, suas estratégias sociais, oriundas das relações de amicitia,
foram responsáveis por fazer o sistema de patronato sustentar um tipo de integração que
assegurava o controle social das ferramentas políticas e econômicas do Estado.334
Dessa forma, a multiplicidade de interesses de um determinado grupo poderia garantir
a realização desses mesmos interesses, que residiam, acima de tudo, na obtenção de vantagens
materiais e influência política. A organicidade dessa estrutura fazia com que os agentes
envolvidos nela agissem de forma simbiótica, de modo a alimentar a cadeia de obrigações
sociais responsáveis por garantir o acesso às ferramentas de poder.
Da mesma maneira, tais relações se estendiam por todo território do império romano,
residindo e se desenvolvendo também nas províncias, como veremos a seguir. É dessa cadeia
de relações em ampla base que Plínio nos fornece suas considerações sobre a amizade, sobre a
administração imperial, bem como sobre o mundo político e financeiro de sua época. Nosso
autor fazia parte, portanto, de um corpo de agentes interligados entre si, que tentava disputar a
influência política necessária para frear, de certa forma, o poder autocrático do imperador.

331
Ben. VII. XII.
332
KONSTAN, D. Patrons and friends. Classical Philology 90.4, 1995, p. 340.
333
FINLEY, M. A política no mundo antigo.Trad. Álvaro Cabral. R. Zahar: São Paulo, 1985, p. 49.
334
SALLER, R. Personal patronage under the early empire. Cambridge University Press, 2002, p. 15.
100

3.2 A amicitia a partir das Epistulae de Plínio, o Jovem


3.3 Interesses em jogo: análise textual
3.3.1 Plínio e seu círculo de amigos

Tanto para ascender nas magistraturas do Cursus Honorum romano quanto para
estabilizar sua vida financeira, Plínio contou com a ajuda de vários amigos. Em grande parte,
estes eram amigos de sua família, pessoas que já faziam parte do círculo de conhecidos de
suas gerações anteriores. A título de exemplo, um dos destinatários mais presentes em sua
epistolografia foi Virgílio Rufo, seu tutor na infância, responsável por conseguir seus títulos
de senador e questor.335
Dessa forma, Plínio se esforçava em manter seus laços de amizade, sendo, então, um
amigo fiel. Nesse sentido, recorremos novamente ao valor da palavra fides. Esta, estabelecida
entre dois ou mais amigos, resultava em um compromisso de valor moral, que deveria
honrado entre as partes. Essa “honra” derivava, de acordo com os estudos sobre direito
romano de Marcel Mauss, de um senso de obrigação social que não estava ditado em regras
convencionais336. Era, assim, algo que fazia parte daquela sociedade de maneira orgânica, mas
que não era visto como sustentáculo das instituições. Ainda assim, como veremos, essa noção
agia como uma aresta social para atingi-las.
Em carta a um amigo de nome Ânio Severo, Plínio discute a divisão de algumas
heranças que teriam de fazer juntos. Ao final da mesma, salienta:

Pois não sou pouco sábio a ponto de me sentir indiferente, se as


ações que eu creio que realizei de forma honesta recebessem certo
reconhecimento e, por assim dizer, uma recompensa (Plin., Let., 5. 1)337

As palavras de Plínio nos revelam que havia, de sua parte, uma expectativa para que
seu amigo fizesse valer as premissas da fides e da amicitia, através do reconhecimento
necessário de suas ações. Tal reconhecimento e a oriunda recompensa citados fazem parte do
conjunto de benefícios que derivavam da amizade. De acordo com a antropóloga Mary
Douglas, que analisou os estudos de Marcel Mauss sobre tal conceito, é importante notar que

335
GONZÁLEZ, J. Introducción. In: Plinio el Joven. Cartas. Introducción, traducción y notas de Julián
Fernández González. Madrid: Editorial Gredos, 2005, pág. 17.
336
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 44.
337
Neque enim sum tam sapiens ut nihil mea intersit, an iis quae honeste fecisse me credo, testificatio quaedam e
t quasi praemium accedat.
101

não existiam, de forma geral, amizades desinteressadas, no sentido estrito do termo. Isso
porque a amizade pressupunha obrigatoriamente um sentimento de reconhecimento. Ou seja,
ainda que o amigo não pudesse devolver a ação realizada por outro, esperava-se que este
demonstrasse, ao menos, sua gratidão. 338
De acordo com Verboven, entretanto, tal obrigação não terminava com a retribuição
do favor prestado:

Sêneca se refere à lei mais sagrada (sacratissimum ius) de beneficia, da qual


nasce a amicitia (Ben. 2. 18. 5). Além disso, os benefícios eram
(ideologicamente) atos gratuitos de gentileza, retribuir presentes e favores
eram eles próprios beneficia: “Existem dois tipos de generosidade
(liberalitas), uma que consiste em dar um beneficium, o outro de devolução
”(Cic. Off. 1. 48). (VERBOVEN, 2011, p. 469)

A obrigatoriedade implícita em retribuir um favor correspondia à noção de gratia.


Apesar de se perfazer em um sentimento não – obrigatório, havia uma regra social implícita, a
da “obrigatoriedade gratuita”, conforme descrita por Marcel Mauss. Nesse sentido, Richard
Saller aponta para o fato de que essa retribuição obrigatória indica o caráter de reciprocidade
da amicitia. Esta, por sua vez, remanescia entre as relações como um instrumento de poder
capaz de unir grandes homens em prol de interesses em comum339.
Da mesma forma, é recorrente, nas cartas plinianas a menção ao conceito de mutua
officia, sempre ligado à idéia de reciprocidade. Em carta a um amigo literário de nome
Cornélio Miniciano, Plínio relaciona os dois conceitos, que estariam implícitos à noção de
amicitia.340 A outro amigo, Pôncio Alifano, nosso autor menciona que o vínculo nascido das
obrigações públicas desenvolvidas por amigos fazem parte de uma comunidade de
amizades.341
Entretanto os laços que constituíam tais amizades não eram rígidos no caso de
patronos e clientes. Em muitas ocasiões, como aponta Renata Venturini, existia um
comportamento ambíguo entre eles, segundo o qual poderiam intervir dissensões e

338
DOUGLAS, M. No free Gift: introduction to Marcel Mauss’s essay on the Gift. Risk and Blame, New York:
Routledge, 1992, p. 15.
339
SALLER, R. Op. Cit., p. 18.
340
Quod si illi nullam vicem nulla quasi mutua officia deberem, sollicitarer tamen vel ingenio hominis pulcherri
mo et maxime et in summa severitate dulcissimo(Plin., Let., 8, 12).
341
quae societas amicitiarum artissima nos familiaritate coniunxit.[5] Accessit vinculum necessitudinis publicae;
idem enim mihi, ut scis, collega quasi voto petitus in praefectura aerarii fuit, fuit et in consulatu (Plin., Let., 5,
14).
102

desonestidade no interior da relação.342 Mas estes – nota-se – derivavam muito mais de


relações assimétricas. Assim, de acordo com Miriam Griffin, existia uma linha recíproca de
respeito aos princípios da fides que era em grande parte assimilada por amigos de mesmo
status social. 343
Como exemplo, em carta a Domício Apolinar, cônsul no ano de 97 d.C., Plínio pede
ajuda para a candidatura de outro amigo, de nome Sexto Erúcio, ao cargo de senador. Em sua
solicitação, nosso autor enumera as razões pelas quais o cônsul deveria ajudá-lo: o tio materno
de seu amigo era um conhecido da rede de amizade de ambos, e sua família, dessa forma,
deveria ser atendida:

Toda a família (de Sexto Erúcio) me aprecia profundamente e de igual


modo, e agora tenho a oportunidade de mostrar-lhes a minha gratidão. E
assim pressiono e suplico aos amigos, fico a sua volta, visito suas casas e
vou aos locais públicos, e comprovo, com as minhas súplicas, quanto valem
a minha influência e popularidade, e a ti te rogo para que considere a minha
carga. Devolverei o favor caso me peça. És apreciado, admirado e visitado:
mostra somente que quer ajudar-me e não faltarão aqueles que o lograrão
com o que você deseja (Plin., Let., 2, 9).344

Aqui, Plínio intercede pelo amigo de maneira que seus atributos e influência fiquem
bem demarcados para o remetente e leitor. Em suas palavras, seu esforço no exercício da
amicitia demonstra sua lealdade, e a sua influência deveria ser levada em conta por aquele a
quem o pedido foi solicitado.
De igual maneira, Plínio promete uma recompensa em troca da ajuda, que se perfaz na
união com outros agentes, que poderiam trazer benefícios a Domício Apolinar. Esse discurso
sobre obrigações e recompensas pode ser visto em uma quantidade significativa de suas
cartas. A promessa de que, caso o amigo o conceda ajuda, Plínio então o recompensaria
efetuando outras relações é um discurso que envolve a troca de poder simbólico entre os

342
VENTURINI, R. Op. Cit., 1999, p. 298-299.
343
GRIFFIN, M. De Beneficiis and Roman Society. The Journal of Roman Studies, 93, 2003, p. 95.
344
Itaque prenso amicos, supplico, ambio, domos stationesque circumeo, quantumque vel auctoritate vel gratia v
aleam, precibus experior, teque obsecro ut aliquam oneris mei partem suscipere tanti putes. Reddam vicem si re
posces, reddam et si non reposces. Diligeris coleris frequentaris: ostende modo velle te, nec deerunt qui quod tu
velis cupiant.
103

agentes.345 Isso porque as relações são recompensas imateriais, que residem no campo da
sociabilidade humana.
Entretanto, é importante notar a forma quase poética da qual Plínio se utiliza para
escrever a carta. De acordo com Sigrid Mratschek, apesar dos tratos entre Plínio e Domício
Apolinar serem uma amostra dos rumos que a amizade poderia tomar, assim com suas
implicações, é necessário pontuar que, nela, Plínio almeja construir uma imagem de si como
literato e político. Assim, não podemos tomar as façanhas que nosso autor diz fazer pelos
amigos como totalmente literais, ainda que suas palavras demonstrem os termos da
amizade.346
Ainda assim, este é um exemplo de amizade triangular, cujos benefícios se integram
aos agentes de maneira simbiótica. Nesse caso, Plínio, Domício Apolinar e Sexto Erúcio
estavam interligados pelo contrato moral da amicitia, e as complexas relações desenvolvidas
nesse meio faziam parte de um esquema de “gift-exchange”, ou troca-recompensa, de acordo
com Marcel Mauss.347Esse sistema sustentava um conjunto de códigos de comportamento,
que estavam inseridos nas relações sociais da elite romana.
Ao mesmo tempo, tanto nessa quanto em todas as cartas endereçadas a Domício
Apolinar, Plínio cita sempre três critérios de sua posição social: influência, sua eficácia na
vida pública e sua riqueza. Assim, Plínio apresenta a sua persona de forma estruturada,
selecionando as qualidades que deseja destacar de si. De forma metódica, ele se coloca, em
primeiro momento, como suplicante, e, após, como amigo e patrono. Essa estratégia faz parte
de um projeto de auto-engrandecimento ao qual não só suas cartas, como também toda sua
carreira política foi dedicada. 348
Assim, o uso da amicitia também tinha valor para a construção de uma imagem
simbólica dos agentes. No caso de Plínio, ela serve como meio para o estabelecimento de sua
autoridade como político e orador, o qual, através de sua obra epistolar, seria lembrado pela
eternidade. Nesse meio, era esperada uma troca recíproca e constante de officia e beneficia.
De acordo com Richard Saller, em toda literatura da Roma antiga essa troca é enfatizada. O

345
Abordaremos mais sobre como o conceito de Poder Simbólico pode ser compreendido em tais relações, na
nossa análise final.
346
MRATSCHEK, S. Images of Domitius Apollinaris in Pliny and Martial: intertextual discourses as aspects of
self-definition and differentiation. König and Whitton (eds.), Scotland: 2018, p. 208.
347
MAUSS, M. Op. Cit., p. 157.
348
MARCHESI, I. The art of Plinys letters. Cambridge university press, Cambridge: 2008, p. 36-37.
104

amicus era, no palco político e econômico romano nada mais do que o receptor de um favor
concedido, tendo a obrigação moral de responder a este ato.349
Nesse sentido, mesmo Sêneca, que, assim como Cícero versou de maneira filosófica
sobre como a amizade verdadeira deveria ser desinteressada, reconheceu que existia uma
troca recíproca entre as pessoas, baseada na utilitas. Dessa forma, em suas palavras, isso
produzia uma espécie de paradoxo, que era o liame entre a amizade ideal e aquela utilitária.
Tal paradoxo, de acordo com Saller, não fazia parte da consciência social romana de maneira
ativa. A amizade se desenrolava de acordo com um fluxo constante de necessidades a serem
atendidas.350
Porém, nem sempre tais necessidades podiam supridas. Em Plínio, temos um número
maior de petições não atendidas, em comparação com a documentação em Cícero, embora
esta seja de maior volume. Um exemplo de relação múltipla nesse sentido foi aquela
desenvolvida entre Plínio, seus amigos Vocônio Romano e o próprio imperador Trajano.
Vocônio Romano era um dos amigos literários de Plínio, mas também era um
governante de província bem reconhecido, atuando em sua terra natal, a Hispânia. Plínio, por
sua vez, passa a atuar como agente do amigo, intercedendo a seu favor em busca de uma
posição senatorial e ajudando-o nos trâmites relativos a uma transferência de herança.
Entretanto, ele passa a ter alguns problemas, pois suas petições não são respondidas como ele
esperava: “pode ocorrer, entretanto, que estes apoios, abalados, desmoronem” 351, diz em carta
a Vocônio. Porém, faz questão de salientar seus esforços como amigo, em defesa das causas
deste:

Escrevi estas coisas porque era justo que, por causa de nosso mútuo
afeto, conhecesses não só minhas ações e palavras, assim como também as
minhas intenções (Plin., Let., 1, 5).352

Ao se dirigir ao amigo, Plínio utiliza recorrentemente a palavra amoré e a expressão


amore mutuo para se referir à amizade recíproca. Embora utilize a palavra amor, Cícero
somente o faz quando se dirige a familiares ou a seu amigo Ático, demarcando uma utilização

349
SALLER, R. Op. Cit., p. 14.
350
Op. Cit., p. 14.
351
Potest tamen fieri ut haec concussa labantur (Plin., Let., 1, 5).
352
Haec tibi scripsi, quia aequum erat te pro amore mutuo non solum omnia mea facta dictaque, verum etiam co
nsilia cognoscere.
105

estrita do conceito. Ao contrário deste, Plínio utiliza o verbo muitas vezes em direção a seu
grupo de amigos políticos.
Advinda do mesmo radical, amare é a expressão afetiva da amicitia. Entretanto, desde
a República, a palavra carregou um significado político, que poderia se relacionar a
indivíduos ou a grupos.353 Foi no período imperial, contudo, que a expressão amare se
imbricou de forma constante às relações políticas. 354
Amore mutuo se tornou, assim, uma expressão oriunda da reciprocidade entre agentes
políticos. Segundo Hellegouarc’h, nas epístolas de Cícero e Plínio a expressão amor et fides é
encontrada com valor análogo ao de amicitia et fides. Assim, apesar de ser um termo
essencialmente afetivo, a palavra amor poderia intervir no domínio político para expressar
ênfase em vínculos estreitos de amicitia.355
Em suma, em suas palavras, Plínio deixa claro que os apoios são inconstantes. De fato,
a primeira tentativa em auxílio de Vocônio foi deferida através de um pedido ao imperador
Trajano:

Tua indulgência, excelente imperador, que conheço por experiência em toda


a sua amplitude, me anima a atrever-me e pedi-la também para meus amigos,
entres os quais Vocônio Romano, condiscípulo e colega desde a mais terna
infância, ocupa o primeiro lugar. Por esses motivos havia solicitado de ti,
divino pai, que o promocionasse à condição de senador, ainda que o
cumprimento deste meu pedido seja reservado à sua bondade, pois a mãe de
Romano ainda não realizou, de forma satisfatória, segundo as leis, a
generosa doação de quatro milhões de sestércios que havia prometido a
Nerva (...);
(...) minha total confiança no caráter de meu querido Romano, caráter
embelezado por seus estudos liberais e seu extraordinário amor filial, que lhe
fez merecedor de toda esta generosidade por parte de sua mãe e da herança
de seu pai e adoção de seu padrasto. O esplendor não só de sua linhagem,
mas também de seus bens familiares, aumentam estas qualidades.
Te rogo, pois, senhor, que me concedas a alegria, a mais desejada por mim, e
que atendas as minhas amizades honoráveis, como eu espero, para que eu
possa glorificar as tuas decisões não só a meu favor, se não também em
favor de um amigo (Plin., Let., X. 4)356

353
Era comum, por exemplo, que Cícero utilizasse a palavra amor para se referir à pátria ou à res publica.
354
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 146
355
Op. Cit., p. 147
356
Indulgentia tua, imperatoroptime, quamplenissimamexperior, hortatur me, ut audeamtibietiam pro
amicisobligari; interquossibivelpraecipuumlocumvindicatVoconiusRomanus, abineunteaetatecondiscipulus et
contubernalis. [2] Quibus excausis et a divo patretuopetieram, ut illum in amplissimumordinempromoveret. Sed
hoc votummeumbonitatituaereservatum est, quiamater Romaniliberalitatemsestertiiquadragies, quod conferre se
filio codicillis ad patremtuumscriptis professa fuerat, nondum satis legitime peregerat (...).
106

Assim, Plínio pede para que Trajano conceda um cargo, provavelmente senatorial, a
seu amigo Vocônio Romano, demarcando a posição social deste. Os imperadores, dado seu
poder censorial, podiam incluir no senado determinadas pessoas de acordo com suas idades –
no caso de Romano, o nível adequado seria o de praetorius357.Contudo, havia um impasse a
essa concessão: a mãe de Romano havia prometido o depósito de uma quantia de quatro
milhões de sestércios no tesouro público, durante o governo de Nerva, e ainda não havia
cumprido o acordo contratual.
Plínio, então, roga para que Trajano perdoe o acordo não cumprido, exaltando não só
as qualidades pessoais do amigo, mas os laços familiares envolvidos e, note-se, os bens
materiais de Romano. A petição de Plínio, porém, não foi respondida por Trajano, e não há
pistas sobre se Romano conseguiu ou não o cargo senatorial 358.
É importante notar, entretanto, a importância que os laços familiares e o fator material
exercem no discurso de Plínio, não somente na carta referida, mas em muitas outras. Aqui,
temos como exemplo o realce desses símbolos como parte de um discurso que visa angariar
um determinado benefício.
Assim, a amicitia entre os três agentes até então envolvidos no trâmite pode ser
entendida, por sua vez, como um ancoradouro para a manutenção de relações. Da mesma
maneira, o fato de Romano ter posses significativas também era um indicativo de que sua
amizade era válida, como um ponto de validação da mesma. E ainda que Trajano não tenha
respondido à petição de Plínio, o que é compreensível dado o contexto e sua posição naquela
hierarquia social, a petição deste nos é uma amostra da complexidade que envolvia as relações
entre a elite da época.359
Com a ausência da ajuda imperial, Plínio recorreu, então, a outro amigo, a fim de
realizar sua empreitada. Em carta a Javoleno Prisco360, Plínio continua:

(...)non sine magna fidúcia subsigno apud te fidem pro moribus Romanimei, quos et liberalia studia exornant et
eximia pietas, quae hanc ipsam matris liberalitatem et statimpatris hereditatem et adoptionem a vitrico meruit.
[5] Augethaec et natalium et paternarum facultatium splendor; quibus singulis multum commendationis
accessurumetia mexmeis precibus indulgentia et uae credo.
Rogo ergo, domine, ut me exoptatissima emihi gratulationis compotem facias et honestis, ut spero, affectibus
méis praestes, ut non in me tantum verum et in amico gloriarii udiciistuis possim.
357
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 477.
358
SYME, R. Pliny's less successful friends. Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, n. H. 3, 1960, p. 365.
359
De acordo com González (2005, p. 477), o poder e a posição do imperador como patrono de todos fazia com
que suas decisões fossem mais flexíveis e seguissem a linha mais de seus interesses pessoais do que de outros.
360
Javoleno Prisco foi cônsul em 86 d.C. e, posteriormente, em 97 d.C., bem como desempenhou o papel de
governador da Panônia entre 102-103 d.C..
107

Recebes com vontade as ocasiões em que podes me conceder um


favor, e eu não estou mais em dívida contigo. Por duas razões decidi pedir-
te, antes que qualquer um, uma petição que desejo ardentemente que me
concedas. Estás à frente de um grandioso exército, de onde vem a
oportunidade de conceder benefícios, durante um período de tempo, a seus
amigos. Presta atenção aos meus, que não são muitos. Tu desejarias que
fossem, mas a minha modéstia se satisfaz com um ou dois, melhor ainda,
com um. Seu nome é Vocônio Romano. Seu pai era um eqüestre distinguido
e seu padrasto e sua mãe, de boas famílias (Plin., Let., 2, 13).361

Dessa forma, Plínio demarca a posição social e a disponibilidade de cada amigo no rol
da amicitia; enquanto salienta o poder de Prisco para realizar a sua petição, recorre às
qualidades de Romano e ao argumento que vincula todos os interesses envolvidos: o papel
dos laços familiares. Além disso, em carta posterior à Prisco, Plínio salienta a importância da
constância nos tratos com os amigos. 362
Essa constância pressupõe, por sua vez, um ciclo de retribuição, seja na forma de
dádivas materiais ou imateriais. Em sua análise de sociedades pré-capitalistas, Marshall
Sahlins relacionou tal idéia ao que chamou de Ciclo de Reciprocidade. Nesse esquema,
Sahlins concorda com Mauss sobre a natureza das trocas; para ambos, há uma reciprocidade
natural que emana destas, e que nelas se fortalece, e há uma equivalência, que deve ser levada
em consideração.363
Sobre isso, em sua obra Ilhas de História, Sahlins, se propondo a uma
“microssociologia” dos agentes históricos, pontua que o comportamento dos grupos sociais
deriva de uma relação preexistente, na qual a amizade produz o auxílio material: assim, o
relacionamento normalmente e normativamente prescreve um modo apropriado de interação.
Entretanto, se “os amigos criam os presentes”, “os presentes também criam os amigos” 364, ou
seja, as dádivas são produtos de atração e manutenção das relações sociais. Para ele, nas
sociedades, as relações são construídas por escolha, por interesse ou por desejo, através de
muitos meios aleatórios; nos grupos políticos, tais relações são constituídas com as “projeções

361
Et tu occasiones obligandi me avidissime amplecteris, et ego nemini libentius debeo.[2] Duabus ergo de causi
s a te potissimum petere constitui, quod impetratum maxime cupio. Regis exercitum amplissimum: hinc tibi benef
iciorum larga materia, longum praeterea tempus, quo amicos tuos exornare potuisti. Convertere ad nostros nec
hos multos.[3] Malles tu quidem multos; sed meae verecundiae sufficit unus aut alter, ac potius unus.[4] Is erit
Voconius Romanus. Pater ei in equestri gradu clarus, clarior vitricu, immo pater alius nam huic quoque nomini
pietate successit -, mater e primi.
362
Plin., Let., 7, 8; “amore constantiam”.
363
SAHLINS, M. Stone age economics. Routledge, London, 2017.
364
SAHLINS, M. Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70: p.12
108

sociais das ambições”365, o que codifica uma ordem social estruturante. Nesse meio, as
relações são, ao mesmo tempo, projetadas historicamente e incorporadas de forma corrente
nas pessoas de autoridade.
Dessa forma, o rumo de tais relações é gerido por aqueles que têm o controle político
da sociedade. Ou seja, quanto mais influente nos campos político e econômico, mais os
agentes resguardam o poder de controle e manutenção das relações. Nesse sentido, de acordo
com Saller, existia uma força moral que dominava tais campos, que fazia com que seus
agentes se sentissem obrigados a retribuir os favores, se sua posição social dependesse
disso.366
Assim, o grau de patrono desempenhado pelo imperador permitia que ele obtivesse o
controle sob os grupos dominados, a saber, mesmo seus amigos pessoais. Não era ele, de fato,
que poderia carecer de seguros contra infortúnios, a ponto de solicitar favores de forma tão
constante quanto Plínio, por exemplo. Portanto, Trajano já possuía uma rede de apoio, que o
favorecia sempre que necessário, e isso ocorria de forma orgânica no Principado. O padrão de
conduta para quem estivesse em níveis inferiores na hierarquia política, como Plínio, era
totalmente diferente, e era respaldado pelo cumprimento das leis morais dos mutua officia.367

3.3.2 Plínio e Trajano: amizade durante a administração de Plínio na Bitínia

A província de Bitínia-Ponto se formou, como seu nome já demonstra, da união de


dois reinos antigos e compreendia uma região de cerca de 40 mil quilômetros quadrados. A
Bitínia, que ocupava a parte ocidental da província, havia sido um reino cliente de Roma; 368
seu último rei, Nicomedes IV, morto em 74 a.C., nomeou Roma como reino herdeiro, sendo
seu território anexado como província. Mais tarde, a região foi invadida por Mitrídates do
Ponto, em 75 a.C., que foi derrotado somente dez anos depois, por Pompeu. Logo após o
embate, a província retornou para o poderio romano. Da mesma forma, o território antes

365
Op. Cit. p. 70.
366
SALLER, R.Op. Cit. p. 24.
367
Op. Cit. p. 24.
368
O nome da província se originou da alcunha de seus habitantes primitivos, chamados de Bíthynoi.
109

governado por Mitrídates, a região do Pontus, foi anexada por Pompeu 369 à Bítinia, formando
uma única província. 370
Sob o governo de Trajano, a província teve seu estatuto alterado, passando de
província pública a imperial. Não são claros os motivos que levaram Trajano a fazer tal
alteração. O que se sabe é que resultaram desastrosos alguns governos anteriores, como os de
Julio Baso e Varreno Rufo, que abusaram das finanças públicas. De toda forma, o imperador
decidiu confiar a administração da Bitínia-Ponto a um homem de sua confiança e com
conhecimentos sobre assuntos financeiros, justamente o caso de Plínio, o Jovem371.
Assim, em carta a Plínio, Trajano o recorda de que seu envio à província havia sido
proposital, a fim de que ele pudesse restabelecer a ordem e fazer a lei ser respeitada,
estabelecendo as regras necessárias para o usufruto de uma tranqüilidade permanente na
província.372 Como companhia, Plínio levou sua terceira esposa, Calpúrnia, que voltou para
casa dois anos depois. Tomando a análise de sua epistolografia, infere-se que ele tenha ficado
ali por um período inferior a dois anos, até a sua morte, que ocorreu logo após a partida da
esposa. Dessa forma, se aceita, entre os historiadores, que tal recorte temporal deve situar-se
entre 109 a 113 d.C..373
De maneira geral, a administração de Plínio foi marcada por pontos positivos. Suas
cartas o mostram inspecionando cuidadosamente as cidades locais, relatando ao imperador a
condição da infraestrutura pública e pedindo o envio de engenheiros e arquitetos de Roma. Da
mesma forma, Plínio se mostrou preocupado com o estado do aqueduto de Nicomédia, com as
termas de Claudiópolis e com o teatro e ginásio de Nicéia. Em Nicomédia, Plínio sugeriu a
construção de uma brigada de incêndio, proposta que foi rejeitada por Trajano, o qual
argumentou que uma obra desse tipo poderia levar à organização de um grupo de pressão
política.374
Nesse sentido, a fim de solucionar cada caso, a correspondência com Trajano era
freqüente. E apesar da demora de pelo menos dois meses para a troca de correspondências
entre a província e Roma, Trajano respondia as cartas de Plínio regularmente, e seu tom
habitual de pressa ou irritação sugere que as cartas provavelmente eram ditadas ou escritas
pelo próprio. Nesse sentido, a diferença entre a formalidade e o comportamento demasiado

369
E regulada por uma Lex Pompeia.
370
A palavra grega Pontus, significava ‘mar’ e se aplicava à região da costa meridional do Mar Negro.
371
De acordo com Plínio, Trajano fez o possível para que todos soubessem de sua nomeação (X 18.2).
372
X 32.1; 117
373
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 25.
374
BEARD, M. Op. Cit., p. 468.
110

elogioso de Plínio e o tom ríspido de Trajano demarca não só uma diferença de hierarquia
política entre ambos, mas uma diferença de valor social. 375
Entretanto, de acordo com Fergus Millar, apesar da variação de tom, muitas cartas de
Trajano, presentes no livro X, também contêm agradecimentos, votos de bem estar e
tonalidades benevolentes em relação a Plínio. É essa, segundo o autor, a complexidade do
trato entre patrono e cliente, personificada na relação entre Trajano e Plínio. Porém, a
variedade nos tons de Trajano não ocorre da mesma forma em Plínio. 376
Decerto, a posição do patrono permitia que ele pudesse controlar os fios de suas
amizades, ainda que fosse necessária a manutenção de seus interesses em relação a seus
amigos. Em contrapartida, o esforço maior para essa manutenção sempre partia do cliente, a
saber, nesse caso, de Plínio, o Jovem377. Assim, é exatamente no livro X que vemos o
estabelecimento de uma relação de clientelismo entre este e Trajano.
A posição de Trajano como patrono revela o significado inerente da auctoritas
presente nas relações políticas romanas. De acordo com Renata Venturini, o patrono possuía
capacidades materiais e morais para exercer essa virtude, o que possibilitava a reunião de
amigos a seu redor. Assim, nas palavras da autora, a amicitia estava ‘onipresente’ nas
instituições romanas.378
Essa auctoritas fazia parte, de maneira singular, de uma tradição pertencente ao
Principado romano. Assim, o princeps possuía não somente um poder moral, mas também
pessoal, o qual conduzia com seus recursos. Dentro destes, estava também a amizade, a partir
do apoio de um círculo restrito de amigos, o conselho dos amicii.379 Entretanto, as relações de
amizade de Trajano iam além, compreendendo uma vasta rede de clientes e outros amigos.
Isso se explica pelo status de poder político que a nobilitas romana exercia desde a
República. De fato, era ela quem ainda dominava as magistraturas e dela vinha a principal
fonte de apoio político do imperador. Dessa forma, laços de dependência eram formados entre
o imperador e as principais famílias romanas. Contudo, é importante ressaltar: qualquer
relação de amizade estabelecida com o princeps era uma relação, portanto, assimétrica. Por
isso, se ajusta nos termos do patronato ainda que requeira a prestação de serviços mútuos. 380

375
Op. Cit., p. 468.
376
MILLAR, F. Emperors at work. The Journal of Roman Studies, v. 57, n. 1-2, 1967, p. 9.
377
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 37.
378
VENTURINI, R. Amizade e política em Roma: o patronato na época imperial. Acta Scientiarum. Human and
Social Sciences, v. 23, 2001, p. 217.
379
VENTURINI, R.Op. Cit., p. 221.
380
Op. Cit., p. 221.
111

Dessa forma, é importante destacar a relação entre Trajano e Plínio como parte de um
sistema de amizade clientelar, na qual subsistiam interesses mútuos que remanesciam nos
princípios da officia e da fides.381 Assim, era comum que Plínio solicitasse favores constantes
a Trajano, não só para benefício próprio, mas para o de seus amigos. Da mesma maneira,
levando-se em consideração a vantagem que uma amizade com o imperador poderia trazer
para questões relacionadas a benefícios eleitorais, a vantagem de se manter um vínculo
estreito ou ao menos constante com este se fazia preciosa aos olhos de muitos.
Para Plínio, a amizade com o imperador significava, dentre outras coisas, uma
possibilidade não só de estabilidade no cenário político, mas também de manutenção de sua
rede de amizades. Assim, era comum que, a Trajano, pedidos de intercessão a amigos fossem
feitos. Entretanto, diferentemente do que ocorria entre relações simétricas, sob as quais os
pedidos eram comumente realizados, nem sempre Trajano respondia de forma afirmativa às
petições.
Um exemplo de como os tratos entre Plínio e Trajano funcionavam, de acordo com as
bases da amicitia, remanesce no caso das petições do primeiro em favor de seu amigo,
Rosiano Gemino. Tais petições foram feitas durante o proconsulado de Plínio na Bítina-Ponto
e são um dos muitos exemplos de como os laços de amizade envolvem relações multilaterais.
Rosiano Gemino foi questor durante o consulado de Plínio em 100 d.C., e logo depois
foi designado como tribuno militar para a região do Danúbio sob o mandato de Trajano,
atingindo a escala pretoriana por volta de 109 d.C. É exatamente neste ano que uma troca
constante de cartas entre ele e Plínio se desenrola. De acordo com Syme, Rosiano aspirava
provavelmente um consulado 382. Já Sherwin-White sugere que a colocação era para um
governo provincial383. De toda forma, Rosiano pede para que Plínio interceda por ele para que
Trajano o conceda o cargo pretendido.
Em carta a Trajano, Plínio, então, inicia sua indulgência:

Seus benefícios em meu favor, Senhor, me uniram em um estreito


vínculo com Rosiano Gemino; de fato, o tive como questor durante meu
consulado. Ele foi muito amável com a minha pessoa: mostrou-me um
respeito tão grande depois do consulado que uniu com atenção especial os
vínculos nascidos de nossa relação oficial. Lhe rogo, pois, que tu mesmo, em
resposta a meus pedidos, te interesses pela ascensão dele. Lhe concederás,
assim, se dás algum crédito a minhas palavras, tua indulgência; ele se

381
Op. Cit., p. 222.
382
SYME, R.Roman Papers. III. Revue Belge de Philologie Et D’Histoire, v. 65, n. 1, 1987, p. 483.
383
SHERWIN-WHITE, A. The letters of Pliny: a historical and social commentary. Cambridge: 1966, p. 596.
112

esforçará nas atividades que você o confiar, a fim de receber maiores honras
(Plin., Let., 10. 26).384

Essa é uma petição similar às que Plínio fez em favor de Arriano Maturo e Cornélio
Miniciano. Entretanto, direcionada a alguém de uma escala superior, que era o caso de
Trajano, Plínio cita a importância dos beneficia concedidos pelo imperador, importantes peças
para a manutenção das relações. Para Hellegouarc’h, o beneficium era o principal meio pelo
qual a amicitia se expandia, além de servir como base para o estabelecimento de uma forma
especial de amizade, necessitudo, também mencionada por Plínio em sua petição a Trajano.385
Nesse sentido, segundo o autor, o beneficium implicava uma superioridade de quem
concedia o benefício sobre quem o recebia. Designava, dessa forma, atos de proteção e
assistência, que podem estar relacionados tanto às relações simétricas entre amigos quanto às
assimétricas. 386
Assim, era através do beneficium concedido por Trajano que Plínio possuía a
legitimação para fazer petições e recomendações a este. E através dele os vínculos de amizade
representados na carta pelo categoria necessitudo eram formados. Dessa forma, necessitudo
ligava-se a auxílios de natureza prática. Entretanto, segundo Saller, apesar de ser associado à
amicitia, o conceito não era restrito a esta, podendo ser encontrado entre os mais diversos
tipos de relações.387
É importante salientar, nesse caso, a forma pela qual Plínio se esforça em destacar os
motivos pelos quais Trajano deve atentar a fim de conceder o benefício a Rosiano. De fato, a
amicitia era anunciada, questionada e posta à prova em inúmeras correspondências plinianas.
No caso de Trajano, o dever em ajudar Plínio também provinha da liberalitas, categoria
exercida em prol dos interesses em comum. Entretanto, esta era sempre exercida entre pares
de status distintos, a saber, pelo patrono em relação a um cliente. Envolvia, portanto, o ato de
conceder algum favor para alguém de status inferior.388
A forma pela qual o imperador exercia sua liberalitas seguia, comumente, regras
próprias e dependia de seus interesses. No caso analisado, não temos uma resposta imediata

384
Rosianum Geminum, domine, artissimo vinculo mecum tua in me beneficia iunxerunt; habui enim illum quaest
orem in consulatu. Mei sum observantissimum expertus; tantam mihi post consulatum reverentiam praestat, et p
ublicae necessitudinis pignera privatis cumulat officiis. Rogo ergo, ut ipse apud te pro dignitate eius precibus m
eis faveas. Cui et, si quid mihi credis, indulgentiam tuam dabis.
385
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 164.
386
Op. Cit., p. 158.
387
SALLER, R. Op. Cit., p. 15.
388
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 668.
113

de Trajano, assim como cessam as correspondências entre Rosiano e Plínio. Apesar de não
sabermos do desfecho desta commendatio, é conhecido que o amigo de Plínio desempenhou
diversos outros cargos na política romana 389.
A petição de Plínio a Trajano também nos revela o caráter singular dos officia
prestados entre amigos e ambiguidade da relação entre patronos e clientes. De acordo com
Saller, o efeito dessa ambigüidade na durabilidade dos laços de clientelismo e amizade tem
sido explorado em trabalhos antropológicos sobre as ramificações sociais da troca. Assim,
esse sentimento paradoxal fica claro quando Plínio compromete Trajano a cumprir seus
pedidos, mesmo tendo consciência de sua posição inferior.390
Da mesma forma, por mais que a liberalitas de Trajano estivesse condicionada a seus
próprios interesses, havia uma obrigação moral que impelia o princeps a dar apoio a seus
aliados. Essa é de acordo com o autor, uma ambigüidade inerente às trocas do período do
principado, que tornava as pessoas relutantes em romper com um laço de amizade. 391
Assim, de acordo com Greg Woolf, a relação entre Plínio e Trajano pode ser
caracterizada pela fides e officium, em uma rede dinâmica na qual o reconhecimento do que é
devido ao patrono se manifesta no apoio dado ao cliente. 392 Dentro dessa atmosfera, segundo
suas Cartas, Plínio exerceu o proconsulado de maneira aparentemente responsável e suas
preocupações prioritárias giravam ao redor da administração de sua província e do
atendimento às obrigações oriundas da amicitia: receber, cuidar e recomendar seus amigos,
deixando claro, de forma constante, os motivos pelos quais uma amizade de seu status se fazia
necessária.

3.3.3 Questões financeiras

As Cartas de Plínio nos fornecem uma gama de informações acerca da vida financeira
do período inicial da dinastia Antonina. De fato, as referências às posses de Plínio são muitas,
ainda que a falsa modéstia de nosso autor comunique o contrário. Isso porque, apesar de
sempre se colocar como possuidor de poucos usufrutos, o valor de sua fortuna era deveras
bem alto.

389
SHERWIN-WHITE, A.Op. Cit., p. 756.
390
SALLER, R. Op. Cit., p.17.
391
Op. Cit., p. 19.
392
WOOLF, G.Op. Cit., p. 138.
114

Nesse sentido, apesar de Plínio não se encaixar dentro dos padrões de uma fortuna
demasiada alta, segundo Richard Duncan-Jones, ele ainda detinhas muitas propriedades e
lucro, oriundos de heranças familiares e de amigos, além de possuir uma série de casas e
propriedades com as quais gozava de fundos permanentes. 393 Segundo Sherwin-White,
estima-se que Plínio possuía uma fortuna de aproximadamente quinze milhões de sestércios.,
com uma renda anual de oitocentos mil a um milhão de sestércios. 394
Segundo González, essa quantia se baseava, sobretudo, em dois pilares: na renda
oriunda de suas propriedades e nas grandes fortunas que Plínio recebia na forma de heranças,
as quais, por si só, já atestam as boas relações de amizade que este possuía. 395 Entretanto,
apesar de não mencionar diretamente o empréstimo de dinheiro a juros em suas cartas, como
parte de suas atividades de negotium, nosso autor sem dúvida se dedicava a elas com
freqüência.396
As extensas atividades de crédito que se desenrolavam no mundo financeiro da era de
Trajano faziam parte de uma atmosfera econômica de relativa estabilidade. De acordo com Le
Roux, até a metade do século II Roma vivenciou um período de próspero crescimento, tendo a
densidade populacional tanto dos campos quanto das cidades aumentado consideravelmente.
Assim, tanto as atividades agrícolas quanto os setores de serviço dos centros da capital e
províncias se tornaram um verdadeiro motor de produção.397
Todavia, os períodos de escassez não desapareceram completamente, tendo a
população em geral carecido, por muitas vezes, de itens básicos. Para solucionar parte desse
problema, Trajano criou os Alimenta, um conjunto de diretrizes que assegurava a alimentação
básica para todas as crianças do Império. 398A organização de tal instituição demonstra que,
ainda que o desenvolvimento econômico estivesse em seu ponto máximo, ainda havia
instabilidades e problemas sociais que denunciavam a fragilidade do Estado.
Da mesma maneira, é importante salientar que, mesmo durante a era de ouro dos
Antoninos, houve dificuldades econômicas, ainda que breves, que também davam sinais de tal

393
DUNCAN-JONES, R. The finances of the Younger Pliny. Papers of the British School at Rome, v. 33,
London: 1965, p. 179.
394
SHERWIN-WHITE, A. The letters of Pliny: a historical and social commentary. Oxford: Clarendon Press,
1966, p. 149.
395
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 11-12.
396
Assim como na época ciceroniana, o empréstimo de dinheiro a juros na Roma de Plínio também estava
cercado por conotações negativas. Dessa forma, apesar de manter um distanciamento de linguagem em relação a
essa atividade, Plínio nos concede detalhes de sua vida financeira de empréstimos que ele mesmo tomava com
freqüência.
397
LE ROUX, P. Op. Cit., p. 85.
398
SCARRE, C. Op. Cit., p. 98.
115

fragilidade. Não à toa, Trajano impôs aos senadores a obrigação de investir um terço de seu
capital na Itália, a fim de salvaguardar o Tesouro público. Contudo, as políticas econômicas
estabelecidas raramente eram suspensas e, assim, é importante salientar que os imperadores
apenas intervinham em resposta a situações de crise, a fim de estabelecer a ordem
determinada. 399
Nesse sentido, Ciro Flamarion atenta para o fato de que o Império Romano era uma
unidade econômica territorial, e não havia nada que exercesse o poder de controle sobre a
organização do espaço econômico. Assim, os mecanismos de gestão eram colocados de forma
arbitrária, na maioria das vezes sem a intervenção do centro de poder, ainda que houvesse
uma organização administrativa do mundo da economia e das finanças. 400
Portanto, assinalamos aqui o caráter independente das relações financeiras que
ocorriam em território romano, a saber, todas que envolviam uma relação entre dois ou mais
agentes, fossem eles credores, devedores, fiadores, etc. Dessa forma, o Estado romano pouco
interferia nas transações, seja como órgão regulador ou fiscalizador. Nesse sentido, de acordo
com Duncan-Jones, as atividades de crédito se auto-regulavam seguindo o interesse de
demandas contratuais, oriundas tanto do contexto político, já que tal esfera era interconectada
com o mundo econômico, quanto das necessidades dos indivíduos que atuavam nesse
sistema.401
É exatamente nessa esfera de operações individuais que a amicitia servia de estratégia
para a resolução das demandas financeiras. Estas, por sua vez, se apoiavam em uma série de
vínculos e relações pessoais de diversos níveis, como os que veremos a seguir, dentro do
contexto pliniano.
Em carta a uma certa Calvina, com quem Plínio menciona ter laços de officium, vemos
se desdobrar uma série de admoestações deste em relação à mulher:

Seu teu pai tivesse feito dívidas com muitos ou somente com qualquer um
que não fosse eu mesmo, quem sabe se poderia duvidar se aceitava uma
herança que inclusive para um homem poderia ter sido uma carga pesada.
Mas eu, movido pelo dever de nossa officia, uma vez tendo pagado a todos
os devedores, não direi nem mais exigentes, mas diligentes, sobrei como
único credor, e como eu, ainda durante a vida de teu pai, havia contribuído
com uma soma de 100.000 sestércios como dote para o seu casamento, além
da quantidade que teu pai lhe deu, tens a firme garantia da minha

399
LE ROUX, P. Op. Cit., p. 88.
400
CARDOSO, C. Existiu uma economia romana? Rio de Janeiro: PHOÎNIX, v. 17, n. 1, 2011, p. 35.
401
DUNCAN-JONES, R. Economy of the Roman Empire: quantitative studies. Cabridge: Cambridge University
Press, 1982, p. 123.
116

condescendência, com cuja confiança deves defender a honra e a reputação


de teu pai (Plin., Let., 2.4)402

Aqui, há muitas camadas de informação. Em primeiro lugar, é importante entender


que Plínio aconselhou Calvina a usar a herança deixada por seu falecido pai para pagar a
dívida que o mesmo mantinha com Plínio. Em relação ao pagamento da dívida, que Plínio
afirma ser de 100.000 sestércios, o autor salienta o “dever de nossa officia” e afirma
categoricamente que Calvina deveria “defender a honra e reputação se seu pai” - caso a dívida
não fosse paga, a vergonha recairia sobre a memória do falecido pai de Calvina, e,
consequentemente, de sua família.
Percebemos aqui dois pontos importantes acerca das relações financeiras em torno de
Plínio. A primeira reside na posição deste como credor que cobra uma dívida: apesar de não
sabermos qual o nível de amizade entre Plínio e Calvina, a coerção ao pagamento da dívida é
clara: como sujeito devedor, Calvina tinha o dever – que aqui é colocado como um quadro de
obrigatoriedade -, de pagar a dívida de seu falecido pai com Plínio. Dessa forma, os laços de
amizade detinham em si o dever do pagamento dado o falecimento de um membro da família.
A dívida, dessa forma, mantém como obrigação final o pagamento, mesmo nos círculos
familiares e aparece aqui como um reflexo de uma característica das transações romanas na
época.403
Porém, é importante mencionar que nem sempre as obrigações surgidas de um vínculo
de amizade se tornavam coercitivas com relação à uma dívida. É o caso, por exemplo, de
amigos que decidem, pelo seu vínculo, não cobrar juros de um determinado credor. Nesse
sentido, Jean Andreau nos afirma:

Alguns empréstimos não carregavam juros em tudo . Em alguns casos, isso


seria uma manifestação de generosidade que era uma característica do ideal
aristocrático de amizade e de ligações de parentesco e de clientela
(ANDREAU, J. 2003, p. 13).

402
Si pluribus pater tuus vel uni cuilibet alii quam mihi debuisset, fuisset fortasse dubitandum, an adires heredita
tem etiam viro gravem.[2] Cum vero ego ductus affinitatis officio, dimissis omnibus qui non dico molestiores sed
diligentiores erant, creditor solus exstiterim, cumque vivente eo nubenti tibi in dotem centum milia contulerim,
praeter eam summam quam pater tuus quasi de meo dixit erat enim solvenda de meo, magnum habes facilitatis
meae pignus, cuius fiducia debes famam defuncti pudoremque suscipere. Ad quod te ne verbis magis quam rebus
horter, quidquid mihi pater tuus debuit, acceptum tibi fieri iubebo.

403
VERBOVEN, K. Op. Cit., 15.
117

Outro ponto importante é o resultado implícito do não pagamento da dívida a que


Plínio faz questão de mencionar: caso Calvina não pagasse o montante, a vergonha recairia
sobre a memória da família. Plínio ainda ressalta, na mesma carta, o fato de ter sido o único
credor do pai de Calvina, que seria um motivo adicional para a quitação da dívida. Dessa
forma, o devedor, unido ao credor por laços de amizade, no caso de uma amizade simétrica,
não obtinha trégua por sua situação – o fato de pertencer a um mesmo status social não
excluía a obrigatoriedade do pagamento, pelo contrário, destacava ainda mais o dever e a
obrigação em se pagar uma determinada dívida. A figura de Plínio como único credor em
relação a seu parente também conta como situação favorável ao pagamento – este se torna
mais um motivo que obrigava Calvina a quitar a dívida.404
Dessa forma, as relações financeiras presentes em um círculo de amicitia se revestiam
de uma obrigação pragmática entre credor e devedor, e soma-se a isso o fato de que o não
pagamento de uma dívida incorreria na má reputação do nome da própria família envolvida.
Por um lado, o credor aparece como sujeito que detém a maior necessidade do pagamento;
por outro, o devedor mantém a mesma necessidade, em uma determinada proporção, uma vez
que, caso não cumpra com a obrigação relativa ao pagamento, será atingido por um prejuízo
de valor moral que sobrecairia na imagem da própria família. 405
Outro caso em que a amicitia aparece como base de uma relação financeira em Plínio
nos é oferecido pelos relatos sobre sua relação com o filósofo grego Artemidoro. Em carta a
Julio Genitor, ele prossegue:

Verdadeiramente o caráter de nosso amigo Artemidoro é tão


generoso que exalta mãos do que o devido os serviços de seus amigos, e
assim também propaga meus méritos com um elogio que, ainda que seja
verdade, está muito acima de meus merecimentos.
(...) Lhe dei emprestado sem juros o dinheiro que então necessitava
em grandes quantidades, para pagar umas dívidas que havia contraído por
motivos justíssimos, quando alguns de seus amigos muito importantes e
ricos demoravam a fazê-lo (Plin., Let., 3.11)406

404
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 375.
405
Op. Cit., p. 375
406
Est omnino Artemidori nostri tam benigna natura, ut officia amicorum in maius extollat. Inde etiam meum me
ritum ut vera ita supra meritum praedicatione circumfert.
Pecuniam etiam, qua tunc illi ampliore opus erat, ut aes alienum exsolveret contractum ex pulcherrimis causis,
mussantibus magnis quibusdam et locupletibus amicis mutuatus ipse gratuitam dedi.
118

Aqui, Plínio aparece como credor de Artemidoro, emprestando-o uma certa quantia
(não mencionada) sem juros. Assim, informa que este o exaltava mais que o devido
publicamente, o que era uma prática comum na sociedade romana da época. Dessa forma,
Artemidoro angariava, ainda que não objetivamente, a posição de Plínio como seu credor –
este, por sua vez, não ousaria em recusar um empréstimo a um filósofo tão conhecido e que o
vê em grande estima. Aliás, Plínio se refere ao montante pedido por Artemidoro como
fazendo parte de um empréstimo de “grandes quantias”.
A amicitia, dessa forma, inseria-se em um quadro de necessidade mútua – era comum
a troca de favores entre credores e devedores que pertenciam a um mesmo círculo social.
Plínio sente-se impelido por uma obrigação moral a conceder o empréstimo a Artemidoro, o
que valeria a pena em função da necessidade da permanência de sua ligação com este.407
Nos dois casos citados acima, conseguimos entender como a fides funcionava no
âmbito das relações de amizade que formavam as atividades financeiras – as partes em acordo
eram envoltas por um sentimento de reciprocidade em comum, que determinava uma
assistência mútua em prol de uma mesma necessidade – o pagamento da dívida. Ainda,
segundo Andreau:

Na elite senatorial romana, muitos empréstimos foram acompanhadas por grandes


declarações de amicitia e resultaram em reciprocidade. No entanto, em muitos casos,
eles foram remunerados e foram mesmo solicitado por um desejo definido para o
lucro. Esse tipo de prática existiu em todas as sociedades pré-industriais , incluindo
a Europa ocidental nos séculos XVII e XVIII. Eles não denotam, portanto, um
arcaísmo extremo (ANDREAU, J. 2003, p. 141).

Assim, é importante salientar que o conjunto de relações estudadas aqui não se


encaixam somente no contexto da antiguidade; todas elas, em especial as relações de poder e
de amizade, aparecem ainda hoje em determinados contextos políticos, e mesmo financeiros
em nossa sociedade. Destacamos aqui, porém, aquelas relativas às atividades financeiras na
Roma antiga, tomando como base os escritos de Plínio, o Jovem, em suas cartas.
Ademais, é importante salientar que o desejo definido para o lucro não era o único
fator no qual se baseavam tais relações. De acordo com Verboven, interesses de cunho moral
também estavam atrelados às relações de forma orgânica, já que respondiam à busca por
poder político e econômico. Dessa forma, todas essas relações faziam com que a atividade do
crédito se mantivesse não apenas no âmbito financeiro, mas fizesse parte das esferas política e

407
GONZÁLEZ, J. Op. Cit., p. 371.
119

social, onde credores e devedores se inter-relacionavam de forma simbiótica, com interesses e


necessidades mútuas, configurando, assim, uma esfera de dependência entre as partes. 408
Os eixos de análise aos quais nos detemos – os laços de amizade e as recompensas de
valor financeiro e moral são apenas alguns traços de uma série de relações entre credores e
devedores. Afinal, os efeitos econômicos das relações sociais baseadas na fides devem, de
fato, ser vistos como substitutos das instituições, como afirmou Wallace-Hadrill ou residem
apenas em uma maneira para conseguir lucro financeiro e moral sem elas? De acordo com
Bruce Frier e Dennis Kehoe, esse é um embate que ainda necessita ser explorado.409

408
VERBOVEN, K. Op Cit., p. 117.
409
FRIER, B.; KEHOE, D. Law and economicinstitutions. The Cambridge Economic History of the Greco-
Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 537.
120

CONSIDERAÇÕES FINAIS| A amizade como instrumento de poder na vida política e


financeira: análise comparada

No início do século XX, com o avanço epistemológico da Antropologia e da


Sociologia, o interesse de alguns pesquisadores se voltou para a compreensão das trocas
humanas. Nesse sentido, muitos estudos se desenvolveram a fim de analisar as chamadas
trocas recíprocas; a partir de então, verificou-se que, em muitas sociedades pré-capitalistas,
existia um tipo de moral vinculado às trocas, em especial aquelas que ocorriam entre amigos e
familiares.
Em sua obra Ensaio sobre o Dom, Marcel Mauss se debruçou a fundo na comparação
de alguns destes casos. Chamaram-nos atenção, em especial, suas extensas páginas sobre as
trocas realizadas entre os romanos da antigo império, tendo por base de análise o Digesto e
muitos outros documentos jurídicos. Assim, Mauss procurou demonstrar que havia uma
economia que se sobrepunha ao racionalismo capitalista e que perpassou a humanidade por
eras, remanescendo até a sua época. Seus estudos foram, ademais, propagados e examinados
pelas gerações posteriores, que também se debruçaram sobre aquilo que se convencionou
chamar de reciprocidade das trocas humanas.
Na década de 1950, Karl Polanyi passou a enfatizar que a submissão do ser humano à
necessidade ou ao lucro pessoal é um fenômeno moderno e capitalista. Antes disso, as
sociedades se organizavam de forma que suas necessidades pudessem ser supridas, tendo ou
não a ajuda dos poderes políticos centrais. Dessa forma, a economia estava submersa em um
sistema social no qual era impossível separá-la de outros estamentos, como a política, a
religião e as tradições. Nesses mundos, da antiguidade até o advento do capitalismo, a moral
subordinava os interesses individuais aos coletivos.
A esse tipo de troca, Edward Thompson chamou de Economia Moral. Em sua obra A
Economia Moral da Multidão Inglesa no século XVIII, de 1971, o historiador analisou como o
povo inglês criava estratégias que se imbricavam com as relações de troca e reciprocidade e
que, por sua vez, tinham como objetivo estabelecer a manutenção de suas necessidades
básicas, frente a um governo opressor. Todavia, em suas palavras, essa economia moral não
se manifestava somente nos momentos de crise, mas era um traço das ações sociais que
incidiam diretamente no plano político e econômico.410

410
121

Ademais, essa idéia já havia sido salientada por Pierre Vidal-Naquet e Moses Finley,
em seus trabalhos sobre as formas políticas grega e romana. Finley, por sua vez, insistia que
as relações de troca entre os romanos antigos estabeleciam estratégias que faziam frente ao
controle do Estado. Na mesma época, Detienne reivindicou a utilização dos estudos
antropológicos para a compreensão das trocas humanas na História, ao passo que, na década
de 1990, Konraad Verboven se destacou ao defender abertamente a idéia de que a sociedade
romana antiga estava imersa em uma ampla rede de contatos que se configuravam como
ferramentas sociais para atingir poder, status e uma série de privilégios ou necessidades.
Foi, então, que, a partir da análise, na documentação, de tais redes de contatos e do
entendimento sobre a amicitia como forma de instrumento social, avaliando os casos
encontrados nos círculos pessoais de Cícero e de Plínio, o Jovem, que nasceu a nossa
pretensão de comparar as formas da amizade romana, através de uma base metodológica
defendida e utilizada por um historiador consciente da importância da Antropologia e da
Ciência Política para o estudo de tais questões, a saber, Marcel Detienne. Assim, seguindo seu
modelo, começamos a estabelecer, em primeiro lugar, os pontos que distanciam as formas
sobre como a amizade servia como instrumento de poder político e econômico nos dois
contextos analisados. Em seguida, discutiremos as semelhanças e singularidades por trás de
cada um dos processos.

***

Em seu De Amicitia, Cícero já anunciava o que, para ele, era inerente ao conceito de
amizade romana: aquela que fosse genuinamente verdadeira deveria se pautar pela
reciprocidade de serviços; além disso, era sempre seguida pela idéia de beneficium e gratia,
pelos quais o apoio prestado em tempos de necessidade deveria ser retribuído, ao menos, com
uma expressão de gratidão.
Dentro desse entendimento, o conceito de amizade utilitária, revisado durante os
capítulos, era aplicado a todo aquele que estivesse em um patamar de igualdade de status
social. Nesse sentido, a expressão toma certo rigor na documentação, e Cícero sempre deixa
bem claro os motivos que o levavam a estabelecer uma relação de amicitia com alguém.
Assim, em um contexto extremamente instável, era necessário estar cercado de amigos que
pudessem agir em prol dos outros. Em suas Cartas, Cícero nos fornece a visão de uma
122

amizade mais rígida, pouco flexível, disponível apenas para aqueles a quem esta fosse
vantajosa.
Estão inseridos nesse espaço, com bastante freqüência, os conceitos de necessitudo e
gratia. Necessitudo é definido por J. Hellegouarch como um caráter íntimo e próximo das
relações de amizade que se estabelecem entre duas pessoas. Segundo o autor, a etimologia da
palavra deriva mesmo da idéia de necessidade, e é traduzido por obrigações socialmente
definidas. Nesse sentido, o conceito é intimamente relacionado à fides.411
No campo das relações políticas, necessitudo residia nos auxílios prestados entre
amigos, fossem eles políticos, financeiros ou mesmo de âmbito simbólico, como a
hospitalidade exigida nos moldes dos mutua officia. Nesse caso, o conceito de necessitudo
poderia ser utilizado para conferir à amicitia um caráter forte, principalmente nas cartas de
recomendação. Nicholas Rauh associa o conceito a certo tipo de dependência, próprio das
relações de amizade. Em suas palavras, a necessitudo romana seria responsável pela
obrigação que um amigo teria para com outro, em auxiliá-lo nas mais diferentes atividades,
como questões domésticas, financeiras ou relativas ao processo eleitoral, por exemplo. 412
Gratia tem o significado primário relativo à uma ordem religiosa, como “louvor ou
“graças” e é frequentemente encontrada, na documentação em Cícero, em sua forma plural.
Ela se encontra, assim, ligada ao beneficium, como resultado causado por este e está
necessariamente ligada a atos de troca. Era comumente exemplificada pela relação credor-
devedor: assim como o devedor deveria, obrigatoriamente, pagar as suas dívidas, a gratia
deveria ser sempre exercida por aqueles a quem fosse doada uma dádiva. 413
Como resultado do officium, a gratia era manifestada, no campo político, através de
demonstrações públicas de amizade e parceria. Tais demonstrações residem, em nossa
documentação, nas cartas públicas que versavam sobre figuras aliadas de Cícero. A gratia,
dessa forma, era um conceito indissociável do ato de devolução de um favor. Esta, por sua
vez, remanescia entre as relações como um instrumento de poder capaz de unir grandes
homens em prol de interesses em comum414. Assim, tal sistema de reciprocidade,
desenvolvido nas redes de amizade na Roma tardo-republicana, era responsável pela
manutenção dos interesses e privilégios de inúmeras famílias.

411
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 73.
412
RAUH, N. Op. Cit., p. 23.
413
Op. Cit., p. 204.
414
SALLER, R. Op. Cit., p. 18.
123

Dentro desse meio, os vínculos entre amigos se mantinham por décadas ou mesmo
séculos. Não raro encontramos nas cartas do arpinate a menção de um determinado favor
concedido “em memória” de algum membro passado de uma família distinta. Dessa forma,
ainda que as relações sociais fossem heterogêneas, existia uma tradição de manutenção da
amicitia na Roma Republicana que se sobrepunha aos interesses individuais e gostos pessoais.
É exatamente por esse motivo que a amizade romana da tardo-república era
direcionada mesmo a inimigos políticos, e com bastante freqüência. Assim, Cícero chamava
Dolabela, Júlio Cesar e Ápio Claudio de “amigos”, ainda que não houvesse o mínimo
sentimento de afetividade envolvido em tais relações. Da mesma forma, ter aliados ou agentes
que pudessem servir como peças de apoio no jogo político, ainda que estes fizessem parte de
facções distintas, era uma tradição que se manteve até o início do principado.
Portanto, a amicitia era, nesse contexto, envolvida por um caráter essencialmente
utilitário, segundo a qual as relações sociais eram formadas independentemente de um
sentimento de afetividade comum. Tais relações eram mantidas através de um código de
conduta bem enraizado nos indivíduos, e personificado pela fides.
Em contrapartida, as Cartas de Plínio, o Jovem nos fornecem a visão de uma
amizade mais fluida e menos enrijecida, pela qual os códigos morais pudessem ser desfeitos
com maior facilidade. Da mesma maneira, o conceito é sempre reforçado como uma
instituição não somente política, mas havia um sentimento intrínseco de afeição que está
imbuído na maior parte das redes de contato de Plínio, o Jovem. No sumo epistolar deste,
aparecem, no lugar de necessitudo e gratia das cartas ciceronianas, os conceitos de amare e
liberalitas, de forma freqüente e constante.
Embora utilize a palavra amor, Cícero somente o faz quando se dirige a familiares
ou a seu amigo Ático, demarcando uma utilização estrita do conceito. Ao contrário deste,
Plínio utiliza o verbo muitas vezes em direção a seu grupo de amigos políticos. Advinda do
mesmo radical, amare é a expressão afetiva da amicitia. Apesar de, desde a República, a
palavra carregar um significado político, foi no período imperial, contudo, que a expressão
amare se imbricou de forma constante às relações políticas. 415
Amore mutuo se tornou, assim, uma expressão oriunda da reciprocidade entre agentes
políticos. Assim, apesar de ser um termo essencialmente afetivo, a palavra amor poderia
intervir no domínio político para expressar ênfase em vínculos estreitos de amicitia.416 Dentro

415
HELLEGOUARC’H, J. Op. Cit., p. 146
416
Op. Cit., p. 147
124

do contexto da Roma pliniana, a amicitia aparecia, dessa forma, geralmente associada àqueles
a quem Plínio mantinha um mínimo de admiração possível. Não nos são apresentados, por
exemplo, personagens pelos quais poderia haver dissensão política ou mesmo animosidade,
ao contrário do que ocorre nas Cartas ciceronianas.
Dessa forma, há uma mudança notável no campo semântico e ideológico nos quais a
amizade romana residia, entre o período do século I a.C. até o século II d.C. Essa mudança
pode ser entendida pelo ethos político e cultural que foi alterado de forma singular entre tais
temporalidades. Assim, na Roma tardo-republicana a configuração do sistema social requeria
um número sempre razoável de alianças estreitas, que se formavam, ademais, durante décadas
de contatos entre as famílias. Enquanto isso, na Roma do século II d.C., o modus operandi do
sistema político do principado, que controlava os acessos ao poder, juntamente com o
contexto de pax do período pós-Domiciano, acabaram por configurar relações de amizade
mais fluidas, mais independentes, menos relacionadas a obrigações recíprocas, ainda que a
fides fosse a base da moralidade inerente à amizade. Em suma, em suas palavras, Plínio deixa
claro que os apoios são inconstantes. Em Cícero, a amizade é fortemente ligada à constância.
Além disso, as relações de amizade em Plínio, o Jovem, são mais subdivididas e
variadas, enquanto que, em Cícero, elas seguem um padrão único, relacionado ao status social
dos indivíduos. Assim, enquanto que, no primeiro, temos as subdivisões de amigos “menores
e maiores”, em Cícero visualizamos apenas um grupo, a saber, aqueles de seu círculo político
e social que mantinham interesses em comum, e não há menções a categorias superiores ou
inferiores.
Outro ponto que diferencia as formas tomadas pela amicitia nos dois contextos diz
respeito à própria condução do texto epistolar. Nesse sentido, é necessário pontuar que, em
muitos casos, as menções à amicitia nas Cartas de Plínio são feitas em contextos nos quais o
autor tende a criar uma autoimagem positiva. Em Cícero, não há tal interesse, de forma que
suas expressões são sempre autênticas e transparentes, excluindo-se, é claro, as cartas de
elogios e recomendação direcionadas a agentes específicos.
Desse modo, a amizade em sua forma utilitária é muito mais constante em Cícero que
em Plínio, ainda que Sêneca, em seu De Beneficiis a tivesse descrito como produto direto dos
muttua officia e ainda que, nas cartas plinianas, ela esteja diretamente associada à fides e à
troca recíproca.
Além disso, essa mudança de campo conceitual também pode ser entendida pela
análise do papel dos imperadores na administração das ferramentas de acesso ao poder
125

político e, consequentemente, ao econômico. Nesse sentido, as relações de amizade se


diferenciavam entre aquelas mais ou menos próximas do centro de poder, uma vez que este
controlava quem poderia angariar os beneficia de caráter político.
Assim, as relações de amizade, mesmo aquelas entre pares simétricos, eram
construídas ao redor das forças do poder imperial, e dele dependiam. Portanto, é muito mais
comum vê-las entre relações de patronato e clientela nesse período, ao que contrapomos o
contexto ciceroniano. Dessa forma, o poder imperial se colocava como um relativo obstáculo
ao gerenciamento das necessidades políticas por aqueles abaixo de seu escol.
Ainda assim, a amicitia continuou a funcionar como instrumento de poder político e
econômico pela elite ao redor do imperador e pelos senadores. De acordo com Andrew
Wallace-Hadrill, a diferença entre as características que compunham as redes de contato entre
a Roma republicana e a imperial residia nas formas pelas quais os indivíduos mediavam os
recursos disponíveis através de suas relações. Nesse caso, enquanto em Cícero vemos uma
infinitude de relações entre pares de igual status, que tentavam manter suas necessidades
garantidas através de seus contatos pessoais, em Plínio isso ocorre de forma mais
diversificada, e envolve uma variedade de trocas entre aqueles mais próximos do centro de
poder, independente de seu status político.417
No campo financeiro, verificou-se uma variação constante nos términos da amicitia
aplicada às relações entre credores e devedores na Roma tardo-republicana. Por conseguinte,
encontramos um número substantivo de menções a abonos de dívidas, diminuição das taxas
de juros e flexibilidade nos términos dos contratos que eram estabelecidos entre amigos.
Assim, a amizade poderia transformar esse tipo de relação em algo que fosse benéfico para
ambas as partes envolvidas, desconsiderando, por vezes, os prazos contratuais. O aumento
dessa tolerância pode ser exemplificado pelo alto número de mediadores e de transferências
de dívidas que eram realizadas no período.
Tal flexibilidade não pôde ser encontrada nas Cartas plinianas. Ao contrário, Plínio se
mostra demasiadamente rígido com o cumprimento de prazos contratuais, mesmo aqueles
estabelecidos entre amigos íntimos. Dessa forma, a amicitia não implicava num alívio para o
devedor, e sim tornava sua obrigação ainda mais forte, pois demandava o cumprimento ativo
da fides. Esta, por sua vez, gerava um sentimento de dever em relação ao cumprimento do
pagamento de uma dívida.

417
WALLACE-HADRILL, W. Op. Cit., p. 93.
126

Entretanto, o entendimento sobre a amicitia como instrumento de poder também se


aproxima, de determinadas formas, em ambos os casos. Em nossa abordagem sobre as
semelhanças dos processos, temos dois homens-novos, Cícero e Plínio, tentando manter suas
posições políticas e necessidades pessoais, ainda que em contextos distintos. Ambos
pertenciam à elite romana e galgaram posições semelhantes nas magistraturas, incluindo um
pro consulado. O modo como conduziam suas relações de forma a permanecer no jogo
político nos leva a tecer alguns pontos de comparação.
Em primeiro lugar, é importante destacar o papel que os mutua officia ocupavam na
construção das relações de amizade e na sua manutenção. Os chamados favores recíprocos
obedeciam ao princípio da fides romana, dentro de um conjunto de esteios morais que
guiavam aquela sociedade em ambos os contextos. Nesse sentido, destacamos a freqüência,
encontrada na documentação, das renovações de disponibilidade que cada um dos autores
fazia questão de demarcar. Assim, cada vez que asseguravam sua amicitia a alguém, o hábito
de demonstrar seus próprios feitos e cobrar a obrigação mútua, a saber, uma reciprocidade
inerente, continuava.
Dessa forma, visualizamos um interesse orgânico que preenchia as relações de
amizade em ambos os contextos e que era relacionado às intenções políticas e econômicas dos
agentes. Tal interesse era estruturado por um apoio personificado pelo ato de conceder um
beneficium a alguém, dentro das ações de um officium, e pelo ato de receber tal ajuda,
demonstrando gratia e devolvendo o auxílio de forma recíproca. Tal devolução não era, em
teoria, obrigatória. Entretanto, era socialmente esperada, dentro das convenções morais das
trocas recíprocas entre amigos.
Analisando as mesmas trocas recíprocas encontradas no Digesto romano, Marcel
Mauss verificou um ponto em comum que caracterizava e definia esse tipo de relação tanto na
República Romana quanto no Império. Para ele, existia, no seio das mais diferentes
sociedades, tanto a romana quanto outras, uma mesma força que se desencadeava em três
obrigações, uma ligada à outra, que precipitava as pessoas em direção a um movimento que
trazia as dádivas de volta, em um circuito regular. Enquanto os estudos de antropólogos
posteriores chamaram de reciprocidade a tal força, Mauss denominou sistema de prestações
totais o conjunto de dádivas prefiguradas em trocas de bens imateriais, como favores e
serviços. Assim, o fenômeno social da troca é total porque nele há muitos aspectos da prática
127

social. Além disso, tais fenômenos são totais porque permitem que a sociedade se represente e
se reproduza como um todo418.
No esquema de Mauss, as trocas recíprocas ocorrem entre iguais, entre homens de um
status social equivalente. Analisando sua obra, Maurice Godelier aponta que, nesse esquema,
cada um é, em relação ao outro, credor e devedor ao mesmo tempo; há uma obrigação moral
no ato de retribuir o que foi dado 419. A partir desse sistema de trocas mútuas, bens e serviços
são trocados em uma cadeia sistemática que se reproduz até determinado ponto, dependendo
da participação dos agentes envolvidos. Assim, a pessoa que retribui continua ligada
moralmente ao primeiro doador.
Aprofundando os estudos sobre esses tipos de trocas recíprocas nas sociedades,
Marshall Sahlins elaborou um esquema sobre o que chamou de Ciclo de Reciprocidade,
descrito em sua obra Stone Age Economics, na qual aplica os conceitos desenvolvidos por
Mauss e Lévi-Strauss a algumas sociedades de economia primitiva, ainda que reconheça que
tais sistemas sociais ocorrem mesmo em sociedades de economia complexa. Para Sahlins, a
circulação e troca de bens em uma determinada sociedade depende, essencialmente, de ciclos
estruturais que podem ser entendidos dentro de alguns eixos de análise, como, por exemplo,
as trocas generalizadas, que acontecem de acordo com a expectativa de um indivíduo ou
grupos de indivíduos receberem algo em troca, que seja equivalente ao que foi oferecido no
início. Esse tipo de troca, para o autor, ocorre geralmente quando estão envolvidos laços de
parentesco ou de amizade.420
Assim, dentro desse ciclo de reciprocidade, inerente às mais diferentes sociedades,
existe sempre uma expectativa pelo retorno de um serviço prestado a um amigo, ainda que,
em teoria, a moral social conduza as formas de tal ação como um ato gratuito e
desinteressado. Nesse sentido, é notória a forma como tanto Cícero quanto Plínio demarcam
suas pretensões de receber o equivalente a seus atos de officium. Tais pretensões são sempre
justificadas pelo argumento do papel que a fides desempenhava nas relações entre amigos.
Da mesma forma, é essencial destacar o interesse pela manutenção de capitais
simbólicos, que podem ser entendidos como as principais vantagens oriundas das relações.
Assim, tanto Cícero quanto Plínio, como homens da elite, ganhavam benefícios imateriais
através de suas redes de contato. Tais benefícios residiam na própria manutenção dos vínculos

418
MAUSS, M. Op. Cit. p. 9.
419
GODELIER, M. The enigma of the gift. Chicago: University of Chicago Press, 1999, p. 32.
420
SAHLINS, M. Stone age economics. Vol. 130. London: Transaction Publishers, 1974, p. 57
128

de amizade que asseguravam as necessidades de cada um deles, como apoio político,


manutenção do status, formação de vínculos com outras pessoas importantes, apoio
financeiro, e formação de um ideário particular.
Em Cícero, por exemplo, vimos como sua relação com Metelo era politicamente
benéfica para ambos. Assim, enquanto Metelo obteve de Cícero o apoio necessário para
garantir um proconsulado na Gália, o arpinate angariou a ajuda do amigo em seu retorno do
exílio e para fins de manutenção de um vínculo mais próximo com Pompeu. Da mesma
maneira, suas relações com Ápio Claudio e Dolabela foram vantajosas à medida que
garantiram sua posição no senado e o apoio de homens importantes, como o já mencionado
Pompeu, assim como Júlio César. Dessa forma, o reforço da união com tais homens supriu a
necessidade de estabilidade política de Cícero, em um momento extremamente conturbado no
cenário republicano.
De igual maneira, as relações de Plínio, o Jovem, se mostraram estratégicas para a
construção de seu projeto político e, a cabo, de uma imagem ideal, conforme exposta em suas
cartas. No panorama de suas relações, a amicitia representou uma ferramenta para atingir
interesses pessoais, fossem políticos ou financeiros. Sua amizade com o imperador Trajano,
por exemplo, não só o forneceu a estabilidade necessária como servidor público e político,
mas garantiu que sua rede de amizades fosse mantida. Do mesmo modo, como vimos, os
interesses de muitos amigos de Plínio foram supridos mediante o contato de Plínio com o
centro do poder imperial.
Tanto Thomas Habinek quanto Miriam Griffin salientam a ligação entre o conjunto
dessas relações e o conceito de Capital Simbólico conforme analisado por Pierre Bourdieu. 421
Nesse sentido, o autor nos conduz a um entendimento acerca da relação entre poder e
prestígio, uma vez que, em suas palavras, quando as formas reais de dominação não
conseguem manter um controle social, seja na esfera política ou econômica, formas
“simbólicas” surgem para tomar seu lugar. Assim, formas mentais vão surgindo e se
reproduzem ao ponto de se tornarem estruturas morais, que servem não só a interesses
particulares, mas a interesses universais, comuns a todo um grupo social. 422
Dessa maneira, de acordo com Habinek, o capital simbólico das elites romanas pode
ser entendido como o conjunto de interesses relacionados à tomada do poder político e
econômico, que se concretizavam mediante estratégias de resistência aos poderes

421
HABINEK, T. Op. Cit., p. 67; GRIFFIN, M. Op. Cit., p. 93.
422
BOURDIEU, P. Outline of a Theory of Practice. No. 16. Cambridge: Cambridge University Press, 1977, p.
27.
129

autocráticos; além disso, tal resistência também servia para suprimir reivindicações de outros
setores da sociedade, como as camadas sociais mais baixas. Portanto, as elites romanas
garantiam a sustentação de seu poder político e econômico através da manutenção do sistema
de redes de contatos que se solidificavam pela amicitia. Tal sistema, por sua vez, garantia não
só ganhos materiais, mas um capital simbólico de imenso valor para a perpetuação desse
grupo político nas esferas de controle do Estado.
Assim, no último século da República, de acordo com Verboven, a amicitia contornou
os procedimentos formais e forneceu ajudas necessárias onde as instituições políticas
falharam. 423 Já na Roma Imperial, de acordo com Richard Saller, ela se personificou “num
corolário da falha das instituições romanas”424, que acabou por gerar uma obrigatoriedade
implícita no cumprimento de seus padrões. Portanto em ambos os contextos, a amicitia surgiu
como uma ferramenta para alavancar e proteger a posição política dos indivíduos, bem como
desempenhava um papel singular em garantir uma série de vantagens, materiais ou
simbólicas, entre estes.
Tais conclusões reafirmam o pensamento Polanyiano, segundo o qual, nas sociedades
anteriores ao modelo capitalista, a salvaguarda dos estatutos e benefícios sociais dos grupos
era mais importante que os interesses individuais, já que estes não poderiam existir sem os
primeiros. Assim, a valorização dos meios para atingir os fins é um traço marcante dessas
sociedades. Da mesma forma, essa valorização possui um caráter “combinado”, que reside nas
manifestações tácitas das expressões sociais. 425
Ainda, dentro dessa esfera de relações, tanto Cícero quanto Plínio colocavam suas
posições como amigos como moeda de troca para garantir interesses específicos. Assim, a
própria amicitia se configurava como um capital simbólico em ambos os contextos, à medida
que servia de base para a expansão das redes de contatos de cada um dos envolvidos. Da
mesma maneira, como vimos, tais redes de contatos eram responsáveis pela criação de
relações multilaterais, nas quais imperavam o interesse de vários indivíduos.
No campo financeiro, em ambos os contextos os agentes também se colocavam como
moedas de troca, nos papéis de credores. Dessa forma, ser um amigo que cumpria os prazos
contratuais e emprestava dinheiro em tempos de necessidade era uma condição para que as
transações financeiras entre membros da elite se estabelecessem de forma constante.

423
VERBOVEN, 2011, Op. Cit., p. 478.
424
SALLER, R. Op. Cit., p. 14.
425
POLANYI, K. Op. Cit., p. 65.
130

Outrossim, aqueles que possuíam um “bom nome” como credores ou devedores, eram
honrados entre os amigos, e isso ocasionava benefícios não somente para os indivíduos que
faziam ou tomavam empréstimos, mas, a longo prazo, toda uma rede financeira se sustentava
com base nesse tipo de relações.
Igualmente, tanto no caso de Cícero quanto no de Plínio, existia uma obrigação moral
em relação ao retorno de um pagamento. Assim, atender aos prazos contratuais acabava por
ser uma premissa para a manutenção ou para o fim de muitas relações. Isso porque, de acordo
com Wallace-Hadrill, para que uma relação dialética pudesse existir, era necessário que um
conjunto de outras relações existisse anteriormente e formasse seu sustentáculo426. Portanto,
mesmo no campo financeiro, a amicitia se consolidava como uma estratégia de poder, que
garantia o funcionamento de uma rede econômica que se auto-reproduzia através das formas
tradicionais de mercado e pagamentos.
Por fim, enfatizamos a importância da manutenção dos vínculos familiares como
forma criada pela elite romana para a soberania de seus interesses. Essa questão é
constantemente mencionada tanto por Cícero quanto por Plínio. Assim, não raro o arpinate
concedia um favor ou um empréstimo a alguém, não por causa de sua relação íntima com
este, mas em memória ou em respeito à relação que mantinha com sua família.
Tais conexões podem ser exemplificadas pela quantidade de casamentos entre as
famílias da elite romana, que formavam uma espécie de “teia”; esta era tão intrincada que as
relações entre as famílias podem ter sido universalmente abrangentes, e eram responsáveis
pela manutenção do status, das propriedades e do poder político de seus grupos, que
controlavam a arena política romana 427.
Consequentemente, reafirmamos que o gerenciamento da amicitia entre os romanos
tanto do século I a.C. quanto do século II d.C., respondia, em primeira via, a interesses
coletivos, e se firmava como estratégia para a manutenção de seu poderio político e
econômico. Dessa forma, a coletividade estruturava os jogos de poder de ambos os períodos, e
se colocava como um fato social que funcionava independentemente dos interesses
individuais. De maneira geral, ela atuava como ferramenta para o acesso ao controle das
esferas do poder em cada um dos contextos.
Entretanto, diferentemente do que propomos em nossa hipótese, a saber, que tais redes
de amizade perderam relativa importância no século II d.C., com uma variação nos

426
VERBOVEN, K. Op. Cit., p. 348.
427
Op. Cit., p. 39.
131

mecanismos de troca e empréstimo e uma atuação efetiva do Estado romano no controle das
transações, chegamos a um posicionamento contrário. O trabalho heurístico e a pesquisa
bibliográfica nos concederam o entendimento sobre a forma como os centros de poder
atuavam e, nesse sentido, verificamos que não havia um controle administrativo das
transações.
Estas, por sua vez, seguiam as diretrizes inerentes aos grupos sociais que as
estabeleciam, e o fluxo de trocas de amizade ou mesmo financeiras atendia a uma demanda
mais ou menos fluida, que servia aos interesses de seus agentes. Da mesma maneira, por ser
uma espécie de economia moral, imbuída nas relações sociais, não poderia ser padronizada,
nem sequer fiscalizada ou gerenciada pelo Estado romano. Nesse caso, tanto os esquemas
clientelistas quanto as relações simétricas eram basilares para a manutenção tanto dos arranjos
estatais quanto dos interesses coletivos. Assim, esse padrão pouco mudou entre o fim da
República e a época de Plínio e o conceito de amicitia teve apenas algumas alterações que
seguiram os rumos do contexto político romano.
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