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Introdução

Grandes avanços científicos e profundas mudanças infraestruturais nas sociedades


contemporâneas têm como conseqüência o aumento da expectativa de vida, proporcionando,
em função disso, um grande crescimento da população idosa em vários países.

As diferentes áreas do conhecimento têm dado ênfase, em suas pautas de investigação


e intervenção, à velhice e ao processo de envelhecimento, de modo a compreender melhor os
variados fatores particulares a essa fase do desenvolvimento humano. Buscando, também, a
disponibilização de aparatos técnico-científicos para a melhoria das condições de vida nesta
fase da vida.

Dados do IBGE (2002) mostram que o peso relativo da população idosa brasileira, na
década de 1990, era de 7,3%, ao passo que, em 2000, era de 8,6%. Isso é equivalente, de
acordo com o último censo, a aproximadamente 15 milhões de pessoas com 60 anos ou mais,
contrapondo-se aos 10 milhões do Censo de 19911.

O que, sem dúvida alguma, foi um grande avanço para a humanidade: viver mais, é
visto pelos governos e pelos técnicos de finanças públicas brasileiros como um terrível
problema que ameaça assolar a governabilidade, as finanças públicas e todo o conjunto de
medidas essenciais à implementação e à manutenção de políticas públicas para todo o
conjunto da sociedade.

No entanto, um conjunto de iniciativas da sociedade civil, sobretudo os programas


para terceira idade, e um discurso gerontológico empenhado em modificar os estereótipos
relacionados com a velhice criam condições para uma nova visão desta fase da existência: um
olhar sobre uma nova e gratificante experiência de envelhecimento, porém, incapaz de
oferecer alternativas aos problemas da velhice real, da mais avançada e da empobrecida.

1
ARAÚJO, Ludgleydson F. de, CARVALHO, Virgínia Ângela M. de L.Velhices: estudos comparativos das
representações sociais entre idosos de grupos de convivência. Textos Envelhecimento, v.7, n.1. UERJ. Rio de
Janeiro, 2004.

1
Partindo das discussões propostas acima, este trabalho buscará refletir acerca da
relação estabelecida entre as formas de atuação políticas, a mídia e o idoso no capitalismo
contemporâneo brasileiro. Estabelecendo nexos entre conceitos oriundos da antropologia, da
gerontologia, da ciência política, as formas de sociabilidade dos idosos e seus processos
identitários sob o capitalismo contemporâneo - ou pós-modernidade -, e o papel dos meios de
comunicação de massa como mediadores, criadores de imagens e difusores culturais e
ideológicos fundamentais dessa relação.

Refletindo, portanto, acerca do contexto político e do modo pelo qual uma


interlocução intensa entre os atuais discursos da gerontologia, a mídia e os movimentos
sociais organizados em torno da terceira idade reinventaram a velhice sob a perspectiva de
uma responsabilidade individual, inviabilizando a articulação da combinação de rigorosas
pesquisas e estudos das questões relativas à velhice com a defesa e a produção de condições
para a implementação de políticas que visem ao fomento de direitos e à proteção dos
interesses dos mais velhos.

Os conceitos, ainda que sucintos, sobre a relação da velhice com: a institucionalização


da vida, com a moderna cronologização e atual descronologização ou unietariedade juvenil,
com os contextos da história política e econômica do Brasil e do mundo, com a pós-
modernidade, a aposentadoria, o neoliberalismo e a mídia, serão os elementos aventados para
a compreensão das formas como a velhice é vista, representada e tratada no Brasil.

2
1 Cronologização da Vida

A compreensão dos modos pelos quais a vida é periodizada nos diversos contextos
sociais é dimensão privilegiada para o investigação das formas de sociabilidade, dos tipos de
organização social, das formas de controle e gestão sociopolíticos e das representações sociais
e culturais daquela sociedade. Sobre esta questão, diz-nos DEBERT (2004, p.40) que “(...) as
categorias e os grupos de idade são elementos privilegiados para dar conta da plasticidade
cultural e das transformações históricas”.
2

Cumpre elucidar que os estudos antropológicos foram de grande valia no sentido de


fornecer pistas das formas possíveis de mapeamento das etapas da vida em sociedades
remotas ou distintas e nas sociedades ocidentais ao longo do tempo, ou seja, como a
periodização é e era produzida mediante experiências e critérios diferenciados. DEBERT
(2004), na esteira de Meyer Fortes, propõe três modelos teóricos de periodização da vida
como princípios de problematização, a saber: a) por níveis de maturidade, b) por idade
geracional e c) por idade cronológica.

a) níveis de maturidade: transmissão de status, através de um rito de passagem, que


confere o reconhecimento do nível de maturidade e, em conseqüência, a autorização
para o desenvolvimento de certas práticas (caçar, casar, deliberar etc.);
b) idade geracional: estabelecimento dos papéis sociais relacionados à família e ao
parentesco, ou seja, pai, filho, irmão etc.; em que direitos e deveres estabelecer-se-ão
ao indivíduo “de acordo com as relações internas na família, pela linhagem e pela
ordem do nascimento nas relações políticas e entre as linhagens” (DEBERT, 2004, p.
47);
c) idade cronológica: estabelecimentos de papéis sociais através da distinção de etapas da
vida, histórica e culturalmente definidas, marcadas por sistemas de datação; o sistema
ocidental.

Infere-se, portanto, que a periodização da vida não é uma simples classificação da


forma como a passagem do tempo altera biologicamente cada indivíduo; mas, sobretudo, que

2
É imperativo afirmar que estas formas nem são totalmente estanques entre si, nem são sistemas fechados.

3
as formas como as sociedades organizam e representam essas etapas são de fundamental
importância para a atribuição dos papéis sociais de cada indivíduo ou de cada grupo e, em
conseqüência, na forma dos arranjos políticos e na definição de direitos e deveres ora
constituídos.

Na maior parte das sociedades ocidentais de hoje 3, o modelo cronológico, como forma
de periodização da vida, é estabelecido por sistemas de datação - aparatos culturais
independentes de bases biológicas ou do estágio de maturidade -, e impostas como
mecanismos legais que determinam os deveres e direitos do cidadão; constituem
“mecanismos básicos de atribuição de status (maioridade legal), de definição de papéis
ocupacionais (entrada no mercado de trabalho), de formulação de demandas sociais (direito
à aposentadoria), etc.” (DEBERT, 2003: p. 56).

Na história da civilização ocidental, de forma bastante resumida, é possível afirmar


que na fase convencionalmente chamada de pré-modernidade, a instituição familiar era o
núcleo a partir do qual se definia o grau de maturidade, o controle dos recursos e a
possibilidade de exercícios de poder político pelo indivíduo, sendo tal juízo precedente sobre
a idade cronológica; e que sob o advento da modernidade renascentista instituiu-se o modelo
denominado de cronologização da vida.

A idéia de juventude nas sociedades ocidentais, por exemplo, originou-se na sociedade


aristocrática francesa, no séc. XII, caracterizando o intervalo de tempo entre a saída da
infância e o casamento, momento em que o homem jovem substituía o pai na gestão dos bens
familiares. Ou seja, de forma bastante resumida, o estabelecimento de um estratagema ligado
à idéia de gestão, conservação e/ou aquisição de poder e patrimônio4.

A infância, por seu turno, desenvolveu-se ao longo de séculos, mas estabeleceu-se


como criação do séc. XVIII, no início da Idade moderna, sob construto teórico de Rousseau.
Para a conceituação de infância, definiu-se como sendo o estágio de desenvolvimento que se
caracterizava pela dependência e pela educação, em contraposição com a idéia de adulto em

3
“Nas sociedades pré-modernas, a tradição e a continuidade estavam estreitamente vinculadas com as
gerações.” (DEBERT, 2004. p. 53)
4
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

4
miniatura: onde a capacidade física para a realização de tarefas determinava a possibilidade
ou não de uma criança cumpri-la. Em conformidade com o ideário moderno de infância,
definiu-se, por imperiosa, a “construção do adulto como um ser independente, dotado de
maturidade psicológica, direitos e deveres de cidadania” (DEBERT, 2003: p. 52).

Se na pré-modernidade, a tradição e a continuidade estavam profundamente ligadas às


gerações, e estas se renovavam em ciclos, redescobrindo, revivendo as experiências das
gerações anteriores (DEBERT, 2004); na modernidade, por outro lado, estabeleceram-se,
além da cronologização, uma ampla institucionalização do curso da vida, envolvendo todas as
dimensões do mundo familiar, do trabalho, das instituições educacionais, do mercado de
consumo, etc. (Kohli & Meyer apud BEZERRA, 2006)

5
2 Identidade, Individualidade e Institucionalização da vida

Neste contexto histórico, forjam-se novas áreas de conhecimento e instituições que


exercerão precipuamente os papéis de observação, controle e disciplinamento das diversas
instâncias sociais: a escola, o hospital, asilo, psiquiatria, pedagogia, demografia, sociologia,
psicologia, geriatria, gerontologia etc. Em decorrência da ação e da produção destes institutos
e disciplinas surgem especializações, e estas funcionam no sentido de abarcar e gerir as
demandas que se lhes apresentam, constituindo, desta forma, as compartimentalizações
especializadas relativas às disciplinas ou saberes específicos. A escola, por exemplo, para
desenvolver suas atividades, precisou elaborar, à luz dos conhecimentos pedagógicos, a
articulação entre os conteúdos a serem trabalhados e a faixa etária concebida como adequada
a estes. Desta articulação, dentre outras motivações, surgem os conceitos de primeira infância,
adolescência etc.

HALL (1998, p. 28) evidencia que, dentre o conjunto de valores e idéias que
caracterizava o projeto da modernidade, as ciências sociais deram papel de destaque para o
individualismo. Se, para as sociedades tradicionais, o grupo (o clã, a linhagem, a aldeia, a
tribo etc.) era prevalente em relação ao indivíduo, nas sociedades modernas, a ideologia
individualista era dominante:
“A emergência de noções de individualidade, no
sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso da
ordem social, econômica e religiosa medieval. No
movimento geral contra o feudalismo houve uma
nova ênfase na existência pessoal do homem, acima e
além de seu lugar e sua função numa rígida
sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar, no
Protestantismo, na relação direta e individual do
homem com Deus, em oposição a esta relação
mediada pela igreja. Mas foi só ao final do século
XVII e no século XVIII que um novo modo de análise,
na Lógica e na Matemática, postulou o indivíduo
como a entidade maior (cf. as ‘mônadas’ de Leibniz),
a partir da qual outras categorias (especialmente
categorias coletivas) eram derivadas. O pensamento

6
político do Iluminismo seguiu principalmente este
modelo. O argumento começava com os indivíduos,
que tinham uma existência primária e inicial. As leis
e as formas de sociedade eram dele derivadas: por
submissão, como em Hobbes; por contrato ou
consentimento, ou pela nova versão da lei natural, no
pensamento liberal. Na economia clássica, o
comércio era descrito através de um modelo que
supunha indivíduos separados que [possuíam
propriedade e] decidiam, em algum ponto de partida,
entrar em relações econômicas ou comerciais. Na
ética utilitária, indivíduos separados calculavam as
conseqüências desta ou daquela ação que eles
poderiam empreender.” (WILLIANS apud HALL,
1998, p. 29)
E, com o foco ideológico no indivíduo, a percepção de sua singularidade ensejava a
construção da idéia de trajetória e de projeto de vida.

Esta singularidade e este – em conseqüência - projeto de vida ensejavam o


estabelecimento das condições estruturais para a cisão com a sobredeterminação do grupal; e
um dos principais cenários simbólicos desse construto é o processo de formação “da cidade”,
em especial a cidade-operária do capitalismo primevo: o compartimento casa e a sua
caracterização de unifamiliar, e o compartimento cômodo (quarto) como lugar de cada
indivíduo. “Recorte, pôr indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos,
espécie de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria disposição espacial
da cidade (...)”. (FOUCAULT, 1999, p.299)

Na primeira metade do séc. XX, com o estabelecimento da política de bem-estar


social, o Estado, que até então pouco se ocupara da família, dá-lhe lugar de destaque: a
família passa a ser uma instituição-chave para o funcionamento do Estado, na medida em que
é ela o primeiro espaço onde, em nível microcósmico, reproduzem-se e são ensinados os
papéis sociais a serem desempenhados. Ainda nesta linha, HEILBORN et alli, (2005) nos
dizem que um importante papel que coube à família moderna foi a produção de indivíduos
autônomos que, dicotomicamente, precisaram construir esta autonomização pelo afastamento
de seu núcleo de origem. Ou seja, a família de base patriarcal, heterossexual e hierarquizada

7
dezenovista, que até então serviu à formação de mão-de-obra, transferência de herança
patrimonial e de base educativa, passa a ser a instituição responsável pela ideologização do
sujeito segundo os parâmetros individualistas do Estado Moderno.

Dessa forma, a vigência da racionalidade estendia-se sobre as formas de conhecimento


e de organização social, acumulando nas instituições maiores e mais especializadas formas de
controle do indivíduo. Se, como afirma HALL (1998, p. 30), o “indivíduo soberano”, figura
conceitual do pensamento de John Locke, permaneceu central nos discursos da economia
moderna e das leis; a sociologia, por seu turno, situa o indivíduo em processos de grupo e em
normas coletivas que
“Em conseqüência, desenvolveu uma explicação
alternativa do modo como os indivíduos são
formados subjetivamente através de sua participação
em relações sociais mais amplas; e, inversamente, do
modo como os processos e as estruturas são
sustentados pelos papéis que os indivíduos neles
desempenham. Essa ‘internalização’ do exterior no
sujeito, e essa ‘externalização’ do interior, através
da ação do mundo social (...), constituem a descrição
sociológica primária do sujeito moderno.”

Este modelo sociológico dito interativo, produto da primeira metade dos séc. XX,
pressupunha um equilíbrio de reciprocidade estável entre “interior” e “exterior”, no entanto,
neste mesmo período, associado aos movimentos estéticos e intelectuais do Modernismo,
encontra-se “a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-
fundo da multidão da metrópole anônima e impessoal”. (HALL, 1998, p. 32)

Estabelece-se, portanto, uma dicotomia entre as representações do sujeito moderno


instituído sob as perspectivas de Descartes (Sujeito Racional) e Locke (Indivíduo Soberano),
problematizado e complexificado pelas ciências sociais no sentido de integrá-lo ao todo
social, mas, ainda assim, estável; e, na esteira de FOUCAULT (1999), a realidade da
intervenção e inscrição das manifestações de poder institucional em quase todas as instâncias
da existência individual, vigiando, medindo, classificando, controlando, disciplinando, enfim,
governando impessoalmente as multidões e cada um.

8
É em sentido inverso à dicotomia que DEBERT (2004) pondera que a
institucionalização do curso da vida é uma das bases para o processo de individualização do
sujeito moderno, ou seja, as condições objetivas concorrendo para a forja das representações
do sujeito. Estágios pré-definidos, delimitados pela idade cronológica, passam a atuar como
dimensão fundamental na organização social, na medida em que contribui para a
especificação, a nuclearização do sujeito: idade da escolarização, idade de produção no
mercado de trabalho, idade da aposentadoria, x produto é adequado para tal faixa etária, x
outro comportamento é adequado para tal outra faixa etária etc.

Ainda DEBERT (2004, p. 56), nesta mesma linha de raciocínio, nos diz que o controle
e a gestão dos corpos e das massas na modernidade e, sobretudo, sob o capitalismo são
“reflexo da lógica fordista, ancorada na primazia da produtividade econômica e na
subordinação do indivíduo aos requisitos racionalizadores da ordem social. Tem como
corolário uma burocratização dos ciclos da vida”.

Sob a perspectiva de HALL (1998, p.32), esta figura do “indivíduo, isolado, exilado e
alienado” descrita pelos Modernistas5 teria um cunho profético, no entanto, na base da inter-
relação dicotômica constituída entre a representação do ente “indivíduo da modernidade” e as
manifestações de poder da institucionalidade, segundo as próprias pistas deste autor, formam
uma articulação produtiva para o que ele chamará de descentramento do sujeito. Afinal, o
“eu” indivisível, singular, ator primário da inter-relação com a estrutura social, é gerido pelas
instituições como massa homogênea, passível de compartimentalização, anônima - ainda que
o controle e o poder se exerçam muitas das vezes especificamente sobre o corpo individual.

HALL esquematiza (1998) o mapeamento do que vai chamar de descentramento do


“Sujeito” do Iluminismo, cuja identidade é percebida como fixa e estável, como processo
formador das identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas do sujeito da pós-
modernidade. Destacam-se cinco descentramentos:
1) a tradição do pensamento marxista – o centro teórico são as relações sociais (modos de
produção, exploração da força de trabalho, os circuitos do capital etc.), e não uma noção
abstrata de homem;
2) O Freudismo e a descoberta do inconsciente – o inconsciente funciona sob uma perspectiva
pulsional, ou seja, energias, em geral inconscientes e ligadas a sensações e emoções, que
5
Cf. O Processo, de Franz Kafka, entre outros.

9
incitam e dirigem as atividades do indivíduo (uma oposição frontal ao conceito de sujeito
cognoscente e racional, provido de uma identidade fixa e unificada);
3) A Lingüística Saussuriana – segundo a qual a língua é um sistema social e não uma
expressão individual, as palavras contraem sentidos e significados através das relações de
similaridades e diferenças entre elas no interior da língua, o falante individual não pode fixar,
nunca, o significado de uma forma final;
4) Os trabalhos de Foucault – o esquadrinhamento do poder disciplinar (oficinas, quartéis,
escolas, prisões, hospitais, clínicas etc.), que chega ao seu desenvolvimento máximo no início
do séc. XX, de cuja utilização tem por finalidade regular populações inteiras, os indivíduos e
seus corpos;
5) O Feminismo – o impacto do feminismo, tanto como crítica teórica quanto como
movimento social, pondo à baila a discussão de que o que é pessoal é político: família,
sexualidade, cuidado com crianças etc., além de, no esteio de outros movimentos sociais,
estabelecerem uma identidade para cada movimento: feminista, negro, pacifista etc.

É importante ressaltar nessa digressão que o caminho até aqui seguido não tem a
pretensão de mesclar ou confundir os conceitos de identidade (cultural, nacional etc.) com a
forma com a qual as sociedades plasmam conteúdos culturais em torno da passagem do tempo
na vida dos indivíduos. Entretanto, a correlação entre os aspectos formadores da
individualidade (ou individualismo) e de projeto de vida, tão visibilizados pelas ciências
sociais como características forjadas na modernidade, nos dão o indício do papel ocupado
pelo idoso neste percurso histórico: o indivíduo que saiu da (útil) idade para o mercado de
trabalho.

3 História e Contexto

10
No início dos séc. XX, por ocasião da I Grande Guerra, muda-se o papel do Estado em
relação à economia nacional. As necessidades impostas pela guerra levaram à intervenção e
controle da economia: intensificação e modernização da produção bélica, utilização de grande
contingente de mão-de-obra e regulamentação destes empregos, controle sobre a produção e o
consumo etc. Esta economia de guerra pôs em xeque as concepções doutrinárias do
Liberalismo Clássico: a supressão da liberdade econômica, da liberdade de mercado era
possível.

É neste ínterim que se vai forjando, no ocidente, uma nova forma de organização do
Estado reativa as proposições do Liberalismo: o crescimento dos movimentos de
trabalhadores, a organização e fortalecimento dos sindicatos, as pressões das esquerdas
socialistas e dos movimentos anarquistas, o aparecimento do pensamento Keynesiano 6 etc.,
articulados às pesadas onerosidades decorrentes das duas grandes guerras vão produzindo, ao
longo do tempo, um Estado mais ocupado com o social até o estabelecimento das várias
nuances de Estado de Bem-Estar Social.

De forma bem sucinta, pode-se afirmar que esta nova configuração do Estado se
caracteriza por intervir nas movimentações dos mercados interno e externo, agindo como
regulador e gestor dos fatores identificados como possíveis causadores de desequilíbrios
econômicos, evitando, por um lado, crises ou recessões, e, por outro lado, gerando equilíbrio e
desenvolvimento. Este modelo, durante as décadas de 1950 e 1960, viveu uma fase de auge
sem precedentes, os níveis de crescimento mais rápidos da história (AQUINO et alli, 1980, pp
243-7). O crescimento econômico do capitalismo de Estado gerou, entre outras coisas, mais
ofertas de emprego, aumentos de salários e ampliação da aposentadoria. Fatores dos mais
importantes para a configuração identitária das classes trabalhadoras.

Levando em consideração que as sociedades industriais ideologizaram, moralizaram o


estatuto do trabalho e da produtividade, e destes fizeram apologética, a aposentadoria neste

6
Segundo o qual os Estados devem ajustar os vários níveis de equilíbrio: equilíbrio na riqueza, na mediaria, na
pobreza etc., com vistas a subir a equilíbrios cada vez mais altos, com maior distribuição de riqueza para o povo
e, ainda assim, crescer as economias estatais. GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Rio de
Janeiro, Forense-universitária, 1983.

11
contexto pode simbolizar a perda de um papel social fundamental, passando a se configurar
como um sintoma da deterioração da pessoa, mesclando o conceito de velho com o de inútil.
Além, é claro, de se configurar como mais uma onerosidade para o Estado, mais uma dívida
social a ser resolvida pelo erário público.

4 Neoliberalismo

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O neoliberalismo é uma reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de
bem-estar7. Caracteriza-se pela defesa da eliminação de qualquer forma de mecanismo
limitador e interventivo por parte do Estado na economia, considerando-a uma ameaça à
liberdade não só econômica, mas também política. Seu estatuto postula que o “igualitarismo”
– muito relativo, por sinal – deste período, “promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a
liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de
todos.” (ANDERSON, 1996, p. 10) O argumento é que a desigualdade é um valor positivo,
imprescindível, na verdade, para a competitividade e o conseqüente aquecimento da
economia.

Os parâmetros ideológicos do neoliberalismo estão consubstanciados na política


global definida pelo Consenso de Washington, e vem sendo estabelecida desde 1979. Seu
estatuto compreende um vasto espectro de medidas de grande abrangência, dentre as quais:
disciplina fiscal, priorização e redução de gastos públicos, reforma tributária, liberalização
financeira, política de regime cambial, abertura a investimentos estrangeiros diretos,
privatização de empresas estatais, desregulamentação ou flexibilização das relações
trabalhistas, priorização da propriedade intelectual industrial, subordinação da moeda nacional
ao dólar, integração regional etc.

Os conceitos do neoliberalismo foram gestados durante longo tempo e só ganharam


terreno a partir da chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973. As
recomendações neoliberais dos perigos da regulação da economia pelo Estado não pareciam
ter nenhum grau de confiabilidade, pois, conforme dito anteriormente, foram feitas na idade
de ouro do chamado capitalismo Keynesiano e solidarista.

A partir de 1973, as vozes dos neoliberais passaram a encontrar eco nas suas
explicações da crise estabelecida: as raízes da crise, segundo eles, estavam no poder dos
sindicatos e do movimento operário “que havia corroído as bases de acumulação capitalista
com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o
Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”. (ANDERSON, 1996, p. 10)

7
O texto de origem do chamado neoliberalismo é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, de 1944.

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As formas de contornar a crise, segundo o discurso neoliberal, era manter como maior
meta a estabilidade monetária; a contenção de gastos sociais; diminuição drástica das
intervenções na economia; disciplinamento orçamentário; incentivos fiscais às empresas;
redução tributária das rendas mais altas; e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou
melhor, a criação de um exército de reserva de trabalhadores para quebrar os sindicatos.
Estabelecer-se-ia, desta forma, uma “saudável desigualdade” que dinamizaria as economias
avançadas rumo ao crescimento.

O neoliberalismo é efetivamente implantado em 1979, sob a gestão de Margareth


Tatcher, na Inglaterra, e é considerado o mais puro e ambicioso projeto neoliberal dos países
de capitalismo avançado. Esta gestão se caracterizou por um pacote de medidas que incluiu a
contração da emissão monetária, elevação das taxas de juros, diminuição drástica dos
impostos sobre os rendimentos altos, abolição dos controles sobre os fluxos financeiros,
criação de um maciço nível de desemprego, greves foram contidas, impuseram uma legislação
anti-sindical, cortaram gastos sociais e, tardiamente, lançaram um amplo programa de
privatização.

A variedade estadunidense do neoliberalismo, bem distinta da tatcheriana e das demais


européias, priorizou a competição militar com a antiga União Soviética: a corrida
armamentista tinha como finalidade exaurir a economia russa e, por conseqüência, derrubar o
regime comunista. No que diz respeito à política interna, o governo Reagan também
implementou recomendações do pacote neoliberal: elevação das taxas de juros, redução de
impostos sobre as rendas mais altas e abafamento de greve.

Dois aspectos são dignos de nota para o escopo deste trabalho: a derrocada do regime
soviético que, segundo SEGRILLO8, se deveu à “interligação entre diversos fatores, macro e
microeconômicos, nacionais (internos da URSS) e internacionais, etc.”, ou seja, a um
sufocamento econômico por inadaptação a um sistema há muito globalizado (e a
intensificação deste processo pela escalada neoliberal nos países capitalistas e pela
onerosidade da corrida bélica); e a hegemonia ideológica sem precedentes alcançada pelo
neoliberalismo: desacreditando e deslegitimando qualquer forma de pensamento socialista ou

8
O declínio da União Soviética. Segrillo, Ângelo de Oliveira. Niterói, s/d. Baseado em sua tese de
doutoramento.

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comunista ou à esquerda, e, de igual forma, tornando inverossímeis as idéias, ainda que
parcimoniosas, de estabilidade ou crescimento econômico com avanços sociais.

As gestões implementadas sob os pressupostos do neoliberalismo não demonstraram


eficácia econômica no sentido de estabilização das crises nacionais e internacionais, no
entanto, seu ideário hegemonizou de tal forma o pensamento político e econômico mundial
que não houve afluência significativamente poderosa de alternativas aos seus remédios.
Talvez as imensas quantidades de capital fluido e de influência política nas mãos de
corporações monopolistas transnacionais sejam as mais prováveis explicações para a quase
nulidade visível de alternativas divergentes das do modelo hegemônico.

Se, segundo a ideologia em curso, o Estado de bem-estar social é oneroso, ineficaz e


tendente à autodestruição do sistema; se alternativas novas não foram visibilizadas; as
hipóteses baseadas no socialismo são, então, impossibilidades e demonizadas: “vejam as
diferenças da antiga Alemanha Oriental para a Ocidental; observem o atraso e os vícios
originados pelo regime soviético aos povos da antiga URSS etc.”

O declínio da URSS é proposto pela mídia, seguindo as determinações do pensamento


hegemônico, como o enterro, o último adeus das alternativas de base socialistas. E quaisquer
manifestações em contrário são visibilizadas como pensamento retrógrado, inadequadas à
realidade, idealismo infantil, enfim, falta de racionalidade e de leitura atualizada de mundo.

5 Pós-modernidade

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Entende-se por contemporaneidade ou pós-modernidade o resultado das mudanças
ocorridas nas ciências, nas artes, nas culturas e formas de representação em curso desde a
segunda metade do séc. XX. Seu nascimento simbólico se deu no dia 06 de agosto de 1945,
quando os EUA explodiram a bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima, no Japão.

A designação de pós-modernidade – ou sociedade pós-industrial, sociedade de


consumo, sociedade capitalista etc. – vem vinculada às idéias de diferenciação dos modelos
referenciais, produtivos e culturais do que se convencionou chamar de Modernidade 9. É,
enfim, pautada pelas transformações oriundas da transição do capital competitivo para o
capital monopolista e das grandes inovações técnico-científicas.

A criação e difusão de novas formas de comunicação propiciaram a intensificação


desta configuração globalizada do capitalismo mundial e alteraram profundamente a política,
as identidades, as artes e o comportamento das populações que, em maior ou menor grau, são
submetidas à participação em um mundo interconectado, globalizado, uma aldeia global.

Num contexto em que a economia globaliza o capital (já mundializado) pela


sincronização temporal propiciada pelos novos meios de comunicação; em que o
bombardeamento dos meios de comunicação de massa, os mass media, sobretudo a televisão,
recriam o imaginário, estabelecem o fetiche do consumismo e segmentam a cidadania em
identidades consumidoras; em que a medicina, a farmacologia, as intervenções médico-
estéticas desenvolveram-se de forma assombrosa, dentre outros “progressos” técnico-
científicos; subsiste admiravelmente a miséria, as doenças da pobreza e da escassez, as
guerras, o genocídio e as fomes endêmicas.

Ainda nessa linha de análise, o estatuto da pós-modernidade pretende parecer


democratizador das informações, das descobertas, da facilitação da vida de quem tem livre
iniciativa eficaz; no entanto, a intercomunicação e a tendente homogeneização cultural são
profundamente desiguais no que diz respeito à sua universalização ou distribuição. O modo
através do qual circulam os bens materiais e os bens simbólicos são taxativamente
atravessados por uma perspectiva classista. A cada um cabe consumir os bens concretos ou
9
SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-moderno. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, Coleção “Primeiros Passos”, 1987.

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simbólicos que a gestão de sua própria vida foi capaz de proporcionar, considerando como
critérios valorativos dessa administração da vida: a eficiência e a responsabilidade por si.

Os valores capazes de produzir sensibilização pública e individual subsistentes não são


pautados pelo que se estabelecera como visão política macrocósmica ou estrutural, mas sim
por ações pontuais que visam à resolução dos problemas ora apresentados. A desconfiança
dos meios ditos tradicionais de luta política vão sendo pouco a pouco substituídos por
entidades organizadas sob a rubrica da intervenção da sociedade civil: institue-se a cultura das
ONGs e dos grupos interventivos da sociedade civil organizada.

A discussão da positividade ou não desse construto de luta política não é da alçada


deste trabalho, entretanto é essencial destacar que o ideário construído em torno destas
organizações passa a ressignificar a luta política sob a perspectiva da fragmentação ou
compartimentalização dos assuntos em pauta, melhor dizendo, deslocando o olhar público das
estruturas mais profundas a partir das quais as demandas e as lutas emergem. O cenário
político ganha novos atores, muitas vezes eficientes no seu fazer, contudo – e isso é digno de
nota – sua trajetória é quase exclusivamente financiada pelo Estado ou por grandes
corporações privadas.

6 Aposentadoria e Terceira Idade

17
Na história das políticas relacionadas ao trabalhador na modernidade, traçando um
curto painel, pode-se afirmar que no fim do século XIX, com vistas à contenção da expansão
dos movimentos socialistas, em pleno processo de expansão da industrialização da Prússia, o
primeiro-ministro Otto Von Bismarck, adotou algumas medidas obrigatórias de proteção
social (1815-1898): o seguro doença (1883); o seguro para acidentes de trabalho (1884); o
seguro invalidez e velhice (1889) e o seguro específico de condições de trabalho (1889-91).

O modelo adotado por Bismarck foi gradualmente sendo adotado por outros paises
industrializados, como a Inglaterra, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a França e os Estados
Unidos. Tal adoção se deveu, sem dúvida, às pressões exercidas pelo crescimento e
organização dos movimentos reivindicatórios liderados pela classe trabalhadora.

No princípio do séc. XX, enquanto a União Soviética se consolidava como um modelo


socialista e atraía o interesse das classes trabalhadoras, o individualismo liberal,
defensivamente, foi cedendo lugar a políticas públicas cada vez mais voltadas ao Bem-estar
social. Com o advento da Guerra Fria, consolidada após a Segunda Grande Guerra, e o temor
do fantasma socialista, os países capitalistas mais desenvolvidos incrementaram ainda mais as
reformas sociais que redundaram nas políticas protetivas social-democratas denominada de
Welfare State.

A velhice e a aposentadoria, na fase compreendida entre 1945 e 1960, estavam


basicamente ligadas à situação de pobreza. Afirma-nos DEBERT (2004, p.75) que

“A generalização do sistema de aposentadorias


teria dado uma identidade de condições aos idosos,
diferenciando-os das outras populações-alvo da
assistência social. Nesta fase, a questão debatida é
ainda a dos meios de subsistência dos
trabalhadores velhos, e o que se quer é preencher
as lacunas do sistema de previdência social,

18
acrescentando à aposentadoria outras formas de
assistência ao idoso.”

O Crescimento econômico dos países industrializados nas décadas de 1950 e 1960


levou a uma ampliação das camadas médias assalariadas, e, em conseqüência, a novos
padrões de aposentadoria. Dentre estes aposentados surge um contingente cada vez mais
jovem da população, redefinindo formas de consumo e o caráter das demandas políticas
relacionadas com a aposentadoria. (DEBERT, 2004)

A aposentadoria vai deixando de ser um marco a indicar a passagem para a velhice –


estigmatizada - ou uma forma de garantir a subsistência daqueles que, por causa da idade, não
estão mais em condições de realizar um trabalho produtivo. Trata-se, neste momento, de
“pensar na aposentadoria para um setor com níveis muito mais altos de aptidões, aspirações
e consumo” (DEBERT, 2004, p. 76)

É neste contexto que surge a designação “terceira idade”, forjada nas sociedades
ocidentais contemporâneas, na década de 197010, a fim de singularizar a etapa compreendida
entre a idade adulta e a velhice. Este conceito revestiu-se de uma série de práticas, instituições
e agentes especializados, visando à identificação e ao atendimento das necessidades desta
parte da população. Portanto, terceira idade é, neste sentido, uma designação opositiva ao
idoso estigmatizado e empobrecido, destinatário das aposentadorias públicas do Estado de
bem-estar. (DEBERT, 2004)

A terceira idade enseja uma nova linguagem pública:

“empenhada em alocar o tempo dos aposentados, é


ativa na desconstrução das idades cronológicas
como marcadores pertinentes de comportamentos e
estilos de vida. Uma parafernália de receitas
envolvendo técnicas de manutenção corporal,
10
A expressão terceira idade é cunhada na década de 1960, no entanto, ganha representatividade a partir dos anos
de 1970. (DEBERT, 2004)

19
comidas saudáveis, medicamentos, bailes e outras
formas de lazer é proposta, desestabilizando
expectativas e imagens tradicionais associadas a
homens e mulheres em estágios mais avançados da
vida. Meia-idade, terceira idade, aposentadoria
ativa não são interlúdios maduros entre a idade
adulta e a velhice; indicam, antes, estágios
propícios para a satisfação pessoal, o prazer, a
realização de sonhos adiados em outras etapas da
vida.” (DEBERT, 1996, p. 05)

Se na modernidade os estágios da vida foram definidos e, com o advento da


cronologização da vida, foram estabelecidas as fronteiras institucionais entre as idades,
definindo o dever-ser de cada uma destas fases; na pós-modernidade, vivencia-se um
movimento contrário. É o que Held (apud DEBERT, 2004) denomina de
“desinstitucionalização” ou “descronologização da vida”. Sua argumentação terá como base
as mudanças ocorridas no processo produtivo, no domínio da família e na configuração das
unidades domésticas.

Meyrowitz (apud DEBERT, 2004), por sua vez, tece considerações acerca do impacto
da mídia eletrônica no comportamento social. Aventa que a mídia tende a tornar integrados
mundos informacionais que eram, no dever-ser tecido na modernidade, considerados
estanques, impondo comportamentos novos e redefinindo comportamentos considerados
adequados a uma determinada faixa etária.

Moody (apud DEBERT, 2004), com a expressão “curso da vida pós-moderno”,


descreve a contemporaneidade como um contexto marcado pela relativização das normas
apropriadas a cada estágio da vida, indicando a emergência de uma sociedade em que a idade
passa a ser irrelevante.

Conforme dito anteriormente, o espaço da mídia na configuração das identidades e na


forja dos comportamentos na contemporaneidade é essencial. E, no que diz respeito à
periodização da vida, é bastante comum a veiculação midiática de formas de representar

20
comportamentos intercambiáveis entre as diversas faixas etárias e suas prévias expectativas
comportamentais.

Em particular, a representação midiática da velhice tende a inverter a representação,


até então habitual, de fase de perdas e inadaptações para período de ressignificação dos
estágios mais avançados da vida, que passam a ser tratados como momentos privilegiados
para novas conquistas guiadas pela busca do prazer e do consumo.

É digno de nota que à imagem da terceira idade, isto é, do envelhecimento bem


sucedido, não acompanham instrumentos capazes de enfrentar os problemas envolvidos na
perda de habilidades cognitivas e de controles físicos e emocionais comuns na velhice. Tais
fatores visibilizados foram essenciais para a estigmatização do velho, no entanto, são questões
reais e profundamente relevantes no que diz respeito à formulação de políticas públicas que
respeitem os direitos de cidadania desta parcela da população.

O pressuposto a partir do qual este trabalho se desenvolve é o de que a imagem


estereotipada que estigmatizou o velho de outrora vai sendo gradualmente redefinida por
outra forma estereotipada: a imagem do “velho jovem” ou o pertencente à terceira idade.
Disso decorre uma série de frustrações inevitáveis aos idosos de classes sociais mais baixas,
que são incapazes de consumir todo o aparato necessário para se tornar adequado às
exigências desta nova, bela, jovial e gratificante velhice.

Por outro lado, é preciso lembrar que inevitavelmente o corpo envelhecido apresentará
limitações e problemas - não há número relevante de idosos com idades mais avançadas que o
limite referenciado para idoso que não apresente estas naturais transformações - e este fato
biológico, independente de classe social, etnia, gênero e outros, é absolutamente escamoteado
nas veiculações da mídia para o público de terceira idade.

21
7 Reprivatização da Velhice

Diz-nos DEBERT (1997) que da articulação dos discursos gerontológicos, do público


mobilizado nos programas para a terceira idade e da mídia surge um conjunto de elaborações
simbólicas com o objetivo de reconstituir a velhice sob a perspectiva da responsabilidade
individual; essa autora nomeará esta construção de “reprivatização da velhice”.

A projeção da categoria terceira idade no imaginário público produz a idéia de que é


possível permanecer envelhecendo de forma a não alterar muito significativamente as
atividades comuns aos idosos mais jovens, que a doença – outrora vista como comum na
velhice – é o resultado da ignorância e do descuido com o próprio corpo, que o
empobrecimento é decorrente da incapacidade individual de administrar e poupar os
proventos ganhos ao longo da vida laboral, que a dependência do sistema público de
previdência é um peso para o Estado – que deveria se ocupar de utilizar os recursos públicos
no fomento da condição de empregabilidade dos mais jovens -, que o idoso empobrecido é um
fardo dispendioso para a família etc.

Em outras palavras, o sujeito da terceira idade é uma contraposição ao idoso ou ao


velho: se o indivíduo da terceira idade é cuidadoso com o corpo, ativo, capaz de consumir,
atrativo para a construção de mercados de consumo, adepto do lazer, independente e,
sobretudo, individualmente responsável pela sua fase de novas descobertas; o idoso ou o
velho é ignorante em relação ao seu corpo e sua mente, preguiçoso, descuidado, adoecido,
dispendioso, necessitado de cuidados etc.

Poucos quadros são tão prolíficos para a implementação de soluções, segundo a


ortodoxia neoliberal, inexoráveis: a flexibilização das relações de trabalho para possibilitar,
com o crescimento da formalidade barateada, a obtenção de recursos para o cuidado desta
parcela da população, o apoio ao crescimento dos fundos de pensão privados, a possível
privatização de parte ou da totalidade da previdência pública, a criação de postos de
subempregação de idosos por baixíssimos salários - no intuito de subsidiar as condições de
vida do grupo ou indivíduo que já suportou e sobreviveu e ainda pode sobreviver ao mercado
de trabalho etc.

22
Estabelece-se, em tese, um apascentamento gradual na idéia de desobrigação do
Estado na construção de políticas públicas sérias e efetivas voltadas para este grupo, pois é
evidenciado que não há - ou são muito difíceis - alternativas para o fato de que um
contingente maior de pessoas fora da (útil) idade de trabalhar impossibilita ou diminui a
capacidade financeira de construção política de alternativas para outros agrupamentos ou
minorias. O Estado terá de fazer, por exemplo, opções entre o conjunto de medidas médicas
visando ao combate da diarréia, do sarampo, da dengue, da desnutrição, tão comuns à
realidade do sistema de saúde brasileiro; e ao diabetes, alzheimer, AVCs, osteoporose e outras
doenças comuns ao envelhecimento.

O aparato midiático torna público o enorme sucesso das iniciativas voltadas para o
atendimento do público de terceira idade: como a rotina de exercícios físicos é positiva e
produtiva, como o revigoramento e a remodelação da estética corporal refundam padrões de
comportamento, como os processos de socialização destes programas são geradores de alegria
e bem estar, como o novo modelo de como se deve viver a velhice é mais positivo,
interessante e saudável; no entanto, não há menção aos mecanismos capazes de lidar com os
problemas reais e inevitáveis que decorrem da velhice mais avançada.

Boa parte dos profissionais da gerontologia, e, convém explicitar: quase a totalidade


dos que são apresentados pela mídia, em total acordo com os gestores financeiros da
burocracia estatal e com o mercado, propõe-se a instrumentalizar os indivíduos para o
combate ao envelhecimento enquanto deterioração e decadência, ou seja, forjando, de um
lado, uma cultura de cuidado e autopreservação do corpo: no sentido da diminuição dos custos
públicos da saúde, e de outro lado, inculcando valores de consumo relacionados à estética,
hedonismo, poder e sexualidade.

Há, evidentemente, os aspectos positivos em torno da construção, articulada pela


gerontologia, Estado, mídia (e mercado), desse novo dever-ser da velhice: a construção de
uma imagem individual e grupal menos ancorada em aspectos estigmatizantes, o fomento de
práticas mais saudáveis nos cuidados com o corpo e a mente, a visibilização pública dos
problemas – até então invisíveis e silenciados – dos mais idosos, a crítica às formas como a
questão da velhice é tratada sob o capitalismo, elaboração de estudos ocupados com a questão
da produção de políticas públicas relacionadas ao enorme crescimento demográfico das

23
populações mais velhas etc. No entanto, não se pode perder de vista o conteúdo relativamente
oculto destas construções sociais. Afinal, é a partir do reconhecimento dos seus elementos
formadores e da sua forma de desenvolvimento que se pode traçar alternativas para a lide com
tais edificações.

Por autopreservação corporal e cuidados estéticos é possível inferir o estabelecimento


da indústria do rejuvenescimento. Todo o tipo de cremes, próteses, cirurgias,
potencializadores físicos e sexuais plasmam uma realidade simbólica toda voltada para a idéia
de juventude, ainda que, neste caso, o público alvo seja idoso. Não importa aqui discutir se é
ou não normal a manutenção da vida sexual em idosos, ou se a preocupação com a estética é
ou não da alçada destes; contudo, é essencial entrever que tais atitudes materiais ou
simbólicas são plasmadas sob a perspectiva única de que estes conceitos e modos de viver são
típicos da juventude. E mais, que o paradigma constitutivo das identidades, sejam estas quais
forem, é o da juventude: o novo, o jovem sempre é melhor, mais bonito, mais fresco, é sempre
representativo de positividade e prestígio11.

Diz-nos STEPANSKY (1999, p. 137), acerca dos valores da pós-modernidade, que “O


mundo que é internalizado é o da juventude, do consumo, do descartável, do ritmo acelerado,
e da tecnologia.” E o mundo inventado para esta juventude é, indubitavelmente, classista,
consumista e exigente das características correlatas ao prestígio econômico-social e à estética.
Estas representações do imaginário condenam o idoso de classes sociais mais baixas à
sensação de não-pertencimento ao corpo social, de negligente consigo próprio e de tendente
ou afogado no isolamento social. O termo não-pertencimento foi cuidadosamente escolhido
para evitar a contradição da utilização da tão propalada exclusão: não é possível falar em
exclusão na medida em que a todo o momento afirmou-se que a construção deste ideário é
calcada na idéia de auto-responsabilização; disto decorre que tanto às agruras e infortúnios
pessoais, quanto aos ganhos e benefícios, corresponde um espaço social produzido pelo
próprio indivíduo. Melhor dizendo, segundo as representações em curso, o indivíduo ou o
grupo não foi excluído, plasmou o seu lugar devido na organização social.

8 O Brasil
11
É possível encontrar na mídia formas de publicização do prestígio de idosos, no entanto, este prestígio está
irremediavelmente ligado à riqueza e esta vinculada à segurança, conservadorismo, tradição e outros valores
constituintes do ideário anterior, mas ainda presentes nas construções ideais.

24
Segundo RIBEIRO (1995, p. 447), nunca houve no Brasil um conceito de povo,
englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos: “Nem mesmo o direito
elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar.” A primazia do lucro sobre a
necessidade é um imperativo das classes dominantes brasileiras desde a época em que o país
era regido como uma feitoria escravista composta, para o trabalho, de índios cativos
culturalmente – às vezes não só - estuprados e negros bestializados e coisificados importados
de África.

Uma das características mais marcantes da constituição do sistema produtivo


brasileiros é a enorme prosperidade empresarial, chegando a ser, às vezes, a maior do mundo,
e a extrema pobreza da população trabalhadora local. Ou seja, pouco houve, e em raros
momentos, a preocupação com a reprodução e a manutenção das condições de existência da
população trabalhadora brasileira.

A constituição da identidade do trabalhador brasileiro teve de ser plasmada sob a


perspectiva primeira da espoliação e da escravidão. Os trabalhos, quaisquer que fossem,
exceto os de administração, mando ou relacionados ao sacerdócio católico, eram
extremamente mal vistos e estigmatizados desde o processo de colonização até o princípio do
séc.XX: eram vistos como coisa menor, coisa de pobre, de inferior, de negro etc. A massa
trabalhadora era formada por um conglomerado multiétnico e se reproduzia sob intenso
processo de mestiçagem entre todos: dominadores brancos e as múltiplas etnias indígenas e
negras aqui presentes.

Essas várias etnias iniciais e essa nova massa de mulatos e caboclos lusofonizados –
melhor dizendo, falando língua-geral: mistura das línguas locais com o português – foram
forjando a brasilidade enquanto configuração étnica e, portanto, promovendo a integração
destes grupos na forma de um Estado-Nação.

25
O início, passível de verificação, das relações de produção no Brasil se dá com a
instalação do Governo-Geral, em 1548, quando começa a expandir-se rapidamente a cultura
açucareira. Esta se apóia no latifúndio e na mão-de-obra escrava e, simultaneamente,
configura, factual e ideologicamente, a sociedade patriarcal, representada pelo senhor-de-
engenho e pelo escravo, a casa-grande e a senzala. Essa configuração, em termos de ideário,
permanecerá indelével por todos os momentos da cultura brasileira até os dias atuais.

A presença do escravo africano traficado para o Brasil libertou, em grande parte, o


indígena das lides com a agricultura. Com a ocupação litorânea da cultura do açúcar e do
tabaco, a pecuária bovina foi sendo arrastada, junto com índios e mamelucos 12, para o interior
do país, sobretudo pelo norte-nordeste: na maioria das culturas indígenas locais, as mulheres
eram responsáveis pelas lides agrárias e os homens, pela caça, pesca, guerra etc., portanto,
infere-se daí que a escravização do índio para fins de agricultura configurava-se como mais
dificultosa por contradição com suas referências culturais.

O Brasil agrário, monocultor, latifundiário e escravista sobrevivia, para o grosso da


população fora dos engenhos, através de outras empresas: a jesuítica e a de subsistência. A
empresa jesuítica era produtora de diversos artigos para o mercado local e ultramarino, no
entanto, sua função principal era a destribalização e apascentamento da população local; e a
empresa, ou melhor, a microempresa de subsistência funcionou de forma complementar às
grandes empresas agroexportadora e, posteriormente, mineradora.

Diz-nos RIBEIRO (1995, p.177) que:

“Na realidade, competindo embora, essas três


formas de organização empresarial se conjugavam
para garantir, cada qual no desempenho de sua
função específica, a sobrevivência e o êxito do
empreendimento empresarial português nos
trópicos. As empresas escravistas integram o Brasil
nascente na economia mundial e asseguram a
prosperidade secular dos ricos, fazendo do Brasil,
12
Utilizar-se-á as formas mameluco para os mestiços entre brancos e índios e mulato para os mestiços entre
brancos e negros e entre índios e negros, indiscriminadamente.

26
para eles, um alto negócio. As missões jesuíticas
solaparam a resistência dos índios, contribuindo
decisivamente para a liquidação, a começar pelos
recolhidos às reduções, afinal entregues inermes a
seus exploradores. As empresas de subsistência
viabilizaram a sobrevivência de todos e
incorporaram os mestiços de europeus com índios
e com negros, plasmando o que viria a ser o grosso
do povo brasileiro.”

Pairava, ainda, sobre estas três empresas, uma quarta: “constituída pelo núcleo
portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação” (RIBEIRO,
1999, p.177). Este era o setor que predominava na economia colonial, o detentor dos maiores
lucros. Suas ocupações básicas eram intermediação comercial com a Europa, as lides com o
câmbio e, principalmente, o tráfico negreiro: a troca de mais da metade do açúcar e do ouro
coloniais por escravos africanos; o mais lucrativo de todos os negócios privados do Brasil de
então.

Em conjunto com as formas de empresa no Brasil coexistia - e fundamentava as


anteriores – a cúpula burocrático-administrativa, quase exclusivamente formada por
funcionários e administradores oriundos da metrópole, que regia a vida política, econômica,
social e judiciária da colônia.

A classe dominante brasileira, formada pelo empresariado, pela burocracia


metropolitana e pelos eclesiásticos, exerceu sua influência e seu poder como agentes de sua
própria prosperidade e a da metrópole, produzindo prolificamente mão-de-obra servil e
gestando a imposição, sob grande violência física e simbólica, de um tipo de identidade
cultural do trabalhador brasileiro.

Em função das rebeliões de escravos, das lutas abolicionistas de negros e de


contingente de brancos - influenciados tanto pelos ideais da Revolução Francesa e da franco-
maçonaria, quanto pelos interesses oriundos das formas produtivas geradas por ocasião da

27
Revolução Industrial inglesa -, e pelas pressões inglesas para a implementação de mão-de-
obra assalariada no país, que, em 1888, promulga-se a Lei Áurea, que com esse irônico nome,
oficializa o fim da escravidão negra no Brasil.

Esta abolição, dando alguma liberdade de ir e vir aos negros, produziu um inchaço
nas cidades do Rio de Janeiro e da Bahia, dentre outras menores, constituindo os núcleos
negros ou cidades negras, que produziram ou antecederam as favelas de hoje. É a cidade
tomando a configuração que subsistirá como o palco por excelência das transformações
sociais, políticas e culturais até hoje: dividida, classista, esquadrinhada, vigiada, retrato de
todas as relações sociais.

Nas décadas finais do séc. XIX, a crise de desemprego que assola a Europa manda 7
milhões de imigrantes para o Brasil; destes, 4,5 milhões se fixaram no Brasil. “Foram eles
que promoveram o primeiro surto de industrialização, que mais tarde se expandiria com a
industrialização substitutiva de importações.” (RIBEIRO, 1995, p. 194)

Coube aos negros libertos o desemprego ou o subemprego com características


similares às da escravidão, aos europeus imigrantes coube o papel de reconstituição
melhorada do modo produtivo brasileiro. Isto quer dizer que, em contraste com o negro, o
imigrante passa a ser valorizado como mão-de-obra melhor qualificada, donde, por sua vez, é
possível inferir a gênese das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, corroboradas
pelos suportes “científicos” de então, que aludiam à inferioridade do negro e do mestiço em
relação ao branco.

É digno de nota, no entanto, que à valorização da mão-de-obra do imigrante não


correspondeu o modo de tratamento dado a este trabalhador: o modelo produtivo brasileiro,
ainda que com significativas mudanças, permanecia assentado sob a perspectiva do trabalho
servil, com maiores ou menores níveis de violência e desrespeito de acordo com a raça do
sujeito ou do grupo em questão.

28
De igual forma, é importante salientar que com os imigrantes europeus não se
importaram apenas os modos produtivos mais eficazes, a melhor qualificação para o trabalho
etc.; mas, também, o anarquismo, o sindicalismo, o socialismo e todos os modelos de
organização política e/ou solidária produzidas na Europa daqueles tempos.

Enfim, a forja da identidade do trabalhador brasileiro vai se consubstanciando sob a


perspectiva do escravismo e do servilismo, conforme dito; mas, também sob as diferenças
raciais e étnicas; também sob o impacto das formas de luta já existentes e as trazidas pelo
imigrante europeu; e, sobretudo, pela enorme disposição das classes dirigentes de abafar ou
destruir qualquer manifestação contraditória aos seus interesses: a acumulação de altíssimos
lucros e a manutenção da mão-de-obra duplamente servil, pois que aos interesses destes e dos
mercados internacionais, já que subsistindo numa economia caracterizadamente dependente.

Tal quadro somente se altera de forma visível a partir do incremento da


industrialização brasileira e do estabelecimento das medidas protetivas instauradas na Era
Vargas. Essas modificações, resultantes do reflexo das políticas econômicas dos países mais
ricos articuladas ao projeto Varguista de estabelecimento do capitalismo de Estado no Brasil,
produzem um profundo impacto nas relações concretas e simbólicas no mundo da produção e
do trabalho.

Ao mesmo tempo em que se pode falar em conquistas sociais como resultado das lutas
travadas pelos trabalhadores brasileiros, como resultado do irremediável processo civilizatório
ou quaisquer outras explicações, até então, possíveis; é preciso, sobretudo, falar em
“concessão de direitos”. Subsiste no imaginário popular a idéia de que Vargas era
efetivamente o “pai dos pobres”, e que os direitos trabalhistas eram e são o exercício paterno
de concessão de direitos sociais. É, portanto, evidente a manutenção ideológica do exercício
das prerrogativas do poder patriarcal, tal como se encontrava, num universo menor, efetivado
pelo senhor de engenho.

O capitalismo de Estado da Era Vargas implementa a indústria de base brasileira: CSN,


Vale do Rio Doce, Petrobrás, Eletrobrás e menores; e, subseqüentemente, sob Juscelino

29
Kubitschek, desencadeia-se a industrialização substitutiva: toda sorte de incentivos, subsídios
e isenções foram oferecidas para a instalação de subsidiárias de empresas internacionais no
Brasil. Se, sob Vargas, os movimentos migratórios do campo para a cidade aumentaram
enormemente com o processo de industrialização; a partir de JK aumenta o número de
empregos fabris, o que produziu uma enorme corrente migratória dos trabalhadores expulsos
do campo, tanto pelo seu atraso, quanto por sua modernização.

Um contingente significativo destes trabalhadores oriundos dos processos migratórios


por ocasião da industrialização brasileira são, hoje, os aposentados citadinos da pós-
modernidade globalizada: sobreviventes do calvário migratório, testemunhas e, muitas vezes,
partícipes das lutas sindicais, do nascimento e crescimento dos movimentos sociais de
natureza vária, e das formas como as classes dirigentes nacionais conduziram de forma
vampiresca a política e a economia nacionais.

À guisa de esclarecimento, cumpre mencionar que o trabalhador e o aposentado


camponês não são aqui mencionados em função da óbvia relação diferenciada do seu estar-
no-mundo e os meios mais avançados de telecomunicações, informática, urbanização, bolsões
de miséria etc. Ou seja, há todo um contexto que os torna, por assim dizer, diferenciados dos
grupos aqui aludidos.

8.1 A Previdência Brasileira

Até o estabelecimento das medidas protetivas da Era Vargas: criação do Ministério do


Trabalho, da CLT etc., a aposentadoria era dependente das políticas instituídas em cada
empresa. Com o advento da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, as
Caixas de pecúlios das empresas vão sendo substituídas pelos Institutos (IAPAs), que
abarcavam categorias profissionais em todo o território nacional. No entanto, foi somente em
1966, com a criação do INPS, que o regime geral de aposentadorias é reunido numa única

30
instituição responsável, desvinculando, em função disso, a aposentadoria do escopo das
discussões e das lutas sindicais.

Em 1974, é criado o Ministério da Previdência Social, e este se torna pedra


fundamental do distanciamento dos sindicatos da questão da aposentadoria, na medida em
que, até então, entrevia-se a questão como pertencente às suas pautas de luta junto ao
Ministério do Trabalho, congregador institucional de tudo quanto se relacionasse ao mundo do
trabalho e do trabalhador. Melhor dizendo, se, à época, há um florescimento reorganizativo da
classe trabalhadora brasileira através de novas formas de luta sindical – tornado visível ao fim
desta década e ainda mais nos anos de 1980 benefícios -, com o deslocamento da previdência
para um locus específico, estabelece-se uma espécie de orfandade política relativa aos
assuntos da aposentadoria e da pensão.

Por outro lado, é digno de nota que o estabelecimento de um único espaço


congregador do assunto aposentadoria se revelará prolífico no sentido da construção unificada
dos pleitos relativos à aposentadoria. Tanto que, ao relativo silêncio de reivindicações desta
natureza na década de 198013, aflui surpreendentemente mobilizado, organizado e fortalecido
o movimento de aposentados conhecido como a luta dos “147%”, em 1991.

A luta para o conseguimento dos reajustes de aposentadorias e pensões defasadas


empreendida pelo movimento dos aposentados alçou-o à condição política de legítimo e
bastante representante da causa junto ao Estado, à classe política e à mídia; tornando-o
definitivamente desvinculado e autônomo em relação aos sindicatos. (DEBERT, 2004)

Todo o mérito do movimento deve ser dado aos aposentados e as suas formas
organizativas, no entanto, é digno de nota que uma maior sensibilidade, gestada na década de
1980, em relação aos idosos e suas questões foi essencial no que diz respeito à visibilidade e
ao acolhimento midiático. Dentre os benefícios, anteriormente mencionados, da construção da
terceira idade, sem dúvida alguma, foi essencial a reconstrução de um modelo de identificação
menos estigmatizado e dependente para os idosos naquele momento. Tal ideário permeia e

13
Vide as greves do ABC paulista, entre outras.

31
facilita a sensação de auto-suficiência do ator idoso, dificulta a normalização da formas de
apropriação do movimento por outros agrupamentos políticos etc.

Enfim, a história da aposentadoria brasileira – e da velhice, inclusive mais – é


extremamente recente, e é articulada a todo um conjunto de transformações pelo qual passou
o mundo do trabalho num país de economia dependente. Sendo, num primeiro momento, da
alçada das empresas privadas; organizada em torno de categorias profissionais nacionais,
configurando-se como importante moeda política nos primeiros momentos de real
industrialização, posteriormente; burocratizada, silenciada, estigmatizada e defasada, num
outro momento; renascida para o discurso político pelo movimento dos 147%, ainda num
outro momento; e, agora, configura-se, através da mídia e dos gestores financeiros do Estado,
como um problema de extrema gravidade para a manutenção da economia nacional.

A gestação da identidade do trabalhador brasileiro se foi – e vai - construindo a partir


da escravidão e do servilismo; das diferenças de desrespeito e maus-tratos pautadas pelas
diferenças raciais do trabalhador; pelas formas de organização e de luta de negros e índios,
num primeiro momento, da articulação entre estas e as novas formas importadas com os
imigrantes europeus, e dos efeitos destas – os receios, as respostas políticas e sociais - sobre
as classes dirigentes; pelas mudanças no mundo do trabalho produzidas pela industrialização,
pela modernização técnico-científica, pelos modelos de política econômica nacional e
internacional; e, fundamentalmente, pelo papel exercido pelos meios de comunicação de
massa.

Não é da alçada deste trabalho definir ou esboçar uma identidade do trabalhador e do


aposentado brasileiro, no entanto, os elementos historicamente constituidores dessas
identidades lhes são essenciais, sobretudo as imposições, os desrespeitos, a insensibilidade e a
descartabilidade destes agrupamentos e destes indivíduos, para que seja possível inferir qual o
caminho e as intenções previstos para a velhice, em especial a dos mais pobres, daqui para
adiante.

32
É evidente que o processo de construção de identidades é dinâmico e que as pessoas
não recebem passivamente tudo quanto lhes é imposto; é igualmente óbvio que existem
formas e espaços de resistência, de luta e de interlocução que se pautam pela oposição às
formas do pensamento hegemônico; mas, o que esse trabalho visa é a investigação da lógica
de construção do pensamento atualmente hegemônico e das práticas das classes dirigentes
brasileiras, além de seus possíveis efeitos sobre os aposentados, sobretudo, conforme
salientado, dos mais pobres. Por isso, não há motivação para deter-se nas construções de
partidos políticos cujos assuntos prioritários são trabalho e trabalhador, falar de importantes
sindicatos, grandes movimentos reivindicatórios ou quaisquer outras formas de luta e de
ganhos sociais populares; mas, sim, evidenciar as práticas costumeiras referidas às classes
populares quanto aos seus direitos.

33
9 A Mídia

No corpo deste trabalho foi salientado em diversos momentos o papel da mídia na


construção de identidades, na manutenção e na criação de formas de consumo, de estilos de
vida etc. Melhor dizendo, sob os adventos da pós-modernidade globalizada e do
neoliberalismo, tudo passa a girar em torno do consumo: o modo de produção e de circulação
de bens, os padrões de desigualdade no acesso aos bens materiais e simbólicos, a maneira
como se estruturaram as instituições da vida cotidiana (como a família, o lazer, os ambientes
urbanos, etc.); e estas estruturas de pensamento são quase exclusivamente tornadas visíveis
através da mídia.

Os meios de comunicação de massa são, inegavelmente, de importância capital no


contexto da constituição das noções de sujeito na sociedade contemporânea, e o são na
medida em que suas produções propõem valorativamente marcas identificadoras de diferenças
entre grupos – classes sociais, grupos etários, sexuais, raciais etc. – que devem ser salientadas
para que produtos, modelos ou estilos de ter, ser e/ou estar possam se disponibilizar simbólica
e materialmente no formato do que é julgado condizente com os desejos inculcados nos
consumidores, e não mais nos cidadãos. Verifica-se, portanto, os papéis político, ideológico e
econômico da chamada mídia.

Em função da finalidade proposta para este trabalho, não se discutirá questões


relacionadas à passividade ou não dos destinatários das enunciações midiáticas, urge, no
entanto, reconhecer que há choques culturais estabelecidos entre as veiculações midiáticas e
os processos identitários locais (cultura local) ou transversais (gênero, etnia, grupos etários
etc.), provocando, em função disso, a estratégia da depreensão dos caracteres convergentes
dos hábitos culturais e promoção global, nesta esteira, de novos hábitos de consumo entre
grupos específicos. Por isso, ORTIZ (apud CANCLINI, 1996) sugere a não utilização do
termo homogeneização, mas sim o de “nivelamento cultural”.

Padrões estéticos, considerados pelos produtores da mídia ou apresentados por seus


institutos de pesquisa como os mais adequados e aceitos, determinam, ou melhor, pautam as

34
imagens apresentadas e, por reiteração, transformam-na num dever-ser, num modelo a ser
seguido ou alcançado. Por outro lado, estabelece-se também o modelo paradigmático do que é
ruim, feio, desagradável, problemático, não passível de valorização. Ou seja, o que se pode
supor como vontade do público é, na verdade, a própria produção cultural de desejos e uma
construção imaginária sobre seu público consumidor paradigmático - no caso, os homens
brancos heterossexuais, vigorosos e viris, em idade economicamente ativa e abastada.

A mídia brasileira, seguindo os padrões mundiais, exerce uma função de extrema


importância no que diz respeito às formas de sociabilidade da maioria da população. Plasma e
propaga um modo de vida e de pensamento que transfere para o mercado a regulação das
questões coletivas, distribui os elementos simbólicos com os quais os sujeitos possam se
identificar; reificam imagens modelares através das quais seja possível se autoprojetar; enfim,
privatiza os espaços público e particular através de mecanismos cada vez mais sofisticados de
dominação cultural, política e econômica, que se tornaram verdadeiramente globais.

É digno de rememoração de que a quase totalidade da mídia é composta por empresas


privadas e, atualmente, grande parte destas empresas fazem parte de megaconglomerados
transnacionais das telecomunicações e da informática; e que suas atividades são, em grande
parte, pautadas pela interação entre os Estados – suas políticas econômicas e ideologias – e os
mercados e sua retórica – que é composto pelos anunciantes ou os subsidiadores ou, até
mesmo, pelos donos do veículo.

Esta retórica, fruto da história de seu desenvolvimento no contexto capitalista, visa à


construção de novos espaços de consumo, tornando este ato de consumir um sistema global
que plasma as relações dos indivíduos na pós-modernidade: parecendo democratizar o acesso
a escolhas estilísticas e existenciais, mas, na verdade oferece opções de consumo determinado
por variadas tecnologias e necessidades diversas do mercado.

Na medida em que tudo é produto e deve ser consumido: produtos (de fato), pessoas,
sexo, sentimentos, estilos, lazer, contato artístico, formas de conhecimento, religião, ciências
etc.; estabelece-se uma necessária relação das pessoas com a descartabilidade, com a

35
necessidade da novidade, com a obsolescência, com os valores do aqui-e-agora característicos
da era da informação.

Diz-nos THOMPSON (1998, p.28) que

“Ao alterar as condições espaço-temporais da


comunicação, o uso dos meios técnicos também
altera as condições de espaço e de tempo sob as
quais os indivíduos exercem o poder: tornam-se
capazes de agir e interagir à distância; podem
intervir e influenciar o curso dos acontecimentos
mais distantes no espaço e no tempo. O uso dos
meios técnicos dá aos indivíduos novas maneiras
de organizar e controla o espaço e o tempo, e
novas maneiras de usar o tempo e o espaço para os
próprios fins.”

Em grande parte, é nessa ação à distância que reside a força dos chamados mass-
media: a unilateralidade da sua produção, a sua enorme capacidade de repetir e de fixar as
informações e o fato de poder atingir um número quantitativamente relevante e plural de
pessoas, quando não a milhares ou milhões.

O contato permanente com os produtos de mídia, fato que caracteriza a hodiernidade,


produz no indivíduo uma enorme sensação de presente constante, na medida em que este é
destituído de tempo para a organização de seu passado e das suas perspectivas futuras. Os
elementos mais próximos com os quais é possível ressignificar ou projetar a existência
tendem a advir, em grande parte, dos modelos previamente apresentados, de forma
heterogênea e fragmentada, pelas mídias coma os quais o sujeito trave contato.

Um dos fatores atuais considerados como significativos para as formas de veiculação


midiática com vistas à formação de mercados de consumo é, sem dúvida alguma, o
envelhecimento populacional. No Brasil, por exemplo, dados da OMS apontam para o fato de
que em 2025 o Brasil será o sexto país do mundo em número de idosos – mais de 60 anos -,
podendo contabilizar para esta data aproximadamente 32 milhões de idosos. Esse fato é

36
produtivo no que diz respeito à criação de um novo mercado de consumo, ou seja, a criação e
a apresentação de uma série de produtos e serviços e a produção de um estilo de vida, de um
dever-ser ativo, saudável e compatível com as exigências dessa nova visão sobre este público
consumidor. Note-se: público consumidor, e não parcela da cidadania.

Compete à mídia a publicização e a vulgarização de um fato, de uma idéia ou de um


produto, ou seja, informar sobre algo. Informar passa a ser a estratégia por excelência de
todos os atores sociais com suficiente peso para tal. E, as informações veiculadas são produtos
de diversos discursos e ações sociais que incidem sobre um determinado assunto ou fato.

No caso da velhice, por exemplo, a articulação dos discursos gerontológicos, dos


discursos estatais e dos discursos de mercado geram um discurso pautado pelo
direcionamento dos atores hegemônicos deste mesmo discurso. Tem-se, como conseqüência,
uma série de fatores já abordados: os discursos gerontológicos que visam à desconstrução da
velhice – discursos da terceira idade – são de extrema utilidade para o Estado, na medida em
que tal discurso, conforme dito, produz no imaginário público a idéia de auto-
responsabilização do sujeito pela sua trajetória, desobrigando o Estado da implementação de
políticas de longo alcance social e, em conseqüência, onerosas; os discursos da criação de
mercado consumidor, que, para vender seus produtos, precisam criar formas de percepção de
mundo compatíveis com os produtos a serem consumidos: idosos juvenilizados e
consumidores também são úteis para a já mencionada perspectiva estatal; úteis, de igual
forma, são os discursos estigmatizadores da velhice pobre e decadente, pois além de produzir
na sociedade a idéia de sua extinção, produz também alto índice de atenção à espetaculização
da miséria e todas as conseqüências públicas de sua visibilidade ostensiva.

Os meios de comunicação de massa, enfim, têm atuado como o mais eficaz meio de
controle social, formação identitária, universalizador de idéias, formador de mercado
consumidor e, sobretudo, configura-se como o meio por excelência da difusão da ideologia
hegemônica como modelo sem alternativas.

37
Conclusão

A população brasileira, seguindo a tendência mundial, segue envelhecendo, e com isso


uma série de discursos e de ações foi desencadeada por essa nova realidade que se nos
afigurou.

A cronologização da vida se configurou, no mundo ocidental, como excelente


instrumento de racionalização e controle do indivíduo para os fins da nascente empresa
capitalista moderna, no entanto, com o advento da globalização e do aprofundamento de suas
características com o neoliberalismo, o mundo parece assistir a um processo de
descronologização ou de unietariedade, pautada sob a égide da juventude. (DEBERT, 2004)

Os discursos gerontológicos inicialmente desenvolveram-se sob a pauta da politização


da questão do idoso brasileiro, vitimizado muitas vezes pela pobreza e pelo abandono.
Decorre deste modelo discursivo tanto uma visibilização das reais condições da maioria dos
idosos brasileiros, quanto à estigmatização de uma condição social, econômica e existencial
difícil e empobrecida. Atualmente, no entanto, significativa parcela da gerontologia tem se
pautado pela desconstrução de seu objeto de intervenção: o idoso; construindo um ideário
segundo o qual é possível envelhecer sem grandes perdas e dores, desde que seja possível
consumir toda a sorte de produtos e serviços destinados ao rejuvenescimento e à manutenção
da saúde deste mesmo idoso e do futuro idoso.

Os saberes científicos ganharam, na modernidade, o status de suficiente procurador e


advogado das causas de seus objetos de pesquisa; este fato permanece presente nas estruturas
de pensamento forjadas na pós-modernidade. No caso em questão, a gerontologia e o conjunto
de saberes produzido por suas pesquisas são importantes, por vezes cruciais na definição das
políticas públicas e nos modelos de percepção social acerca de seus objetos de pesquisa: a
velhice e o velho.

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Da articulação entre os discursos gerontológicos, as estruturas administrativas estatais
e a mídia estabelece-se o que a antropóloga Guita Debert chama de Reprivatização da Velhice:
um conjunto de elaborações simbólicas com o objetivo de reconstituir a velhice sob a
perspectiva da responsabilidade individual, possibilitando a desoneração do Estado com
políticas públicas efetivas para essa parcela da população, e possibilitando, por outro lado, a
criação de um prolífico mercado para os idosos capazes de consumir.

No entanto, a maioria da população idosa brasileira é desprovida de recursos para o


consumo de qualquer coisa além do essencial para a própria subsistência – quando assim – e,
em função dos discursos de redução do Estado e de desoneração pública com gastos sociais,
esta parcela da população pode entrever que segmentos poderosos formularão e tentarão
implementar políticas desobrigativas ou redutoras dos gastos com aposentadoria e previdência
social.

Estabelece-se uma arena de luta política em que, de um lado encontram-se o G8, o


FMI, o Banco Mundial, os teóricos defensores das medidas neoliberais, poderosos setores
governistas e não-governistas, a grande mídia etc., e de outro lado há a articulação entre
trabalhadores e aposentados, grupos e movimentos somente de aposentados, sindicatos
nacionais, pequenos e médios grupos políticos da esquerda internacional e pequenos partidos
políticos nacionais.

A questão é pautada, na mídia jornalística, considerando a carestia e a onerosidade do


sistema previdenciário, as vantagens do controle inflacionário pela diminuição dos gastos
públicos – leia-se: sociais -, o déficit do sistema previdenciário, as vantagens advindas da
privatização de parte ou da totalidade do sistema previdenciário, os benefícios da obtenção de
previdência privada para os que podem pagar. Na mídia comercial, a publicização da
previdência privada é praticamente uma ameaça: previdência privada é igual a terceira ou
melhor idade, previdência pública é igual a velhice mal tratada, dependente do sistema
público de saúde, pobreza, onerosidade para Estado e família, desamparo etc.

39
Não há, como diz STEPANSKY (2000), nenhuma discussão acerca dos reais motivos
para a fragilização do sistema previdenciário público: má administração, fraudes, anistias
indevidas, desvios de recurso dos pecúlios do trabalhador urbano para assistência e
finalidades políticas – transferência do meio urbano para o meio rural, grandes obras de
engenharia nacional – etc. Nada há na mídia que sequer mencione qualquer um dos
quantitativamente relevantes estudos que apontam as causas encimadas como as primeiras e
principais responsáveis pela gradativa falência da previdência.

As soluções são as reformas privatizantes, remédios da cultura neoliberal; e os modos


de comportá-las socialmente é o povoamento do imaginário público com as imagens da
terceira idade feliz, consumidora e juvenilizada que a previdência privada parece tornar
possível.

STEPANSKY (2000, p.79) comenta que

“A tecnologia da informação espraia-se pela


sociedade e sedimenta os valores necessários à
feição neoliberal do modelo brasileiro de
globalização. A comunicação situa-se como ponte
das relações éticas, econômicas, estéticas e
cosmológicas. Os sistemas de comunicação e a
propaganda são resultantes, na modernidade, do
predomínio da tecnologia comunicacional e da
supremacia do mercado. A comunicação – assim
como a linguagem, as formações institucionais,
ideológicas e simbólicas – é parte de uma estrutura
social, política e econômica, elemento das relações
sociais e de poder. As novas tecnologias
comunicacionais se inserem nas estruturas de
poder existentes.”

Ora, numa sociedade profundamente hierarquizada como a nossa: em que a identidade


do trabalhador forjou-se sob a servidão, o mau-trato e o desrespeito; onde as primeiras formas
de valorização do trabalho e do trabalhador foram plasmadas sob o estatuto do favor

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neopatriarcal varguista, e inculcado através da universalização brasileira das transmissões
radiofônicas14; onde a gestão pública e a política dirigente sempre se fizeram sob a perspectiva
do negócio pessoal e rentável; onde a aposentação universalizada só se deu tardiamente e só
se fez assunto nacional em 1992 – os 147% -; onde a indústria e a produtividade se encontram
alquebradas etc. O que devem esperar das classes dirigentes os idosos pouco escolarizados
e/ou migrados do campo, ou empobrecidos, além das praças públicas, dos asilos e, com sorte
e condições, o auxílio da família? Que imagem da velhice real devem esperar das
representações da mídia?

A cultura dos movimentos pode pontualmente indicar que a questão da identidade


pode ser uma chave. A identidade foi constantemente mencionada neste trabalho; não a
identidade cultural, nacional etc., mas as identidades variáveis e flutuantes do trabalhador, do
aposentado e do idoso. Nos anos de 1960 aflui uma multiplicidade de movimentos e,
capitaneados pela diversidade de formas do movimento feminista, outros movimentos vão
estabelecendo identidades de luta: negro, homossexual, pacifista etc. Contudo, o que interessa
para a análise aqui proposta não é a definição da identidade de luta, mas o modo através do
qual esta se faz como moeda política.

Nas chamadas democracias representativas as identidades de luta são importantes no


que diz respeito às formas como estas são utilizadas por quaisquer atores sociais que a ela se
relacionem. Os idosos, os aposentados e os trabalhadores - de uma maneira geral ou
pertencentes a uma categoria profissional - podem estar ou não na pauta das discussões dos
governos e dos legisladores na medida em que suas organizações ou alcancem grande
visibilidade social – ocupando espaços ou aparecendo na grande mídia -, ou se organizem a
ponto de poderem negociar a sua capacidade de produção e negociação de votos.

O aparato midiático, nesse sentido, é essencial para a constituição e visibilidade destas


moedas identitárias possibilitadoras de pruridos de diálogo político em tempos de
globalização e neoliberalismo; no entanto, no caso dos idosos, assunto por excelência deste
trabalho, as formas de utilização política da mídia se dão no contexto da crítica à velhice real
14
“(...) Vargas soube utilizar o rádio como instrumento político e, quando se dirigia ao povo, usava todo o seu
carisma na frase inicial ‘Trabalhadores do Brasil’, que eletrizava as massas brasileiras.” PINTO, Virgílio N.
História, Cultura e Comunicação.

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e da gestação de uma velhice utópica, jovem, bela, feliz e inalcançável para a maioria dos
idosos brasileiros.

A antiga polarização do mundo entre capitalismo e socialismo foi, durante algum


tempo, o eixo através do qual se pensava os modelos e as implementações das políticas
sociais e econômicas: considerando, inclusive, as questões da velhice e da aposentadoria.
Com o declínio da URSS e com a campanha maciça e diária capitaneada pelos defensores do
neoliberalismo e pelos demais agrupamentos da direita e do grande capital mundial na mídia
internacional, os modelos divergentes e o próprio modelo socialista foram desacreditados e
visibilizados como anacronismo ou falta de racionalidade. Criando, portanto, uma hegemonia
ideológica jamais vista em qualquer outro momento histórico.

Para concluir, se faz necessária uma apreensão do envelhecimento de maneira mais


adequada à realidade desta categoria plural, ou seja, um processo comum a todos, marcado
por perdas e mudanças, porém propício a novas conquistas. É preciso também, desenvolver
uma visão crítica deste processo, para saber identificar os signos que retratam o
envelhecimento apenas como um novo mercado de consumo ou apenas como uma moeda de
troca política, pois a questão é bem mais complexa, o envelhecimento da população traz
implicações de grandes dimensões e problemáticas ligadas à economia, à política, às formas
de sociabilidade intergeracionais, e às formas de sobrevivência do idoso de hoje e o de
amanhã; pois ao
“Transformar os problemas da velhice em
responsabilidade individual é no contexto
brasileiro propor a redefinição de políticas
públicas muito precárias, é intensificar nossas
hierarquias sociais, é, em suma, recusar a
solidariedade entre gerações, o que é um
fundamento da vida social, da mesma forma que a
universalização da aposentadoria é um dos
fundamentos dos Estados modernos.”
(DEBERT, 1996)

É, enfim, do ponto de vista das classes dominantes, repetir o que sempre foi feito.

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