O capitalismo brasileiro não está somente atravessando uma crise econômica, como tantas outras do passado. O Brasil se transformou muito nos últimos trinta anos. Mas o capitalismo brasileiro entrou em decadência. Há mil modos de morrer e um só de nascer. Sabedoria popular portuguesa
1. A decadência de uma nação é um processo histórico
grave. São muitos e diferentes os processos que podem conduzir uma sociedade a mergulhar em declínio. Dentro da mesma época histórica, diferentes Estados vivem etapas históricas de regressão ou prosperidade, de empobrecimento ou de enriquecimento. No mercado mundial não ocorre somente um processo de competição entre empresas, mas também, entre Estados. E as posições relativas entre os Estados no sistema de poder se desloca, oscila, varia. Para que alguns Estados possam se fortalecer, outros devem enfraquecer.
A hipótese destas teses é que o capitalismo brasileiro não
está somente atravessando uma crise econômica, como tantas outras do passado. O Brasil se transformou muito nos últimos trinta anos. Mas o capitalismo brasileiro entrou em decadência. Aconteceram, neste intervalo de uma geração, fases mais intensas de declínio, como a década perdida dos anos oitenta, e fases de recuperação, como a partir da segunda metade da primeira década do século XXI. Mas a tendência histórica não foi interrompida depois que se encerrou a etapa dinâmica de transição do mundo agrário para o mundo urbano em 1980, quando o Brasil foi o primeiro destino do investimento estrangeiro entre as nações da periferia, e duplicava o seu PIB a cada década. A classe dominante já se deu conta da gravidade do impasse, e essa foi uma das determinações que explicam o impeachment de 2016. A burguesia abraçou nos últimos dois anos um novo projeto estratégico: a subversão do pacto social estabelecido nos últimos trinta anos, desde o fim da ditadura militar, o intervalo mais longo de regime democrático-eleitoral da nossa história. Esse pacto passou pelo reconhecimento de direitos como a Previdência, o SUS e a universalização do acesso à educação básica, entre outros. O choque fiscal fixado na EC-95 do teto dos gastos é uma expressão trágica de um projeto que tem como objetivo central aproveitar a oportunidade da mudança do posicionamento dos EUA diante da China. A burguesia brasileira quer disputar uma parcela, qualitativamente, superior dos investimentos disponíveis no mercado mundial para alavancar taxas de crescimento mais elevadas. Esse projeto está no centro da disputa das eleições gerais de 2018. O surgimento de uma extrema direita com peso eleitoral de massas, pela primeira vez depois do fim da ditadura militar, é a expressão política mais desconcertante e perigosa da crise.
2. A desaceleração do crescimento médio anual, desde
1980, de taxas em torno de 7%, para taxas inferiores a 3%, e a estagnação econômica desde 2014 são variáveis que devem ser consideradas. Os dados oficiais do IBGE já apontam para mais de 13 milhões de desempregados. Uma recessão prolongada como a dos últimos quatro anos não é suficiente para concluir que o capitalismo brasileiro entrou em decadência. No entanto, se considerarmos que, desde 1980, a renda per capita permanece, essencialmente, a mesma, encontramos um indicador que merece ser levado a sério, porque, ainda que indiretamente, sugere o nível de produtividade do país. Além da variação da renda per capita, outros fatores são necessários para estabelecer um modelo teórico sólido de avaliação da tendência à decadência. O lugar de cada país periférico no sistema internacional de Estados na etapa histórica do pós-guerra, entre 1945/1989 dependeu de, pelo menos, quatro variáveis complexas:(a) sua inserção histórica nas etapas anteriores. Ou seja, a posição que ocupou em um sistema extremamente hierarquizado e rígido: afinal nos últimos 150 anos somente um país, o Japão, foi incorporado ao centro do sistema, mas somente depois de três guerras (contra a Rússia, a China e a Segunda Guerra Mundial), e ainda assim na condição de imperialismo desarmado. E todos os países coloniais, semicoloniais e dependentes que ascenderam em sua inserção, como Cuba, só o fizeram depois de revoluções que permitiram conquistar maior independência. O Brasil deixou de ser colônia de Portugal, para ser semicolônia inglesa durante um século e, desde o fim da última guerra mundial é uma nação dependente, uma semicolônia dos EUA. A tendência dominante, na atual conjuntura, é uma acentuação da dependência em relação a Washington, apesar das reservas de US$380 bilhões, uma herança transitória da inversão favorável das relações de troca para economias exportadoras de commodities entre 2004/14. Nenhuma fração da classe dominante brasileira está, todavia, disposta a desafiar esta subordinação. A entrega da exploração do pré-sal às corporações estrangeiras, e as privatizações de setores estratégicos são uma demonstração desta impotência estratégica.
(b) a dimensão de sua economia e das relações sociais.
Ou seja, os estoques de capital acumulado; a capacidade de ter soberania monetária; os recursos naturais – como o território, as reservas de terras agriculturáveis, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc; e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural e científico da nação – assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria; ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial. O Brasil é um país continental e tem mais de 200 milhões de habitantes, e um PIB estimado em US$2 trilhões, porém sofre uma taxa de desigualdade social que só pode ser comparada a países da África subsaariana. E permanece um país importador de capitais: sem a entrada de um IED de mais de US$70 bilhões por ano teria um déficit crônico no balanço de pagamentos, seu histórico calcanhar de Aquiles. A dinâmica da industrialização se perdeu desde os anos oitenta. Afirmou-se uma reprimarização da sua pauta de exportações. A dimensão do seu mercado interno de consumidores de bens duráveis, que subiu de 25 milhões para 40 milhões vem encolhendo. A elevação da escolaridade média de menos de 4 anos, em 1980, para menos de 8 anos em 2017 foi, dramaticamente, lenta. Tão grave quanto, 5% da população economicamente ativa foi embora do país, uma emigração inusitada em um país que foi beneficiado pela imigração durante gerações. Ao mesmo tempo, surgiram organizações criminosas com a dimensão de grandes empresas, a população carcerária disparou para 700.000, e a taxa de homicídios superou os 30 para cada 100.000 pessoas. (c) a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra. O Brasil perdeu posições relativas no mundo e na América do Sul. A manutenção senil de níveis absurdos de desigualdade social, muito mais elevados que os vizinhos do Cone Sul, mas compensados, na etapa anterior de crescimento acelerado, pela diminuição da pobreza, associada a um regime democrático eleitoral longevo, pela primeira vez em sua história, explicam a instabilidade político-social crônica. A mobilidade social absoluta e relativa decaiu; a participação dos mais pobres na distribuição pessoal e funcional da renda regrediu; e os níveis de concentração de riqueza entre os 1% mais ricos e, em especial, entre os 0,1% aumentaram. (d) as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que faz parte, ou seja, sua rede de coalizão. A burguesia brasileira, sob pressão norte-americana, não conseguiu sequer transformar o Mercosul, um Bloco tendo como eixo uma aliança com a Argentina, em uma União Aduaneira. O pré-sal abria a possibilidade de uma associação com a Venezuela que foi, também, sumariamente, descartada.
3. Estes são os quatro critérios para aferir a posição relativa
de cada nação no mundo: história, economia, política e relações internacionais. Poucos países da América Latina escaparam a esta tendência à decadência, depois dos anos 80 do século passado. O Brasil não foi nem a nação mais atingida, nem a mais protegida. O lugar de cada Estado no sistema internacional dependeu, antes de tudo, de sua inserção no mercado mundial, ou seja, de seu lugar na divisão internacional do trabalho. No, entanto, embora seja decisiva, a economia não é a única variável que deve ser considerada. O Peru sangrou com os 70.000 mortos da guerra contra o Sendero Luminoso, e o deslocamento de três milhões de jovens que fugiram das serras para Lima. O Uruguai estagnou com a emigração em massa da juventude. A Argentina viveu o horror da ditadura militar entre 1976/83, a guerra das Malvinas, a hiper-inflação, a recolonização nos anos noventa, e uma situação revolucionária interrompida em 2002. A Colômbia sofreu as sequelas da guerrilha e do narco- tráfico durante um quarto de século. O Chile viveu a tragédia da ditadura de Pinochet e uma transição para o regime de democracia eleitoral pactuado de cima para baixo sem ruptura democrática. A Venezuela viu as forças liberadas pelo triunfo revolucionário de 2002, contra a tentativa de golpe de Estado, se dispersarem, e a reorganização da burguesia apoiada na classe média abriu o caminho para uma contrarrevolução permanente, que ainda não conseguiu derrubar o governo, mas produziu uma situação de caos social, como emigração em grande escala.As mudanças de lugar dos países no mercado mundial foram, historicamente, muito mais dinâmicas que a sua localização no sistema de Estados. A economia, ao contrário da aparência do fenômeno, é mais plástica e flexível à mudança do que a política, porque a inércia prevalece com mais força nas relações de poder. O mais importante é sublinhar, portanto, que o sistema de Estados demonstrou imensa rigidez histórica. Isso não impediu que ocorressem alterações quantitativas no lugar respectivo de alguns Estados. Mas realça que as qualitativas, entre países que estavam na periferia, como a ascensão da China, passaram a ser muito raras. Excepcionais.
4. Nenhum Estado se emancipou da dependência
econômica, e conquistou independência política, nos últimos 150 anos, sem guerra ou revolução. A elevação da China à condição de protoimperialismo, após a restauração capitalista, é a primeira experiência histórica de um Estado que saiu da condição periférica sem guerra. Não obstante, a independência política por si só não emancipa um Estado da condição periférica no mercado mundial. Os dois processos têm relativa autonomia. A imensa maioria dos duzentos Estados que estão presentes na ONU são ex-colônias, e permaneceram dependentes, mas os graus de sua vulnerabilidade externa são diferentes, desiguais, variados. Embora todas as nações dependentes estejam na periferia as diferenças entre elas não são irrelevantes. Existem variados tipos de semicolônias. E nem todos os Estados na periferia são semicolônias. Não há plena correspondência entre a presença no mercado mundial, e o lugar no sistema de Estados. Há mediações, graduações, variações. Alguns países são, economicamente, atrasados e dependentes, mas não estão, politicamente, subordinados à ordem imperialista. Essa é a situação do Irã, por exemplo, um Estado independente. Todas as semicolônias são, na forma, politicamente, independentes, mas algumas estão até sob ocupação militar estrangeira e são, portanto, protetorados de uma potência, como o Iraque e o Afeganistão, na relação com os EUA. Líbia, Somália e, em outra perspectiva, Sudão e Líbano, por exemplo, são países em que o Estado nacional foi, parcialmente, deslocado, ou seja, não detém plena soberania sobre seu território. A Síria vive, dramaticamente, a degradação de uma revolução em guerra civil há cinco anos. Ainda há enclaves como o Panamá, na América Central, as Malvinas no Atlântico Sul, Gibraltar na Espanha, ou Taiwan, na China, ou como foram, até quinze anos atrás, Hong-Kong e Macau. Entre as semicolônias algumas têm um estatuto, especialmente, privilegiado, embora diferenciado entre si, por variadas razões, como o México, Turquia ou Coréia do Sul.
5. Qual é o lugar do Brasil? A hipótese destas teses é que o
Brasil é um híbrido histórico. Singular porque atípico na América do Sul, o Brasil deve ser compreendido como uma semicolônia privilegiada e, ao mesmo tempo, como submetrópole. A chave de interpretação do conceito deve ser procurada na ideia de síntese entre semicolônia e submetrópole. Ou de síntese entre a condição de dependência econômica, limitada pela necessidade de importação de capitais, e a posição subimperialista de potência regional. Um amálgama peculiar que só o desenvolvimento desigual e combinado poderia elucidar. É um país dependente, ou uma semicolônia privilegiada porque, apesar das dimensões de sua economia, permanece um país atrasado em toda a linha. Sempre dependeu da importação de capitais e tecnologia, e tem uma burguesia resignada a um papel subordinado a Washington no sistema de Estados, entre outros muitos fatores. Não obstante é um país dependente e periférico muito especial, privilegiado. Tem um dos maiores mercados internos de consumo de bens duráveis do hemisfério sul, tem sido há mais de meio século um dos cinco maiores destinos de investimentos, e a acumulação de capitais ganhou escala, de tal forma que se formou uma burguesia interna.
6. Mas não temos uma burguesia somente compradora.
Essa inserção se expressou ao longo de décadas de distintas formas. Quando da crise da superinflação provocada pela inadimplência da dívida externa, por exemplo, ao contrário de muitos vizinhos, sua economia nunca foi, plenamente, dolarizada. O Brasil é uma submetrópole, porque o gigantismo da economia brasileira ofereceu dimensão e projetou presença de algumas grandes empresas nos mercados de países vizinhos da América do Sul transformando-se, também, em plataforma de exportação de capitais e serviços. Mas não é um país imperialista, porque sua pujança econômica não se traduziu em domínio político: o projeto do Mercosul garantiu superávits comerciais, porém permaneceu, politicamente, estéril e acéfalo. O hibridismo não é uma simples sobreposição de estatutos distintos, é um fenômeno diferente. O tema é discutido no mercado, na ONU e na academia e foram elaboradas fórmulas e modelos como, por exemplo, países “de renda média” e “emergentes”. Outras tradições marxistas conceituaram esta peculiaridade como subimperialista, ou economia associada capital-imperialista periférica.
7. O lugar do Brasil no mercado mundial não teve
correspondência direta com seu papel no sistema internacional de Estados. O Brasil obteve um lugar no mercado mundial superior à sua presença no sistema de Estados. No Brasil, a força política da dominação imperialista teria sido sempre maior do que a vulnerabilidade econômica. Essa assimetria ainda não diminuiu. Não nos deve surpreender, portanto, que a crise continental da dívida externa e a hiperinflação, nos anos oitenta, tenham sido muito mais acentuadas na Argentina do que no Brasil. O Brasil era, somente, uma semicolônia até o final da segunda Guerra Mundial. O processo de hibridização ficou mais claro a partir dos anos setenta, quando empresas de origem brasileira começaram a ganhar a dimensão de multinacionais. Algumas eram, então, estatais, como a Petrobrás, Vale do Rio Doce, Banco do Brasil, outras eram privadas, como a Gerdau, Odebrecht, Andrade-Gutierres, Itaú e Bradesco. Não podemos diminuir, mais recentemente, o peso de empresas agropecuárias e fundos de investimentos. Esta caracterização de híbrido admite que ocorreram oscilações quantitativas que levaram a reposicionamentos. Qual foi a dinâmica? Em algumas fases aumentou a semicolonização, e em outras diminuíram as vulnerabilidades externas, e acentuou-se o papel de submetrópole. O desafio da análise é identificar estas tendências e contratendências e, finalmente, confirmar se as variações foram somente quantitativas, ou se aconteceu alguma mudança qualitativa. Defenderemos que as oscilações foram, até o momento, quantitativas. O gráfico abaixo ilustra as oscilações, em escala secular, do peso da participação Brasil na economia mundial:
7. Nos anos noventa do século XX, as tendências
recolonizadoras avançaram e o país esteve seriamente ameaçado pelo projeto da ALCA. Na primeira década do século XXI inverteu-se a tendência anterior: aumentou o peso do Brasil em sua área de influência, e agigantou-se a acumulação de reservas. Finalmente, o Brasil não foi nem reduzido a uma reversão neocolonial, nem se transformou em um país imperialista. 8. O Brasil tem muitas peculiaridades. Ao contrário dos vizinhos do Cone Sul foi uma sociedade, majoritária e tardiamente, escravista, com sequelas irreversíveis até o presente. Agrária até os anos trinta do século XX tinha, todavia, duas cidades macrocéfalas, entre as maiores e mais dinâmicas do mundo, São Paulo e Rio de Janeiro, desproporcionais quando considerado o interior bárbaro e semidesabitado. Esta inserção como híbrido histórico se explica por muitos fatores: a elevada rentabilidade dos investimentos em um país que realizou, tardia, mas muito rapidamente, a urbanização e industrialização; a dimensão de seu PIB; a dimensão de seu mercado interno de consumo de bens duráveis; a dimensão de seus recursos naturais, como a capacidade de ser o maior produtor mundial de grãos e de diversos minérios; etc. A agropecuária tem elevados níveis de produtividade, entre os mais competitivos do mundo, todavia o que surpreende é o gigantismo e enorme concentração de seu proletariado – mais de 60 milhões de pessoas – e acima de 86% em centros urbanos, em vinte cidades com um milhão ou mais de pessoas. A PEA (população economicamente ativa), ou seja, a população com mais de 14 anos, é estimada em 105 milhões. A população ocupada, no 1º trimestre de 2016, estimada em 90,6 milhões de pessoas, era composta por 67,9% de empregados, 4,1% de empregadores, 25,6% de trabalhadores por conta própria e 2,4% de trabalhadores familiares auxiliares. Segundo a metodologia da PNAD Contínua do IBGE, 40% dos brasileiros em idade de trabalho foram classificados como fora da força de trabalho, ou seja, não estavam ocupadas nem desocupadas (não procuravam emprego). Os desempregados estão estimados, pelos critérios que são padrão internacional, em 12 milhões, acima de 10% da PEA, o que exerce uma pressão, entre outros fatores, como a desvalorização do real e a inflação, sobre o salário médio que perdeu, abruptamente, em torno de 20% de seu valor real em comparação com 2013.[1] Mais da metade da população com 15 anos ou mais (52,6%) não tinha concluído o ensino fundamental, e pouco mais de um quarto havia concluído pelo menos o ensino médio (26,1%). Pelo menos um em cada quatro brasileiros ainda são semiletrados. A escolaridade média é inferior a oito anos.
9. O ponto de partida de entendimento do que é o
capitalismo periférico no Brasil é o reconhecimento de que ainda é um país muito atrasado. A pobreza extrema diminuiu em relação a décadas passadas, mas a iniquidade social permanece em níveis escandalosos. Segundo o PNUD, o Brasil possui o maior índice de desemprego entre a população mais jovem: 30,5%. No Brasil, na faixa de jovens de até 24 anos, 24,8% destes não trabalham e não estudam. No Uruguai, esse índice é de 18,7% e na Argentina, 19,7%. O atraso e a desigualdade social se mantêm em patamares absurdos, quando conferidos, em contraste, com os países vizinhos. A Argentina está em 47º lugar entre 188 nações, com um IDH de 0,825. O Brasil está na posição 79º com 0,759[2]. O Brasil é um laboratório histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Uma união do obsoleto e do moderno, um amálgama de formas arcaicas e contemporâneas. Insere-se no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole regional. O Brasil foi e permanece, sobretudo, uma sociedade muito injusta. A chave de uma interpretação marxista do Brasil é a resposta ao tema da principal peculiaridade nacional: a desigualdade social extrema. Todas as nações capitalistas, no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade está aumentando desde a década de oitenta[3]. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade anacrônica. Os graus de desigualdade social foram sempre tão, desproporcionalmente, elevados, quando comparados com as nações vizinhas, como Argentina, ou Uruguai. Por quê? A hipótese destas teses é que este padrão de desigualdade social foi funcional para a acumulação capitalista no Brasil. A super exploração do trabalho permitiu a extração de taxas de mais valia, excepcionalmente, elevadas. Fizeram-no porque podiam. A redução da pobreza absoluta através de taxas altas de crescimento econômico manteve graus de coesão social suficientes para a manutenção da dominação político- social, mesmo com níveis de desigualdade social anacrônicos, historicamente. Aqueles na esquerda brasileira que defendem uma estratégia de reformas reguladores do capitalismo devem ser confrontados com este dilema da história. Se a classe dominante não aceitou uma negociação consistente e duradoura de reformas, quando o seu capitalismo periférico ainda tinha intenso dinamismo, por que aceitaria essa pactuação agora que esse impulso histórico se perdeu, e se abriu uma etapa de decadência?
10. A obra histórica mais importante do capitalismo foi
impulsionar a formação do mercado mundial liberando a aceleração de forças produtivas, até então, inimagináveis. A humanidade estava ainda dividida em civilizações autárquicas até o século XV. Na Europa, no Oriente Médio, na Índia, na China, no planalto do México, e na cordilheira dos Andes, existiam civilizações isoladas e, essencialmente, fechadas. Os contatos, quando existiam, eram tênues e irregulares. Algumas nem sabiam da existência de outras. Ao estimular a crescente integração de um mercado mundial que foi se estendendo até à última fronteira, uma das tendências mais poderosas do desenvolvimento do capitalismo foi fomentar, também, em processo que consumiu séculos, a constituição de um sistema internacional de Estados. O nome deste sistema é ordem mundial imperialista. Esta ordem é um obstáculo histórico reacionário. Esta ordem mundial quase destruiu a vida civilizada em duas guerras mundiais. O capitalismo já demonstrou, portanto, que não pode unificar a humanidade. Mas esta tendência à unificação da humanidade é somente uma possibilidade. Possibilidade é a forma como se manifestam as leis da história. O nome dessa tendência é a unificação da civilização humana sob novas relações sociais, em que a crescente anarquia capitalista seja substituída pelo planejamento da vida social sob o controle da maioria produtora, portanto, o socialismo. Existem, contudo, contra-tendências poderosas. Elas ameaçam a destruição da civilização, seja através de guerras apocalípticas, seja através de catástrofes ambientais. A permanência do capitalismo é um obstáculo intransponível. Ele terá que ser derrotado para que a vida civilizada possa prevalecer.
[1] Segundo o IBGE, a população desocupada no Brasil
chegou a 11,8 milhões de pessoas em julho. No acumulado nos 7 primeiros meses de 2016, o país perdeu 623 mil empregos formais. Com isso, o desemprego no Brasil é o 7º maior do mundo em termos percentuais, junto com a Itália. http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/08/desemprego-no- brasil-e-o-7-maior-do-mundo-em-ranking-com-51-paises.html Consulta em 13/12/2016 [2] A comparação dos IDH’s (Índice de Desenvolvimento Humano) publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) é uma forma, ainda que parcial, de aferir esta disparidade. O IDH combina três indicadores: expectativa de vida ao nascer; anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade; e PIB (PPC) per capita, considerada a paridade do poder de compra. Os quatro primeiros são Noruega, Austrália, Suíça e Dinamarca, em ordem decrescente, com variações de 0,944 a 0,923. O Brasil está atrás, por exemplo, de: em 73º Sri Lanka, 71º Venezuela, 69º Irã, 67º Líbano empatado com Cuba, 62º Malásia, 59º Bulgária, 56º Cazaquistão, 52º Uruguai empatado com a Romênia e em 50º a Bielorrússia. No Brasil, em 2016, a expectativa de vida ao nascer era de 75,5 anos. A renda per capita média mensal é um indicador que considera a hipotética divisão do PIB por toda a população, incluindo os inativos, portanto, as crianças e jovens e os idosos. Em 2015, à escala nacional chegou a R$ 1.113, variando entre os R$ 2.252 do Distrito Federal – o maior valor em todo o país – e os R$ 509 do Maranhão, o de menor peso. Pela ordem, aparece São Paulo, a segunda maior renda per capita do país (R$ 1.482); Rio Grande do Sul (R$ 1.435); Santa Catarina (R$ 1.368); Rio de Janeiro (R$ 1.285); Paraná (R$ 1.241); e Minas Gerais (R$ 1.128). Estes dados são os de 2015 e remetem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. Os dados mais atualizados sobre escolaridade média foram divulgados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em 2016, e informam que 44,17% do eleitorado não tinha concluído o ensino fundamental, os eleitores com ensino superior, completo ou incompleto, respondem por 10,7% e os que possuem o ensino médio, completo ou incompleto, são 38%. http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr15_overview_pt.pdf http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-02/ibge- renda-capita-media-do-brasileiro-atinge-r-1113-em-2015 https://eleicoes.uol.com.br/2016/noticias/2016/07/26/aumenta- escolaridade-do-eleitorado-em-2016-diz-tse.htm Consulta em 13/01/2017. [3] PIKKETY, Thomas. O Capital no século XXI. Intrínseca. Rio de Janeiro. 2014. http://www.intrinseca.com.br/upload/livros/1oCap-OCapital.pdf O livro de Piketty, de inspiração econômica neokeynesiana, e política socialdemocrata, apresenta um extraordinário volume de dados sobre o papel da herança na perpetuação da riqueza ao longo dos últimos cem anos à escala mundial. As séries decenais confirmam, de maneira irrefutável que, a partir dos anos oitenta do século passado, a tendência de aumento da desigualdade social se aproxima do padrão anterior à I Guerra Mundial. Consulta em 12/01/2017.