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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJ

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


INSTITUTO DE LETRAS
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Acerca de A causa Secreta

Proposta de trabalho do Professor Dr. Júlio França

Aluno: Sandro Félix de Almeida

RIO DE JANEIRO
2015
Acerca de A causa secreta
O presente trabalho intenta propor uma leitura comentada do conto A causa
secreta, de Machado de Assis, apontando nele o que o teórico Júlio França (2015 1)
chama de visão “sombria” ou “visão de mundo desencantada, pessimista e negativa do
espaço e do tempo”: a algo imprevista e aparentemente paradoxal influência do gótico
na literatura realista brasileira. Esse autor, referindo-se aos elementos comuns entre as
poéticas realistas brasileiras e a ficção gótica, destaca cinco elementos 2, que define
como fundamentais nesta relação. Nessa esteira, empreender-se-á a leitura do conto
usando como referente apenas um dos conceitos apontados por esse pensador, a saber,
“a caracterização de personagens como monstruosidades, por conta da própria natureza
humana ou psicopatologias”, pois o escopo e a extensão deste trabalho assim exigem.

Os procedimentos utilizados na visão de mundo que produz a estética gótica


remetem ao que é costumeiramente entendido como antirrealista, sobretudo porque mais
reconhecidos nos seus aspectos ligados ao sobrenatural; no entanto, ainda segundo
França, há a linhagem temática e estética do gótico iniciada por Ann Radcliffe , na qual
“(...) o elemento sobrenatural é subjugado pela razão, e os atos humanos são a causa dos
verdadeiros horrores” (Idem, p. 1), tronco capaz de estabelecer relações mais profícuas
com a literatura brasileira de matiz realista.

O conto de Machado, em síntese, apresenta os três personagens principais logo


no início e, por serem dois homens e uma mulher, parece querer suscitar no leitor a ideia
de que se trata de uma trama de triângulo amoroso em cujo desfecho pressupõe-se uma
tragédia, pois se anuncia ali que os personagens já estão mortos e que tal história deve
ser contada sem rebuço, sem hipocrisia, sem vergonhas. O narrador propõe a cena
inicial de maneira tensa, pois se abstém de detalhar tudo o que não seja o
comportamento possivelmente apreensivo ou aperreado dos três personagens. Em
seguida, vai fornecendo pistas das personalidades dos personagens.

1
FRANÇA, Júlio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In: CHIARA, A. e
ROCHA, F.C.D. (orgs.). Literatura Brasileira em Foco VI; em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa
Doze, 2015. (PP 133-146).
2
Um dos conceitos está citado no texto e os outros quatro são: a construção de espaços narrativos ,
exóticos ou familiares, que são descritos como loci horribiles; a relação fantasmagórica com o passado,
que ressurge para assombrar o presente; e o “desenvolvimento de enredos que exploram, tanto no plano
da diegese quanto no da recepção, efeitos melodramáticos e emocionais”; e a utilização contínua de
campos semânticos relacionados à morte, à morbidez e à degeneração física e mental.
O narrador volta no tempo para contar os dois primeiros encontros entre os
personagens masculinos, explicando que, ainda acadêmico de medicina, Garcia tinha
visto Fortunato e este o impressionara, mas que teria se esquecido dele, não fosse o
segundo encontro, no teatro. Fortunato deleitava-se com as cenas dolorosas e agressivas
da peça de teatro – um “dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e
remorsos.” -, e Garcia empenhava-se em perceber no outro a obstinada atenção,
pensando que, talvez, houvesse nele, por tamanho interesse demonstrado,
reminiscências pessoais. Terminados os lances agressivos, mas não terminada ainda a
peça, Fortunato vai embora; Garcia o segue e somente o vê a dar bengaladas para
machucar os cães que dormiam nas ruas e, depois, desaparecer num tílburi.

O terceiro encontro entre os dois é na própria casa em que morava Garcia; deu-
se por ocasião de graves ferimentos sofridos por um também morador da casa, causado
por um grupo de “capoeiras”. Fortunato acompanhara o ferido e dele cuidara com
esmero e obstinação notáveis, causando, em Garcia, um misto de perplexidade e
repulsa, pois o interesse tenaz demonstrado pela lide com a mazela era proporcional à
impassibilidade emocional demonstrada ao cabo; Enfim: “(...) não havia mais que
aceitar o coração humano como um poço de mistérios.”

O homem ferido foi visitado por Fortunato até pouco antes de sua melhora.
Decide então procurá-lo para agradecer-lhe o favor, mas é surpreendido pela secura e
pela humilhação praticada contra ele por Fortunato. Tal fato assombrou Garcia, um
homem descrito como alguém que possuía “(...) a faculdade de decifrar homens, de
decompor os caracteres, (...), de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo
de um organismo. (Assis, p. 125)

Garcia sentiu-se impelido a procurar Fortunato, mas não havia abertura para tal.
Depois de encontrarem-se casualmente diversas vezes, a familiaridades fê-los próximos
ao ponto de Fortunato convidar Garcia para jantar. Neste jantar, Garcia conhece a
mulher com quem Fortunato se casara fazia quatro meses, Maria Luiza, descrita como
possuidora de encantos, além de que “Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos;
tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove”. (Idem, p.125)
O médico, já na segunda vez em que visita o casal, sente, entre eles,
dissonâncias de caracteres e de afinidades morais e percebia, na mulher, algo de temor e
resignação em relação ao marido. Surge, então, mais um elemento da constituição do
caráter de Fortunato: quando Garcia conta à Maria Luiza como conheceu o cônjuge
dela, a história de zelo com um ferido fê-la risonha e grata, como se houvesse
descoberto a existência de coração no marido. E o marido corresponde gestualmente a
seus sentimentos, mas com a secura e a impassibilidade costumeira.

Utilizou-se até aqui a perspectiva de recontagem da história, com o fito de


evidenciar os detalhes indiciais dos caracteres das três personagens do conto, mas
convém, a bem de evitar que se estenda demais este texto, resumir seu enredo, pôr em
relevo o momento de clímax do conto e, posteriormente, retomar as pistas para
comentá-las e evidenciar a proposta desta leitura.

Os homens resolvem montar uma clínica, a despeito da vontade de Maria Luiza


– que se enervou, mas não se oporia à vontade do marido. Fortunato revela-se o mais
tenaz enfermeiro, administrador, cuidador, organizador etc. Tal determinação rendeu-
lhe fama. Garcia a tudo observava, inclusive a “solidão moral” de Maria Luiza. A
convivência faz, pouco a pouco, brotar nele amor por Maria Luiza; ela percebe, mas não
corresponde aos sinais que nota, e ele também encobre o sentimento. Fortunato, por sua
vez, resolve meter-se a dissecar animais e o faz em casa, minando os nervos da esposa.
Ela pede a Garcia que o demova de tais fazimentos, pois não podia mais tolerar o
sofrimento dos animais e o que ela própria estava passando. Tossia eventualmente,
despertando no médico certa preocupação e a disposição de observar se havia nela
alguma moléstia para, caso identificasse, avisar ao marido em tempo.

Não cabe a esta proposta de leitura a conceituação do papel do monstro como


delimitador de campos de entendimento sobre a sociedade, sobre a época ou, ainda,
sobre seu papel psicológico relacionado ao leitor; cabe, no entanto, inscrever o conto de
Machado de Assis no rol das obras ora denominadas de “Ficções do Desencanto” a
partir da decodificação das estratégias ficcionais em que se inserem elementos
originados na literatura gótica; no caso em tela, as áreas recônditas e monstruosas do
prazer e da mente humana ou a manifestação de uma terrível psicopatologia socialmente
invisível.
O Narrador de Machado indicia paulatinamente os movimentos que avalizarão o
caráter de Fortunato: o deleite com as cenas do teatro; as bengaladas nos cães de rua; o
interesse pelo homem ferido; a indiferença e a troça em relação à gratidão do homem de
quem cuidou; a surpresa da esposa em perceber-lhe dotado de suposta compaixão pelo
homem esfaqueado; o temor e a resignação evidentes no comportamento da esposa.
Tudo isso são pistas que o narrador foi deixando para que seja possível montar os traços
de uma personalidade que se desvelará, em culminância, na cena em que é
surpreendido, de esguelha e com horror, pela mulher, e frontalmente, por Garcia,
cortando, à tesoura, as quatro patas e o focinho de um rato, mas fazendo-o de forma
contemplativa e prazerosa, queimando cada membro depois de cortá-lo, e cuidando para
que não morresse “desnecessariamente”3.

O episódio do esquartejamento do rato não é meramente mencionado, mas, sim,


detalhado, e somente gera repulsa, repugnância, horror, por causa do sentimento que o
impele, não em função do ato em si; a monstruosidade é reafirmada na perspectiva com
que Fortunato observa a evolução da tuberculose de sua esposa e depois, no fim do
conto, quando observa a dor de amor evidenciada pelo choro de Garcia no leito de
morte de Maria Luiza, momento em que “(...) saboreou tranquilo essa explosão de dor
moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.”4 Não há, enfim, um monstro
propriamente, mas sentimentos e ações monstruosas, mas esses estão restritos à esfera
privada, lócus do mistério ameaçador que desafia as certezas sociais.

Fortunato dissecava animais e sentia prazer observando o sofrimento dos


doentes e de Maria Luiza; o casal é dissecado e observado por Garcia, uma espécie de
“duplo turvo” de Fortunato, que também é observado e dissecado pelo narrador; e todos
são dissecados por nós, leitores, abalados pela suscitação medo do possível, pela
angústia de que a falência de Maria Luiza seja a nossa e seja a decorrência de lidar com
a monstruosidade, mas seguros diante da certeza desse medo advir de ficção: cada qual
com sua “causa secreta”.

Referências
3
O esquartejamento do rato faz lembrar a violência com que a personagem narradora do conto “O gato
preto”, de Allan Poe, retira um olho do gato a canivete e, noutro momento, enforca-o na árvore de seu
quintal.
4
Idem, p. 131.
ASSIS, Machado. A causa secreta. In: Contos escolhidos. São Paulo: Klick Editora,
1997.

FRANÇA, Júlio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In:
CHIARA, A. e ROCHA, F.C.D. (orgs.). Literatura Brasileira em Foco VI; em torno dos
realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2015.

JEFFREY, Jerome C. A cultura dos monstros: sete teses. In: A pedagogia dos monstros: os
prazeres e os perigos da confusão de fronteiras.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

POE, Edgar A. O gato preto. Disponível em: < http://www.psb40.org.br/bib/b159.pdf> Acesso


em 29/05/2015.

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