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RIO DE JANEIRO
2015
Acerca de A causa secreta
O presente trabalho intenta propor uma leitura comentada do conto A causa
secreta, de Machado de Assis, apontando nele o que o teórico Júlio França (2015 1)
chama de visão “sombria” ou “visão de mundo desencantada, pessimista e negativa do
espaço e do tempo”: a algo imprevista e aparentemente paradoxal influência do gótico
na literatura realista brasileira. Esse autor, referindo-se aos elementos comuns entre as
poéticas realistas brasileiras e a ficção gótica, destaca cinco elementos 2, que define
como fundamentais nesta relação. Nessa esteira, empreender-se-á a leitura do conto
usando como referente apenas um dos conceitos apontados por esse pensador, a saber,
“a caracterização de personagens como monstruosidades, por conta da própria natureza
humana ou psicopatologias”, pois o escopo e a extensão deste trabalho assim exigem.
1
FRANÇA, Júlio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In: CHIARA, A. e
ROCHA, F.C.D. (orgs.). Literatura Brasileira em Foco VI; em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa
Doze, 2015. (PP 133-146).
2
Um dos conceitos está citado no texto e os outros quatro são: a construção de espaços narrativos ,
exóticos ou familiares, que são descritos como loci horribiles; a relação fantasmagórica com o passado,
que ressurge para assombrar o presente; e o “desenvolvimento de enredos que exploram, tanto no plano
da diegese quanto no da recepção, efeitos melodramáticos e emocionais”; e a utilização contínua de
campos semânticos relacionados à morte, à morbidez e à degeneração física e mental.
O narrador volta no tempo para contar os dois primeiros encontros entre os
personagens masculinos, explicando que, ainda acadêmico de medicina, Garcia tinha
visto Fortunato e este o impressionara, mas que teria se esquecido dele, não fosse o
segundo encontro, no teatro. Fortunato deleitava-se com as cenas dolorosas e agressivas
da peça de teatro – um “dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e
remorsos.” -, e Garcia empenhava-se em perceber no outro a obstinada atenção,
pensando que, talvez, houvesse nele, por tamanho interesse demonstrado,
reminiscências pessoais. Terminados os lances agressivos, mas não terminada ainda a
peça, Fortunato vai embora; Garcia o segue e somente o vê a dar bengaladas para
machucar os cães que dormiam nas ruas e, depois, desaparecer num tílburi.
O terceiro encontro entre os dois é na própria casa em que morava Garcia; deu-
se por ocasião de graves ferimentos sofridos por um também morador da casa, causado
por um grupo de “capoeiras”. Fortunato acompanhara o ferido e dele cuidara com
esmero e obstinação notáveis, causando, em Garcia, um misto de perplexidade e
repulsa, pois o interesse tenaz demonstrado pela lide com a mazela era proporcional à
impassibilidade emocional demonstrada ao cabo; Enfim: “(...) não havia mais que
aceitar o coração humano como um poço de mistérios.”
O homem ferido foi visitado por Fortunato até pouco antes de sua melhora.
Decide então procurá-lo para agradecer-lhe o favor, mas é surpreendido pela secura e
pela humilhação praticada contra ele por Fortunato. Tal fato assombrou Garcia, um
homem descrito como alguém que possuía “(...) a faculdade de decifrar homens, de
decompor os caracteres, (...), de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo
de um organismo. (Assis, p. 125)
Garcia sentiu-se impelido a procurar Fortunato, mas não havia abertura para tal.
Depois de encontrarem-se casualmente diversas vezes, a familiaridades fê-los próximos
ao ponto de Fortunato convidar Garcia para jantar. Neste jantar, Garcia conhece a
mulher com quem Fortunato se casara fazia quatro meses, Maria Luiza, descrita como
possuidora de encantos, além de que “Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos;
tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove”. (Idem, p.125)
O médico, já na segunda vez em que visita o casal, sente, entre eles,
dissonâncias de caracteres e de afinidades morais e percebia, na mulher, algo de temor e
resignação em relação ao marido. Surge, então, mais um elemento da constituição do
caráter de Fortunato: quando Garcia conta à Maria Luiza como conheceu o cônjuge
dela, a história de zelo com um ferido fê-la risonha e grata, como se houvesse
descoberto a existência de coração no marido. E o marido corresponde gestualmente a
seus sentimentos, mas com a secura e a impassibilidade costumeira.
Referências
3
O esquartejamento do rato faz lembrar a violência com que a personagem narradora do conto “O gato
preto”, de Allan Poe, retira um olho do gato a canivete e, noutro momento, enforca-o na árvore de seu
quintal.
4
Idem, p. 131.
ASSIS, Machado. A causa secreta. In: Contos escolhidos. São Paulo: Klick Editora,
1997.
FRANÇA, Júlio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In:
CHIARA, A. e ROCHA, F.C.D. (orgs.). Literatura Brasileira em Foco VI; em torno dos
realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2015.
JEFFREY, Jerome C. A cultura dos monstros: sete teses. In: A pedagogia dos monstros: os
prazeres e os perigos da confusão de fronteiras.Belo Horizonte: Autêntica, 2000.