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O sentido profundo da obra de

Machado de Assis
A mim me repugna toda atitude que desliga o homem de sua obra: isto
redunda em tecnicismo, que, no meu entender, é um dos maiores males da
época.
Mudam os tempos. Há 100 anos, para se fazer crítica e história literária era
necessário conhecer o meio físico, com suas linhas isotérmicas e isóbaras,
falar da raça e analisar o momento histórico. O autor aí surgia como um
produto por assim dizer fatal, uma espécie de cogumelo estético. Depois,
foi o biografismo e a preocupação de explicar os personagens pela
ideologia, pelos complexos, pelos ressentimentos, pelos conflitos do autor
consigo mesmo e com seu meio. Agora, é o exame da obra como
um ens a se, como um objeto autônomo, uma partida de xadrez sem
jogadores.

Primeiro, a terra e o clima explicavam o romance ou o poema; depois, o


autor, com seus recalques, explicava a obra; finalmente esta se explica por
si mesma e deve ser analisada em si mesma, como um meteorito caído de
algum ponto do espaço. Como sempre, as posições extremadas deformam:
a realidade é complexa demais para poder ser olhada por uma só face.

No caso de Machado de Assis, uma análise meramente formalista


prejudicaria sensivelmente o resultado e, talvez, impossibilitaria uma
interpretação final e global da obra.

Por outro lado, a crítica nacional, anterior, que longamente se debruçou


sobre ele, foi quase unânime em ver nele um grande autor, o maior de
todos, sem dúvida, mas um autor duro, amargo, pessimista, destruidor da
crença no homem e da crença em Deus. Depois este julgamento, quase
“oficial”, veio uma tentativa de recusa pelo silêncio, por parte da crítica
ideológica: Machado não merecia consideração, porque teria sido um
“desengajado”, um “alienado”, voluntariamente recluso em sua torre de
marfim. Não se teria preocupado com os problemas sociais de sua época,
especialmente o da escravidão (o que nem sequer é verdade), e por isso
deveria ser considerado uma figura marginal, um burguês que escreveu
para divertir os burgueses.

Discordo convicto da crítica “oficial” e da crítica ideológica. Entendo que


Machado não foi pessimista, no sentido próprio e rigoroso da palavra, não
descreu do homem nem de Deus, não se desinteressou da problemática do
seu tempo, não escreveu para divertir os burgueses.

Pelo contrário, uma das suas excelências foi, precisamente, denunciar o


erro-da-raiz da filosofia burguesa da vida quando estava no auge a
civilização dela nascida.
Machado de Assis é um dos mais impressionantes exemplos de self-made-
man. Mulato, filho de um operário e de uma lavadeira oriunda dos Açores,
órfão muito cedo, só freqüentou a escola primária, ainda assim muito
deficiente.

Não obstante, aprendeu francês, inglês e alemão, formou sólida cultura


humanística, tornou-se o mais perfeito prosador da língua portuguesa
contemporânea, galgou, passo a passo, sem fazer nenhuma concessão,
todos os postos da vida literária, e morreu cercado do respeito de todos,
como Presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras, que ele
ajudara a fundar.

Ora, estranho seria que uma pessoa que se formou pelo próprio esforço,
que nunca se valeu de empenhos, que nunca praticou golpes de audácia,
que nunca se entregou ao servilismo, que trabalhou, leu, estudou, que
incansavelmente se aperfeiçoou — estranho seria, digo, que tal homem não
cresse no homem.

Além disso, ele cultivou discretamente, mas com fervor, muitas amizades,
nutriu a mais franca admiração por diversas figuras, contemporâneas e do
passado, como Leão XIII, o bispo brasileiro D.Vital, vítima de perseguição
regalista, José de Alencar, homem e escritor de temperamento e de
tendências muito diversas das suas.

Ora, quem admira crê no homem, aposta nos valores humanos. O


verdadeiro céptico, o verdadeiro pessimista assume atitude cínica, de
nivelamento de todos no mesmo pântano, de explicação de todos os atos
humanos por motivos interesseiros ou sórdidos, quando não (mais
modernamente) prefere explicar tudo pelos hormônios, pelos
ressentimentos, pelas condições econômicas ou pelos conflitos com a
sociedade ou com o meio familiar. O autêntico pessimista professa a
maldade radical da natureza humana. Acha que nada vale nada, que todos
são veniais, todos têm seu preço e que os atos aparentemente heróicos ou
excepcionais se reduzem à vaidade, ao exibicionismo, ou a uma forma de
loucura, mansa ou furiosa.

Não é isto que se encontra em Machado de Assis. Ele foi um agudo,


profundo, quase cruel analista da alma humana. Punha a nu os mais
recônditos pensamentos, as mais secretas motivações de seus personagens,
para denunciar a vigorosa presença do amor-próprio. Analisou os diversos
comportamentos e as diversas dissimulações do moi de surface, a decisiva
importância que a opinião tem nos atos das pessoas. Numa palavra,
mostrou a fragilidade moral dos homens. Mas tinha endereço certo: o
homem dominado pela filosofia burguesa da vida, o homem integrado
nessa “civilização de aparências”, que é a burguesa. (Está claro que não me
refiro à classe social, mas ao estado de espírito e à escala de valores que
historicamente coincidiram com a ascensão e o domínio da burguesia, e
que se pode encontrar em antigos nobres e em proletários e pode não
encontrar-se num componente da classe média).

A obra de ficção de Machado de Assis claramente se distribui por duas fases


muito distintas: uma primeira, que coincide com a temperada adesão ao
Romantismo, convencional, bem-comportada, ordenada a agradar as
mulheres e distraí-las nos seus ócios; a segunda, a partir sobretudo de
1880, original, independente, realista, analista, fria, pontilhada de lances
de humour.

Realmente, por volta dos 40 anos, nel mezzo del camin, o nosso autor
passou por uma grave crise, uma intensa vibração interior, uma dolorosa
experiência existencial, qualquer coisa que poderíamos denominar hoje de
“angústia metafísica”. Vários fatores tê-lo-iam levado a essa “pausa para
meditação”: o agravamento da epilepsia, a meditada leitura de
Pascal, Pensées (sobretudo, creio eu, La misère de l’homme sans Dieu), a
profunda observação do espetáculo da vida, a corajosa indagação sobre o
sentido final do mundo e do homem.

Descobrindo, em toda a profundidade, a fraqueza do ser contingente, sua


atração pelos abismos do não-ser, dispôs-se a aplicar sua descoberta à
dissecação dos atos humanos, como que se comprazendo em mostrar-lhes
o lado negativo, a constante mistura de néant, se se pode dizer esse
absurdo, ou mais inteligivelmente, em chamar a atenção para os buracos,
as falhas, as deficiências.

Foi-lhe dolorosa a experiência, como se adivinha de páginas supostamente


autobiográficas, como “O delírio”, do primeiro romance de sua segunda
fase, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Por isso, não nego que Machado
tenha tido pessoalmente momentos de terrível desencanto, de acérrima
tristeza, de doloríssima e insuportável sensação do nada.

A experiência ontológica a que se entregou é apavorante, exige um


arcabouço mental muito rijo e um equipamento filosófico solidíssimo, para
não desnortear e lançar no pessimismo radical. Machado terá sofrido a
tentação de tal pessimismo. Terá mesmo — quem sabe! — sucumbido à
atenção, terá interiormente passado por uma fase opaca, sentindo travo na
boca, abismos na alma, perturbação na inteligência, paralisia na
sensibilidade. Teria sido esse o primeiro resultado de sua contemplação do
“desconcerto do mundo”, para usar a expressão de Camões.

Não só em certas passagens de alguns romances e contos se sente essa


espécie de impregnação autobiográfica, mas também num poema como “A
uma criatura”, “antiga e formidável, que a si mesma devora os membros e
as entranhas”, criatura que, no fim, ficamos sabendo que é a Vida e não a
Morte, como se seria naturalmente levado a supor.
Mas essa fase foi vencida, e Machado caminhou para uma pacificação
espiritual, finalmente atingida, como veremos. Não obstante, aplicou
sempre, até os últimos romances e contos, as técnicas de análise
dissolvente e negativista, exatamente para denunciar o erro fundamental
da concepção individualista e egocêntrica de vida.

Convencidos desse erro, pô-lo a nu e combateu-o, não com atitude de


apóstolo ou militante, que nunca teve, mas com a arma do ridículo e
do humour. Uma das técnicas que mais emprega é a de tratar gravemente
as coisas fúteis e levemente as coisas sérias. Ele quer obstinadamente, mas
como quem não se empenha, como quem sorri, como quem não acredita
em nada, ele quer mostrar a miséria moral de um homem que ostenta
virtude — o burguês —, mas está corroído interiormente, porque desligou
a Moral de suas verdadeiras bases, a justiça e o amor.

O romance a que acima me referi, Memórias Póstumas de Brás Cubas,


serve particularmente a esse fim, porque o autor é um defunto, que, da
outra vida, se dispõe a contar, com sinceridade a história dos seus passos
nesta vida. Já não tem compromissos, já não é obrigado a guardar
conveniências, e então fala de si e dos outros com todo o desembaraço e
toda a lucidez. Tranqüilamente mostra os fingimentos, os egoísmos, as
capitulações, as baixezas, as misérias de toda sorte, o império soberano da
vaidade, o culto sistemático das aparências. É um livro terrível, mas, se bem
aproveitado, será muito salutar. Com lições de espiritualidade e de
desligamento das liturgias do prestígio e do poder. Um livro que pode
ajudar-nos muito a aprender a rir de nós mesmos, de nossas loucas corridas
atrás do Nada.

Os romances e contos de Machado de Assis são muito pobres de ação: quase


tudo, ou ao menos o essencial, passa-se na cabeça dos personagens. No
fundo, o que está em jogo, o que se está procurando compreender e definir
é a inteireza moral. Daí porque se pode dizer que nosso autor, sendo um
arguto e implacável analista da alma humana, um dissecador da vaidade e
do amor-próprio, é de fato um moralista e um perfeccionista. Quer a
integridade e encontra falhas, fraquezas, covardias, venalidade, interesse,
baixeza, sordidez.

Depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance publicado em


1881, veio Quincas Borbas, de 1891. É a história de um amor adúltero
platônico, tolerado pelo marido, que explora o rico amante da mulher, até
deixa-lo louco e sem dinheiro. Aliás, o personagem principal, Rubião, tinha
recebido a fortuna por herança de um filósofo rico e doido: herdou o
dinheiro e a loucura.

O filósofo, Quincas Borba, inventara uma filosofia nova, o Humanitismo,


que, no fundo, é uma sátira ao positivismo de Comte e ao evolucionismo de
Spencer, que estavam em grande voga no Brasil naquele tempo, o que
mostra a forte personalidade de Machado de Assis, capaz de resistir e até
de repelir as pressões intelectuais e culturais no meio social.

Este segundo romance é bem mais estruturado do que o primeiro e


apresenta um desfile de gente ordinária, que passa a vida matando o tempo
e comendo o dinheiro de Rubião, generoso e ingênuo.

O terceiro romance da segunda fase é D. Casmurro, aparecido em 1900. É


a história de uma grande paixão, nascida ainda na infância e desfeita por
uma infidelidade e uma traição por parte do melhor amigo da vítima.

Aliás, o autor não deixa muito claro o fato do adultério, que, no entanto,
existe na convicção do marido. Seria talvez uma “obra aberta”, uma vez que
se tem discutido se Capitu enganou ou não Bentinho, se Escobar traiu ou
não o antigo colega do seminário. Apesar de ser um livro quase só de
intenções, reflexões e insinuações, tem uma cena patética, única na obra de
Machado: quando Bentinho se convence de que seu filho não é seu filho,
decide mata-lo, envenenando-o. Quando lhe vai entregar a bebida mortal,
o menino olha-o ternamente, diz-lhe “papai”, e ele recua.

Em 1904 aparece Esaú e Jacó, história de dois gêmeos, Pedro e Paulo, em


tudo desconformes, em tudo diferentes, em tudo conflitantes, inclusive no
amor à mesma mulher, Flora, que nunca se decide por nenhum, e acaba
solteira. É realmente um magistral estudo da hesitação humana,
especialmente a feminina. Lateralmente o livro deixa ver o grande
cepticismo do autor em relação à política: ou ele seria um monarquista,
decepcionado com o advento da República, ou entendia que não há espírito
público nos homens públicos. É nestes termos que ele faz um dos seus
personagens, talvez alter ego, o Conselheiro, noticiar a proclamação da
República brasileira: “Na Rua do Ouvidor, soube que os militares tinham
feito uma revolução”. Eis como ele apresenta o pai de Flora, político
profissional: “Nele a política era menos uma opinião que uma sarna;
precisava coçar-se amiúdo e com força”.

Memorial de Aires, publicado em 1908, ano da morte do autor, é um


romance diferente de todos os outros. Sem ironia, sem mordacidade,
sem humour, sem cepticismo, conta a história de um casal muito unido,
que acaba por adotar uma jovem, que se casa e a quem eles transferem a
felicidade, guardando para si a saudade de si mesmos e do seu
imperturbável amor.

Os críticos costumam ver no casal Aguiar-D.Carmo a transposição literária


do casal Machado-Carolina. Foi o livro escrito depois da morte desta, morte
que deixou o velho inconsolável e destruído.
Carolina fora seu anjo-da-guarda, seu apoio, sua companheira perfeita, a
imagem e o símbolo de uma humanidade ideal. Ele era homem muito
fechado, muito esquivo, muito reservado quanto a expansões afetivas: ela
foi-lhe confidente, estímulo, repouso, equilíbrio.

Depois de viúvo, atônito e desconcertado, é que começou a abrir-se com os


amigos mais íntimos, Mário de Alencar e Joaquim Nabuco. Da
correspondência trocada surge um Machado humano, terno, manso, ferido
pela dor, aceita, aliás, com resignação. Tem ele agora a alma claramente
aberta para a Esperança teologal.

“Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os


mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como
estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recorda-
la. Irei vê-la. Ela me esperará” (Carta a Mário Alencar, Correspondência,
1944, p. 88).

Se os romances de Machado de Assis são da melhor qualidade literária e


lingüística, os contos ainda são superiores, talvez os melhores da língua
portuguesa.

Excetuadas duas coleções, correspondentes à fase romântica (embora


muito pouco romantismo contenham), Contos Fluminenses (1870)
e Histórias da Meia-Noite (1873), as outras — Papéis
Avulsos (1882), Histórias sem Data (1884), Várias
Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899), Relíquias de Casa
Velha (1906), Outras Relíquias (1910), Novas Relíquias (1922) — as
outras, digo, constituem uma galeria cheia de obras-primas.

São contos relativamente curtos, muito bem escritos, muito bem


estruturados, provocantes e, para muitos leitores, decepcionantes. Porque
têm muito pouca ação, muita introversão, muita análise psicológica,
muito humour e quase nunca happy-end. Não divertem, obrigam a pensar;
não aliviam, sobrecarregam; muitas vezes fazem rir, mas quase sempre de
nós mesmos, do nosso amor-próprio, do nosso ridículo, das nossas
mesquinhas preocupações.

Sem dúvida podem fazer mal, lançando na alma o veneno do cepticismo


radical e demolidor. Mas podem fazer bem, e grande, levando-nos à
consideração e ao amor das coisas essenciais e duradouras.

Sei bem que posso estar escandalizando, quando falo em resultados


espirituais da obra literária, que é, ou deve ser, segundo dizem, meramente
estética, marcada somente pela “literalidade”, bem estruturada ou mal
estruturada, de narrativa linear, sincopada ou reserva, com estilo direto ou
indireto livre, com dois, três ou quatro actantes, com catálises, sintagmas e
paradigmas etc. Mas paciência: sou dos que acreditam nas conseqüências
dos atos, dos que pensam que nada passa por nós sem deixar marcas, que
a todo momento estamos fazendo opções, na linha do lucro ou da perda de
tempo, na linha da eternidade. Se me permitem a ousadia, direi que
acrescento à famosa sentença de Terêncio — “homo sum: humani nihil a
me alienum puto” — esta outra: “todos os atos humanos são graves e sérios,
inclusive os levianos”.

Os personagens machadianos em geral não trabalham: são ricos, são


herdeiros, vivem de expedientes. As mulheres, então, são perfeitamente
ociosas, conforme ocorria numa sociedade escravocrata como a dele. Os
contos insistem em certos tipos, como o louco ou o avarento.

A galeria de mulheres é particularmente rica: poucos terão apanhado a


psicologia feminina tão bem quanto ele. Sofia, de Quincas Borba, e Capitu
de D. Casmurro, talvez sejam as duas melhores figuras. Mas não se pode
esquecer a outra Sofia e a Mariana, do “Capítulo dos Chapéus”, D. Benedita,
D. Camila...

Tantos nos romances como nos contos, Machado nos dá uma perfeita
imagem da vida carioca no último quartel do século passado. Os costumes
populares e os da classe média, os espetáculos de teatro e de ópera, as festas
religiosas e leigas, os desportos preferidos, os estilos do comércio, os
cartazes e as tabuletas, os anúncios, os cafés e restaurantes, as brigas de
rua, a vida das ruas. Nesse sentido, pode-se dizer que ele é o melhor
cronista do Rio Imperial, embora também o tenha sido ex-professo, nas
colunas que manteve nos jornais durante 31 anos, de 1866 a 1897, com
intervalos, mais ou menos longos.

Nessas crônicas comentava os acontecimentos locais, os nacionais e os


internacionais, tudo com muita independência, muita seleção pessoal,
muito domínio dos acontecimentos digamos assim. Chamava-se a si
mesmo “escriba de coisas miúdas”, e afirmava em termos peremptórios sua
transcendência em relação aos fatos:

“Além disso, nasci com certo orgulho, que há agora há de morrer comigo.
Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos.
Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dois
ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões de estilo.
Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que
os hei de aclamar extraordinários” (10 de julho de 1892).

O poeta Machado de Assis é nitidamente inferior ao contista, ao romancista


e até mesmo ao cronista. No entanto, sua obra distingue-se na literatura
brasileira, sobretudo pelo cuidado da forma e pelo rigor do metro. Na fase
romântica, muito mais fecunda, seguiu os cânones da escola, explorou a
temática corrente e entregou-se a um lirismo comedido, o que já é exceção
num País tropical e palavroso.

Utilizou todos os ritmos da língua, inclusive os raros, como é o caso do


octossílabo (ou enessílabo, conforme a maneira de contar) e o alexandrino
clássico.

Na segunda fase compôs pouco, mas chegou a realizar alguns poemas


excelentes, como “A mosca azul”, “Soneto de Natal”, ou “A Carolina”. A
forma aprimora-se ainda mais e freqüentes vezes deixa transparecer seu
novo estado de espírito: ironia, cepticismo, secura. Fez duas traduções em
versos muito boas: o Salmo 136, “Super flumina Babilonis”, inserto no
longo poema “A cristã nova”, do livro Americanas (1875), e “O Corvo”, de
Edgard Poe, no livro Ocidentais (1901).

Como crítico, Machado desempenhou papel de particular importância nas


nossas letras. Recusou totalmente os esquemas naturalistas e dispôs-se a
analisar as obras com maior isenção e objetividade, buscando um ideal
grego de harmonia, equilíbrio e bom-senso. Considerou a arte como valor
autônomo, com leis próprias, mas não a quis desligada dos outros valores
humanos. Foi um mestre do bom-gosto. E foi um orientador dos jovens
escritores, mostrando-lhes o caminho a seguir para a definitiva
constituição de uma literatura verdadeiramente brasileira. A este respeito
ficaram famosos dois ensaios: “Instinto de nacionalidade”, publicado da
revista Novo Mundo, de Nova Iorque em 24 de março de 1873; e “A nova
geração”, publicado na Revista Brasileira, do Rio, a 1 de dezembro de 1879.
Também famosas ficaram as críticas que fez a seu confrade português Eça
de Queirós, a propósito do romance O Primo Basílio (publ. em O Cruzeiro,
do Rio, em abril de 1878). O grande escritor português levou-as muito a
sério e mudou um pouco o rumo de sua arte.

Em matéria de atitudes estéticas, escolas literárias, estilos de época ou que


outro nome tenham, Machado sempre se colocou em posição eqüidistante,
fugindo ao sectarismo e aos exclusivismos. Valeria a pena transcrever aqui
o que ele disse a respeito do Naturalismo, cuja influência começava então
a ser avassaladora. Mutatis mutandis, têm muita atualidade essas
palavras, embora possam ser desagradáveis:

“A nova geração freqüenta os escritores da ciência: não há por aí poeta


digno desse nome que não converse um pouco, ao menos, com os
naturalistas e filósofos modernos. Deve, todavia, acautelar-se de um mal:
o pedantismo. Geralmente, a mocidade, sobretudo a mocidade de um
tempo de renovação cientifica e literária, não tem outra preocupação
mais do que mostrar às outras gentes que há uma porção de coisas que
estas ignoram; e daí vem que os nomes ainda frescos na memória, a
terminologia apanhada pela rama, são logo transferidos ao papel, e
quanto mais crespos forem os nomes e as palavras, tanto melhor. Digo
aos moços que a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato,
mas a que se assimila para nutrição; e que o modo eficaz de se mostrar
que se possui um processo cientifico não é proclamá-lo a todos os
instantes, mas aplica-lo oportunamente” (Obra Completa, Edit. José
Aguilar Ltda., Rio, 1962, vol. III, p. 836).

As coisas que dissemos por último nos oferecem ponte para outra
consideração. O caso Machado de Assis é verdadeiramente singular. Sendo
brasileiro, portanto tropical e derramado, conseguiu tornar-se um atiço,
pelo equilíbrio, pela sobriedade, pelo senso de proporção e de medida. E
isto é particularmente notável num mulato, gago, de condição humilde
como ele era.

Deveria ser um recalcado, um exibicionista, um palavroso. Foi o contrário.


Os inimigos da grandeza humana, os negadores do valor e do esforço
pessoal, os pessimistas, numa palavra, procurarão explicações na
psicologia da compensação, no condicionamento social, na decantação e
inversão das pressões externas. Mas isso realmente não satisfaz. Porque
explica sem explicar. É uma simples fuga à realidade, uma aceitação a
priori de esquemas que nos são propostos. Admito que os elementos
adversos tenham motivado a atitude do homem; mas foi sua opção, sua
inabalável decisão e firmeza de vontade que produziram o espantoso
resultado.

Voltemos agora — e para já pensar no fim desta conferência — voltemos ao


tema central; a interpretação do sentido profundo da obra de ficção de
Machado de Assis, dessa obra amarga, desencantada, aparentemente
negativista.

Como disse acima, a crítica “oficial” vê nele o maior escritor da literatura


brasileira, sim, o único de dimensões verdadeiramente universais, sim, um
destruidor de valores, um homem seco e desprovido de ternura humana,
um entrepeneur de démolitions (para usar, noutro sentido, uma expressão
de León Bloy), um schopenhaueriano. Já disse também que discordo dessa
exegese. Penso que deve ser outra a explicação
do weltanschauung machadiano. E fundo-me, para tanto, nas palavras do
próprio autor.

Sabemos, por declarações suas, que as leituras que o acompanharam desde


a juventude foram Pascal e a Bíblia. E na Bíblia, o livro preferido foi
o Eclesiastes.
Ora, todos sabem que este livro é um dos mais misteriosos, mais
provocantes, mais discutidos. Fala do torpe espetáculo do mundo, da fútil
agitação dos homens, de suas tolas ambições. Tudo é vaidade e perseguição
do vento. Além disso, os maus são vitoriosos e os bons muitas vezes sofrem
injustiças. Nada há de novo debaixo do sol: os dias se sucedem iguais, as
gerações passam, e a terra continua.

“O sol nasce e se põe, e tende ao seu lugar, donde volta a levantar-se.


Dirigindo-se ao meio-dia e voltando para o setentrião, torna e retorna o
vento, e nos mesmos circuitos gira o vento. Todos os rios entram no mar;
e o mar jamais transborda; ao lugar onde vão os rios, lá retomam o seu
caminho. Cada coisa não faz senão afadigar-se, quanto ninguém saberia
dizer; não se farta o olho de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir. O que já
foi, isso será. O que já se fez, isso se fará; nada de novo debaixo do sol”
(Eccl. 1, 6-9).

Tudo é cansativo, causa tédio; tudo é vaidade e perseguição do vento.

Foi isso que Machado viu com seus olhos agudos, com sua inteligência
penetrante, com sua responsabilidade exacerbada. Viu, analisou,
desconsolou-se, e consolou-se no desconsolo do Eclesiastes.

Pode-se dizer — estou certo disso — que sua obra foi uma glosa desse livro
da Bíblia:

“Voltei-me para outras coisas, e vi as operações que se fazem debaixo do


sol, e as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consola; nem eles
podem resistir à violência, visto estarem abandonados de todo socorro. E
felicitei mais os mortos do que os vivos, e considerei mais feliz do que uns
e outros aquele que ainda não nasceu, e que não viu os males que se fazem
debaixo do sol. Contemplei de novo todos os trabalhos dos homens, e
reconheci que suas habilidades estão expostas à inveja do próximo: e nisto
também há vaidade e perseguição do vento” (Ibid., 4, 1-4).

Estranha linguagem para um livro sagrado! Dir-se-ia o discurso de um


cético e de um amargo pessimista: Dir-se-á o moto de que a obra de ficção
de Machado foi a glosa: “Observei de novo e vi debaixo do sol que a corrida
não é para os ágeis, nem a batalha para os destemidos, nem o pão para
os sábios, nem a riqueza para os entendidos, nem o favor para os
inteligentes: todos estão à mercê das circunstancias do tempo” (Ibid., 9-
11).

Os contos e os romances se encarregam de mostrar-nos isso.


Mas seria possível que o Livro Sagrado nos quisesse levar ao desemprego
cínico?

Evidentemente não! E textualmente não: o Eclesiastes acaba de repente,


por um epílogo incisivo, que mostra a perspectiva e a finalidade do autor:

“As palavras dos sábios são como aguilhões, e como cravos bem pregados
às coletâneas dos autores: e são dadas por um só pastor. Não busques,
meu filho, mais do que essas. Não se põe termo em multiplicar livros, e o
demasiado estudo cansa a carne. Conclusão do discurso, depois de ouvi-
lo todo: Teme a Deus e guarda seus mandamentos, porque isso é o homem
todo; Deus citará em juízo todas as ações acerca de toda coisa oculta, quer
seja boa, quer seja má” (Eccl., 12, 11-14).

Ora, Machado vai descobrir isto, e mais ainda, depois de sua longa e
doloríssima experiência, acrescida do sofrimento trazido pela morte de sua
Carolina. Muitos anos antes, numa carta a ela, quando ainda noivos, ela
dizia-lhe:

“Depois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é


verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias
fofas e das suas ambições estéreis” (2-3-1868).

Numa carta a seu amigo José Veríssimo, datada de 4-2-1905, morta já a


esposa, ele diz isto: “em verdade o sofrimento é ainda a melhor parte da
vida”.

Mas o principal é o que se segue. Como já disse, o Eclesiastes tem desafiado


a argúcia dos exegetas, que tomam caminhos diversos de interpretação e
de crítica textual. Uma das mais recentes é a R. Pautrel, tradutor e
comentador do livro, na famosa Bíblia de Jerusalém (Du Cert, Paris, 1956).

Para ele, o autor do Eclesiastes é um só, devendo-se entender a aparente


pluralidade de autores como uma discussão interior, um dilaceramento do
espírito. O Kohelet seria uma espécie de eu a debater-se com o anti-eu, um
homem terrivelmente perturbado com o espetáculo da vida.

“Abrindo diante de nós o absurdo do mundo, em que não se vê justiça, em


que os maus são premiados e os bons são oprimidos, em que tudo passa,
em que as felicidades são fugazes e quase sempre deixam gosto de cinzas
na boca; mostrando-nos de maneira tão vida, tão intensamente poética
os ‘desconcertos do mundo’, o Eclesiastes quer-nos inculcar o desapego
real e total às coisas transitórias e a fixação no temor de Deus. Entretanto,
é ainda um livro incompleto, que não traz em si o último selo: ‘Ele prepara
o mundo à compreensão de que bem-aventurados são os pobres’” (Op. cit.,
p. 847).

Temos aí, pois, que uma das mais modernas e mais lúcidas exegeses no
desafiador Eclesiastes, a que adotou um homem apurado na Escola Bíblica
de Jerusalém, entende que o “sétimo selo” do livro é o Sermão da
Montanha.

Por mais estranho que pareça, teve essa visão Machado de Assis, mais de
50 anos antes de Pautrel, que é um especialista.

Numa crônica datada de 25 de março de 1894, conta-nos ele que, na


Semana Santa, entrou numa igreja para ver os ofícios. Observou bem as
pessoas que enchiam o templo: quase só mulheres. Aspirou o incenso, foi-
se envolvendo pela atmosfera litúrgica.
“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me
embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a
levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza
antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto
e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os
lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.
— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz
ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. — Vede
a injustiça do mundo. ‘Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz
ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.’
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão
fartos.
— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm
males...
— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque
deles é o reino do céu.
E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma
palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu
que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo.
E o sermão continuava. Bem aventurados os pacíficos. Bem-aventurados
os mansos...” (A Semana, ed. de Mário de Alencar, s/d, p. 126-127).

Aí está. Termino dizendo que está é a chave para entender o sentido final
da obra de ficção machadiana. Não se pode isola-la das cartas, das crônicas,
deste trecho, ora citado. Elas e ele informam a tese do pessimismo radical.
Sim, porque, na verdade, Machado mergulhou fundo os olhos no
espetáculo do sub sole, para os erguer depois, banhados na luz da
Esperança Teologal.

CARTA MENSAL, Rio de Janeiro, v. 46, n. 551, p. 38-53, fev. de 2001.

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