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Machado de Assis
A mim me repugna toda atitude que desliga o homem de sua obra: isto
redunda em tecnicismo, que, no meu entender, é um dos maiores males da
época.
Mudam os tempos. Há 100 anos, para se fazer crítica e história literária era
necessário conhecer o meio físico, com suas linhas isotérmicas e isóbaras,
falar da raça e analisar o momento histórico. O autor aí surgia como um
produto por assim dizer fatal, uma espécie de cogumelo estético. Depois,
foi o biografismo e a preocupação de explicar os personagens pela
ideologia, pelos complexos, pelos ressentimentos, pelos conflitos do autor
consigo mesmo e com seu meio. Agora, é o exame da obra como
um ens a se, como um objeto autônomo, uma partida de xadrez sem
jogadores.
Ora, estranho seria que uma pessoa que se formou pelo próprio esforço,
que nunca se valeu de empenhos, que nunca praticou golpes de audácia,
que nunca se entregou ao servilismo, que trabalhou, leu, estudou, que
incansavelmente se aperfeiçoou — estranho seria, digo, que tal homem não
cresse no homem.
Além disso, ele cultivou discretamente, mas com fervor, muitas amizades,
nutriu a mais franca admiração por diversas figuras, contemporâneas e do
passado, como Leão XIII, o bispo brasileiro D.Vital, vítima de perseguição
regalista, José de Alencar, homem e escritor de temperamento e de
tendências muito diversas das suas.
Realmente, por volta dos 40 anos, nel mezzo del camin, o nosso autor
passou por uma grave crise, uma intensa vibração interior, uma dolorosa
experiência existencial, qualquer coisa que poderíamos denominar hoje de
“angústia metafísica”. Vários fatores tê-lo-iam levado a essa “pausa para
meditação”: o agravamento da epilepsia, a meditada leitura de
Pascal, Pensées (sobretudo, creio eu, La misère de l’homme sans Dieu), a
profunda observação do espetáculo da vida, a corajosa indagação sobre o
sentido final do mundo e do homem.
Aliás, o autor não deixa muito claro o fato do adultério, que, no entanto,
existe na convicção do marido. Seria talvez uma “obra aberta”, uma vez que
se tem discutido se Capitu enganou ou não Bentinho, se Escobar traiu ou
não o antigo colega do seminário. Apesar de ser um livro quase só de
intenções, reflexões e insinuações, tem uma cena patética, única na obra de
Machado: quando Bentinho se convence de que seu filho não é seu filho,
decide mata-lo, envenenando-o. Quando lhe vai entregar a bebida mortal,
o menino olha-o ternamente, diz-lhe “papai”, e ele recua.
Tantos nos romances como nos contos, Machado nos dá uma perfeita
imagem da vida carioca no último quartel do século passado. Os costumes
populares e os da classe média, os espetáculos de teatro e de ópera, as festas
religiosas e leigas, os desportos preferidos, os estilos do comércio, os
cartazes e as tabuletas, os anúncios, os cafés e restaurantes, as brigas de
rua, a vida das ruas. Nesse sentido, pode-se dizer que ele é o melhor
cronista do Rio Imperial, embora também o tenha sido ex-professo, nas
colunas que manteve nos jornais durante 31 anos, de 1866 a 1897, com
intervalos, mais ou menos longos.
“Além disso, nasci com certo orgulho, que há agora há de morrer comigo.
Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos.
Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dois
ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões de estilo.
Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que
os hei de aclamar extraordinários” (10 de julho de 1892).
As coisas que dissemos por último nos oferecem ponte para outra
consideração. O caso Machado de Assis é verdadeiramente singular. Sendo
brasileiro, portanto tropical e derramado, conseguiu tornar-se um atiço,
pelo equilíbrio, pela sobriedade, pelo senso de proporção e de medida. E
isto é particularmente notável num mulato, gago, de condição humilde
como ele era.
Foi isso que Machado viu com seus olhos agudos, com sua inteligência
penetrante, com sua responsabilidade exacerbada. Viu, analisou,
desconsolou-se, e consolou-se no desconsolo do Eclesiastes.
Pode-se dizer — estou certo disso — que sua obra foi uma glosa desse livro
da Bíblia:
“As palavras dos sábios são como aguilhões, e como cravos bem pregados
às coletâneas dos autores: e são dadas por um só pastor. Não busques,
meu filho, mais do que essas. Não se põe termo em multiplicar livros, e o
demasiado estudo cansa a carne. Conclusão do discurso, depois de ouvi-
lo todo: Teme a Deus e guarda seus mandamentos, porque isso é o homem
todo; Deus citará em juízo todas as ações acerca de toda coisa oculta, quer
seja boa, quer seja má” (Eccl., 12, 11-14).
Ora, Machado vai descobrir isto, e mais ainda, depois de sua longa e
doloríssima experiência, acrescida do sofrimento trazido pela morte de sua
Carolina. Muitos anos antes, numa carta a ela, quando ainda noivos, ela
dizia-lhe:
Temos aí, pois, que uma das mais modernas e mais lúcidas exegeses no
desafiador Eclesiastes, a que adotou um homem apurado na Escola Bíblica
de Jerusalém, entende que o “sétimo selo” do livro é o Sermão da
Montanha.
Por mais estranho que pareça, teve essa visão Machado de Assis, mais de
50 anos antes de Pautrel, que é um especialista.
Aí está. Termino dizendo que está é a chave para entender o sentido final
da obra de ficção machadiana. Não se pode isola-la das cartas, das crônicas,
deste trecho, ora citado. Elas e ele informam a tese do pessimismo radical.
Sim, porque, na verdade, Machado mergulhou fundo os olhos no
espetáculo do sub sole, para os erguer depois, banhados na luz da
Esperança Teologal.