Estudos do Discurso II
I- INTRODUÇÃO
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Todo enunciado é produto de um acontecimento único, sua enunciação, que supõe um enunciador, um
destinatário, um momento e um lugar particulares. Esse conjunto de elementos define a situação de
enunciação. (MAINGUENEAU, 1996, p. 5).
Vamos, primeiramente, estudar os fenômenos da anáfora e da catáfora,
responsáveis pela progressão referencial, pois contribuem de maneira essencial para
ligar entre si os enunciados de um texto, dando-lhe coesão e fazendo-o progredir.
A- ANÁFORA
2
Em sua forma canônica, um grupo nominal é constituído de um determinante e um nome: As
declarações do Ministro foram preocupantes. O grupo nominal ampliado é uma expansão dessa forma
mínima pelo acréscimo de elementos facultativos, tais como: adjetivo qualificativo (um livro chato),
grupo preposicional (um documentário sobre remédios suaves), subordinadas relativas (o espião que
vinha do frio) e reduzidas de infinitivo (O remédio era ficar em casa).
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Apud Marcuschi (2000, p.195).
consciência, a ruptura com o enredo factual. Essas são
as características da obra de Clarice Lispector.
• Pronomes possessivos A Juliana teria outro bebê. Seu amado está feliz.
• Pronomes relativos Em 1944 Clarice Lispector vai com o marido para
Nápoles onde trabalha num hospital da Força
Expedicionária Brasileira.
• Pronomes indefinidos Clarice Lispector escreveu muitas obras. Cada uma
expressando uma semelhante concepção de mundo.
• Numerais ordinais Provavelmente os romances de maior repercussão de
Clarice Lispector sejam "Perto do Coração Selvagem" e
"A Paixão Segundo GH". O primeiro escrito em 1943; o
segundo, em 1969.
• Numerais cardinais Provavelmente os romances de maior repercussão de
Clarice Lispector sejam "Perto do Coração Selvagem" e
"A Paixão Segundo GH". Os dois receberam muitas
críticas.
• Multiplicativos Ontem recebemos dez páginas com textos de Clarice
Lispector. Hoje, o dobro.
• Fracionários As disciplinas do Curso de Comunicação Social foram
assim distribuídas: um terço pertence ao tronco comum
e dois terços às especializações.
• Advérbios Depois de estadas na Suíça e nos Estados Unidos,
Clarice Lispector fixou-se no Rio de Janeiro. Lá viveu
até a morte.
• Expressões adverbiais Se em "A hora da estrela" Clarice Lispector enfrenta o
tema da solidão, é para alertar quanto à importância do
enfrentamento das desigualdades sociais e do enigma da
vida. Assim, restitui à ficção o papel de imprimir novas
perspectivas e novo sabor aos problemas e indagações
que nos cercam.
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Chamadas de “anáforas esquemáticas” por Marcuschi (2000b).
Seguem-se mais alguns exemplos de pronomes que não retomam referentes
anteriormente introduzidos, mas ativam novos referentes com base em elementos
prévios que aparecem no discurso (âncoras):
(9) Quando Maria disse que ia se casar, perguntaram-lhe o que ele faz.
(10) Estamos pescando há mais de duas horas e nada; eles simplesmente não mordem a
isca.
(11) No nordeste brasileiro, eles têm as mais belas praias do mundo.
(12) Para a família Kamierski, é mais um dia de trabalho. (...) Seis meses por ano, ela
colhe os frutos de seu trabalho. Só lhes resta torcer para que o tempo coopere.
No entanto, quando vários grupos nominais podem desempenhar o papel de
antecedente de um mesmo pronome, o receptor encontra ambiguidades, que podem ser
ainda mais complicadas quando vários pronomes remetem a grupos nominais diferentes.
(13) A fada deu roupas de ouro e prata à menina, depois ela a fez subir em uma
carruagem atrás dela e elas se dirigiram ao reino de Charmant, recém-chegado com seu
fiel amigo, que a encantou.
No exemplo (13), apesar da identidade de gênero (feminino), o sujeito da primeira
frase (a fada) se impõe como antecedente da primeira ocorrência do pronome ela, do
mesmo modo que o complemento menina é o antecedente do pronome a.
(15) Há anos atrás, as famílias escolhiam com quem seus filhos deveriam se relacionar.
Em razão desta consideração, não havia relação social autêntica.
As ambiguidades podem ser resolvidas se os grupos nominais candidatos a
referente não estão colocados no mesmo plano. Em cada parágrafo, existe um grupo
nominal “hierarquicamente dominante”, que pode ser o grupo mais próximo ou o sujeito
do enunciado. A dominância de um grupo nominal permite então eleger o antecedente
privilegiado de um pronome. Outro modo de resolver ambiguidades é a ativação, pelo
leitor, de conhecimentos armazenados na memória.
Vale lembrar que há construções nos quais a ambiguidade não pode ser resolvida
pelo leitor devido ao emprego descuidado de pronomes ou determinadas estruturas
frasais. Guedes e Moreno (1989) discutem esses casos em exemplos como:
(16) Jorge disse a seu irmão que ele não ia ganhar um cavalo naquele Natal.
Percebe-se que o pronome pessoal de terceira pessoa – ele – pode referir-se tanto
a Jorge quanto a seu irmão. Os autores sugerem que a desambiguação seja feita através
da repetição do antecedente: “Jorge disse a seu irmão que ele (Jorge) não ia ganhar um
cavalo naquele Natal”. Se o resultado não for satisfatório, a alternativa, segundo eles, é
reescrever a frase toda como em “Jorge disse a seu irmão que estava desapontado por
não ganhar um cavalo naquele Natal”.
2 ANÁFORAS NOMINAIS (LEXICAIS)
A retomada anafórica nominal infiel pode dar-se por meio de termos que
possuem diferentes relações semânticas: sinonímia, hiponímia/hipernímia,
meronímia/holonímia (anáfora associativa). Um outro meio pelo qual a anáfora
nominal infiel se dá é o encapsulamento de uma extensão do discurso (anáfora
resumitiva).
O reconhecimento das relações anafórias nominais infiéis misturam
estreitamente as competências lexical e enciclopédica, isto é, a associação entre esses
grupos nominais repousa 9 sobre conhecimentos semânticos armazenados no léxico ou
sobre conhecimentos de mundo compartilhados pela comunidade linguística.
(20) Era um manuscrito de umas cinquenta páginas. Cedo compreendi que essas folhas
traziam ensinamentos valiosos.
(24) O salão foi todo decorado com gérberas vermelhas. As flores foram a atração da
festa.
5
A hiponímia também pode receber as seguintes denominações: subordinação/superordenação,
subclasse/(super)classe, relação de classificação e relação é um.
2.2.3 Anáfora por Meronímia (Anáfora Associativa)
Ex.: Paul acaba de comprar uma casa, o teto e as paredes estão em bom estado, mas as
janelas e as venezianas devem ser refeitas. O antigo proprietário lhe indicou um bom
marceneiro.
2 Grupo X Membros
Ex.: O corpo docente ainda está em reunião. A professora Isabel foi a única a ser
liberada.
3 Objeto X Substância
Ex.: O sorvete não ficou bom. A essência de morango tem gosto estranho.
4 Todo X Porção
Ex.: Quero vender a mesa da minha sala. O único problema é que a madeira está um
pouco marcada
5 Lugar X Localidade
Ex.: Você vai adorar Porto Alegre. Vale a pena visitar Usina do Gasômetro.
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Fenômeno chamado de “rotulação” (cf. Francis, 2003). A rotulação, segundo Francis, tanto pode ser
prospectiva (catafórica) como retrospectiva (anafórica). 7 Retirado de Francis (2003, p.195).
7
Retirado de Francis (2003, p.195).
esquema de referência dentro do qual o próximo segmento de texto vai ser
desenvolvido.
Esse tipo de retomada toma freqüentemente a forma de nominalização8. O grupo
nominal anafórico pode conter um nome formado a partir de um verbo ou de um
adjetivo, que não figuram necessariamente no contexto anterior.
(27) Nossa gata foi atropelada por um carro. Esse acidente deixou-lhe traços.
(28) Durante a guerra, Frisch foi convocado pelo exercito suíço e foi engajado nas
forças da fronteira. Esta experiência ajudou a confirmar sua opinião de que a decisão
da suíça de permanecer neutra foi mais uma questão de sorte do que de julgamento e de
que isso refletiu mais uma falta de compromisso do que uma declaração moral.
Contudo, a posição neutra da suíça deu-lhe uma vantagem única, que foi a de enxergar
os acontecimentos de uma guerra que se alastrou fora de suas fronteiras.9
8
O processo de nominalização consiste na passagem de um verbo ou de uma ação mais complexa para
um nome.
9
Retirado de Francis (2003, p. 198).
(29) “Imagino que Henrique II deve ter sentido mais ou menos o que os jovens Bruno e
Cidimar sentiram ao marcar os gols de Grêmio e Inter, no domingo. Na capa da Zero
de segunda lá estavam eles, um de cada lado, estuantes de felicidade. Foi o primeiro
gol de Bruno no Campeonato. O primeiro de Cidimar diante de sua torcida.
Quanta alegria pela façanha estava impressa no rosto dos dois” (David Coimbra, ZH,
10/02/04).
(32) Marta vai caminhar todos os domingos no Parcão. Se ela não o fizesse, não teria
tão boa saúde.
(33) O time não aproveitou as oportunidades. Se o fizesse, teria ganho a partida.
(34) Paulo dorme mais do que o faz Tiago. (“o faz” anaforiza “dorme”)
B- CATÁFORA
A catáfora recorre muito aos pronomes invariáveis neutros como isso ou o com
valor “redutivo”, isto é, que resumem unidades de extensão pelo menos igual à frase.
(MAINGUENEAU, 2001, p. 198).
No entanto, casos de encapsulamento de extensões de discurso, como os que
ocorrem anaforicamente, podem funcionar também cataforicamente. Veja-se o exemplo:
(38) Eu sei que aproximadamente 12 por cento da população é canhota. Por que, então,
deve existir uma predominância tão grande de jogadores de golfe destros que, eu me
informei, se estende também aos tacos? Em resposta a essa indagação, um colega meu,
jogador de golfe, apresentou duas razões.
A primeira foi que os iniciantes normalmente começam com tacos que foram
herdados de outras pessoas, que são, em geral, destras. A segunda foi que, por motivos
técnicos, pessoas canhotas tornam-se bons jogadores de golfe com a mão direita.10
A expressão duas razões, em (38), permite ao leitor predizer a informação
precisa que vai parecer no próximo segmento de texto: explicação para “a
preponderância de jogadores de golfe destros”. A fim de alcançar essas expectativas, o
segmento de texto que segue o grupo nominal “duas razões” deve ser plenamente
compatível com a semântica de razão. Trata-se de um procedimento catafórico que tem
claramente um papel organizador que se estende para o todo do próximo parágrafo.11
Como o discurso é, por natureza linear, a catáfora, ao contrário da anáfora,
implica uma interpretação um pouco forçada, porque constrange o co-enunciador a
antecipar o que ainda será produzido no enunciado ou a esperar passivamente a
resolução do vazio assim criado (MAINGUENEAU, 2001, p. 198).
As noções de anáfora e catáfora podem ser agrupadas sob a noção de endófora.
Ou seja: endófora é o termo mais amplo para designar os diversos fenômenos de
retomada (anafóricos e catafóricos).
O fenômeno da anáfora não se confunde com o da dêixis. O elemento anafórico
retoma uma expressão que pode ser recuperada no texto ou na memória (por um
processo inferencial). O dêitico só pode ser recuperado na situação de enunciação.
Abaixo apresentamos um quadro-síntese dos recursos de coesão referencial
discutidos aqui.
10
Retirado de Francis (2003, p. 193).
11
Francis (2003) chama procedimentos catafóricos como esse de “rótulos prospectivos”.
(Sistematização: Marlene Teixeira, Maria Eduarda Giering e Isa Mara da Rosa
Alves)
Fontes de consulta: