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CLT LeeLee Ly Parecia muito pequeno o ideal de meu pai, naquele tempo, li. A escola, onde me matriculou também na caixa escolar — para ter direito a unifor- me ¢ merenda ~, devia me ensinar a ler, esctever € a fazer conta de cabega. O resto, dizia ele, é s6 ter satio,¢ iso se aprende copiando exemplos. Dificl no conferir razto a meu pai em seus mo~ ‘mentos de anjo. Ele pendia a cabega part a esquer- da, como se escutando 0 corago e falava sem labi- rintos, Dizia frases claras, acordando sorrisos & ‘caminhos. Parecia querer argumentar sem ele mes- ‘moter certeza, torando assim as paavras cuidadosas. Um pesar estrangeiro andow atordoando meu pouco entendimento. Ir para a escola era abandonar as brincadeiras sob a sombra antiga da mangueira; andor compos ‘era renunciaro debaixo da mesa resmungando men- tiras com o silencio, era ndo mais vistoriar 0 atris da casa buscando novas surpresas € outros convites. Contrapondo-se a essas perdas, havia @ vontade de desamarrar 0s nés, entrar em acordo com 0 desco- ahecidlo, abrir 0 eaderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir 0 tamanho do mistério, abrir portas para receber novas ligoes, destramelar as janelas e espiar mais longe. Tudo isso me encantava, Por definicao minha, perseguindo respostas, eu desconfiava ser a escola um lugar de muito respeito. Eta preciso ter a5 unhas limpas ¢ aparadas, cabelo penteado, cadero caprichado dentro de embornal, uniforme lavado ~ calga azul-marinho € camisa de fustio branco ~e passado com ferro de bras, goma de polvitho rala na gola, para no arranhar 0 pescogo. A professora, quando 0s alunos ainda na fila e do Jado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro, B me nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar. 14 em casa tinha uma caixa de sabonete vazia onde minha mae guardava seus muitos desmazelos, de todos os tamanhos, lec onere fern top Bu caregava comigo um chocalho de cascavel amarrado em um cordio encardido, preso no pesco- (90. Simpatia de minha mie part eu nao urinar na ‘cama, A gola engomadta dle minha camisa nao escon- dia essa sentenga pegonhenta, Eu vivia como a can- ‘Glo: “camisa aberta a0 peito, pés descalgos e bracos ‘nus’. S6 que l pelos meus lads nao havia *campinas’. Eu cortia pelos mates cheio de carrapichos e carra- patios, stando c6rrego, me equilibrando em pinguctas, -descobrindo frutas madras, suspeitando ninhos e pas- ‘strinhos, Trazia, ainda, uma vergonha de todo mun- ‘do, mas deixar sumir na “campina’ o chocalho, sim- ‘de minha mie, seria brincar com sua fé. Entio, andava devagarinho, pisando certo, aprumado € Inso, para evitar 0 chique-chique do chocalho. Cas- anda em dupla, me diziam, ¢ 0 chocalho serve chamar 0 outro. Ser obediente demandava muito sacrificio. Nao por naturez, mas por conveniéncia eu crescia ‘obedecendo. Cumpria, de maneita exemplar, todos ‘65 deveres de filho, de aluno, de colega, sem acres: ‘centar resmungos. Comia coma boca Fechada até que- ‘bra-queixo ou penxa-puxa; domia cedo mesmo sem “ enn ogee Oe ‘sono, nio escutava conversas de adultos, escrevia com «letra bonita; cartegava simpatia no pescogo sem re- lamar, nto perguntava como carrega gua na penei- 1, no jogava conversa fora . Algumas vezes a curiosidade me instigava, mas, quase sempre, eu me controlava, fugindo para 0 siléncio, lugar cheio cle fantasmas © dividas, Tudo eu fazia, mesmo com sofrimento, para ser amado. E a obediéncia era uma condicao. Mas 0 amor con- pensava tudo, Ele chegava num pedago de doce a mais, num othar mais prolongado acariciando 0 co- Facao, num “vai com Deus" na saida para a escola, num quadro do Anjo-la-Guarda na cabeceira da cama, num pente fino pelos cabelos procurando piolhos, numa histéria de outro mundo contada na beira do Fogao. Vi meu Pai cochichar com minha mie, e de inicio enredei ser carinho, como o de Dr. jllo Le to € Dona Pequenina, Abri bem os ouvidos, pois ‘08 olhos niio dava, Fle dizia ser o Dr. Jair, seu pa- tno, como uma cobra: mordia e soprava. Eu balan- Sava a cabega, com forga, le vez em quando, acor- dando a simpatia de minha mae. Vontade de chamar ec extra ee cba ‘outro cascavel s6 para ver uma cobra mordendo € ‘soprando, s¢ frio ou quente seu bafo. Dr. Jair visitou minha mae, uma noite, com a unba do dedinho bem comprida e brilhante, talvez para buscar comida para seus carrapatos. Nao sai de per- ‘10 dele nem tirei os olhos de sua boca, esperando 0 omem morder e soprat. Ele falou foi muito de ri- _queza e de como contava com 0 trabalho de meu seu melhor empregado, capaz de carregar gua “em pencira. Perdi meu tempo. Na escola aprendi muito sobre 0 veneno das ¢o- sem jamais saber que as cobras nao escuta- n. Joguei foi o tempo fora. Quase nao via cobra, ‘lo sera que Nossa Senhora da com ua e anjo. E se viva entre lua e anjo, a cobra devia ser fria como prata € capa de voar jsava no altar, mis A pobreza pesava basunte sobre os ombros Je meu pai. Trabalhava dia e noite, estrada afora, ver do lama ¢ poeira, regressando cansado, lastimo- ainda caregando ‘gua na peneira, escondido de toxkos, Eu via seu destnimo em vencer a distineia

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