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A coisa não datava apenas dessa visita a Pardon. Havia algum tempo ele
tinha a curiosa impressão de que todo mundo era mais jovem que ele, quer
se tratasse do prefeito ou dos juízes de instrução, dos réus que ele
interrogava ou, agora, desse dr. Rian, louro e afável, que não tinha nem
quarenta anos.
Um garoto, em suma, quando muito um moço, não obstante grave e
seguro de si, que decidiria mais ou menos sua sorte.
Esse pensamento o irritava e o inquietava ao mesmo tempo, pois ele
não se sentia um homem idoso, nem mesmo um homem que começa a
envelhecer.
A juventude não impedia o dr. Rian de morar numa bela mansão
particular de tijolos rosados, no Boulevard des États-Unis. Se a construção
lembrava um pouco o estilo 1900, mesmo assim era suntuosa, com escadas
de mármore, tapetes, móveis polidos e uma camareira de touca com
bordado inglês.
– Suponho que seus pais já faleceram... Do que morreu seu pai?
O médico anotava as respostas numa ficha, minuciosamente, com uma
escrita regular de contador de empresa.
– E sua mãe?... Tem irmãos?... Irmãs?... Doenças infantis?...
Rubéola?... Escarlatina?...
Escarlatina não, mas ele tivera rubéola, muito jovem, quando a mãe
ainda vivia. Era mesmo a lembrança mais forte, mais calorosa que
conservara dela, pois pouco tempo depois haveria de perdê-la.
– Que esportes praticou?... Sofreu acidentes?... Tem inflamações
frequentes na garganta?... Fuma muito, não é mesmo?
O jovem doutor sorriu, malicioso, a fim de mostrar a Maigret que o
conhecia de reputação.
– Não se pode dizer que tenha uma vida sedentária...
– Depende dos momentos. Às vezes, durante três semanas ou um mês,
fico o tempo todo na minha sala, para em seguida estar fora durante vários
dias.
– Refeições regulares?
– Não.
– Faz algum regime?
Ele não devia confessar que gostava de pratos bem cozidos, de molhos
condimentados e perfumados com especiarias?
– Não apenas gourmet, mas um bom garfo, não é?
– Sim, bastante.
– E o vinho? Meio litro, um litro por dia?
– Sim... Não... Um pouco mais. Nas refeições, bebo apenas dois ou três
copos. No trabalho, às vezes uma cerveja, que mando vir de uma brasserie
vizinha.
– Aperitivos?
– Seguidamente, com um ou outro dos meus colegas.
Na Brasserie Dauphine. Mas não era pelo vício da bebida, e sim pelo
ambiente, aconchegante, familiar, pelo cheiro de cozinha, de anis e
conhaque que acabara por impregnar as paredes. Por que ele sentia
vergonha, de repente, diante desse jovem tão asseado e bem alojado?
– Em suma, nenhum verdadeiro excesso...
Ele queria ser honesto.
– Depende do que chama de excesso. À noite, não recuso um ou dois
copos de um licor de ameixa que minha cunhada envia da Alsácia... Meus
inquéritos exigem com frequência que eu passe um certo tempo em cafés ou
em bares... É difícil lhe explicar. Se começo um inquérito com cachaça, por
exemplo, porque estou num boteco cuja especialidade é essa, tenho a
tendência a continuar na cachaça...
– Quanto por dia?
Isso lhe lembrou a infância, o confessionário do vilarejo que cheirava a
mofo e o padre que aspirava rapé.
– Muito?
– Imagino que certamente, na sua opinião, é muito...
– E dura muito tempo?
– Às vezes três dias, outras vezes oito ou dez, se não mais. Depende
das circunstâncias...
Não lhe faziam censuras, não lhe davam o terço a rezar como
penitência, mas ele adivinhava o que o médico louro, sentado ao sol,
inclinado sobre uma bela mesa de mogno, pensava dele.
– Indigestões muito fortes? Azia? Tonturas?
Tonturas, sim. Mas nada grave. Acontecia-lhe, sobretudo de algumas
semanas para cá, de sentir-se num universo menos firme que tivesse perdido
sua realidade. Ele mesmo flutuava, mal seguro sobre as pernas.
Não era bastante forte para de fato inquietá-lo, mas era desagradável.
Felizmente durava apenas alguns minutos. Certa vez, teve uma tontura
quando ia atravessar o Boulevard du Palais e esperou na calçada.
– Compreendo... compreendo...
Compreendia o quê? Que ele estava doente? Que fumava e bebia
muito? Que já era tempo, na sua idade, de fazer um regime?
Maigret não estava abatido. Sorria, com aquele sorriso que a mulher
via nele desde que estavam em Vichy. Dava a impressão de zombar de si
mesmo, no entanto estava um pouco tristonho.
– Vamos passar à sala ao lado...
Exames completos, desta vez! Fizeram-no inclusive subir e desde
durante três minutos os degraus de uma escadinha. Pressão arterial nas
posições deitada, sentada, de pé. Depois, raio X.
– Respire... Mais fundo... Não respire mais... Aspire... Conserve o ar...
Expire...
Era cômico e aflitivo, dramático e maluco. Ele ainda tinha, talvez,
trinta anos por viver, mas também podiam, dentro de alguns minutos,
anunciar-lhe com rodeios que sua vida de homem saudável, de homem
normal, havia acabado, e que dali por diante não seria mais que um
inválido.
Todos haviam passado por ali, todos os que ele encontrava no parque,
em volta das fontes, sob as árvores suntuosas, ao longo do rio, e mesmo os
que se bronzeavam na praia, os jogadores de bocha, os jogadores de tênis
que se viam na outra margem do Allier, junto ao arvoredo do Sporting Club.
– Srta. Jeanne...
– Sim, senhor...
A enfermeira sabia o que devia trazer. Tudo isso fazia parte de uma
rotina como a que os Maigret iam adotar.
Primeiro o aparelhinho para lhe picar a ponta do dedo e recolher gotas
de sangue que se distribuíam em diferentes provetas.
– Relaxe... Pressione por um momento o punho...
Uma agulha picou-lhe a veia do braço.
– Solte.
Não era a primeira vez que ele fazia um exame de sangue, mas
pareceu-lhe que este possuía uma espécie de solenidade.
– Eu lhe agradeço... Pode se vestir.
Pouco depois eles estavam de volta ao consultório com as paredes
cobertas de livros e revistas médicas encadernadas ano a ano.
– Não creio que um tratamento severo seja necessário no seu caso.
Tornarei a vê-lo depois de amanhã à mesma hora, quando tiver os
resultados das análises. Daqui até lá, vou lhe estabelecer um regime. Está
hospedado no hotel, não é mesmo? Basta entregar este papel ao hoteleiro.
Ele compreenderá.
Era um cartão impresso, com os pratos autorizados numa coluna e, na
outra, os pratos proibidos. No verso havia inclusive exemplos de cardápios.
– Não sei se está sabendo da ação curativa das diferentes fontes. Sobre
esse assunto, há um livrinho muito bem-escrito por dois de meus colegas,
mas acho que está esgotado. Vamos alternar, de início, a água de duas
fontes, Chomel e Grande Grille; o senhor encontrará ambas no parque...
Os dois estavam sérios. Maigret não teve vontade de alçar os ombros
nem de rir, enquanto o doutor escrevia numa folha de bloco.
– Tem o hábito de levantar cedo e tomar seu café da manhã?...
Entendo... Sua mulher o acompanha? Nesse caso, não vou enviá-lo em
jejum à cidade... Vejamos... Comecem de manhã, por volta das dez e meia,
com a Grande Grille... Encontrará cadeiras onde repousar e, se estiver
chovendo, um amplo hall envidraçado... A cada meia hora, por três vezes,
beberá um copo d’água, que deve ingerir o mais quente possível...
“À tarde, por volta das cinco horas, fará o mesmo na fonte Chomel.
“Não se surpreenda se, no dia seguinte, sentir-se um pouco cansado. É
um efeito passageiro do tratamento. Aliás, tornarei a vê-lo então...”
Tudo isso já estava distante, quando ele era um novato que confundia
uma fonte com outra. Agora já estava instalado no tratamento, como os
milhares, as dezenas de milhares de homens e mulheres com quem convivia
da manhã à noite.
Em certas horas, todas as cadeiras amarelas do parque estavam
ocupadas, como à noite em volta do coreto, cada um e cada uma esperando
o momento de ir beber sua segunda, sua terceira, sua quarta doses.
Ele havia, como os outros, comprado um copo graduado, e a sra.
Maigret também quis ter o seu.
– Mas você também vai fazer o tratamento?
– Por que não? Que risco eu corro? Li, nos prospectos, que as águas
fazem emagrecer.
Os copos eram guardados em estojos de palha trançada, e a sra.
Maigret trazia os dois a tiracolo, da mesma forma que os turfistas carregam
seus binóculos.
Os dois nunca tinham passeado tanto. Às nove da manhã já estavam
caminhando e, com exceção dos entregadores, não havia mais quase
ninguém nas ruas tranquilas do bairro onde habitavam, o Quartier de
France, não distante da fonte dos Célestins.
A poucos minutos do hotel, havia um parque para crianças, com uma
piscina pouco profunda, balanços, jogos os mais diversos e até mesmo um
teatro de marionetes mais completo que o dos Champs-Élysées.
– Tem o bilhete, senhor?
Cada um pagou um franco, e os dois ficaram andando sob as árvores,
olhando as crianças se divertirem, quase nuas, e voltaram no dia seguinte.
– Se comprar um ingresso de vinte tíquetes, sairá mais barato.
Ele não teve coragem. Era muito premeditado. Haviam passado ali por
acaso e era somente por hábito, por não terem o que fazer, que voltavam
todo dia à mesma hora.
Depois paravam no lugar reservado aos jogadores de bocha, e Maigret
acompanhava com atenção duas ou três partidas, reencontrando debaixo de
uma mesma árvore o magro alto que tinha só um braço e que, no entanto,
era o melhor jogador.
Numa outra quadra, onde ressoava o sotaque meridional, um homem de
pele rosada, cabelos muito brancos, vestido com esmero, jogava com
dignidade e os outros o chamavam de senador.
Um pouco mais adiante começava a praia, com a barraca dos guardas
municipais, as bolas flutuantes que delimitavam a área de banho, e ali se
reencontravam as mesmas pessoas sob os mesmos guarda-sóis.
– Não se aborrece? – ela lhe perguntara no segundo dia.
– Por quê? – ele se surpreendera.
Pois não estava aborrecido. Aos poucos adotava um novo ritmo, outras
manias. Assim, foi com espanto que percebeu que enchia automaticamente
um cachimbo ao chegar à ponte de Bellerive. E foi fumando um cachimbo
que, na margem do Yacht Club, ficou olhando, com a mulher, os rapazes e
moças que praticavam esqui aquático.
– Não acha que é um esporte perigoso?
– Por quê?
O parque, enfim, os copos d’água que uma empregada lhes enchia na
fonte e que cada um bebia em pequenos goles. A água era quente e salgada.
Na fonte Chomel, tinha um gosto forte de enxofre, e Maigret se apressava
em acender um novo cachimbo.
A sra. Maigret se espantava de vê-lo tão dócil, tão calmo, a ponto de se
inquietar com isso.
Foi então que ela descobriu que ele brincava, de certo modo, de
detetive, observando as pessoas, como que involuntariamente, percebendo
pequenos detalhes, classificando-os por categorias. Por exemplo, no Hôtel
de la Bérézina, espécie de pensão familiar onde se hospedavam, ele já fizera
a distinção, conforme o regime, entre hepáticos e diabéticos.
Procurava adivinhar a história de cada um, situá-los em sua vida
normal e, às vezes, fazia sua mulher participar desse passatempo.
Os dois que ele chamava de “sorridentes” o fascinavam, aquele homem
gordo que parecia sempre a ponto de vir apertar-lhe a mão e sua mulher
gorduchinha, que se assemelhava a um bombom. O que eles podiam fazer
na vida? Haviam reconhecido o comissário por terem visto sua fotografia
nos jornais?
Na verdade, ali, poucas pessoas o reconheciam, muito menos do que
em Paris. É verdade que sua mulher o fizera comprar um casaco leve, quase
branco, de alpaca, como usavam os homens de uma certa idade, no verão,
quando ele era criança.
Mas mesmo sem isso, certamente, não teriam pensado nele. Estava
certo de que os que franziam as sobrancelhas ao vê-lo, ou que se viravam,
diziam a si mesmos: “Sujeito parecido com o Maigret...”.
Mas não pensavam que fosse Maigret. Aliás, ele era muito pouco
Maigret naquele momento.
Outra personagem fascinante era a dama de lilás... Ela também fazia
um tratamento, somente na Grande Grille, onde eles se viam toda manhã.
Tinha seu lugar, um pouco à parte dos outros, perto da banca de jornais.
Bebia a água de uma só vez; depois, tendo lavado e enxugado o copo,
recolocava-o com cuidado no estojo de palha, sempre digna e distante...
Três ou quatro pessoas a cumprimentaram. Os Maigret não a viam à
tarde. Iria ao setor de hidroterapia? O médico lhe ordenara que
permanecesse deitada?
– Velocidade de sedimentação perfeita – anunciara-lhe o dr. Rian. –
Média horária: 6 mm... Colesterol um pouco alto, mas dentro de limites
aceitáveis... Ureia normal... Ferro sérico em quantidade bastante pequena, o
que nada tem de inquietante... O ácido úrico também não... Eu lhe suprimi a
carne de animais de caça, os miúdos, os crustáceos... Quanto ao exame
hematológico, está excelente, com 98 de hemoglobina...
“Tudo o que necessita é de uma boa limpeza do organismo... Não sente
peso no estômago, dor de cabeça?... Então vamos manter o mesmo regime
nos próximos dias. Volte aqui no sábado.”
Naquela noite, noite de música no coreto, eles não viram a que horas a
dama de lilás se retirou, pois nunca esperavam o final do concerto e
voltavam cedo ao Quartier de France, com suas ruas desertas e suas
fachadas recém-pintadas, ao Hôtel de la Bérézina cuja porta dupla era
flanqueada de dois arbustos em vasos.
Dormiam num leito de cobre e todos os móveis datavam do começo do
século, como a banheira de pés e as torneiras em pescoço de cisne.
O hotel era bem cuidado, silencioso, exceto quando o filho dos
Gagnaire, que se hospedavam no primeiro andar, brincava sozinho de índio
no jardim.
Todos dormiam.
Era o quinto, o sexto dia? A sra. Maigret sentia-se desorientada, de
manhã, por não precisar preparar o café. Às sete horas traziam-lhes o
desjejum numa bandeja, com croissants frescos e o jornal de Clermont-
Ferrand, que dedicava duas páginas à vida de Vichy.
Maigret se habituara a lê-las da primeira à última linha, de modo que
estava a par dos menores acontecimentos locais. Lia inclusive as notas de
falecimento e os classificados.
– Casa três quartos, banheiro, todo o conforto, excelente estado, vista
insuperável de...
– Está pensando em comprar uma casa?
– Não, mas é interessante. Pergunto-me se são clientes em tratamento
que fazem questão de ter uma casa para passar aqui um mês por ano, ou se
são aposentados de Paris ou de outros lugares que...
Depois de se vestirem, desciam, e o dono do hotel não deixava de
cumprimentá-los na base da escada, coberta por um tapete vermelho preso
por passadeiras de cobre. Ele não era natural da região, mas de Montélimar,
o que se percebia pelo sotaque.
Viam as horas passarem devagarinho... O parque infantil, os jogadores
de bocha...
– Vi que toda quarta-feira e todo sábado há uma feira. Podemos dar
uma espiada.
Ele sempre gostou de feiras, do cheiro dos legumes e das frutas, dos
pedaços de carne expostos, dos peixes, das lagostas ainda vivas...
– Rian recomendou-me fazer cinco quilômetros de caminhada por dia...
Sua voz era irônica.
– Ele não sabe que fazemos uma média de quinze!
– Você acha?
– Calcule... Caminhamos um mínimo de cinco horas. Se não andamos a
um passo de atleta, fazemos pelo menos entre três e quatro quilômetros por
hora...
– Eu nunca teria imaginado...
O copo d’água. A cadeira amarela e a leitura dos jornais de Paris que
acabavam de chegar. O almoço no restaurante completamente branco do
hotel onde, em algumas mesas, via-se uma garrafa de vinho já começada,
etiquetada com o nome do pensionista. Não havia nenhuma na mesa dos
Maigret.
– Ele lhe proibiu o vinho?
– Não formalmente. Mas já que me recomendam...
Ela estava pasma de vê-lo tornar-se um curista consciencioso e
conservar no entanto o bom humor.
Ele fazia uma sesta, depois a rotina recomeçava, do outro lado da
cidade desta vez, nas ruas de comércio, nas lojas, em meio à multidão que
os separava a todo momento na calçada.
– Notou o número de pedicures e de ortopedistas?
– Se todo o mundo caminhasse tanto quanto nós!...
Não havia concerto no coreto naquela noite, mas no jardim do Grand
Casino. Os instrumentos de cordas haviam substituído os metais, e a música
era mais séria, assim como os rostos dos que a escutavam.
Eles não viram a dama de lilás. Também não a encontraram nas aleias
do parque, onde não deixaram de cruzar o casal de gordinhos sorridentes.
Estes se vestiam com mais cuidado que de costume e andavam depressa em
direção ao teatro do cassino, onde era apresentada uma peça cômica.
O leito de cobre. O tempo passava a uma velocidade surpreendente,
sem nada para fazer. Os croissants, o café, os torrões de açúcar envoltos em
papel manteiga, o jornal de Clermont-Ferrand.
Maigret, na sua poltrona perto da janela, fumava seu primeiro
cachimbo, de pijama, ainda com sua taça de café, que fazia durar o maior
tempo possível.
Quando ele soltou uma exclamação, a sra. Maigret surgiu do banheiro,
vestindo um penhoar de flores azuis, com a escova de dentes na mão.
– Que houve?
– Veja...
Na primeira página dedicada a Vichy, uma fotografia: a da dama de
lilás. A aparência era de alguns anos mais jovem, e ela fizera o esforço, para
o fotógrafo, de pôr um leve sorriso nos lábios.
– Que aconteceu com ela?
– Foi assassinada.
– Na noite passada?
– Se tivesse acontecido a noite passada, o jornal não poderia noticiar
esta manhã... Deve ter sido anteontem à noite.
– Quando a vimos no coreto...
– Sim, por volta das nove horas... Ela voltou para casa, a duas ruas
daqui, Rue du Bourbonnais. Eu não imaginava que fôssemos quase
vizinhos... Teve o tempo de retirar o xale, o chapéu, de entrar na sala, à
esquerda do corredor...
– Como foi morta?
– Estrangulada... Ontem de manhã, seus locatários se surpreenderam de
não ouvir ruídos no térreo...
– Ela não era curista?
– Mora em Vichy o ano todo. É proprietária de uma casa, cujos quartos
do primeiro andar aluga, mobiliados.
Maigret continuava sentado, e sua mulher sabia a preço de que esforço.
– Acha que foi um latrocínio?
– O assassino vasculhou tudo, mas parece não ter levado nada. Foram
encontradas algumas joias e uma certa quantia de dinheiro numa gaveta
que, no entanto, foi aberta...
– Ela não foi...
– Violentada? Não.
Ele olhou a janela em silêncio.
– Sabe quem dirige o inquérito?
– Evidentemente que não.
– Lecoeur, que foi um dos meus inspetores e agora é chefe da Polícia
Judiciária em Clermont-Ferrand... Ele está aqui... E não sabe que estou aqui
também...
– Pretende ir vê-lo?
Ele não respondeu de imediato.
CAPÍTULO II
Ele bebeu seu primeiro copo d’água e reencontrou seu lugar, entre o vasto
hall envidraçado das fontes e a primeira árvore. Sentiu que a mulher,
embora não lhe fizesse perguntas, estava atenta a seus menores gestos, a
suas expressões fisionômicas.
Com o jornal sobre os joelhos, ficou olhando, através da folhagem
quase imóvel, o céu de um azul muito puro, no qual flutuava uma pequena
nuvem branca e cintilante.
Em Paris ele se queixava às vezes de não mais reencontrar certas
sensações de que tinha saudades: uma lufada de ar aquecido pelo sol, na
face, os jogos de luz entre as folhas e sobre o cascalho, o rangido deste sob
os passos da multidão e até mesmo o cheiro da poeira...
Aqui o milagre acontecia. Enquanto pensava na sua conversa com
Lecoeur, sentia-se como que envolvido no ambiente, e nada do que se
passava ao redor lhe escapava.
Pensava realmente? Fantasiava? Viam-se passar famílias, em toda
parte, mas os casais de idade madura eram mais numerosos.
Entre os solitários, predominavam os homens ou as mulheres? As
mulheres, sobretudo as mais velhas, tinham tendência a se aglomerar.
Arranjavam as cadeiras em círculos de seis, de oito, e se inclinavam umas
para as outras como quem troca confidências, embora se conhecessem
apenas há poucos dias.
Quem sabe? Talvez fossem verdadeiras confidências. Elas
conversavam sobre seus males, seu médico, seu tratamento, depois sobre os
filhos casados, os netos, dos quais pegavam fotografias da bolsa de mão.
Eram raras as que se sentavam sozinhas à parte, como a dama de lilás
cujo nome ele agora conhecia.
Os isolados eram mais numerosos entre os homens, com frequência
marcados pelo cansaço ou pela doença e que procuravam atravessar a
multidão com dignidade. Mesmo assim adivinhava-se nos seus traços, no
seu olhar, uma espécie de aflição, um vago temor de cair, entre as pernas
dos passantes, numa poça de sombra ou de sol.
Hélène Lange era uma solitária, e sua atitude, seu porte, revelavam um
certo orgulho. Não queria ser tratada como solteirona, não aceitava a
piedade, andava muito empertigada, com o passo ligeiro e o queixo para
cima.
Não se abria com ninguém, não tinha nenhuma necessidade de aliviar
sua alma ou seu espírito por confidências fáceis.
Havia escolhido viver sozinha?
É o que ele se perguntava, fazendo um esforço de tornar a vê-la,
sentada, de pé, imóvel, em movimento.
– Eles têm uma pista?
A sra. Maigret começava a ter ciúmes do seu devaneio. Em Paris ela
não teria ousado interrogar o marido durante uma investigação. Mas aqui,
enquanto caminhavam lado a lado durante horas, não haviam se habituado a
pensar em voz alta?
Nunca era uma verdadeira conversa, uma troca de réplicas precisas,
mas quase sempre algumas palavras, uma observação que bastava para
indicar o curso dos pensamentos de um ou do outro.
– Não. Eles esperam a irmã...
– Ela não tem outro parente?
– Parece que não.
– Está na hora do teu segundo copo...
Entraram no hall, onde as cabeças das servidoras de água
ultrapassavam o fosso no qual trabalhavam. Hélène Lange vinha beber aqui
todo dia. Era por ordem do médico ou apenas para ter um objetivo de
passeio?
– Em que está pensando?
– Pergunto-me por que Vichy.
Havia cerca de dez anos que ela se instalara nessa cidade e comprara
depois uma casa. Portanto, tinha 37 anos na época e não parecia ter
necessidade de ganhar a vida, pois nos dois primeiros anos não alugou os
quartos do andar de cima.
– E por que não Vichy? – retrucou a sra. Maigret.
– Existem centenas de cidades pequenas e médias na França onde ela
poderia ter se fixado, sem contar La Rochelle, que ela conheceu durante a
infância e a adolescência... A irmã dela, depois de ter vivido em Paris,
retornou a La Rochelle e se fixou lá...
– Pode ser que as duas irmãs não se dessem bem...
Não era tão simples. Maigret continuava a olhar as pessoas andando e
seu ritmo lembrou-lhe um mesmo desfile incessante, noutro lugar, no sol de
verão. Em Nice, no Passeio dos Ingleses.
Afinal, antes de vir a Vichy, Hélène Lange tinha vivido cinco anos em
Nice.
– Ela morou cinco anos em Nice – ele disse em voz alta.
– Muitos pequenos capitalistas...
– Justamente... Pequenos capitalistas, mas também pessoas de todas as
camadas sociais, como aqui... Eu me perguntava anteontem o que me
lembrava a multidão que anda neste parque ou se senta nas cadeiras... É a
mesma que passeia diante do mar, em Nice. Uma multidão cujas origens
são tão diversas que ela se torna neutra... Aqui também deve haver ou
houve, entre os frequentadores, velhas glórias da galanteria, do teatro, do
cinema... Descobrimos um bairro de ricas mansões particulares onde ainda
se veem mordomos com colete listrado...
“Nas colinas há casas de campo suntuosas e secretas. Como em
Nice...”
– O que deduz disso?
– Nada. Ela tinha 32 anos quando começou a viver em Nice e estava
tão sozinha quanto aqui. Geralmente a solidão começa mais tarde...
– Existem males de amor...
– Eu sei, mas eles não produzem um rosto como o dela.
– Há também os casais que se separam...
– Noventa e cinco por cento das mulheres voltam a se casar.
– E os homens?
Ele deu um sorriso largo e, sem que ela pudesse saber se era um
gracejo, lançou:
– Cem por cento!
Em Nice havia uma população flutuante, sucursais de lojas de Paris,
vários cassinos. Em Vichy, dezenas de milhares de curistas renovavam-se a
cada 21 dias e encontravam-se as mesmas lojas, três cassinos, uma dúzia de
cinemas.
Em outro lugar a teriam conhecido, teriam se ocupado dela, teriam
observado o que fazia.
Em Nice não, em Vichy também não. Mas teria ela algo a esconder?
– Vai rever Lecoeur?
– Ele me convidou a ir vê-lo quando eu quiser. Continua a me chamar
de chefe, como quando ainda trabalhava comigo...
– Todos fazem isso.
– É verdade... Por hábito...
– Não acha que é mais por afeição?
Ele sacudiu os ombros, e os dois não tardaram a tomar o caminho de
volta. Desta vez passaram pelo centro antigo, parando diante de objetos, às
vezes comoventes, expostos nas vitrines dos antiquários.
Eles sabiam que, à mesa, os outros pensionistas os observavam, mas
era preciso habituar-se a isso. Maigret procurava comer seguindo as
recomendações do dr. Rian. Não engolir nada antes de ter mastigado com
cuidado, mesmo o purê de batatas. Não encher o garfo antes que a bocada
precedente fosse engolida. Não beber mais de um ou dois goles de água,
apenas tingida por um pouco de vinho...
Ele preferia se abster do vinho.
Dava algumas tragadas de cachimbo ao subir a escada, antes de se
espichar completamente vestido para a sesta. Entrava luz suficiente pelas
janelas para que sua mulher, na poltrona, pudesse ler o jornal, e na sua
sonolência ele ouvia às vezes o roçar da folha que ela virava.
Estava estendido havia uns vinte minutos quando bateram à porta. A
sra. Maigret foi até a entrada, abriu e tornou a fechar a porta. Houve alguns
cochichos, depois ela desceu, ficou ausente por alguns minutos.
– Era Lecoeur.
– Há novidades?
– A irmã acaba de chegar em Vichy. Foi à sede da polícia e será
conduzida ao necrotério para reconhecer o corpo. Lecoeur o espera na Rue
du Bourbonnais. Ele pergunta se você gostaria de assistir ao interrogatório
dela.
Maigret já estava de pé, resmungando, e começou por abrir as janelas
para devolver o quarto à luz e à vida.
– Volto a encontrá-lo na fonte?
O primeiro copo d’água na fonte era às cinco da tarde.
– Não vai durar muito tempo. É melhor que me espere num dos bancos
perto dos jogadores de bocha.
Hesitou em pegar o chapéu de palha.
– Tem medo de que riam de você?
Que rissem! Ele estava de férias, afinal, e o pôs decididamente na
cabeça.
Curiosos continuavam a passar e a parar na frente da casa, sempre
vigiada por um guarda. Quando constatavam que só havia janelas fechadas
para ver, não tardavam a se afastar, meneando a cabeça.
– Sente-se, chefe... Se colocar a cadeira no canto, perto da janela,
poderá vê-la em plena luz.
– Ainda não a encontrou?
– Eu estava almoçando, aliás num ótimo restaurante, quando me
avisaram que ela estava na sede de polícia. Ficaram de levá-la ao necrotério
e de trazê-la até aqui.
Através do tule das cortina, eles viram, de fato, um carro preto,
conduzido por um policial uniformizado, que precedia um grande carro
vermelho conversível. O casal no banco da frente, com os cabelos desfeitos,
pele bronzeada, acabava de voltar de férias.
O homem e a mulher conversaram por um momento, inclinados um
para o outro, e então, após um beijo rápido, a mulher desceu do carro e
bateu a porta, enquanto seu companheiro permaneceu sentado ao volante e
acendeu um cigarro.
Era moreno, com os traços do rosto firmes e ombros de esportista que
sua camisa polo, amarela, realçava. Ele ficou observando a casa sem
curiosidade, enquanto o guarda introduzia a mulher na sala.
– Comissário Lecoeur... Suponho que é Francine Lange...
– Exatamente.
Ela dirigiu um rápido olhar a Maigret que não lhe foi apresentado e
estava sentado à contraluz.
– Senhora ou senhorita?
– Não sou casada, se é o que pergunta. Meu namorado, que está no
carro, vive comigo. Mas conheço bem os homens para me casar; o difícil,
depois, é livrar-se deles.
Era uma mulher bonita que não aparentava seus quarenta anos e que,
na pequena sala convencional, exibia formas provocantes. Usava um
vestido cor de fogo muito leve, que parecia transparente, e podia-se jurar
que ainda cheirava a mar.
– O telegrama chegou ontem à noite... Lucien deu um jeito de
conseguirmos lugares no primeiro voo a Paris... Em Orly pegamos nosso
carro, que havíamos deixado ao partir.
– Suponho que é realmente de sua irmã que se trata.
Ela fez que sim com a cabeça, sem emoção.
– Não quer sentar-se?
– Obrigada. Posso fumar?
Ela olhou a fumaça que saía do cachimbo de Maigret com o ar de quem
diz: “Se aquele ali pode soprar sua chaminé, também tenho o direito de
acender um cigarro...”.
– Como quiser... Imagino que esse crime a surpreendeu tanto quanto a
nós.
– Claro que eu não esperava...
– Sabe se sua irmã tinha inimigos?
– Por que Hélène teria inimigos?
– Quando a viu pela última vez?
– Há seis ou sete anos, não sei exatamente. Lembro que foi no inverno
e que havia uma tempestade. Ela não me anunciou sua visita, e me
surpreendi de vê-la entrar tranquila no meu salão de beleza.
– Vocês se davam bem?
– Como entre irmãs. Não a conheci verdadeiramente, por causa da
diferença de idade. Ela saía da escola no momento em que eu entrava.
Depois fez cursos em La Rochelle, bem antes que eu me tornasse manicure.
A seguir, deixou a cidade...
– Com que idade?
– Deixe-me ver... Havia um ano que eu estava no estágio. Portanto, eu
tinha dezesseis anos. Somando sete, ela tinha então vinte e três anos.
– Escrevia a ela?
– Raramente. Em nossa família, não é costume.
– Sua mãe já havia falecido?
– Não, ela morreu dois anos mais tarde, e Hélène veio a Marsilly para a
partilha. Não havia muita coisa a partilhar. A mercearia não rendia quase
nada.
– O que fazia sua irmã em Paris?
Maigret não parava de examiná-la, ao mesmo tempo em que evocava a
figura e o rosto da morta. Havia poucos pontos comuns entre as duas
mulheres; Francine não tinha o rosto comprido da irmã, nem seus olhos
escuros. Os olhos dela eram azuis, os cabelos de um louro talvez acentuado
pela tintura, pois percebia-se, na frente, uma estranha mecha de um ruivo
gritante.
À primeira vista, era a mulher comunicativa que devia receber seus
clientes com um humor exuberante e mesmo um pouco exagerado. Não
tentava ser distinta, pelo contrário; acentuava como de propósito o que nela
havia de vulgar.
Menos de meia hora após ter contemplado o cadáver da irmã no
necrotério, já respondia com alegria às perguntas de Lecoeur a quem
parecia, por hábito, querer conquistar.
– O que ela fazia em Paris?... Acredito que era datilógrafa num
escritório, mas não fui lá para ver... Nós duas não éramos muito parecidas.
Aos quinze anos eu já tinha um namorado, que era motorista de táxi, e
desde então tive muitos outros. Não acho que isso fizesse o gênero de
Hélène, ou então ela escondia bem o jogo...
– Para qual endereço lhe escrevia?
– Lembro, no início, de um hotel na Avenue de Clichy, mas esqueci o
nome. Ela mudou de hotel com bastante frequência. Depois teve um
apartamento na Rue Notre-Dame-de-Lorette, não lembro mais o número...
– Quando ia a Paris, não a visitava?
– Sim, fui visitá-la na Rue Notre-Dame-de-Lorette, e fiquei surpresa de
vê-la tão bem alojada. Fiz-lhe essa observação. Ela tinha um belo quarto
que dava para a rua, um living, uma pequena cozinha e um verdadeiro
banheiro.
– Havia um homem na vida dela?
– Não pude descobrir. Eu queria ficar hospedada alguns dias ali,
enquanto procurava um quarto do meu agrado. Ela me respondeu que me
levaria a um hotel muito limpo e não muito caro, mas que não poderia viver
com alguém...
– Nem mesmo por três ou quatro dias?
– Foi o que compreendi.
– Isso não a surpreendeu?
– Não demais... Sabe, é preciso muito para me surpreender. Contanto
que as pessoas me deixem fazer o que me agrada, elas também são livres e
não faço perguntas.
– Quanto tempo ficou em Paris?
– Onze anos.
– Sempre como manicure?
– Primeiro como manicure, nos salões de bairro; depois, no final, num
hotel de luxo dos Champs-Élysées. Aprendi a profissão de esteticista.
– Vivia sozinha?
– Às vezes sim, outras vezes não...
– Encontrava sua irmã?
– Praticamente nunca.
– De modo que não sabe quase nada da vida dela em Paris...
– Tudo que sei é que ela trabalhava.
– Quando você voltou a La Rochelle para trabalhar por conta própria,
tinha muitas economias?
– Bastante.
Ele não perguntou como ela havia ganho esse dinheiro. Ela também
não falou, mas podia-se pensar que tinha por sabido que eles se
compreendiam.
– Nunca se casou?
– Já lhe respondi. Não sou tola o suficiente para isso...
E, virando-se para a janela através da qual se via seu namorado
exibindo-se ao volante do carro vermelho:
– Veja como parece um malandro...
– No entanto vive com ele...
– É meu empregado, aliás um ótimo cabeleireiro... Em La Rochelle
moramos separados, pois eu não gostaria de tê-lo noite e dia ao meu lado.
Nas férias, ainda passa...
– O carro é seu?
– Claro que sim.
– Mas foi ele que o escolheu?
– Adivinhou.
– Sua irmã nunca teve filhos?
– Por que me pergunta isso?
– Não sei... Era uma mulher...
– Que eu saiba, não... Parece-me que é algo que se saberia, não?
– E você?
– Tive um, quando vivia ainda em Paris, há uns quinze anos... Minha
primeira ideia foi livrar-me dele e teria sido melhor. Minha irmã é que me
aconselhou a deixá-lo nascer.
– Então vocês se viam nessa época?
– Fui procurá-la por causa disso. Tinha necessidade de falar com
alguém da família. Pode parecer engraçado, mas há momentos em que a
gente se lembra que tem família... Enfim, tive um filho, Philippe... Deixei-o
com uma ama de leite nos Vosges.
– Por que nos Vosges? Tem conhecidos lá?
– Nenhum. Hélène encontrou o endereço em não sei que caderneta...
Fui vê-lo umas dez vezes durante dois anos. Estava bem, na casa de
camponeses muito gentis. A casa era limpa... Depois, um belo dia, eles me
comunicaram que o pequeno havia se afogado num lago...
Ela ficou um momento pensativa, ergueu os ombros.
– Afinal, talvez tenha sido melhor para ele...
– Sabe se sua irmã tinha algum conhecido, amigo ou amiga?
– Não devia ter nenhum. Já em Marsilly ela olhava as outras meninas
de cima e a chamavam de princesa. Acho que na escola de
estenodatilografia, em La Rochelle, foi a mesma coisa.
– Era orgulhosa?
Ela hesitou, refletiu.
– Não sei. Eu não usaria essa palavra. Ela não gostava das pessoas, não
gostava do contato com as pessoas. É isso! Preferia ficar sozinha.
– Ela nunca tentou se suicidar?
– Por quê? Está pensando que...
Lecoeur sorriu.
– Não. Ninguém se suicida estrangulando-se. Pergunto apenas se,
anteriormente, ela não tentou pôr um fim à própria vida.
– Estou certa de que não. Ela se amava do jeito que era. No fundo,
estava muito satisfeita.
A palavra chamou a atenção de Maigret e ele tornou a ver a dama de
lilás sentada diante do coreto. Ele havia tentado então definir a expressão do
seu rosto e não conseguira.
Francine acabava de fazê-lo: ela se amava!
E amava-se tanto que, somente na sala, havia três fotografias dela, e
por certo havia outras na copa e no quarto que ele não tinha visitado.
Ninguém mais. Nenhum retrato da mãe, da irmã, de amigos ou amigas. À
beira do mar, fizera-se fotografar sozinha diante das ondas.
– Até novo anúncio, suponho que você é a única herdeira... Não
encontramos testamento entre os papéis dela. É verdade que estes foram
espalhados pelo assassino, mas não vejo por que razão ele teria levado um
testamento... E nenhum notário ainda se apresentou...
– Quando será o enterro?
– Cabe à senhorita decidir. O médico-legista já examinou o corpo, que
pode lhe ser entregue assim que desejar.
– Onde acha que devo enterrá-la?
– Não tenho a menor ideia.
– Aqui, não conheço ninguém. Em Marsilly, todo o mundo estaria
presente por curiosidade. Não sei se ela gostaria de retornar a Marsilly...
Escute, se não precisa mais de mim, vou procurar um quarto de hotel e
tomar um bom banho, pois sinto falta disso. Tentarei refletir e, amanhã de
manhã...
– Então lhe espero amanhã de manhã.
No momento de partir, após ter apertado a mão de Lecoeur, ela virou-se
um instante para Maigret, como se perguntando o que fazia ali, silencioso
no seu canto, e então franziu as sobrancelhas.
Teria o reconhecido?
– Até amanhã. O senhor foi muito gentil.
Eles a viram entrar no carro, inclinar-se em direção ao companheiro
para dizer-lhe algumas palavras, e o carro partiu.
Os dois homens se olharam, na sala, e Lecoeur foi o primeiro a lançar
um quase cômico:
– E então?
Ao que Maigret respondeu, tragando o cachimbo:
– Pois é! Então?
Ele não tinha vontade de conversar e não esquecia o encontro marcado
com a mulher perto dos jogadores de bocha.
– Até amanhã, meu velho.
– Até amanhã.
Ao sair, foi homenageado com uma saudação militar do guarda
municipal, mas não se orgulhou disso.
CAPÍTULO III
Ele atirou longe o jornal, sem raiva, pois estava acostumado com esse
tipo de fofoca e, alçando os ombros, olhou vagamente para fora.
Até as nove horas, fez exatamente o mesmo que nas outras manhãs e,
quando a sra. Maigret apareceu, com um vestido rosa, eles se dirigiram
naturalmente para a escada.
– Bom dia, senhores e senhoras...
Era a inevitável saudação matinal do dono do hotel. Maigret já havia
percebido duas figuras na calçada, um reflexo na objetiva de uma câmera
fotográfica.
– Eles o esperam há uma hora. Não são do La Montagne, onde falam
do senhor esta manhã, mas do La Tribune, de Saint-Étienne.
O homem com a câmera era um ruivo alto, o outro era um moreno
baixo com um ombro mais alto que o outro. Eles se precipitaram até a
entrada.
– Permite que tiremos uma foto, uma só?
De que adiantava recusar? Ele ficou um instante imóvel entre os dois
arbustos que flanqueavam a entrada, enquanto a sra. Maigret recuava na
penumbra.
– Levante um pouco a cabeça, por causa do chapéu...
Era a primeira vez desde muito tempo que o fotografavam com um
chapéu de palha; ele só o usava em Meung-sur-Loire, um velho chapéu de
jardineiro.
– Mais uma... Só um segundo... Obrigado...
– Diga, sr. Maigret, posso lhe perguntar se está se ocupando realmente
do caso?
– Como chefe da Brigada Criminal do Quai des Orfèvres, não devo me
envolver com o que se passa fora de Paris.
– Mas esse crime não lhe interessa?
– Como interessa à maior parte dos seus leitores.
– Ele não apresenta um caráter particular?
– Não entendo o que está querendo dizer...
– A vítima era uma mulher solitária, não se relacionava com ninguém.
Não parece haver nenhum motivo para...
– Quando a conhecermos melhor, o motivo por certo se tornará
evidente.
A frase era banal e não o comprometia. No entanto exprimia uma
verdade. Maigret não era o único a buscar, há muito tempo, conhecer o
caráter das vítimas. Os criminologistas dão cada vez mais importância ao
morto e chegam mesmo, em muitos casos, a atribuir-lhe uma boa parte da
responsabilidade.
Não havia, na vida e no comportamento de Hélène Lange, algo que a
predestinava, de certo modo, a morrer de morte violenta? Tão logo ele a
vira sob as folhagens do parque, ela chamara a atenção do comissário.
É verdade que outros, como o casal de sorridentes, o haviam
interessado também.
– O comissário Lecoeur não fez parte da sua equipe?
– Ele trabalhou na P.J. de Paris.
– O senhor o viu?
– Cumprimentei-o.
– Tornará a vê-lo?
– É provável.
– Discutirá o homicídio com ele?
– Talvez. A menos que falemos apenas do tempo que faz e da luz
especial desta cidade...
– O que ela tem de especial?
– Uma certa vibração, uma certa suavidade...
– Pretende voltar a Vichy no ano que vem?
– Isso dependerá do meu médico.
– Obrigado.
Os dois entraram num velho carro, enquanto Maigret e sua mulher
davam alguns passos na calçada.
– Onde o espero?
O que implicava que o marido iria até a Rue du Bourbonnais.
– Na fonte?
– No jogo de bocha...
Ou seja, ele não esperava ficar muito tempo com Lecoeur. Encontrou-o
na pequena sala, ocupado em telefonar:
– Sente-se, chefe... Alô!... Sim... É uma sorte que a zeladora tenha
ficado no emprego durante tantos anos... Sim... Ela não sabe onde?...
Pegava o metrô?... Sim, na estação Saint-Georges... Não interrompa a
ligação, senhorita... Continue, Julien...
A ligação durou ainda dois ou três minutos.
– Certo, obrigado. Enviarei uma carta precatória para regularizar a
situação. Até lá terá tempo de me enviar o relatório... E sua mulher como
vai?... Claro, crianças sempre dão trabalho... Sei como é, com meus
garotos...
Ele desligou e virou-se para Maigret.
– Era o Julien, que o senhor deve ter conhecido e que atualmente é
inspetor no 9o. Ontem lhe pedi que investigasse na papelada do seu
arrondissement. Ele encontrou o endereço exato de Hélène Lange, na Rue
Notre-Dame-de-Lorette, onde ela morou durante quatro anos...
– Dos 28 aos 32 anos...
– Mais ou menos. A zeladora é a mesma. Parece que a srta. Lange era
uma jovem tranquila. Saía e voltava para casa em horas regulares, como
uma pessoa que trabalha. Raramente saía à noite para ir, ao que parece, ao
teatro ou ao cinema.
“Seu escritório não devia ficar no bairro, pois pegava o metrô. De
manhã cedo saía para fazer compras e não tinha empregada. Por volta de
meio-dia e vinte, voltava para almoçar e tornava a partir à uma e meia.
Depois era vista de volta às seis e meia da tarde...”
– Ela não recebia ninguém?
– Um homem, um só, sempre o mesmo.
– A zeladora sabe o seu nome?
– Não sabe nada dele. Vinha uma ou duas vezes por semana, por volta
das oito e meia da noite, e sempre ia embora às dez.
– Que tipo de homem?
– Um homem fino, ao que parece. Tinha um carro. A zeladora nunca
teve a ideia de anotar a placa. Um carrão preto, certamente americano.
– Que idade?
– Uns quarenta anos. Um sujeito forte, bem-cuidado, bem-vestido.
– Era ele quem pagava o aluguel?
– Ele nunca entrou na zeladoria.
– Eles saíam juntos no fim de semana?
– Uma única vez.
– De férias?
– Não. Hélène Lange, na época, só tirava duas semanas de férias e ia
quase todo ano a Étretat, para onde sua correspondência era enviada a uma
pensão familiar.
– Ela recebia muita correspondência?
– Pouca. De tempo em tempo, uma carta da irmã. Era assinante de
leitura numa biblioteca dos arredores e lia muito...
– Posso dar uma espiada no apartamento?
– Sinta-se em casa, chefe.
Ele notou que a televisão não estava na sala e sim na copa, mobiliada
em estilo provençal e com objetos de cozinha bem conservados. Via-se,
sobre o guarda-louças, uma fotografia de Hélène Lange criança brincando
com um arco e uma outra, de maiô, diante de uma falésia, provavelmente
em Étretat. Ela tinha um corpo bem-proporcionado, longilíneo como o
rosto, sem ser magro nem seco. Era uma dessas mulheres que se arriscam a
ser mal julgadas quando as vemos vestidas.
A cozinha, moderna e alegre, tinha uma máquina de lavar louça e todos
os instrumentos que facilitam o trabalho de uma dona de casa.
Seguindo uma espécie de corredor, chegava-se a um banheiro, também
moderno, e finalmente ao quarto da falecida.
Maigret achou divertido encontrar ali o mesmo leito de cobre que no
hotel e quase os mesmos móveis repletos de arabescos. O papel listrado, nas
paredes, misturava o rosa pálido a um azul ligeiramente violáceo e, aqui
também, uma fotografia mostrava Hélène com a idade aproximada de trinta
anos.
A expressão do rosto era muito diferente e um sorriso espontâneo, sem
mistério, exprimia a alegria de viver.
Era uma foto ampliada, e a folhagem em volta sugeria que fora tirada
num bosque. Ela olhava para a objetiva com uma certa ternura.
– Eu gostaria de saber quem segurava a câmera – resmungou Maigret,
dirigindo-se a Lecoeur que havia se juntado a ele.
– Mulher estranha, não?
– Suponho que tenha se ocupado dos locatários...
– Também pensei que o crime pudesse ter sido cometido por alguém do
interior. A viúva está fora de questão e, além do mais, não é forte o
bastante, apesar do seu volume, para estrangular uma pessoa tão resistente
como a srta. Lange. Verificamos no Carlton, onde ela jogou bridge até onze
e vinte. E, segundo o médico-legista, o crime deve ter sido cometido entre
dez e onze da noite.
– Ou seja, quando a sra. Vivereau voltou, Hélène Lange já estava
morta.
– É praticamente certo.
– Os Maleski viram luz debaixo da porta da sala... Como mais tarde as
luzes estavam apagadas, o assassino ainda devia estar ali.
– Fiquei pensando o dia todo: ou ele voltou com vítima e a estrangulou
antes de vasculhar as gavetas, ou ela o surpreendeu fazendo isso e ele a
estrangulou...
– O homem que a sra. Vivereau afirma ter encontrado na esquina?
– Trabalhamos com essa hipótese. Um dono de bar, que baixava sua
porta corrediça, viu por volta da mesma hora um indivíduo corpulento que
andava depressa. Disse que ele parecia ofegante.
– Andando para onde?
– Em direção à fonte dos Célestins.
– Nenhuma descrição?
– Ele não prestou atenção. Sabe apenas que vestia uma roupa escura e
que não usava chapéu. Acredita lembrar que era um pouco careca na frente.
– Nenhuma carta anônima?
– Ainda não.
Isso ia acontecer. Nenhum caso um pouco misterioso termina sem que
a polícia receba um certo número de cartas anônimas e de telefonemas
enigmáticos.
– Não voltou a ver a irmã?
– Espero-a para saber o que devo fazer do corpo.
E acrescentou, após um silêncio:
– As duas irmãs são muito diferentes, não é mesmo? Enquanto uma
parece ter sido reservada, fechada em si mesma, com um certo desdém por
aquilo que a cercava, a outra é aberta à vida, transbordante de saúde. No
entanto...
Maigret sorriu ao olhar para Lecoeur que, com os anos, criara barriga e
tinha alguns pelos brancos no seu bigode ruivo. Os olhos claros eram
ingênuos, quase infantis, mas Maigret se lembrava dele como de um de seus
melhores colaboradores.
– Por que sorri?
– Porque a vi ainda viva e, a partir das fotografias e do que me disse
dela, você chega às mesmas conclusões que eu...
– Hélène Lange era uma falsa sentimental, uma falsa romântica, não?
– Acho que desempenhava um papel, talvez para si mesma, mas não
podia impedir seu olhar de ser duro e preciso...
– Como a irmã...
– Francine Lange, por sua vez, é o tipo de mulher emancipada,
decidida, que não dá a mínima ao que dizem. Estou convencido de que, em
La Rochelle, é uma figura popular de quem se contam as extravagâncias e
os ditos espirituosos.
– O que não a impede, de vez em quando...
Eles não tinham necessidade de completar suas frases.
– Ela sabe calcular!
– E sabe o que quer, apesar de todos os gigolôs da Terra... Tendo
partido de uma pobre mercearia em Marsilly, aos quarenta anos é dona de
um dos mais importantes salões de beleza de La Rochelle. Conheço a
cidade, a Place d’Armes...
Ele tirou o relógio do bolso.
– Minha mulher me espera.
– Na fonte?
– Vou primeiro refrescar as ideias olhando o jogo de bocha... No
passado o pratiquei, em Porquerolles... Se aqueles senhores insistissem um
pouco...
Afastou-se, enchendo um novo cachimbo. O ar estava mais quente, e
ele se alegrou de voltar à sombra das árvores altas.
– Novidades?
– Nada de interessante.
– Ainda nada se sabe da vida dela em Paris?
A mulher o observava para adivinhar em que momento deveria se calar,
mas ela se sentia animada pelo humor alegre dele.
– Nada de preciso. Apenas que teve um amante, pelo menos...
– Parece que isso lhe agrada.
– Talvez. Pelo menos indica que houve um momento bom na existência
dela. Nem sempre esteve encerrada em si mesma, a repisar sabe lá que
ideias ou que sonhos...
– O que sabem dele?
– Quase nada, a não ser que dirigia um carrão preto, que vinha vê-la
uma ou duas vezes por semana, que ia embora antes das dez da noite e que
eles nunca passavam as férias ou os fins de semana juntos.
– Um homem casado...
– Provavelmente... Com uns quarenta anos... Dez a mais que ela.
– Os moradores da Rue du Bourbonnais nunca o viram?
– Em primeiro lugar, ele não tem mais quarenta anos. Deve estar
próximo dos sessenta, se é que não os atingiu.
– Você acha que...
– Não acho nada. Gostaria de saber como ela vivia em Nice, se houve
uma transição ou se ela se comportava como solteirona, como aqui...
Olhe!... Ele vai acertar o bolim...
Era o jogador sem um braço, que deu um tempo, lançou a bola e
atingiu o bolim de madeira.
– Eu os invejo – murmurou Maigret, involuntariamente.
– Por quê?
Ele a achou rejuvenescida, com manchas de sombra e de sol no rosto
liso, com olhos que cintilavam, e sentiu-se novamente de férias.
– Não notou a atitude deles, seu ar de importância, a expressão de
intensa satisfação quando são bem-sucedidos numa jogada?... Nós, quando
colocamos o ponto final num inquérito...
Não concluiu, mas a expressão dos lábios era eloquente. Para ele, o
ponto final era enviar um homem a explicar-se com a Justiça... A prisão, às
vezes a morte...
Levantou-se, após ter esvaziado o cachimbo.
– Andamos?...
Não estavam ali para isso?
ELE ESTAVA DEZ MINUTOS ADIANTADO, não sabia por quê. Será que
havia, naquela manhã, menos a ler no La Tribune? A sra. Maigret, que
sempre usava o banheiro depois dele, ainda estava lá, e lhe disse pela porta
entreaberta:
– Já desço... Espere lá embaixo.
Havia um banco pintado de verde na calçada, para os hóspedes do
hotel. O céu continuava limpo. Desde que estavam em Vichy, não chovera
uma única vez.
O dono do hotel o esperava ao pé da escada, como sempre.
– Então, e esse assassino?
– Não me ocupo do caso – ele respondeu sorrindo.
– O senhor acha que esse pessoal de Clermont-Ferrand está à altura?
Não é nada bom, numa cidade como a nossa, haver um estrangulador em
liberdade. Parece que várias senhoras idosas já partiram...
Maigret sorria vagamente ao se dirigir à Rue du Bourbonnais e avistou
de longe um pano preto à porta, com um grande “L” bordado em prata. Não
se via mais o guarda na calçada. Havia um na véspera? Ele não lembrava,
não prestara a atenção. Em suma, não era assunto dele. Estava ali apenas
como um amador, um curista.
Ia apertar o botão da campainha quando viu que a porta pintada de
branco estava encostada. Empurrou-a, viu uma moça muito jovem, de uns
dezesseis anos apenas, que passava um pano molhado no piso do corredor.
Usava um vestido tão curto que, quando se inclinava, aparecia sua
calcinha cor-de-rosa. As pernas e as coxas eram grossas, disformes, como
acontece nessa idade. Pareciam pernas de uma boneca barata, com a mesma
cor artificial.
Quando ela se virou, ele viu uma face redonda, olhos sem expressão. A
moça não lhe perguntou quem era nem o que queria.
– É ali – limitou-se a pronunciar, apontando a porta da sala.
A peça estava na penumbra, com as paredes forradas de preto e o
caixão repousando sobre o que devia ser a mesa da copa. As duas velas não
estavam acesas, mas havia água benta numa tigela, com um ramo de buxo.
A porta da copa estava aberta, a da cozinha também. Na copa haviam
sido amontoados os móveis e os objetos da sala. Na cozinha, o jovem
Dicelle se ocupava em ler uma revista em quadrinhos diante de uma xícara
de café.
– O senhor quer um pouco de café também? Preparei um bule cheio.
...No fogão a gás de Hélène Lange, que provavelmente não teria
apreciado que usassem sua cozinha dessa maneira.
– O comissário Lecoeur não chegou?
– Foi chamado com urgência a Clermont-Ferrand tarde da noite...
Houve um assalto à Caixa de Poupança, com um morto, um sujeito que
passava e que, ao ver a porta entreaberta depois da hora, empurrou-a
automaticamente no momento em que os assaltantes iam sair... Um deles
atirou...
– Nada de novo aqui?
– Que eu saiba, não.
– Esteve na estação ferroviária?
– Meu colega Trigaud é que foi encarregado... Ainda deve estar lá neste
momento.
– Essa empregadinha que acabo de ver foi interrogada, não foi? O que
ela disse?
– Com a cabeça que tem, já é surpreendente que fale. Ela não sabe
nada. Foi contratada apenas para a temporada. Seu trabalho é limpar os
quartos dos locatários. Não se ocupa do térreo, onde a própria srta. Lange
fazia a limpeza.
– Ela nunca viu visitantes?
– Só o funcionário do gás e entregadores. Começa seu serviço às nove
e termina ao meio-dia... Os Maleski estão inquietos lá em cima. Pagaram
até o fim do mês. Querem saber se têm o direito de ficar... Não é fácil achar
um quarto em plena temporada, e eles não têm vontade de ir para um
hotel...
– O que o comissário decidiu?
– Acho que eles ficam... Em todo caso, estão aí. A outra, a gorda, acaba
de sair para ser amassada por um massagista...
– Francine Lange não apareceu?
– Estou à sua espera. Ninguém sabe o que vai haver. Ela insistiu que se
instalasse uma capela ardente, mas me pergunto se as pessoas virão...
Minhas instruções são de ficar aqui e observar discretamente os visitantes,
se vier algum.
– Seja como for, tenha uma boa jornada... – murmurou Maigret,
deixando a cozinha.
Ele pegou automaticamente um livro com uma encadernação preta
numa mesinha que antes estava na sala e fora transportado com o resto para
a copa. Era Lucien Leuwen. O papel amarelado conservava o cheiro
particular dos livros procedentes de bibliotecas ou de livrarias que fazem
assinaturas de leitura.
Um carimbo violeta dava o nome do livreiro e seu endereço.
Repôs o livro no lugar e, uns instantes depois, caminhava com
tranquilidade pela calçada. Uma janela próxima se abriu quando ele
passava. Uma mulher de bobes e penhoar o interpelou:
– Diga, sr. comissário, é verdade que podemos entrar lá?
Foi a expressão dela que o surpreendeu, e ele ficou um instante sem
compreender.
– Penso que sim, pois há uma capela ardente e a porta está
entreaberta...
– Mas é possível vê-la?
– Que eu saiba, o caixão está fechado.
Ela suspirou:
– Ah, melhor assim. É menos impressionante...
Ele encontrou a sra. Maigret sentada no banco verde e ela se mostrou
surpresa de vê-lo voltar tão cedo.
Saíram a caminhar, como nas outras manhãs. Estavam apenas com
alguns minutos de atraso em relação ao horário, um horário que, aliás,
nunca fora estabelecido, mas que seguiam como se tivesse uma importância
capital.
– Há gente lá?
– Ninguém. Estão esperando...
Desta vez começaram pelo parque infantil ainda quase deserto e deram
a volta à sombra das árvores. Algumas delas, como ao longo do Allier, eram
de essências raras, da América, da Índia, do Japão, e portavam um nome
latino e um nome francês numa placa de metal. Muitas haviam sido
enviadas em lembrança de uma cura em Vichy por chefes de Estado
esquecidos, marajás ou pequenos príncipes orientais.
Quase não se detiveram diante dos jogadores de bocha. A sra. Maigret
nunca perguntava aonde o marido estava indo. Ele marchava com firmeza, à
frente, como se tivesse um objetivo, mas na maioria das vezes, se tomava
uma rua em vez de outra, era para mudar, encontrar novas imagens, novos
sons.
Um pouco antes da hora do copo d’água, ele entrou na Rue Georges-
Clemenceau, como se tivesse compras a fazer, mas virou à esquerda numa
das passagens, a Passage du Théâtre, onde, diante de uma livraria, viam-se
livros vendidos a saldo em caixas e outros expostos em mostruários
giratórios.
– Entre... – ele disse à mulher, que hesitava.
O livreiro vestia um longo avental cinza e estava ocupado em pôr
ordem nos livros. Ele pareceu reconhecer Maigret, mas esperou.
– Dispõe de alguns minutos?
– Estou a seu dispor, sr. Maigret. Suponho que deseja me interrogar a
respeito da srta. Lange.
– Era uma de suas clientes, não?
– Vinha pelo menos uma vez por semana, geralmente duas, para trocar
seus livros. Tinha uma assinatura que lhe permitia levar dois ao mesmo
tempo...
– Fazia muito tempo que a conhecia?
– Adquiri o negócio há seis anos. Não sou daqui, mas de Paris, de
Montparnasse. Ela já frequentava o meu predecessor.
– Conversava com ela?
– Não era uma pessoa de falar muito.
– Ela não lhe pedia conselho para a escolha de suas leituras?
– Tinha suas ideias. Venha ver aqui...
Atrás da livraria, uma peça estava coberta do chão até o teto de livros
encadernados de preto.
– Em geral ela passava meia hora ou mesmo uma hora examinando os
volumes, lendo algumas linhas aqui e ali.
– Sua última leitura foi Lucien Leuwen de Stendhal.
– Stendhal foi sua mais recente descoberta. Antes, leu tudo de
Chateaubriand, Alfred de Vigny, Jules Sandeau, Benjamin Constant,
Musset, Georges Sand... Sempre os românticos... Um dia levou um Balzac,
não lembro mais qual, e veio devolvê-lo no dia seguinte. Perguntei-lhe se
não havia gostado e ela respondeu algo como:
“– É muito brutal...
“Balzac, brutal!...”
– Nenhum autor contemporâneo?
– Nunca se interessou. Em contrapartida, leu e releu a correspondência
de Georges Sand e a de Musset...
– Eu lhe agradeço.
Já estava quase na porta quando o livreiro o chamou de volta.
– Esqueci um detalhe que talvez o interesse. Fiquei surpreso de
encontrar livros anotados a lápis. Frases ou palavras sublinhadas. Às vezes
havia apenas uma cruz na margem. Quis saber que cliente tinha essa mania
e acabei por descobrir que era ela...
– Falou-lhe sobre isso?
– Era necessário. Meu empregado não podia passar o tempo todo
apagando essas marcas.
– Qual foi a reação dela?
– Com o ar ofendido, respondeu:
“– Peço-lhe desculpas. Quando leio, esqueço que os livros não são
meus...”
Os curistas, os troncos claros dos plátanos e as manchas de sol estavam
nos seus lugares, assim como as milhares de cadeiras amarelas.
Ela achou Balzac muito duro. Certamente quis dizer que era realista
demais... Refugiava-se na primeira metade do século XIX, ignorando
soberbamente Flaubert, Hugo, Zola, Maupassant... No entanto Maigret
havia percebido no primeiro dia, num canto da sala, uma pilha de revistas...
Como que sem querer, ele procurava penetrar sempre um pouco mais
no retrato que fazia dela. Era uma mulher que se reduzia a leituras
românticas, sentimentais, mas seu olhar era às vezes de uma dureza bastante
real.
– Viu Lecoeur?
– Não. Ele foi chamado a Clermont-Ferrand por causa de um assalto...
– Acha que ele descobrirá o assassino?
Maigret estremeceu. Desta vez, ele é que foi trazido de volta à
realidade. Na verdade não pensava em termos de assassinato. Quase
esquecia que a proprietária da casa de janelas verdes fora estrangulada e
que a questão número um era encontrar o assassino.
Também ele procurava alguém. Inclusive pensava nisso com mais
frequência do que teria desejado, a ponto de virar uma obsessão.
O que o intrigava era o homem que, num determinado momento,
encontrou seu lugar nessa vida solitária.
Não se encontrou nenhum vestígio desse homem na Rue du
Bourbonnais, não havia nenhuma fotografia dele, nenhuma carta ou bilhete.
Nada! Nada também acerca de alguém mais, a não ser faturas.
Era preciso remontar a Paris, à Rue Notre-Dame-de-Lorette, doze anos
antes, para que fosse mencionado um visitante bastante vago que vinha uma
ou duas vezes por semana passar uma hora no apartamento daquela que era
ainda uma mulher jovem.
Mesmo a irmã, Francine, que vivia então na mesma cidade, afirmava
não saber nada.
Ela devorava livros, via televisão, fazia compras, limpava a casa,
passeava sob as árvores do parque, como os curistas, sem dirigir a palavra a
ninguém, e escutava música no coreto olhando reto à frente.
Isso o desconcertava. Ele havia conhecido, durante sua carreira,
indivíduos, homens ou mulheres, ferozmente apaixonados por sua
liberdade. Havia encontrado maníacos que, retirados do mundo,
refugiavam-se nos lugares mais improváveis, muitas vezes os mais
sórdidos.
Mas mesmo estes conservavam sempre uma ligação qualquer com a
vida exterior. Para as mais velhas, por exemplo, era um banco de praça
onde reencontravam uma outra senhora, ou a igreja, o confessionário, o
padre... Os homens tinham como âncora um boteco onde eram reconhecidos
e acolhidos como se fossem uma família.
Aqui, Maigret deparava pela primeira vez com a solidão em estado
puro.
Uma solidão que não era sequer agressiva. A srta. Lange não se
mostrava desagradável com seus vizinhos, seus fornecedores. Não parecia
querer desdenhá-los e, apesar do seu gosto por certas cores e certas formas
de vestido, não se fazia passar por grande dama.
Simplesmente não se ocupava dos outros. Não precisava. Se tinha
locatários, é porque dispunha de quartos vazios e obtinha assim um
rendimento. Entre esses quartos e o térreo uma fronteira fora traçada, e ela
contratara uma empregada mais ou menos estúpida para fazer a limpeza do
andar de cima.
– Permite, sr. comissário?
Uma sombra surgiu diante de Maigret, um homem alto que segurava
uma cadeira pelo encosto. Ele já o tinha visto na Rue du Bourbonnais. Era
um colaborador de Lecoeur, provavelmente Trigaud. Sentou-se e Maigret
lhe perguntou:
– Como soube que me encontraria aqui?
– Dicelle me disse...
– E como é que Dicelle...
– Não existe um policial na cidade que não o conheça de vista, de
modo que, onde quer que vá...
– Há novidades?
– Esta noite passei uma hora na estação ferroviária, pois não são os
mesmos funcionários que de dia. Retornei hoje de manhã. A seguir
telefonei ao comissário Lecoeur, que continua em Clermont.
– Ele não virá hoje?
– Ainda não sabe. De todo modo, virá amanhã de manhã cedo para o
enterro. Ele acha que o senhor estará lá também...
– Você não viu Francine?
– Ela passou na capela mortuária. O sepultamento será às nove horas.
Foi ela certamente que enviou flores...
– Quantas coroas?
– Apenas uma.
– Tem certeza de que foi ela?... Desculpe! Esqueço que isso não me diz
respeito...
– Não é essa a opinião do chefe, pois ele me recomendou claramente
que lhe informasse o que fiquei sabendo... Penso que há alguns na Brigada,
inclusive eu mesmo, que vão viajar...
– Ela ia longe?
Trigaud tirou um maço de papéis do bolso, acabou por encontrar a
folha que procurava.
– Eles não lembram todos os deslocamentos dela, é claro, mas alguns
nomes de cidades lhes chamaram a atenção. Por exemplo, Estrasburgo, um
mês depois de uma viagem a Brest. Também notaram que as linhas diretas
nem sempre eram fáceis e que às vezes ela precisava mudar de trem duas ou
três vezes. Carcassonne, Dieppe, Lyon... É menos distante. Lyon, aliás, é
uma exceção. As viagens, em sua maior parte, eram mais longas... Nancy,
Montélimar...
– Nenhuma cidade pequena? Vilarejos?
– Somente cidades de uma certa importância. É verdade que ela podia,
a seguir, viajar a outro lugar de ônibus...
– Nenhum bilhete a Paris?
– Nenhum.
– Isso dura há quanto tempo?
– O último funcionário que interroguei trabalha há nove anos no
mesmo guichê.
“– Era uma cliente regular – ele me disse.
“Na estação todos a conheciam, esperavam sua visita. Os funcionários
chegavam a apostar sobre a cidade que escolheria.”
– Havia datas mais ou menos fixas?
– Não, justamente... Algumas vezes ela não era vista durante seis
semanas, sobretudo no verão, durante a temporada, certamente por causa
dos seus locatários... Os deslocamentos não correspondiam ao final do mês,
a uma data fixa...
– Lecoeur lhe disse o que pretende fazer?
– Ele encomendou um certo número de fotografias. Começará por
enviar homens às cidades mais próximas. Também mandará pelo correio, a
partir de hoje, fotos às P.J. locais.
– Não sabe por que Lecoeur queria me ver?
– Ele não me disse nada. Deve achar que o senhor tem alguma pista.
Aliás, eu também acho...
Para que protestar? Todos o supunham mais esperto do que era e, se ele
protestasse, teriam certeza de ser uma artimanha.
– Apareceu alguém, na Rue du Bourbonnais?
– Segundo Dicelle, a coisa começou por volta das dez horas. Uma
velhinha de avental empurrou a porta, espiou, depois avançou alguns passos
até a câmara-ardente. Então tirou um rosário do bolso do avental e seus
lábios começaram a se mexer. Fez o sinal da cruz com a água benta e foi
embora...
“Foi ela que deu início ao desfile. Deve ter ido avisar as vizinhas, e
estas também vieram, sozinhas ou em duas...”
– Nenhum homem?
– Alguns. O açougueiro, um carpinteiro que mora na esquina, gente da
vizinhança...
Por que o crime não teria sido cometido por alguém da vizinhança? A
investigação estava sendo feita em toda parte, reconstituindo a vida da
dama de lilás em Nice, em Paris, suas viagens aos quatro cantos do país,
mas ninguém pensava nos vizinhos, nos milhares de pessoas que moravam
no Quartier de France.
Maigret também não.
– Há alguma coisa que me sugere fazer?
Não era por iniciativa própria que Trigaud pronunciava essa frase, ela
certamente lhe fora soprada por aquele esperto do Lecoeur. Já que Maigret
estava à mão, por que não servir-se dele?
– Pergunto-me se os funcionários dos guichês poderiam se lembrar de
algumas datas precisas, não muitas, duas ou três seriam suficientes...
– Já sei de uma: 11 de junho... O sujeito lembrou porque se tratava de
Reims, porque a mulher dele é de lá e porque, nesse dia, era o aniversário
dela...
– Se eu fosse você, iria me certificar no banco se houve uma
movimentação na conta no dia 13 ou 14...
– Entendo o que quer dizer. Uma chantagem, não?
– Ou um pagamento de pensão...
– Por que pagar uma pensão em datas diferentes e em intervalos
irregulares?
– Também me pergunto.
Trigaud olhou Maigret de esguelha, convencido de que este lhe
ocultava alguma coisa ou zombava dele.
– Preferia me ocupar do assalto – resmungou. – Com os bandidos a
gente sabe mais ou menos aonde ir... Perdoe-me por tê-lo perturbado...
Meus respeitos, senhora.
Levantou-se, embaraçado, não sabendo como proceder. O sol batia em
cheio nos seus olhos.
– Passarei no banco no começo da tarde. Depois, se preciso, retornarei
à estação ferroviária...
Maigret também, no passado, fizera esse trabalho, batendo sola durante
horas no chão escaldante ou molhado, interrogando pessoas desconfiadas e
das quais era preciso extrair com paciência as palavras, uma a uma.
– Vamos tomar nosso copo d’água...
Enquanto Trigaud se refrescaria, provavelmente, com um belo copo de
cerveja...
– Na fonte, por volta das onze... Espero que eu possa estar lá.
Havia uma ponta de mau humor na voz dele. Quando chegaram em
Vichy, a sra. Maigret achou que ele se aborreceria sem fazer nada, tendo
apenas sua companhia da manhã à noite. A calma sorridente dos primeiros
dias só a tranquilizou em parte, e ela se perguntou por quanto tempo esse
estado de espírito duraria.
Mas o fato é que, nos últimos três dias, ele ficava realmente
descontente sempre que era privado de um de seus passeios.
Hoje era o enterro. Ele prometera a Lecoeur estar presente. O sol
continuava a brilhar, com a mesma mistura de frescor matinal e de umidade
nas ruas.
A Rue du Bourbonnais apresentava um espetáculo não habitual. Além
dos moradores que se viam nas janelas, debruçados como para assistir a um
desfile, curiosos formavam uma franja ao longo das calçadas, mais espessa
na altura da casa mortuária.
O carro fúnebre já havia chegado. Atrás estava estacionado um carro
preto, certamente fornecido pela agência funerária, e mais um outro que
Maigret não conhecia.
Lecoeur veio a seu encontro.
– Tive que abandonar meus bandidos – explicou. – Assaltos acontecem
todo dia, o público está habituado e não se comove mais. Ao passo que uma
mulher estrangulada em sua casa, numa cidade tão calma quanto Vichy, sem
motivo aparente...
Maigret reconheceu a melena ruiva do fotógrafo do La Tribune. Outros
dois ou três estavam nas imediações e um deles tirou uma foto dos dois
policiais atravessando a rua.
Em suma, não havia nada para ver, e os curiosos se olhavam uns aos
outros com o ar de quem se pergunta o que está fazendo ali.
– Você tem homens na rua?
– Três... Não sei onde está Dicelle, mas não deve estar longe. Ele teve a
ideia de fazer-se acompanhar pelo rapaz do açougue, que conhece todo
mundo e poderá lhe indicar as pessoas que não são do bairro...
Não havia nada de triste nem de impressionante nesse funeral. Todos
aguardavam, Maigret inclusive.
– Vai ao cemitério? – ele perguntou a Lecoeur.
– Gostaria que fosse comigo, chefe. Vim com o meu carro pessoal,
pensando que um carro de polícia seria talvez de mau gosto...
– Francine?
– Chegou há alguns minutos com seu gigolô. Está lá dentro.
– Não vejo o carro deles...
– Os empregados da agência funerária, que sabem o que convém e o
que não convém nessas ocasiões, provavelmente os fizeram compreender
que um carro vermelho conversível não era muito mais apropriado num
cortejo fúnebre do que um carro de polícia... Eles é que ocuparão o carro
preto.
– Falou com ela?
– Ela me cumprimentou vagamente ao chegar. Parece nervosa,
inquieta. Antes de entrar na casa, observou os curiosos ao redor como se
procurasse alguém com os olhos...
– Não estou vendo o seu jovem Dicelle...
– É que ele está observando por alguma janela, nos arredores,
acompanhado do rapaz do açougue.
Pessoas saíam da casa. Duas ainda entraram, mas a deixaram quase em
seguida. O motorista do carro fúnebre tomou seu assento.
Como a um sinal, quatro homens fizeram, não sem dificuldade, o
ataúde transpor a porta e o introduziram no carro. Um deles entrou de novo
na casa, retornou com uma coroa de flores e um ramalhete menor.
– O ramalhete é dos locatários...
Francine Lange esperava na entrada, com um vestido preto que não lhe
caía bem e que ela devia ter comprado na Rue Georges-Clemenceau, na
véspera. Percebia-se o seu companheiro, atrás dela, na penumbra do
corredor.
O carro fúnebre avançou alguns metros. Francine subiu no carro preto
junto com o amante.
– Venha, chefe.
Ao longo das calçadas as pessoas não se mexiam, somente os
fotógrafos corriam para acompanhar o cortejo.
– É tudo? – perguntou Maigret, virando-se.
– Não há outros familiares, nem amigos...
– E os locatários?
– Maleski tem uma consulta com o médico às dez e a gorda sra.
Vivereau, uma sessão de massagem...
Passaram por duas ou três ruas que o comissário conhecia por tê-las
percorrido a pé, ao acaso. Ele encheu o cachimbo, observou as casas,
surpreendeu-se de passar diante da estação ferroviária.
O cemitério, do outro lado da ferrovia, não ficava longe. Estava
deserto. O carro funerário rodou até o final das aleias transitáveis.
Assim, eles eram somente quatro a seguir por um caminho de cascalho,
além do pessoal da funerária. Lecoeur e Maigret se aproximaram
naturalmente do casal. O gigolô havia posto óculos de sol.
– Vai partir em seguida? – perguntou Maigret a Francine.
Fez a pergunta para dizer alguma coisa, sem dar importância à resposta,
mas notou que ela o observou de um modo intenso, como para descobrir
uma segunda intenção por trás de suas palavras.
– Devo ficar provavelmente dois ou três dias a fim de arranjar tudo...
– O que vai fazer com os locatários?
– Deixarei que terminem o mês, não há razão para tirá-los de lá.
Apenas fecharei as peças do térreo...
– Pretende vender a casa?
Ela não teve tempo de responder, pois um dos homens de preto se
aproximou. O caixão foi transportado até uma aleia mais estreita, na
margem do cemitério, onde uma cova estava aberta.
Um fotógrafo – não o ruivo alto, um outro – surgiu sabe lá de onde e
tirou algumas fotos enquanto o caixão era baixado na sepultura, depois que
Francine Lange, por indicação do mestre de cerimônias, jogou uma pá de
terra.
A alguns metros de distância, do outro lado de um muro baixo,
começava um terreno baldio com carcaças de veículos enferrujadas; mais
adiante se erguiam algumas casas brancas.
O carro fúnebre se afastou, o fotógrafo também. Lecoeur lançou um
olhar a Maigret e este, que parecia mergulhado em pensamentos, não
compreendeu. Ele pensava exatamente em quê? Em La Rochelle, cidade de
que gostava muito, na Rue Notre-Dame-de-Lorette, nos tempos do início da
carreira, quando era secretário do comissário de polícia do 9o
arrondissement, nos jogadores de bocha também...
Francine avançou em direção a eles, com um lenço enrolado na mão
que não havia servido para secar lágrimas. Ela não havia chorado, nem se
comovido mais que os agentes funerários ou o coveiro. Fora um enterro
sem a menor emoção, o menos romântico possível.
Se remexia no lenço, era para ocultar seu embaraço.
– Não sei como se costuma fazer. Geralmente, depois dos enterros, há
uma refeição, não é mesmo?... Mas certamente os senhores não têm vontade
de almoçar conosco...
– Tenho minhas ocupações... – murmurou Lecoeur.
– Será que posso ao menos lhes oferecer uma bebida?
Maigret se surpreendeu com a mudança na atitude dela. Mesmo ali, no
cemitério deserto, de onde até mesmo o fotógrafo desaparecera, ela não
parava de olhar ao redor como se um perigo a ameaçasse.
– Certamente teremos uma outra ocasião para nos encontrar –
respondeu diplomaticamente Lecoeur.
– Ainda não descobriu nada?
Não foi para ele que ela olhou ao fazer essa pergunta, mas para o
comissário Maigret, como se fosse dele que esperasse alguma coisa.
– O inquérito continua...
Maigret encheu o cachimbo com leves pressões do indicador,
procurando compreender. Essa mulher certamente havia conhecido golpes
duros e era capaz de olhar a vida de frente sem pestanejar. Não era a morte
da irmã que a preocupava, pois, no primeiro dia, mostrou-se animada, cheia
de vida.
– Nesse caso, senhores... não sei como dizer... até mais ver!... E
obrigada por terem vindo.
Se ela ficasse um minuto a mais, Maigret talvez lhe tivesse perguntado
se alguém a ameaçara. Ela se afastou, equilibrando-se sobre os saltos altos.
Assim que fechasse a porta do seu quarto de hotel, tiraria aquele vestido
preto comprado para a circunstância.
– O que acha disso? – perguntou Maigret a seu colega de Clermont.
– O senhor notou também?... Eu gostaria de ter uma conversa com ela a
sós, mas preciso achar uma razão plausível para convocá-la. Hoje, pareceria
indecente. Ela parece estar com medo...
– É a minha impressão também.
– Acha que ela recebeu ameaças? O que faria no meu lugar?
– Que está querendo dizer?
– Não sabemos por que sua irmã foi estrangulada. Poderia ser, afinal,
um drama de família... Não conhecemos quase nada sobre elas... Talvez seja
um caso em que as duas mulheres estão envolvidas... Ela não lhe disse que
ficaria ainda dois ou três dias em Vichy?... Não tenho muitos homens
disponíveis, mas o assalto pode esperar. Os profissionais, a gente sempre
acaba por pegá-los...
Entraram no carro e partiram em direção à saída do cemitério.
– Vou mandar vigiá-la o mais discretamente possível, embora, num
hotel, seja quase impossível... Onde quer que eu o deixe?
– Em algum lugar nos arredores do parque.
– É verdade, está aqui como curista. Não sei por que não consigo me
acostumar com essa ideia.
Primeiro ele achou que sua mulher não havia chegado, pois não a viu no
lugar habitual. Estavam tão acostumados a se encontrar todo dia no mesmo
lugar que ficou surpreso de vê-la numa outra cadeira, à sombra de uma
outra árvore.
Observou-a por um momento sem ser visto. Ela não parecia
impaciente. Com um vestido claro, mãos no colo, olhava as pessoas
passarem e um leve sorriso de contentamento iluminava-lhe o rosto.
– Oi! – ela exclamou.
E, logo em seguida:
– Ocuparam nossas cadeiras... Eu os escutei e acho que são holandeses.
Espero que estejam só de passagem e que não os vejamos todo dia no nosso
lugar... Não achei que o enterro terminaria tão cedo.
– O cemitério não é longe.
– Havia muita gente?
– Na rua. Depois, éramos apenas quatro.
– Ela levou o amante?... Venha tomar um copo...
Eles ficaram na fila por um momento. A seguir Maigret comprou os
jornais de Paris, que pouco falavam do estrangulador de Vichy. Um único
jornal, na véspera, publicara justamente esta manchete: O estrangulador de
Vichy. E, um pouco mais abaixo, era a foto de Maigret que aparecia.
Ele estava curioso em saber os resultados das investigações feitas em
algumas das cidades que a dama, ou melhor, a senhorita de lilás, visitava
em datas irregulares.
Mas seus pensamentos eram vagos. Ele lia, com o espírito noutra parte,
via as silhuetas dos passantes acima do jornal. Logo tiveram de recuar as
cadeiras por causa do sol que os atingia.
O antigo lugar deles, agora ocupado pelos holandeses, tinha uma
vantagem. Situava-se num local que o sol não atingia nas horas em que
estavam no parque.
– Quer ler um jornal?
– Não... Os dois sorridentes acabam de passar, e ele lhe fez um grande
cumprimento...
Mas já haviam se perdido na multidão.
– A irmã chorou?
– Não.
Francine continuava a preocupá-lo. Ele também, se estivesse
encarregado do inquérito, gostaria de interrogá-la na calma da sua sala.
Pensou nisso ainda várias vezes durante o final da manhã. Voltaram ao
Hôtel de la Bérézina, subiram para se refrescar, dirigiram-se à mesa. Como
sempre, exceto para eles, garrafas de vinho acompanhavam a estreita jarra
de vidro que continha duas ou três flores.
– Há escalopes à milanesa e fígado de vitelo à la bourgeoise.
– Escalopes – ele suspirou. – Mas me servirão na chapa. Estou só de
passagem, enquanto Rian estará aqui no ano que vem e nos próximos. Ele é
quem manda...
– Não se sente melhor do que em Paris?
– Somente porque não estou em Paris. Aliás, nunca me senti realmente
mal. Cansaço, tonturas, suponho que isso acontece a todo o mundo...
– Mesmo assim confia no Pardon...
– É preciso...
Comeram um prato de massa, que fazia as vezes de aperitivo e de
entrada, e os escalopes acabavam de ser servidos quando anunciaram a
Maigret que ele era chamado ao telefone.
Este se achava numa pequena sala cuja janela dava para a rua.
– Alô!... Estou a perturbá-lo?... Já estava almoçando?
Ele reconheceu a voz de Lecoeur e resmungou:
– Se posso chamar isso de almoço!...
– Há novidades! Mandei um dos meus homens vigiar o Hôtel de la
Gare. Ele teve a ideia, antes de começar sua tarefa, de pedir o número do
quarto de Francine Lange. A recepcionista o olhou com um ar surpreso e
disse que ela havia partido...
– Quando?
– Apenas meia hora depois de nos ter deixado... Parece que o casal
chegou ao hotel e, antes de subir, o homem pediu para encerrar a conta.
Devem ter feito as malas com toda pressa, pois dez minutos depois já
estavam prontos. Puseram tudo no carro vermelho que desapareceu no
trânsito...
Maigret ficou calado, Lecoeur também, de modo que houve um
silêncio bastante longo.
– O que está pensando, chefe?
– Ela está com medo...
– Claro, mas já estava com medo hoje de manhã, isso se via. No
entanto declarou que esperava ficar ainda dois ou três dias em Vichy...
– Talvez para que você não a retivesse...
– Com que direito a teria retido, a menos que tivesse alguma coisa
contra ela?
– Você conhece a lei, ela não.
– Saberemos esta noite ou amanhã de manhã se ela voltou a La
Rochelle...
– É o mais provável.
– Também penso que sim, mesmo assim estou furioso. Tinha a intenção
de revê-la e de conversar longamente com ela... É verdade que talvez eu
venha a saber mais... O senhor está livre, às duas horas?
Era o momento da sesta, e ele respondeu com bastante má vontade:
– Não tenho nada de especial a fazer, evidentemente.
– Durante minha ausência, esta manhã, alguém telefonou para a polícia
local e pediu para falar comigo... Neste momento estou na delegacia central.
Acabei por aceitar a sala que me ofereceram... Trata-se de uma moça que
deu seu nome: Madeleine Dubois. E adivinhe o que ela faz na vida?...
Maigret continuou calado.
– É a telefonista da noite no Hôtel de la Gare. Meu colega de Vichy
respondeu-lhe que certamente estarei na delegacia, na Avenue Victoire, por
volta das duas. Também perguntou se ela podia dizer do que se tratava, mas
a moça prefere me ver pessoalmente... Assim a espero daqui a pouco.
– Estarei aí.
Não fez a sesta, mas ficou conhecendo a graciosa casa branca com
torreões, plantada no meio de um jardim, que servia de sede à polícia de
Vichy. Um guarda municipal o conduziu ao final de um corredor, no
primeiro andar, onde uma sala quase vazia de móveis fora destinada a
Lecoeur.
– Faltam cinco para as duas – este observou. – Espero que ela não
mude de ideia... Vou ver se encontro uma terceira cadeira...
Ouviu-se um bater de portas no corredor, até que ele descobriu o que
procurava.
Às duas em ponto, o guarda de plantão bateu à porta e anunciou:
– A sra. Dubois...
Era uma mulher pequena, agitada, de cabelos escuros, com um olhar
muito móvel que passava de um a outro dos dois homens.
– A quem devo me dirigir?
Lecoeur se apresentou; não falou de Maigret, que se sentou num canto.
– Não sei se o que vou dizer lhe interessará... Na hora não dei
importância ao fato... O hotel está cheio... Tive muito trabalho até uma da
madrugada. Depois, como de hábito, houve uma folga... Trata-se de uma de
nossas clientes, a sra. Lange...
– Suponho que fala da srta. Francine Lange...
– Achei que fosse casada. Sei que a irmã dela morreu e que foi
enterrada esta manhã... Ontem à noite, por volta das oito e meia, alguém
quis falar com ela...
– Um homem?
– Sim, um homem com uma voz estranha... Estou quase certa de que
sofre de asma, pois tive um tio com essa doença e que falava da mesma
maneira...
– Ele não se identificou?
– Não.
– Não perguntou o número do quarto?
– Não... Chamei e ninguém atendeu. Então eu disse que a pessoa que
ele procurava não estava no hotel. Ele chamou uma segunda vez às nove
horas, e o quarto 406 continuou sem resposta.
– A srta. Lange e seu companheiro estavam ocupando o mesmo quarto?
– Sim... O homem chamou uma terceira vez às onze horas, e então a
srta. Lange atendeu... Completei a ligação...
Ela pareceu embaraçada, lançou um olhar a Maigret como para
perceber o efeito que produziria sobre ele, pois também devia tê-lo
reconhecido.
– Ouviu a conversa? – murmurou Lecoeur, com gentileza.
– Peço desculpas... Não é meu hábito... Temos a reputação de escutar
as conversas, mas se as pessoas soubessem como isso é pouco interessante
pensariam de outra forma... Foi talvez por causa do assassinato da irmã...
Ou por causa da voz estranha do homem...
“– Quem está falando? – ela perguntou.
“– É a srta. Francine Lange?
“– Sim...
“– Está sozinha no quarto?
“Ela hesitou. Mas tive quase a certeza de que seu companheiro estava
com ela.
“– Sim... Mas afinal o que lhe importa?
“– Tenho uma mensagem confidencial a lhe comunicar... Escute bem...
Se eu for interrompido, voltarei a chamá-la dentro de meia hora.
“Ele tinha a respiração difícil, às vezes com uma espécie de assobio,
como meu tio.
“– Estou escutando... Ainda não me disse quem é...
“– Não tem importância... É indispensável que fique alguns dias em
Vichy... É para o seu próprio interesse... Entrarei em contato, ainda não sei
quando... Nossa conversa poderá fazê-la ganhar um bom dinheiro...
Compreendeu bem?
“Ele se calou e desligou. Depois de alguns minutos, o 406 chamou.
“– Aqui é a srta. Lange. Acabo de receber um telefonema. Pode me
dizer se a chamada era de Vichy ou de outra parte?
“– De Vichy...
“– Obrigada.
“Aí está... Primeiro pensei que isso não me dizia respeito. Mas hoje de
manhã, não podendo dormir, telefonei para cá e perguntei quem era o
encarregado do inquérito...”
Ela mexia nervosa na bolsa de mão, seu olhar ia e vinha de um dos dois
homens ao outro.
– O senhor acha que é importante?
– Não retornou ao hotel?
– Só retomo meu serviço às oito da noite.
– A srta. Lange partiu.
– Ela não assistiu ao enterro da irmã?
– Deixou Vichy quase imediatamente depois do enterro.
– Ah!...
Após um silêncio, ela continuou:
– Esse homem provavelmente queria atraí-la a uma armadilha, não é?
Não seria, por acaso, o estrangulador?
E empalideceu só de pensar que teve, na outra ponta da linha, o
assassino da senhorita de lilás.
Maigret não lamentava mais ter perdido a sesta.
CAPÍTULO V
Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj.
S599m
ISBN 978.85.254.2380-1