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CAPÍTULO I

– VOCÊ OS CONHECE? – perguntou a sra. Maigret a meia-voz, quando o


marido se virou para um casal que acabava de passar na rua.
O homem também havia se virado e sorrido. Pareceu até que ficara
tentado a voltar atrás para apertar a mão do comissário.
– Não... Acho que não... Não sei...
O homem era baixo, gordo, a mulher um pouco mais alta que ele e
gordinha também. Por que Maigret teve a impressão de que ela era belga?
Por causa da pele clara, dos cabelos quase amarelos, dos olhos azuis um
pouco afundados nas órbitas?
Era pelo menos a quinta vez que se viam. Na primeira, o homem se
detivera e seu rosto se iluminara como sob o efeito do júbilo. Entreabrira a
boca, hesitante, enquanto o comissário, de cenho franzido, consultava em
vão a memória.
A silhueta e o rosto pareciam-lhe familiares. Mas quem diabos podiam
ser? Onde havia encontrado esse sujeito engraçado e sua mulher, que
parecia um bolo colorido?
– Realmente, não lembro...
Isso, aliás, não tinha importância. Onde eles estavam, as pessoas não
eram as mesmas que na vida normal. De um instante a outro irromperia a
música. No coreto de colunas esguias e repleto de ornamentos, os músicos
de uniforme estavam prontos para embocar seus instrumentos de cobre, de
olhos fixos no regente. Era a banda dos bombeiros, dos funcionários
municipais? Eles se enfeitavam de franjas e douraduras como generais sul-
americanos, com dragonas vermelho vivo, cinturões brancos.
Centenas ou talvez milhares de cadeiras de ferro pintadas de amarelo
cercavam o coreto, em círculos cada vez mais largos, e em quase todas
havia pessoas sentadas, homens e mulheres, que esperavam solenemente em
silêncio.
Dentro de um ou dois minutos, às nove horas, começaria o concerto
sob as grandes árvores do parque. A noite estava quase agradável depois de
um dia de calor, e a brisa fazia farfalhar levemente a folhagem, enquanto os
lampadários com globos leitosos punham, no verdor escuro, manchas de um
verde mais claro.
– Não quer se sentar?
Algumas cadeiras estavam livres, mas eles nunca se sentavam.
Caminhavam, sem pressa. Outros deambulavam à toa como eles, escutando
vagamente a música, casais, mas também muitos solitários, homens e
mulheres que haviam, quase todos, ultrapassado a metade da vida.
Era um pouco irreal. O cassino estava iluminado, branco e
sobrecarregado de molduras à moda de 1900. Em alguns momentos podia-
se pensar que o tempo havia parado, até se ouvir o ruído de uma buzina do
lado da Rue Georges-Clemenceau.
– Ela está ali... – cochichou a sra. Maigret, com um movimento do
queixo.
Aquilo virara um jogo. Ela se habituara a seguir o olhar do marido e
adivinhava quando ele estava surpreso ou interessado.
Que outra coisa tinham a fazer de seus dias? Eles caminhavam, com
um passo indolente. De tempo em tempo paravam, não porque estivessem
cansados, mas para olhar uma árvore, uma casa, um efeito de luz ou um
rosto.
Teriam jurado que estavam em Vichy havia uma eternidade, quando era
apenas o quinto dia. Já haviam estabelecido um horário que seguiam
minuciosamente, como se isso tivesse importância e os dias fossem
marcados por um certo número de ritos que eles cumpriam com a maior
seriedade.
Maigret estava realmente bem? É o que sua mulher às vezes se
perguntava, lançando-lhe olhares furtivos. Ele não era o mesmo que em
Paris. O andar era mais lento, os traços do rosto menos marcados. Na maior
parte do tempo, seu sorriso vago exprimia a satisfação, com certeza, mas
também uma ironia tristonha.
– Ela veste um xale branco...
Ao percorrer todos os dias, às mesmas horas, as aleias do parque e as
margens do Allier, os bulevares plantados de plátanos, as ruas
movimentadas ou vazias, eles haviam identificado um certo número de
rostos, de silhuetas que já faziam parte de seu universo.
Cada um não cumpria, ali, o mesmo gesto nas mesmas horas do dia, e
não apenas junto às fontes para os copos de água medicinal?
O olhar de Maigret colhia alguém na multidão, tornava-se mais agudo.
O de sua mulher o acompanhava.
– Acha que é uma viúva?
Esta, eles poderiam chamar a dama de malva, ou melhor, a dama de
lilás, pois sempre havia a cor lilás no seu vestuário. Naquela noite ela deve
ter chegado atrasada e só encontrou uma cadeira nas últimas filas.
Na véspera oferecera um espetáculo ao mesmo tempo inesperado e
tocante. Os Maigret haviam passado perto do coreto já às oito da noite, uma
hora antes do concerto. As cadeiras amarelas formavam círculos tão
regulares como se tivessem sido traçados por compasso.
Todas as cadeiras estavam desocupadas, exceto uma na primeira fila,
onde a dama de lilás estava sentada. Ela não lia à luz do lampadário mais
próximo. Também não tricotava. Não fazia nada e não mostrava
impaciência alguma. Muito empertigada, com as duas mãos pousadas no
colo, permanecia imóvel, olhando reto à frente, como uma pessoa distinta.
Poderia ter saído de um livro de imagens. Usava um chapéu branco,
quando a maioria das mulheres, ali, tinha a cabeça descoberta. O xale que
lhe cobria os ombros também era branco, vaporoso, e o vestido daquela cor
lilás que ela parecia preferir.
O rosto era comprido, estreito, os lábios finos.
– Deve ser uma solteirona, não acha?
Maigret evitava pronunciar-se. Ele não estava investigando, não seguia
pista alguma. Nada o obrigava a observar as pessoas e a tentar descobrir sua
verdade.
Se observava este ou aquele, era a contragosto, porque se tornara um
gesto automático. Acontecia-lhe de se interessar sem razão por um
passante, tentando adivinhar sua profissão, estado civil, o que fazia quando
não estava numa estância termal.
Era difícil. Todos, depois de alguns dias ou algumas horas, se
integravam ao pequeno círculo... A maior parte dos olhares tinha a mesma
serenidade um pouco vazia, exceto os dos doentes graves, reconhecidos por
suas deformações, seu andar, mas sobretudo por uma mistura de angústia e
esperança.
A dama de lilás fazia parte do que se poderia chamar o círculo dos
íntimos de Maigret, os que ele identificara logo de início e que o
intrigavam.
Sua idade era incerta. Podia ter tanto 45 quanto 55, os anos haviam
passado por ela sem deixar traços precisos.
Adivinhava-se o hábito do silêncio, como entre as religiosas, o hábito
da solidão, talvez até o gosto dessa solidão. Fosse quando andava, fosse
quando estava sentada como agora, ela não dava nenhuma atenção aos
passantes, e certamente teria se surpreendido de saber que o comissário
Maigret procurava, fora de toda obrigação profissional, desvendar sua
personalidade.
– Acho que ela nunca viveu com um homem... – ele disse, no momento
em que a música irrompia no coreto.
Nem com crianças. Talvez com uma pessoa muito idosa e que exige
cuidados, uma velha mãe, por exemplo?
Mas nesse caso ela devia ser uma péssima enfermeira, pois lhe faltava
a suavidade, o dom da comunicação. Se o seu olhar não se punha nas
pessoas mas passava por elas sem vê-las, é que estava fixado no interior.
Ela olhava apenas para si mesma, e certamente retirava disso uma
satisfação secreta.
– Vamos voltar?
Eles não estavam ali para escutar música. Simplesmente fazia parte da
rotina passar naquele momento perto do coreto, onde aliás nem todo dia
havia música.
Em algumas noites essa parte do parque estava quase deserta. Eles a
atravessavam, viravam à direita, tomavam o caminho coberto que passava
por uma rua repleta de letreiros luminosos. Havia ali hotéis, restaurantes,
lojas, um cinema. Eles ainda não tinham ido ao cinema. Isso não constava
da sua programação.
Outros faziam o mesmo passeio que eles, mais ou menos no mesmo
passo e no mesmo sentido, ou em sentido oposto. Alguns se dirigiam
apressados ao teatro do cassino, onde chegariam atrasados, e viam-se raros
smokings, alguns vestidos de gala.
Em outros lugares, essas pessoas levavam existências diferentes, em
bairros diferentes de Paris, em cidades da província ou em Bruxelas,
Amsterdã, Roma ou Filadélfia.
Pertenciam a determinados meios que tinham suas regras, seus tabus,
seus códigos. Alguns eram ricos, outros, pobres. Havia os muito doentes
que o tratamento apenas fazia prolongar nesse estado, outros aos quais ele
permitia não se cuidar muito durante o resto do ano.
Ali, todos se confundiam. Para Maigret, tudo começara de uma forma
banal, numa noite em que jantavam na casa dos Pardon. A sra. Pardon havia
preparado um pato ao molho pardo que ela sabia fazer muito bem e que o
comissário adorava.
– Não está bom? – ela se inquietou, ao ver Maigret comer apenas
alguns bocados.
Pardon, por sua vez, olhou seu visitante com mais seriedade.
– Está indisposto?
– Um pouco... Mas não é nada.
O médico, porém, notou que o rosto do amigo empalidecera e que
havia gotas de suor na testa.
Durante a refeição ele não insistiu. O comissário apenas molhara os
lábios no copo. Quando quiseram lhe servir um conhaque com o café, ele
estendeu a mão:
– Obrigado, mas esta noite não.
Um pouco mais tarde, Pardon lhe murmurou:
– Que tal passarmos um momento no meu consultório?
Maigret o acompanhou a contragosto. Ele vinha prevendo que isso
aconteceria um dia, mas adiava esse dia para mais tarde. O consultório do
médico não era grande nem luxuoso. Em cima da mesa havia um
estetoscópio ao lado de frascos, tubos de pomadas, papéis administrativos, e
o leito no qual os doentes se deitavam parecia conservar a marca profunda
do último paciente.
– O que não anda bem, Maigret?
– Não sei. A idade, certamente...
– Cinquenta e dois?
– Cinquenta e três... Tive muito trabalho nos últimos tempos,
preocupações... Nenhum inquérito sensacional. Nada de apaixonante, pelo
contrário... Por um lado, papelada em excesso, pois toda a organização da
Polícia Judiciária está sendo mudada. Por outro, essa epidemia de atentados
contra moças e mulheres sozinhas, com estupro ou não... A imprensa faz
muito alarde e não tenho efetivos suficientes para organizar as patrulhas
necessárias sem desorganizar o serviço...
– Você tem problemas de digestão?
– Alguns dias... Acontece-me, como hoje à noite, de sentir o estômago
apertado, dores, ou melhor, uma espécie de constrição no peito e no
abdome... Sinto-me pesado, fatigado...
– Não se importaria de eu auscultá-lo?
Sua mulher, na sala ao lado, deve ter adivinhado, a sra. Pardon
também, e isso aborrecia Maigret. Ele tinha horror de tudo que, de perto ou
longe, tivesse a ver com doença.
Ao retirar a gravata, o casaco e a camisa, lembrou-se de uma de suas
ideias de adolescente.
– Não quero viver – declarava então – com pílulas, poções, fazendo
regime, numa atividade reduzida. Melhor morrer jovem do que entrar em
“estado de doença”...
Chamava “estado de doença” essa parte da existência durante a qual
escutamos o coração, ficamos atentos ao estômago, ao fígado ou aos rins,
junto com a exibição, a intervalos mais ou menos regulares, do corpo nu ao
médico.
Ele não tinha mais a vontade de morrer jovem, mas afastava para longe
de si o momento de entrar em doença.
– As calças também?
– Baixe um pouco...
Pardon mediu sua pressão, auscultou-o, tateou-lhe o estômago e o
ventre, afundando os dedos em alguns lugares.
– Dói?
– Não... Talvez um pouco de sensibilidade... Não, mais abaixo...
E ele se viu então como os outros, ansioso, envergonhado de seus
temores e não ousando olhar o amigo de frente. Tornou a vestir-se,
desajeitado. A voz de Pardon não havia mudado.
– Há quanto tempo não tira férias?
– No ano passado pude escapar por uma semana, depois chamaram-me
de volta porque...
– E no ano precedente?
– Fiquei em Paris.
– Com a vida que leva, deveria ter os órgãos cinco vezes mais
deteriorados do que estão...
– O fígado?
– Resiste bravamente ao trabalho que você lhe impõe... Está um pouco
grande, é verdade, mas não enorme, e conserva a elasticidade...
– O que está falhando?
– Nada de preciso... Tudo, um pouco... Você está fatigado, isso é um
fato, e não é uma semana de férias que vai livrá-lo dessa fadiga... Como se
sente ao acordar?
– Mal-humorado.
Pardon deu uma sorriso.
– Dorme bem?
– Minha mulher diz que me mexo e que falo durante o sono.
– E o cachimbo?
– Tento fumar menos.
– Por quê?
– Não sei... Também tento beber menos...
– Sente-se...
Pardon sentou-se também e, diante da sua escrivaninha, era muito mais
médico do que na copa ou na sala de estar.
– Escute bem. Você não está doente e goza de uma saúde excepcional,
considerando sua idade e sua atividade. Ponha isso na cabeça de uma vez
por todas. Pare de se preocupar com algumas contrações aqui ou ali, com
dores vagas, e não comece a subir escadas com precaução...
– Como sabe?...
– E você, quando interroga um suspeito, como sabe?
Os dois sorriram.
– Estamos no fim de junho. Paris está tórrida. Você vai ajuizadamente
sair de férias, se possível sem deixar endereço, evitando de qualquer
maneira telefonar todo dia ao Quai des Orfèvres...
– Isso é possível – ele resmungou. – Nossa casinha em Meung-sur-
Loire...
– Terá tempo de usufruí-la quando estiver aposentado. Este ano tenho
um outro plano para você. Conhece Vichy?
– Nunca estive lá, embora tenha nascido a menos de cinquenta
quilômetros de distância, perto de Moulins... Naquele tempo, nem todo
mundo tinha ainda um automóvel...
– A propósito, sua mulher tirou a habilitação?
– Inclusive compramos um Peugeot 4CV.
– Acho que um tratamento em Vichy lhe fará muito bem. Uma boa
limpeza do organismo.
E por pouco não deu uma risada ao ver a cara que o comissário fez.
– Um tratamento?
– Alguns copos de água por dia... Não penso que o especialista lhe
infligirá banhos de lama ou de vapor, a mecanoterapia e outros aparatos.
Você não é um caso sério. Serão 21 dias de uma existência regular, sem
preocupações...
– Sem cerveja, sem vinho, sem comida condimentada, sem...
– Durante quantos anos já se aproveitou disso?
– Tive a minha parte – ele confessou.
– E continuará tendo, mesmo se essa parte for um pouco mais
reduzida... Combinado?
E Maigret ficou surpreso de ouvir-se dizer, ao levantar-se, como
qualquer outro cliente de Pardon:
– Combinado.
– Quando?
– Dentro de alguns dias, uma semana no máximo, o tempo de colocar
meus papéis em ordem...
– Vou enviá-lo a um dos meus colegas de lá, que conhece melhor a
questão que eu. Conheço uma meia dúzia... Vejamos... Rian é um cara ainda
jovem que nada tem de pomposo. Aqui estão o endereço e o número do
telefone dele. Escreverei amanhã para informá-lo...
– Obrigado, Pardon.
– Não o machuquei muito?
– Você operou com brandura.
Na sala ele sorriu para sua mulher, um sorriso tranquilizador, mas eles
não falaram de doença na casa dos Pardon.
Foi só na Rue Popincourt, onde caminhavam de braços dados, que
Maigret murmurou, como se fosse uma coisa sem importância:
– Passaremos nossas férias em Vichy...
– Vai fazer um tratamento?
– Já que me recomendam!... – ele ironizou. – Não estou doente. Parece
mesmo que estou excepcionalmente bem de saúde. Mas estão me mandando
beber água...

A coisa não datava apenas dessa visita a Pardon. Havia algum tempo ele
tinha a curiosa impressão de que todo mundo era mais jovem que ele, quer
se tratasse do prefeito ou dos juízes de instrução, dos réus que ele
interrogava ou, agora, desse dr. Rian, louro e afável, que não tinha nem
quarenta anos.
Um garoto, em suma, quando muito um moço, não obstante grave e
seguro de si, que decidiria mais ou menos sua sorte.
Esse pensamento o irritava e o inquietava ao mesmo tempo, pois ele
não se sentia um homem idoso, nem mesmo um homem que começa a
envelhecer.
A juventude não impedia o dr. Rian de morar numa bela mansão
particular de tijolos rosados, no Boulevard des États-Unis. Se a construção
lembrava um pouco o estilo 1900, mesmo assim era suntuosa, com escadas
de mármore, tapetes, móveis polidos e uma camareira de touca com
bordado inglês.
– Suponho que seus pais já faleceram... Do que morreu seu pai?
O médico anotava as respostas numa ficha, minuciosamente, com uma
escrita regular de contador de empresa.
– E sua mãe?... Tem irmãos?... Irmãs?... Doenças infantis?...
Rubéola?... Escarlatina?...
Escarlatina não, mas ele tivera rubéola, muito jovem, quando a mãe
ainda vivia. Era mesmo a lembrança mais forte, mais calorosa que
conservara dela, pois pouco tempo depois haveria de perdê-la.
– Que esportes praticou?... Sofreu acidentes?... Tem inflamações
frequentes na garganta?... Fuma muito, não é mesmo?
O jovem doutor sorriu, malicioso, a fim de mostrar a Maigret que o
conhecia de reputação.
– Não se pode dizer que tenha uma vida sedentária...
– Depende dos momentos. Às vezes, durante três semanas ou um mês,
fico o tempo todo na minha sala, para em seguida estar fora durante vários
dias.
– Refeições regulares?
– Não.
– Faz algum regime?
Ele não devia confessar que gostava de pratos bem cozidos, de molhos
condimentados e perfumados com especiarias?
– Não apenas gourmet, mas um bom garfo, não é?
– Sim, bastante.
– E o vinho? Meio litro, um litro por dia?
– Sim... Não... Um pouco mais. Nas refeições, bebo apenas dois ou três
copos. No trabalho, às vezes uma cerveja, que mando vir de uma brasserie
vizinha.
– Aperitivos?
– Seguidamente, com um ou outro dos meus colegas.
Na Brasserie Dauphine. Mas não era pelo vício da bebida, e sim pelo
ambiente, aconchegante, familiar, pelo cheiro de cozinha, de anis e
conhaque que acabara por impregnar as paredes. Por que ele sentia
vergonha, de repente, diante desse jovem tão asseado e bem alojado?
– Em suma, nenhum verdadeiro excesso...
Ele queria ser honesto.
– Depende do que chama de excesso. À noite, não recuso um ou dois
copos de um licor de ameixa que minha cunhada envia da Alsácia... Meus
inquéritos exigem com frequência que eu passe um certo tempo em cafés ou
em bares... É difícil lhe explicar. Se começo um inquérito com cachaça, por
exemplo, porque estou num boteco cuja especialidade é essa, tenho a
tendência a continuar na cachaça...
– Quanto por dia?
Isso lhe lembrou a infância, o confessionário do vilarejo que cheirava a
mofo e o padre que aspirava rapé.
– Muito?
– Imagino que certamente, na sua opinião, é muito...
– E dura muito tempo?
– Às vezes três dias, outras vezes oito ou dez, se não mais. Depende
das circunstâncias...
Não lhe faziam censuras, não lhe davam o terço a rezar como
penitência, mas ele adivinhava o que o médico louro, sentado ao sol,
inclinado sobre uma bela mesa de mogno, pensava dele.
– Indigestões muito fortes? Azia? Tonturas?
Tonturas, sim. Mas nada grave. Acontecia-lhe, sobretudo de algumas
semanas para cá, de sentir-se num universo menos firme que tivesse perdido
sua realidade. Ele mesmo flutuava, mal seguro sobre as pernas.
Não era bastante forte para de fato inquietá-lo, mas era desagradável.
Felizmente durava apenas alguns minutos. Certa vez, teve uma tontura
quando ia atravessar o Boulevard du Palais e esperou na calçada.
– Compreendo... compreendo...
Compreendia o quê? Que ele estava doente? Que fumava e bebia
muito? Que já era tempo, na sua idade, de fazer um regime?
Maigret não estava abatido. Sorria, com aquele sorriso que a mulher
via nele desde que estavam em Vichy. Dava a impressão de zombar de si
mesmo, no entanto estava um pouco tristonho.
– Vamos passar à sala ao lado...
Exames completos, desta vez! Fizeram-no inclusive subir e desde
durante três minutos os degraus de uma escadinha. Pressão arterial nas
posições deitada, sentada, de pé. Depois, raio X.
– Respire... Mais fundo... Não respire mais... Aspire... Conserve o ar...
Expire...
Era cômico e aflitivo, dramático e maluco. Ele ainda tinha, talvez,
trinta anos por viver, mas também podiam, dentro de alguns minutos,
anunciar-lhe com rodeios que sua vida de homem saudável, de homem
normal, havia acabado, e que dali por diante não seria mais que um
inválido.
Todos haviam passado por ali, todos os que ele encontrava no parque,
em volta das fontes, sob as árvores suntuosas, ao longo do rio, e mesmo os
que se bronzeavam na praia, os jogadores de bocha, os jogadores de tênis
que se viam na outra margem do Allier, junto ao arvoredo do Sporting Club.
– Srta. Jeanne...
– Sim, senhor...
A enfermeira sabia o que devia trazer. Tudo isso fazia parte de uma
rotina como a que os Maigret iam adotar.
Primeiro o aparelhinho para lhe picar a ponta do dedo e recolher gotas
de sangue que se distribuíam em diferentes provetas.
– Relaxe... Pressione por um momento o punho...
Uma agulha picou-lhe a veia do braço.
– Solte.
Não era a primeira vez que ele fazia um exame de sangue, mas
pareceu-lhe que este possuía uma espécie de solenidade.
– Eu lhe agradeço... Pode se vestir.
Pouco depois eles estavam de volta ao consultório com as paredes
cobertas de livros e revistas médicas encadernadas ano a ano.
– Não creio que um tratamento severo seja necessário no seu caso.
Tornarei a vê-lo depois de amanhã à mesma hora, quando tiver os
resultados das análises. Daqui até lá, vou lhe estabelecer um regime. Está
hospedado no hotel, não é mesmo? Basta entregar este papel ao hoteleiro.
Ele compreenderá.
Era um cartão impresso, com os pratos autorizados numa coluna e, na
outra, os pratos proibidos. No verso havia inclusive exemplos de cardápios.
– Não sei se está sabendo da ação curativa das diferentes fontes. Sobre
esse assunto, há um livrinho muito bem-escrito por dois de meus colegas,
mas acho que está esgotado. Vamos alternar, de início, a água de duas
fontes, Chomel e Grande Grille; o senhor encontrará ambas no parque...
Os dois estavam sérios. Maigret não teve vontade de alçar os ombros
nem de rir, enquanto o doutor escrevia numa folha de bloco.
– Tem o hábito de levantar cedo e tomar seu café da manhã?...
Entendo... Sua mulher o acompanha? Nesse caso, não vou enviá-lo em
jejum à cidade... Vejamos... Comecem de manhã, por volta das dez e meia,
com a Grande Grille... Encontrará cadeiras onde repousar e, se estiver
chovendo, um amplo hall envidraçado... A cada meia hora, por três vezes,
beberá um copo d’água, que deve ingerir o mais quente possível...
“À tarde, por volta das cinco horas, fará o mesmo na fonte Chomel.
“Não se surpreenda se, no dia seguinte, sentir-se um pouco cansado. É
um efeito passageiro do tratamento. Aliás, tornarei a vê-lo então...”
Tudo isso já estava distante, quando ele era um novato que confundia
uma fonte com outra. Agora já estava instalado no tratamento, como os
milhares, as dezenas de milhares de homens e mulheres com quem convivia
da manhã à noite.
Em certas horas, todas as cadeiras amarelas do parque estavam
ocupadas, como à noite em volta do coreto, cada um e cada uma esperando
o momento de ir beber sua segunda, sua terceira, sua quarta doses.
Ele havia, como os outros, comprado um copo graduado, e a sra.
Maigret também quis ter o seu.
– Mas você também vai fazer o tratamento?
– Por que não? Que risco eu corro? Li, nos prospectos, que as águas
fazem emagrecer.
Os copos eram guardados em estojos de palha trançada, e a sra.
Maigret trazia os dois a tiracolo, da mesma forma que os turfistas carregam
seus binóculos.
Os dois nunca tinham passeado tanto. Às nove da manhã já estavam
caminhando e, com exceção dos entregadores, não havia mais quase
ninguém nas ruas tranquilas do bairro onde habitavam, o Quartier de
France, não distante da fonte dos Célestins.
A poucos minutos do hotel, havia um parque para crianças, com uma
piscina pouco profunda, balanços, jogos os mais diversos e até mesmo um
teatro de marionetes mais completo que o dos Champs-Élysées.
– Tem o bilhete, senhor?
Cada um pagou um franco, e os dois ficaram andando sob as árvores,
olhando as crianças se divertirem, quase nuas, e voltaram no dia seguinte.
– Se comprar um ingresso de vinte tíquetes, sairá mais barato.
Ele não teve coragem. Era muito premeditado. Haviam passado ali por
acaso e era somente por hábito, por não terem o que fazer, que voltavam
todo dia à mesma hora.
Depois paravam no lugar reservado aos jogadores de bocha, e Maigret
acompanhava com atenção duas ou três partidas, reencontrando debaixo de
uma mesma árvore o magro alto que tinha só um braço e que, no entanto,
era o melhor jogador.
Numa outra quadra, onde ressoava o sotaque meridional, um homem de
pele rosada, cabelos muito brancos, vestido com esmero, jogava com
dignidade e os outros o chamavam de senador.
Um pouco mais adiante começava a praia, com a barraca dos guardas
municipais, as bolas flutuantes que delimitavam a área de banho, e ali se
reencontravam as mesmas pessoas sob os mesmos guarda-sóis.
– Não se aborrece? – ela lhe perguntara no segundo dia.
– Por quê? – ele se surpreendera.
Pois não estava aborrecido. Aos poucos adotava um novo ritmo, outras
manias. Assim, foi com espanto que percebeu que enchia automaticamente
um cachimbo ao chegar à ponte de Bellerive. E foi fumando um cachimbo
que, na margem do Yacht Club, ficou olhando, com a mulher, os rapazes e
moças que praticavam esqui aquático.
– Não acha que é um esporte perigoso?
– Por quê?
O parque, enfim, os copos d’água que uma empregada lhes enchia na
fonte e que cada um bebia em pequenos goles. A água era quente e salgada.
Na fonte Chomel, tinha um gosto forte de enxofre, e Maigret se apressava
em acender um novo cachimbo.
A sra. Maigret se espantava de vê-lo tão dócil, tão calmo, a ponto de se
inquietar com isso.
Foi então que ela descobriu que ele brincava, de certo modo, de
detetive, observando as pessoas, como que involuntariamente, percebendo
pequenos detalhes, classificando-os por categorias. Por exemplo, no Hôtel
de la Bérézina, espécie de pensão familiar onde se hospedavam, ele já fizera
a distinção, conforme o regime, entre hepáticos e diabéticos.
Procurava adivinhar a história de cada um, situá-los em sua vida
normal e, às vezes, fazia sua mulher participar desse passatempo.
Os dois que ele chamava de “sorridentes” o fascinavam, aquele homem
gordo que parecia sempre a ponto de vir apertar-lhe a mão e sua mulher
gorduchinha, que se assemelhava a um bombom. O que eles podiam fazer
na vida? Haviam reconhecido o comissário por terem visto sua fotografia
nos jornais?
Na verdade, ali, poucas pessoas o reconheciam, muito menos do que
em Paris. É verdade que sua mulher o fizera comprar um casaco leve, quase
branco, de alpaca, como usavam os homens de uma certa idade, no verão,
quando ele era criança.
Mas mesmo sem isso, certamente, não teriam pensado nele. Estava
certo de que os que franziam as sobrancelhas ao vê-lo, ou que se viravam,
diziam a si mesmos: “Sujeito parecido com o Maigret...”.
Mas não pensavam que fosse Maigret. Aliás, ele era muito pouco
Maigret naquele momento.
Outra personagem fascinante era a dama de lilás... Ela também fazia
um tratamento, somente na Grande Grille, onde eles se viam toda manhã.
Tinha seu lugar, um pouco à parte dos outros, perto da banca de jornais.
Bebia a água de uma só vez; depois, tendo lavado e enxugado o copo,
recolocava-o com cuidado no estojo de palha, sempre digna e distante...
Três ou quatro pessoas a cumprimentaram. Os Maigret não a viam à
tarde. Iria ao setor de hidroterapia? O médico lhe ordenara que
permanecesse deitada?
– Velocidade de sedimentação perfeita – anunciara-lhe o dr. Rian. –
Média horária: 6 mm... Colesterol um pouco alto, mas dentro de limites
aceitáveis... Ureia normal... Ferro sérico em quantidade bastante pequena, o
que nada tem de inquietante... O ácido úrico também não... Eu lhe suprimi a
carne de animais de caça, os miúdos, os crustáceos... Quanto ao exame
hematológico, está excelente, com 98 de hemoglobina...
“Tudo o que necessita é de uma boa limpeza do organismo... Não sente
peso no estômago, dor de cabeça?... Então vamos manter o mesmo regime
nos próximos dias. Volte aqui no sábado.”
Naquela noite, noite de música no coreto, eles não viram a que horas a
dama de lilás se retirou, pois nunca esperavam o final do concerto e
voltavam cedo ao Quartier de France, com suas ruas desertas e suas
fachadas recém-pintadas, ao Hôtel de la Bérézina cuja porta dupla era
flanqueada de dois arbustos em vasos.
Dormiam num leito de cobre e todos os móveis datavam do começo do
século, como a banheira de pés e as torneiras em pescoço de cisne.
O hotel era bem cuidado, silencioso, exceto quando o filho dos
Gagnaire, que se hospedavam no primeiro andar, brincava sozinho de índio
no jardim.
Todos dormiam.
Era o quinto, o sexto dia? A sra. Maigret sentia-se desorientada, de
manhã, por não precisar preparar o café. Às sete horas traziam-lhes o
desjejum numa bandeja, com croissants frescos e o jornal de Clermont-
Ferrand, que dedicava duas páginas à vida de Vichy.
Maigret se habituara a lê-las da primeira à última linha, de modo que
estava a par dos menores acontecimentos locais. Lia inclusive as notas de
falecimento e os classificados.
– Casa três quartos, banheiro, todo o conforto, excelente estado, vista
insuperável de...
– Está pensando em comprar uma casa?
– Não, mas é interessante. Pergunto-me se são clientes em tratamento
que fazem questão de ter uma casa para passar aqui um mês por ano, ou se
são aposentados de Paris ou de outros lugares que...
Depois de se vestirem, desciam, e o dono do hotel não deixava de
cumprimentá-los na base da escada, coberta por um tapete vermelho preso
por passadeiras de cobre. Ele não era natural da região, mas de Montélimar,
o que se percebia pelo sotaque.
Viam as horas passarem devagarinho... O parque infantil, os jogadores
de bocha...
– Vi que toda quarta-feira e todo sábado há uma feira. Podemos dar
uma espiada.
Ele sempre gostou de feiras, do cheiro dos legumes e das frutas, dos
pedaços de carne expostos, dos peixes, das lagostas ainda vivas...
– Rian recomendou-me fazer cinco quilômetros de caminhada por dia...
Sua voz era irônica.
– Ele não sabe que fazemos uma média de quinze!
– Você acha?
– Calcule... Caminhamos um mínimo de cinco horas. Se não andamos a
um passo de atleta, fazemos pelo menos entre três e quatro quilômetros por
hora...
– Eu nunca teria imaginado...
O copo d’água. A cadeira amarela e a leitura dos jornais de Paris que
acabavam de chegar. O almoço no restaurante completamente branco do
hotel onde, em algumas mesas, via-se uma garrafa de vinho já começada,
etiquetada com o nome do pensionista. Não havia nenhuma na mesa dos
Maigret.
– Ele lhe proibiu o vinho?
– Não formalmente. Mas já que me recomendam...
Ela estava pasma de vê-lo tornar-se um curista consciencioso e
conservar no entanto o bom humor.
Ele fazia uma sesta, depois a rotina recomeçava, do outro lado da
cidade desta vez, nas ruas de comércio, nas lojas, em meio à multidão que
os separava a todo momento na calçada.
– Notou o número de pedicures e de ortopedistas?
– Se todo o mundo caminhasse tanto quanto nós!...
Não havia concerto no coreto naquela noite, mas no jardim do Grand
Casino. Os instrumentos de cordas haviam substituído os metais, e a música
era mais séria, assim como os rostos dos que a escutavam.
Eles não viram a dama de lilás. Também não a encontraram nas aleias
do parque, onde não deixaram de cruzar o casal de gordinhos sorridentes.
Estes se vestiam com mais cuidado que de costume e andavam depressa em
direção ao teatro do cassino, onde era apresentada uma peça cômica.
O leito de cobre. O tempo passava a uma velocidade surpreendente,
sem nada para fazer. Os croissants, o café, os torrões de açúcar envoltos em
papel manteiga, o jornal de Clermont-Ferrand.
Maigret, na sua poltrona perto da janela, fumava seu primeiro
cachimbo, de pijama, ainda com sua taça de café, que fazia durar o maior
tempo possível.
Quando ele soltou uma exclamação, a sra. Maigret surgiu do banheiro,
vestindo um penhoar de flores azuis, com a escova de dentes na mão.
– Que houve?
– Veja...
Na primeira página dedicada a Vichy, uma fotografia: a da dama de
lilás. A aparência era de alguns anos mais jovem, e ela fizera o esforço, para
o fotógrafo, de pôr um leve sorriso nos lábios.
– Que aconteceu com ela?
– Foi assassinada.
– Na noite passada?
– Se tivesse acontecido a noite passada, o jornal não poderia noticiar
esta manhã... Deve ter sido anteontem à noite.
– Quando a vimos no coreto...
– Sim, por volta das nove horas... Ela voltou para casa, a duas ruas
daqui, Rue du Bourbonnais. Eu não imaginava que fôssemos quase
vizinhos... Teve o tempo de retirar o xale, o chapéu, de entrar na sala, à
esquerda do corredor...
– Como foi morta?
– Estrangulada... Ontem de manhã, seus locatários se surpreenderam de
não ouvir ruídos no térreo...
– Ela não era curista?
– Mora em Vichy o ano todo. É proprietária de uma casa, cujos quartos
do primeiro andar aluga, mobiliados.
Maigret continuava sentado, e sua mulher sabia a preço de que esforço.
– Acha que foi um latrocínio?
– O assassino vasculhou tudo, mas parece não ter levado nada. Foram
encontradas algumas joias e uma certa quantia de dinheiro numa gaveta
que, no entanto, foi aberta...
– Ela não foi...
– Violentada? Não.
Ele olhou a janela em silêncio.
– Sabe quem dirige o inquérito?
– Evidentemente que não.
– Lecoeur, que foi um dos meus inspetores e agora é chefe da Polícia
Judiciária em Clermont-Ferrand... Ele está aqui... E não sabe que estou aqui
também...
– Pretende ir vê-lo?
Ele não respondeu de imediato.
CAPÍTULO II

FALTAVAM CINCO PARA AS NOVE, e Maigret ainda não havia


respondido à pergunta da sua mulher. Era como se fosse um ponto de honra
comportar-se exatamente como nas outras manhãs, seguindo, sem o menor
desvio, sua rotina em Vichy.
Ele havia lido o jornal quase até o fim, havia terminado o café, se
barbeado, tomado um banho, ao mesmo tempo em que escutava, como de
hábito, as notícias no rádio. Às cinco para as nove estava pronto, e os dois
desceram a escada com tapete vermelho e passadeiras de cobre.
O dono do hotel, de casaco branco, gorro de cozinheiro na cabeça, o
esperava no corredor.
– Então, sr. Maigret, está sendo bem cuidado em Vichy, não? Estão lhe
oferecendo até um belo crime...
Ele chegou a sorrir vagamente.
– Acredito que vá se ocupar do caso...
– O que acontece fora de Paris não é da minha competência.
A sra. Maigret o espiava, achando que ele não perceberia. Mas ele
percebia. Em vez de tomar a Rue d’Auvergne, na direção do rio Allier e do
parque infantil, ele virou à direita, com um ar inocente.
É verdade que às vezes eles mudavam de itinerário, mas era sempre
quando retornavam do passeio. E ela sempre se maravilhava com o senso de
orientação do marido. Sem consultar nenhum mapa, andando como ao
acaso, ele se metia por ruazinhas que pareciam se afastar do seu objetivo e,
de repente, ela se surpreendia ao reconhecer a fachada do hotel, com os dois
arbustos nos vasos pintados de verde.
Desta vez ele virou de novo à direita, depois outra vez, até avistarem,
numa calçada, uns quinze curiosos que olhavam para o outro lado da rua.
Um pequeno brilho aflorou nos olhos da sra. Maigret. O comissário
parecia hesitar, mudou de calçada, parou para esvaziar o cachimbo batendo-
o contra o salto do sapato e para encher lentamente um outro. Ela o via
como um menino grande e, naqueles momentos, sentia-se transbordar de
ternura.
Uma luta travava-se dentro dele. Por fim, como se ignorasse onde
estava, misturou-se ao grupo de curiosos e olhou, ele também, a casa
defronte, diante da qual havia um carro parado, não distante de um guarda
municipal de sentinela.
A casa era elegante, como a maioria das outras da rua. A fachada fora
recentemente pintada de branco e rosa, com janelas verde-claras como a
sacada.
Numa placa de mármore lia-se, em letras inglesas de fantasia: Les Iris.
A sra. Maigret adivinhava o pequeno drama que o marido vivia. Ele
não quis ir à sede da polícia, assim como agora se recusava a atravessar a
rua, para dizer ao guarda quem ele era, para fazer-se entrar na casa.
Não havia uma nuvem no céu. A rua estava limpa, o ar claro, leve,
alegre. Uma mulher, um pouco mais adiante, batia os tapetes à janela,
olhando os curiosos com um ar compadecido. Mas ela mesma, na véspera,
quando o crime foi descoberto e vários membros da polícia chegaram, não
havia se misturado aos vizinhos para contemplar uma fachada que havia
anos ela conhecia tão bem?
Alguns trocavam comentários.
– Parece que é um crime passional...
– Ora, convenhamos, ela tinha cerca de cinquenta anos!...
No primeiro andar, um rosto se adivinhava atrás da vidraça, de cabelos
escuros e nariz proeminente; às vezes percebia-se no fundo a silhueta de um
homem ainda jovem.
A porta era branca. Um carro de leiteiro passava e garrafas eram
depositadas na maior parte das entradas. O entregador se dirigiu até a porta
branca com uma garrafa de leite na mão. O sentinela lhe disse alguma coisa,
certamente que não era necessário, mas o leiteiro alçou os ombros e mesmo
assim deixou a garrafa.
Será que alguém perceberia que Maigret... Ele não podia ficar ali
indefinidamente.
No momento em que ia se afastar, um rapaz alto de cabelos
desalinhados apareceu à porta, atravessou a rua, caminhou em direção ao
comissário.
– O chefe gostaria de vê-lo...
Sua mulher conseguiu não sorrir.
– Onde espero você? – ela perguntou.
– Em nosso lugar habitual, diante da fonte.
Teriam-no reconhecido pela janela? Ele atravessou dignamente a rua,
procurando dar ao rosto uma expressão mal-humorada. No corredor de
entrada havia, à direita, um cabide de bambu onde estavam pendurados dois
chapéus. Ele acrescentou o seu, um chapéu de palha que a mulher o fizera
comprar com o casaco de alpaca, e dos quais tinha um pouco de vergonha.
– Entre, chefe.
Uma voz alegre, familiar, um rosto e uma silhueta que Maigret
reconheceu de imediato.
– Lecoeur!
Eles não se viam havia quinze anos, desde que Désiré Lecoeur, então
inspetor, ainda fazia parte da equipe de Maigret no Quai des Orfèvres.
– Pois é, chefe, a gente envelhece, engorda e sobe de posto. Aqui estou
eu, comissário divisionário em Clermont-Ferrand, o que me vale ter de lidar
com esse caso complicado... Entre.
Ele o introduziu numa pequena sala azulada de fumaça, sentou-se
diante da mesa que lhe servia provisoriamente de escrivaninha e que estava
coberta de papéis.
Maigret instalou-se, não sem precaução, numa frágil cadeira, imitação
do estilo Luís XVI, e devia haver uma pergunta no seu olhar, pois Lecoeur
apressou-se em dizer:
– Deve estar se perguntando como eu soube que estava aqui. Em
primeiro lugar, Moinet, que o senhor não conhece e que dirige a polícia de
Vichy, viu seu nome entre as fichas de hotel. Claro que ele não ousou
perturbá-lo, mas seus homens o veem diariamente. Os policiais da praia se
perguntam mesmo quando se decidirá a jogar bocha, pois toda manhã se
mostra um pouco mais interessado por esse esporte, de modo que...
– Você chegou ontem?
– Sim, de Clermont-Ferrand, com dois de meus homens, um dos quais
o jovem Dicelle, que foi abordá-lo na calçada. Hesitei em procurá-lo. Achei
que estava aqui para um tratamento e não para nos dar uma ajuda. Mas eu
sabia que, se o caso o interessasse, o senhor acabaria...
Maigret tinha agora um ar realmente mal-humorado.
– Um latrocínio? – ele resmungou.
– Com certeza não.
– Passional?
– Pouco provável. Digo isso embora, depois de 24 horas, eu não saiba
muito mais do que quando cheguei ontem de manhã.
Ele remexeu entre seus papéis.
– A vítima chama-se Hélène Lange. Tinha 48 anos e nasceu em
Marsilly, a uns dez quilômetros de La Rochelle. Telefonei à prefeitura de
Marsilly, que me informou que a mãe dela, viúva muito cedo, manteve por
muito tempo uma pequena mercearia na praça da Igreja.
“Ela tinha duas filhas, e Hélène, a mais velha, fez em La Rochelle
cursos de estenodatilografia. Depois trabalhou por um certo tempo no
escritório de um armador antes de ir a Paris, onde não se sabe o que fez.
“Nunca pediu uma cópia da sua certidão de nascimento, o que faz
supor que não se casou. Aliás, sua carteira de identidade faz a menção de
solteira.
“Tinha uma irmã seis ou sete anos mais moça que foi manicure,
também em La Rochelle. Da mesma forma que Hélène, ela foi a Paris, de
onde regressou à terra natal após uns dez anos.
“Deve ter juntado um certo dinheiro que lhe permitiu comprar, na Place
des Armes, um salão de beleza que ainda mantém. Tentei falar com ela por
telefone, mas quem atendeu foi uma auxiliar que a substitui. Ela está de
férias nas Baleares. Telegrafei a seu hotel para pedir que venha com
urgência e a espero durante o dia de hoje.
“Essa irmã, Francine, também não é casada. A mãe morreu há oito
anos. Não se sabe de nenhum outro familiar...”
Maigret, contra a vontade, exibia o seu rosto profissional. Era como se
fosse ele que dirigisse o inquérito e um de seus colaboradores lhe fizesse
um relatório na sua sala.
Faltavam-lhe os cachimbos à sua frente, que ele tinha o hábito de
manusear nessas circunstâncias, a vista do Sena, através da janela, e sua
cadeira de encosto sólido, no qual podia se apoiar.
Enquanto Lecoeur falava, ele havia observado dois ou três detalhes, em
particular que, nessa sala que servia de living-room, só havia fotografias de
Hélène Lange. Sobre um baú, ela aparecia aos cinco ou seis anos de idade,
num vestido muito comprido para ela, com uma trança estreita de cada lado
do rosto.
Na parede, um retrato maior e feito por um bom fotógrafo a mostrava
numa pose romântica, o olhar etéreo, quando devia ter uns vinte anos.
Numa terceira, ela estava de pé à beira do mar. Não vestia roupa de
banho, mas um vestido branco que a brisa fazia flutuar à esquerda como
uma bandeira, e segurava com as duas mãos um chapéu claro de abas
longas.
– Sabe quando e como o crime foi cometido?
– É difícil reconstituir os acontecimentos. Trabalhamos nisso desde
ontem de manhã, mas não avançamos muito.
“Anteontem, segunda-feira à noite, Hélène Lange jantou sozinha na sua
cozinha. Lavou a louça, pois não encontramos pratos sujos, vestiu-se e saiu
após ter apagado todas as luzes. Se isto lhe interessa, ela comeu dois ovos
na casca. Estava com um vestido malva, um xale de lã branco e um chapéu
igualmente branco...”
Maigret hesitou, mas acabou não resistindo ao desejo de declarar:
– Eu sei...
– Já andou investigando?
– Não, mas na segunda-feira à noite a vi sentada diante de um coreto de
música onde era apresentado um concerto.
– Não sabe quando ela deixou o local?
– Eu e minha mulher nos afastamos antes das nove e meia, para o
nosso passeio habitual.
– Ela estava sozinha?
– Sempre estava sozinha.
Lecoeur não tentou esconder o espanto.
– Chegou a observá-la outras vezes?
Um Maigret mais sorridente fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Por quê?
– Aqui as pessoas passeiam o tempo todo e automaticamente olham-se
umas às outras. Como as que se encontram às mesmas horas e nos mesmos
lugares...
– Tem alguma ideia?
– De quê?
– Do tipo de mulher que ela era?
– Não era uma pessoa banal, é tudo o que sei.
– Bem, eu continuo... Dois dos três quartos do primeiro andar estão
alugados. O primeiro é ocupado por um engenheiro de Grenoble, chamado
Maleski, e por sua mulher. Saíram alguns minutos depois da srta. Lange
para ir ao cinema e só voltaram às onze e meia. Todas as janelas da casa
estavam fechadas, como de costume, mas percebia-se luz pelas fendas das
do térreo. Quando entraram no corredor, eles também notaram luz debaixo
da porta da sala e do quarto de dormir da srta. Lange, que fica à direita.
– Não ouviram nada?
– Maleski não. Sua mulher, embora com muita hesitação, falou de um
murmúrio de vozes. Eles se deitaram quase em seguida e nada os despertou
até a manhã do dia seguinte.
“A outra locatária chama-se sra. Vivereau, uma viúva que mora na Rue
Lamarck, em Paris. É uma senhora volumosa, de uns sessenta anos, que
todo ano vem a Vichy para perder alguns quilos. É a primeira vez que aluga
um quarto na casa da srta. Lange. Nos anos anteriores hospedava-se em
hotel.
“Ao que parece, conheceu um outro gênero de vida; o marido era um
homem rico mas generoso demais, e a deixou numa situação difícil. Em
suma, ela se enfeita com joias falsas e fala pelos cotovelos... Saiu às nove
da noite. Não viu ninguém e deixou a casa na obscuridade completa.”
– Cada locatário tem uma chave?
– Sim. A viúva Vivereau foi jogar bridge no Carlton, que ela deixou
pouco antes da meia-noite. Voltou para casa a pé, como de costume. Ela não
tem carro. Os Maleski têm um pequeno carro, mas raramente o utilizam
durante sua temporada em Vichy, e ele fica a maior parte do tempo numa
garagem do bairro.
– As luzes continuavam acesas?
– Espere um pouco, chefe... Claro que só pude interrogar Vivereau
depois de descoberto o crime e quando toda a rua já estava agitada. Não sei
se é uma pessoa que gosta de imaginar coisas, assim como gosta de usar
joias falsas. Ela afirma que, ao chegar à esquina, isto é, no cruzamento do
Boulevard de La Salle e da Rue du Bourbonnais, quase esbarrou num
homem que não a viu se aproximar; ela jura que ele levou um susto e levou
a mão ao rosto como para evitar ser reconhecido.
– No entanto ela o reconheceu!
– Não. Afirma que o reconheceria se fosse colocada diante dele. Era
muito alto, forte. Um enorme peito de gorila, disse. Caminhava depressa,
inclinado para a frente. Ela teve medo, mesmo assim virou-se para ele, que
seguiu andando em direção ao centro da cidade.
– Um homem de que idade?
– Não jovem. Mas também não velho. Muito forte. Assustador. Ela
quase correu e só se sentiu segura quando pôs a chave na fechadura.
– Ainda se viam luzes acesas no térreo?
– Pois é, não se viam mais, se é que podemos confiar nesse
testemunho. Ela não ouviu nada. Deitou-se tão nervosa que tomou uma
colherada de xarope de menta.
– Quem descobriu o crime?
– Já chego lá, chefe. A srta. Lange queria alugar seus quartos a pessoas
convenientes, mas não lhes servia refeições. Tampouco lhes permitia
cozinhar e não tolerava sequer um fogareiro a álcool para o café da manhã.
“Ontem, por volta das oito horas, a sra. Maleski desceu com sua
garrafa térmica a fim de, como todo dia, enchê-la de café num bar dos
arredores e comprar croissants. Não notou nada de particular. Ao retornar,
também não. Mas o que a surpreendeu foi não ouvir ruídos, sobretudo na
segunda vez, pois a srta. Lange se levantava cedo e ouviam-se seus passos
de uma peça a outra...
“– Estou pensando se ela não adoeceu – disse ao marido enquanto eles
comiam.
“Porque a proprietária costumava se queixar de sua saúde. Às nove
horas, o casal desceu enquanto a sra. Vivereau ainda estava no seu quarto e,
no corredor, encontraram Charlotte, confusa.”
– Charlotte?
– Uma faxineira que a srta. Lange empregava toda manhã das nove ao
meio-dia para arrumar os quartos. Vem de bicicleta de um vilarejo situado a
uns dez quilômetros e é uma pessoa um pouco simplória...
“– Todas as portas estão fechadas – ela disse aos Maleski.
“Nas outras manhãs, quando chegava, portas e janelas do térreo
estavam abertas, pois a srta. Lange sempre dizia sentir falta de ar.
“– Não tem a chave?
“– Não... Se ela não está, é melhor eu ir embora...
“Maleski tentou abrir a porta com a chave do seu quarto, não conseguiu
e acabou por telefonar à polícia, do mesmo bar onde sua mulher tinha ido
buscar o café.
“Foi mais ou menos o que aconteceu. O delegado de polícia de Vichy
logo chegou com um serralheiro. A chave da porta da sala não foi
encontrada. As outras portas, da cozinha e do quarto, estavam fechadas com
a chave na fechadura.
“Nesta sala, aqui, exatamente, na beira do tapete, Hélène Lange estava
estendida, ou melhor, curvada sobre si mesma. Tinha um aspecto horrível,
pois fora estrangulada...
“Ainda estava com o vestido malva, mas havia retirado o xale e o
chapéu, que foram encontrados no cabide do corredor. As gavetas dos
móveis estavam abertas, papéis e caixas de papelão se espalhavam no
chão...”
– Não houve estupro?
– Nem mesmo tentativa... Nenhum roubo também, ao que sabemos. A
resenha do La Tribune, na manhã de hoje, é bastante fiel. Encontramos,
numa gaveta, cinco notas de cem francos. A bolsa da vítima foi remexida,
seu conteúdo despejado como o resto, inclusive quatrocentos francos em
notas de dez e vinte, além de moedas e um ingresso de teatro no Grand
Casino.
– Há quanto tempo ela comprou esta casa?
– Nove anos. Vinha então de Nice, onde morou por um certo tempo.
– Ela trabalhava lá?
– Não. Ocupava um alojamento bastante modesto, perto do Boulevard
Albert I, e parecia viver de rendas.
– Viajava?
– Viagens de dois ou três dias, mais ou menos todos os meses...
– Não se sabe aonde ia?
– Não dizia nada sobre seus deslocamentos.
– E aqui?
– Nos dois primeiros anos não teve locatários. Depois pôs para alugar
três quartos durante a temporada, mas nem sempre todos estavam ocupados,
como acontece atualmente. O quarto azul estava vazio. Há o quarto branco,
o quarto rosa e o quarto azul.
Maigret notou uma outra coisa. Ele não viu ao redor nenhum sinal de
verde, nenhum bibelô, enfeite ou almofada dessa cor.
– Era supersticiosa?
– Como sabe? Um dia ela se irritou porque a sra. Maleski havia trazido
um buquê de cravos; disse-lhe que não queria essas flores de má sorte na
casa.
“Também observou à sra. Vivereau que era imprudente usar um vestido
verde e que isso certamente lhe custaria caro...”
– Recebia visitas?
– Segundo os vizinhos, nunca.
– Correspondências?
– De vez em quando uma carta de La Rochelle. O carteiro foi
interrogado. Prospectos e faturas de algumas lojas de Vichy.
– Tinha conta em banco?
– No Crédit Lyonnais, na esquina da Rue Georges-Clemenceau.
– Você foi até lá, sem dúvida...
– Ela fazia depósitos regulares, cerca de cinco mil francos todo mês,
nem sempre na mesma data.
– Em dinheiro vivo?
– Sim. Durante a temporada os depósitos eram mais elevados, por
causa dos locatários que lhe pagavam o aluguel.
– Costumava assinar cheques?
– A fornecedores, quase todos de Vichy ou de Moulins, onde ia de vez
em quando. Às vezes pagava com cheque objetos encomendados de Paris,
por catálogo. O senhor encontrará uma pilha de catálogos naquele canto...
Lecoeur observava o comissário, a quem o casaco branco dava um
aspecto bem diferente do homem que ele conhecera no Quai des Orfèvres.
– O que pensa, chefe?
– Penso que preciso ir embora. Minha mulher me espera...
– E seu primeiro copo d’água!...
– A polícia de Vichy sabe disso também? – ele resmungou.
– Voltará? A P.J. não tem escritório em Vichy. Volto toda noite de carro
a Clermont-Ferrand, o que dá uns sessenta quilômetros. O chefe de polícia
daqui propôs colocar uma sala e um telefone à minha disposição, mas
prefiro trabalhar no local. Meus homens tentam encontrar passantes ou
vizinhos que poderiam ter visto a srta. Lange na segunda à noite quando
voltou para casa, pois não sabemos se estava acompanhada, se encontrou
alguém aqui ou se...
– Desculpe, meu velho... Minha mulher...
– Entendo, chefe...
Maigret estava dividido entre a curiosidade e a rotina. Arrependia-se
um pouco de ter virado à direita em vez de virar à esquerda ao deixar o
Hôtel de la Bérézina. Como toda manhã, teria se detido no parque infantil,
depois, mais adiante, teria observado os jogadores de bocha.
Será que a sra. Maigret fizera, sozinha, o trajeto cotidiano, parando em
cada um dos lugares onde costumavam parar?
– Não quer que o levemos até lá? Estou com o carro à porta e o jovem
Dicelle adoraria...
– Obrigado... Estou aqui para caminhar.
E saiu caminhando, sozinho, com um passo rápido, para recuperar o
tempo perdido.

Ele bebeu seu primeiro copo d’água e reencontrou seu lugar, entre o vasto
hall envidraçado das fontes e a primeira árvore. Sentiu que a mulher,
embora não lhe fizesse perguntas, estava atenta a seus menores gestos, a
suas expressões fisionômicas.
Com o jornal sobre os joelhos, ficou olhando, através da folhagem
quase imóvel, o céu de um azul muito puro, no qual flutuava uma pequena
nuvem branca e cintilante.
Em Paris ele se queixava às vezes de não mais reencontrar certas
sensações de que tinha saudades: uma lufada de ar aquecido pelo sol, na
face, os jogos de luz entre as folhas e sobre o cascalho, o rangido deste sob
os passos da multidão e até mesmo o cheiro da poeira...
Aqui o milagre acontecia. Enquanto pensava na sua conversa com
Lecoeur, sentia-se como que envolvido no ambiente, e nada do que se
passava ao redor lhe escapava.
Pensava realmente? Fantasiava? Viam-se passar famílias, em toda
parte, mas os casais de idade madura eram mais numerosos.
Entre os solitários, predominavam os homens ou as mulheres? As
mulheres, sobretudo as mais velhas, tinham tendência a se aglomerar.
Arranjavam as cadeiras em círculos de seis, de oito, e se inclinavam umas
para as outras como quem troca confidências, embora se conhecessem
apenas há poucos dias.
Quem sabe? Talvez fossem verdadeiras confidências. Elas
conversavam sobre seus males, seu médico, seu tratamento, depois sobre os
filhos casados, os netos, dos quais pegavam fotografias da bolsa de mão.
Eram raras as que se sentavam sozinhas à parte, como a dama de lilás
cujo nome ele agora conhecia.
Os isolados eram mais numerosos entre os homens, com frequência
marcados pelo cansaço ou pela doença e que procuravam atravessar a
multidão com dignidade. Mesmo assim adivinhava-se nos seus traços, no
seu olhar, uma espécie de aflição, um vago temor de cair, entre as pernas
dos passantes, numa poça de sombra ou de sol.
Hélène Lange era uma solitária, e sua atitude, seu porte, revelavam um
certo orgulho. Não queria ser tratada como solteirona, não aceitava a
piedade, andava muito empertigada, com o passo ligeiro e o queixo para
cima.
Não se abria com ninguém, não tinha nenhuma necessidade de aliviar
sua alma ou seu espírito por confidências fáceis.
Havia escolhido viver sozinha?
É o que ele se perguntava, fazendo um esforço de tornar a vê-la,
sentada, de pé, imóvel, em movimento.
– Eles têm uma pista?
A sra. Maigret começava a ter ciúmes do seu devaneio. Em Paris ela
não teria ousado interrogar o marido durante uma investigação. Mas aqui,
enquanto caminhavam lado a lado durante horas, não haviam se habituado a
pensar em voz alta?
Nunca era uma verdadeira conversa, uma troca de réplicas precisas,
mas quase sempre algumas palavras, uma observação que bastava para
indicar o curso dos pensamentos de um ou do outro.
– Não. Eles esperam a irmã...
– Ela não tem outro parente?
– Parece que não.
– Está na hora do teu segundo copo...
Entraram no hall, onde as cabeças das servidoras de água
ultrapassavam o fosso no qual trabalhavam. Hélène Lange vinha beber aqui
todo dia. Era por ordem do médico ou apenas para ter um objetivo de
passeio?
– Em que está pensando?
– Pergunto-me por que Vichy.
Havia cerca de dez anos que ela se instalara nessa cidade e comprara
depois uma casa. Portanto, tinha 37 anos na época e não parecia ter
necessidade de ganhar a vida, pois nos dois primeiros anos não alugou os
quartos do andar de cima.
– E por que não Vichy? – retrucou a sra. Maigret.
– Existem centenas de cidades pequenas e médias na França onde ela
poderia ter se fixado, sem contar La Rochelle, que ela conheceu durante a
infância e a adolescência... A irmã dela, depois de ter vivido em Paris,
retornou a La Rochelle e se fixou lá...
– Pode ser que as duas irmãs não se dessem bem...
Não era tão simples. Maigret continuava a olhar as pessoas andando e
seu ritmo lembrou-lhe um mesmo desfile incessante, noutro lugar, no sol de
verão. Em Nice, no Passeio dos Ingleses.
Afinal, antes de vir a Vichy, Hélène Lange tinha vivido cinco anos em
Nice.
– Ela morou cinco anos em Nice – ele disse em voz alta.
– Muitos pequenos capitalistas...
– Justamente... Pequenos capitalistas, mas também pessoas de todas as
camadas sociais, como aqui... Eu me perguntava anteontem o que me
lembrava a multidão que anda neste parque ou se senta nas cadeiras... É a
mesma que passeia diante do mar, em Nice. Uma multidão cujas origens
são tão diversas que ela se torna neutra... Aqui também deve haver ou
houve, entre os frequentadores, velhas glórias da galanteria, do teatro, do
cinema... Descobrimos um bairro de ricas mansões particulares onde ainda
se veem mordomos com colete listrado...
“Nas colinas há casas de campo suntuosas e secretas. Como em
Nice...”
– O que deduz disso?
– Nada. Ela tinha 32 anos quando começou a viver em Nice e estava
tão sozinha quanto aqui. Geralmente a solidão começa mais tarde...
– Existem males de amor...
– Eu sei, mas eles não produzem um rosto como o dela.
– Há também os casais que se separam...
– Noventa e cinco por cento das mulheres voltam a se casar.
– E os homens?
Ele deu um sorriso largo e, sem que ela pudesse saber se era um
gracejo, lançou:
– Cem por cento!
Em Nice havia uma população flutuante, sucursais de lojas de Paris,
vários cassinos. Em Vichy, dezenas de milhares de curistas renovavam-se a
cada 21 dias e encontravam-se as mesmas lojas, três cassinos, uma dúzia de
cinemas.
Em outro lugar a teriam conhecido, teriam se ocupado dela, teriam
observado o que fazia.
Em Nice não, em Vichy também não. Mas teria ela algo a esconder?
– Vai rever Lecoeur?
– Ele me convidou a ir vê-lo quando eu quiser. Continua a me chamar
de chefe, como quando ainda trabalhava comigo...
– Todos fazem isso.
– É verdade... Por hábito...
– Não acha que é mais por afeição?
Ele sacudiu os ombros, e os dois não tardaram a tomar o caminho de
volta. Desta vez passaram pelo centro antigo, parando diante de objetos, às
vezes comoventes, expostos nas vitrines dos antiquários.
Eles sabiam que, à mesa, os outros pensionistas os observavam, mas
era preciso habituar-se a isso. Maigret procurava comer seguindo as
recomendações do dr. Rian. Não engolir nada antes de ter mastigado com
cuidado, mesmo o purê de batatas. Não encher o garfo antes que a bocada
precedente fosse engolida. Não beber mais de um ou dois goles de água,
apenas tingida por um pouco de vinho...
Ele preferia se abster do vinho.
Dava algumas tragadas de cachimbo ao subir a escada, antes de se
espichar completamente vestido para a sesta. Entrava luz suficiente pelas
janelas para que sua mulher, na poltrona, pudesse ler o jornal, e na sua
sonolência ele ouvia às vezes o roçar da folha que ela virava.
Estava estendido havia uns vinte minutos quando bateram à porta. A
sra. Maigret foi até a entrada, abriu e tornou a fechar a porta. Houve alguns
cochichos, depois ela desceu, ficou ausente por alguns minutos.
– Era Lecoeur.
– Há novidades?
– A irmã acaba de chegar em Vichy. Foi à sede da polícia e será
conduzida ao necrotério para reconhecer o corpo. Lecoeur o espera na Rue
du Bourbonnais. Ele pergunta se você gostaria de assistir ao interrogatório
dela.
Maigret já estava de pé, resmungando, e começou por abrir as janelas
para devolver o quarto à luz e à vida.
– Volto a encontrá-lo na fonte?
O primeiro copo d’água na fonte era às cinco da tarde.
– Não vai durar muito tempo. É melhor que me espere num dos bancos
perto dos jogadores de bocha.
Hesitou em pegar o chapéu de palha.
– Tem medo de que riam de você?
Que rissem! Ele estava de férias, afinal, e o pôs decididamente na
cabeça.
Curiosos continuavam a passar e a parar na frente da casa, sempre
vigiada por um guarda. Quando constatavam que só havia janelas fechadas
para ver, não tardavam a se afastar, meneando a cabeça.
– Sente-se, chefe... Se colocar a cadeira no canto, perto da janela,
poderá vê-la em plena luz.
– Ainda não a encontrou?
– Eu estava almoçando, aliás num ótimo restaurante, quando me
avisaram que ela estava na sede de polícia. Ficaram de levá-la ao necrotério
e de trazê-la até aqui.
Através do tule das cortina, eles viram, de fato, um carro preto,
conduzido por um policial uniformizado, que precedia um grande carro
vermelho conversível. O casal no banco da frente, com os cabelos desfeitos,
pele bronzeada, acabava de voltar de férias.
O homem e a mulher conversaram por um momento, inclinados um
para o outro, e então, após um beijo rápido, a mulher desceu do carro e
bateu a porta, enquanto seu companheiro permaneceu sentado ao volante e
acendeu um cigarro.
Era moreno, com os traços do rosto firmes e ombros de esportista que
sua camisa polo, amarela, realçava. Ele ficou observando a casa sem
curiosidade, enquanto o guarda introduzia a mulher na sala.
– Comissário Lecoeur... Suponho que é Francine Lange...
– Exatamente.
Ela dirigiu um rápido olhar a Maigret que não lhe foi apresentado e
estava sentado à contraluz.
– Senhora ou senhorita?
– Não sou casada, se é o que pergunta. Meu namorado, que está no
carro, vive comigo. Mas conheço bem os homens para me casar; o difícil,
depois, é livrar-se deles.
Era uma mulher bonita que não aparentava seus quarenta anos e que,
na pequena sala convencional, exibia formas provocantes. Usava um
vestido cor de fogo muito leve, que parecia transparente, e podia-se jurar
que ainda cheirava a mar.
– O telegrama chegou ontem à noite... Lucien deu um jeito de
conseguirmos lugares no primeiro voo a Paris... Em Orly pegamos nosso
carro, que havíamos deixado ao partir.
– Suponho que é realmente de sua irmã que se trata.
Ela fez que sim com a cabeça, sem emoção.
– Não quer sentar-se?
– Obrigada. Posso fumar?
Ela olhou a fumaça que saía do cachimbo de Maigret com o ar de quem
diz: “Se aquele ali pode soprar sua chaminé, também tenho o direito de
acender um cigarro...”.
– Como quiser... Imagino que esse crime a surpreendeu tanto quanto a
nós.
– Claro que eu não esperava...
– Sabe se sua irmã tinha inimigos?
– Por que Hélène teria inimigos?
– Quando a viu pela última vez?
– Há seis ou sete anos, não sei exatamente. Lembro que foi no inverno
e que havia uma tempestade. Ela não me anunciou sua visita, e me
surpreendi de vê-la entrar tranquila no meu salão de beleza.
– Vocês se davam bem?
– Como entre irmãs. Não a conheci verdadeiramente, por causa da
diferença de idade. Ela saía da escola no momento em que eu entrava.
Depois fez cursos em La Rochelle, bem antes que eu me tornasse manicure.
A seguir, deixou a cidade...
– Com que idade?
– Deixe-me ver... Havia um ano que eu estava no estágio. Portanto, eu
tinha dezesseis anos. Somando sete, ela tinha então vinte e três anos.
– Escrevia a ela?
– Raramente. Em nossa família, não é costume.
– Sua mãe já havia falecido?
– Não, ela morreu dois anos mais tarde, e Hélène veio a Marsilly para a
partilha. Não havia muita coisa a partilhar. A mercearia não rendia quase
nada.
– O que fazia sua irmã em Paris?
Maigret não parava de examiná-la, ao mesmo tempo em que evocava a
figura e o rosto da morta. Havia poucos pontos comuns entre as duas
mulheres; Francine não tinha o rosto comprido da irmã, nem seus olhos
escuros. Os olhos dela eram azuis, os cabelos de um louro talvez acentuado
pela tintura, pois percebia-se, na frente, uma estranha mecha de um ruivo
gritante.
À primeira vista, era a mulher comunicativa que devia receber seus
clientes com um humor exuberante e mesmo um pouco exagerado. Não
tentava ser distinta, pelo contrário; acentuava como de propósito o que nela
havia de vulgar.
Menos de meia hora após ter contemplado o cadáver da irmã no
necrotério, já respondia com alegria às perguntas de Lecoeur a quem
parecia, por hábito, querer conquistar.
– O que ela fazia em Paris?... Acredito que era datilógrafa num
escritório, mas não fui lá para ver... Nós duas não éramos muito parecidas.
Aos quinze anos eu já tinha um namorado, que era motorista de táxi, e
desde então tive muitos outros. Não acho que isso fizesse o gênero de
Hélène, ou então ela escondia bem o jogo...
– Para qual endereço lhe escrevia?
– Lembro, no início, de um hotel na Avenue de Clichy, mas esqueci o
nome. Ela mudou de hotel com bastante frequência. Depois teve um
apartamento na Rue Notre-Dame-de-Lorette, não lembro mais o número...
– Quando ia a Paris, não a visitava?
– Sim, fui visitá-la na Rue Notre-Dame-de-Lorette, e fiquei surpresa de
vê-la tão bem alojada. Fiz-lhe essa observação. Ela tinha um belo quarto
que dava para a rua, um living, uma pequena cozinha e um verdadeiro
banheiro.
– Havia um homem na vida dela?
– Não pude descobrir. Eu queria ficar hospedada alguns dias ali,
enquanto procurava um quarto do meu agrado. Ela me respondeu que me
levaria a um hotel muito limpo e não muito caro, mas que não poderia viver
com alguém...
– Nem mesmo por três ou quatro dias?
– Foi o que compreendi.
– Isso não a surpreendeu?
– Não demais... Sabe, é preciso muito para me surpreender. Contanto
que as pessoas me deixem fazer o que me agrada, elas também são livres e
não faço perguntas.
– Quanto tempo ficou em Paris?
– Onze anos.
– Sempre como manicure?
– Primeiro como manicure, nos salões de bairro; depois, no final, num
hotel de luxo dos Champs-Élysées. Aprendi a profissão de esteticista.
– Vivia sozinha?
– Às vezes sim, outras vezes não...
– Encontrava sua irmã?
– Praticamente nunca.
– De modo que não sabe quase nada da vida dela em Paris...
– Tudo que sei é que ela trabalhava.
– Quando você voltou a La Rochelle para trabalhar por conta própria,
tinha muitas economias?
– Bastante.
Ele não perguntou como ela havia ganho esse dinheiro. Ela também
não falou, mas podia-se pensar que tinha por sabido que eles se
compreendiam.
– Nunca se casou?
– Já lhe respondi. Não sou tola o suficiente para isso...
E, virando-se para a janela através da qual se via seu namorado
exibindo-se ao volante do carro vermelho:
– Veja como parece um malandro...
– No entanto vive com ele...
– É meu empregado, aliás um ótimo cabeleireiro... Em La Rochelle
moramos separados, pois eu não gostaria de tê-lo noite e dia ao meu lado.
Nas férias, ainda passa...
– O carro é seu?
– Claro que sim.
– Mas foi ele que o escolheu?
– Adivinhou.
– Sua irmã nunca teve filhos?
– Por que me pergunta isso?
– Não sei... Era uma mulher...
– Que eu saiba, não... Parece-me que é algo que se saberia, não?
– E você?
– Tive um, quando vivia ainda em Paris, há uns quinze anos... Minha
primeira ideia foi livrar-me dele e teria sido melhor. Minha irmã é que me
aconselhou a deixá-lo nascer.
– Então vocês se viam nessa época?
– Fui procurá-la por causa disso. Tinha necessidade de falar com
alguém da família. Pode parecer engraçado, mas há momentos em que a
gente se lembra que tem família... Enfim, tive um filho, Philippe... Deixei-o
com uma ama de leite nos Vosges.
– Por que nos Vosges? Tem conhecidos lá?
– Nenhum. Hélène encontrou o endereço em não sei que caderneta...
Fui vê-lo umas dez vezes durante dois anos. Estava bem, na casa de
camponeses muito gentis. A casa era limpa... Depois, um belo dia, eles me
comunicaram que o pequeno havia se afogado num lago...
Ela ficou um momento pensativa, ergueu os ombros.
– Afinal, talvez tenha sido melhor para ele...
– Sabe se sua irmã tinha algum conhecido, amigo ou amiga?
– Não devia ter nenhum. Já em Marsilly ela olhava as outras meninas
de cima e a chamavam de princesa. Acho que na escola de
estenodatilografia, em La Rochelle, foi a mesma coisa.
– Era orgulhosa?
Ela hesitou, refletiu.
– Não sei. Eu não usaria essa palavra. Ela não gostava das pessoas, não
gostava do contato com as pessoas. É isso! Preferia ficar sozinha.
– Ela nunca tentou se suicidar?
– Por quê? Está pensando que...
Lecoeur sorriu.
– Não. Ninguém se suicida estrangulando-se. Pergunto apenas se,
anteriormente, ela não tentou pôr um fim à própria vida.
– Estou certa de que não. Ela se amava do jeito que era. No fundo,
estava muito satisfeita.
A palavra chamou a atenção de Maigret e ele tornou a ver a dama de
lilás sentada diante do coreto. Ele havia tentado então definir a expressão do
seu rosto e não conseguira.
Francine acabava de fazê-lo: ela se amava!
E amava-se tanto que, somente na sala, havia três fotografias dela, e
por certo havia outras na copa e no quarto que ele não tinha visitado.
Ninguém mais. Nenhum retrato da mãe, da irmã, de amigos ou amigas. À
beira do mar, fizera-se fotografar sozinha diante das ondas.
– Até novo anúncio, suponho que você é a única herdeira... Não
encontramos testamento entre os papéis dela. É verdade que estes foram
espalhados pelo assassino, mas não vejo por que razão ele teria levado um
testamento... E nenhum notário ainda se apresentou...
– Quando será o enterro?
– Cabe à senhorita decidir. O médico-legista já examinou o corpo, que
pode lhe ser entregue assim que desejar.
– Onde acha que devo enterrá-la?
– Não tenho a menor ideia.
– Aqui, não conheço ninguém. Em Marsilly, todo o mundo estaria
presente por curiosidade. Não sei se ela gostaria de retornar a Marsilly...
Escute, se não precisa mais de mim, vou procurar um quarto de hotel e
tomar um bom banho, pois sinto falta disso. Tentarei refletir e, amanhã de
manhã...
– Então lhe espero amanhã de manhã.
No momento de partir, após ter apertado a mão de Lecoeur, ela virou-se
um instante para Maigret, como se perguntando o que fazia ali, silencioso
no seu canto, e então franziu as sobrancelhas.
Teria o reconhecido?
– Até amanhã. O senhor foi muito gentil.
Eles a viram entrar no carro, inclinar-se em direção ao companheiro
para dizer-lhe algumas palavras, e o carro partiu.
Os dois homens se olharam, na sala, e Lecoeur foi o primeiro a lançar
um quase cômico:
– E então?
Ao que Maigret respondeu, tragando o cachimbo:
– Pois é! Então?
Ele não tinha vontade de conversar e não esquecia o encontro marcado
com a mulher perto dos jogadores de bocha.
– Até amanhã, meu velho.
– Até amanhã.
Ao sair, foi homenageado com uma saudação militar do guarda
municipal, mas não se orgulhou disso.
CAPÍTULO III

ELE ESTAVA SENTADO MAIS UMA VEZ na poltrona verde, perto da


janela aberta. O tempo continuava como na chegada: um sol generoso e
quente, mas com um ar fresco da manhã nas ruas percorridas pelos carros-
pipa municipais, e um frescor também durante o dia, sob as árvores que se
viam em toda parte, no parque, ao longo do Allier ou nas numerosas
avenidas.
Havia comido três croissants. A taça de café ainda estava pela metade.
Sua mulher estava tomando um banho, e ele ouvia, no andar de cima, os
passos de pensionistas que acabavam de levantar.
Não era sem ironia que mergulhava assim nesses novos hábitos. Onde
quer que estivesse, criava automaticamente uma rotina à qual obedecia
como se ela lhe fosse imposta.
Podia-se dizer que cada um dos seus inquéritos, em Paris, tinha seu
ritmo, seus momentos de pausa nos botecos ou em brasseries determinadas,
seus odores, sua luz.
Aqui, ele se sentia mais de férias do que em tratamento, e a morte da
dama de lilás se projetava sobre um fundo de vida preguiçosa.
Na véspera à noite, como nas outras noites, eles tinham dado a volta
pelo parque, entre as centenas dos que passavam da sombra à luz dos
globos foscos. Era a hora dos teatros, dos cassinos, dos cinemas. As pessoas
saíam dos hotéis, das pensões, dos quartos mobiliados onde haviam feito
um lanche, e cada uma partia para a distração que escolhera.
Muitas se contentavam com as cadeiras de ferro amarelas de linhas
românticas, e Maigret havia automaticamente procurado a silhueta reta e
digna, o rosto comprido, o queixo para cima, o olhar ao mesmo tempo
nostálgico e duro.
Hélène Lange estava morta e, num quarto de hotel, Francine
certamente discutia com seu gigolô o lugar onde enterraria a irmã.
Em algum lugar da cidade, um homem conhecia o mistério de Les Iris
e da mulher solitária, o homem que a estrangulou.
Continuava esse homem a passear pelo parque ou se dirigia naquele
momento a um teatro ou a um cinema?
Ele e a mulher haviam se deitado, sem se falar, mas cada um sabia o
que o outro pensava.
Maigret acendeu o cachimbo, virou a página do jornal a fim de ler as
notícias locais. Fez uma cara de descontentamento ao ver sua fotografia em
duas colunas, uma fotografia que ele não conhecia, tirada, sem que o
soubesse, enquanto bebia um de seus copos d’água cotidianos. A seu lado
aparecia cerca de um terço do corpo de sua mulher e, atrás, mais fora de
foco, dois ou três rostos anônimos.
Maigret investiga?
Por discrição, não havíamos assinalado a nossos leitores a presença,
entre nós, do comissário Maigret, que está em Vichy não por dever
profissional, mas para se beneficiar, como tantas outras figuras ilustres
antes dele, das virtudes curativas de nossas águas.
Mas resistirá o comissário ao desejo de esclarecer o mistério da Rue
du Bourbonnais?
Parece que ele foi reconhecido nos arredores da casa do crime e que
teve mesmo contatos com o simpático comissário Lecoeur, chefe da P.J.
de Clermont-Ferrand, que dirige o inquérito.
Será que a cura prevalecerá ou...

Ele atirou longe o jornal, sem raiva, pois estava acostumado com esse
tipo de fofoca e, alçando os ombros, olhou vagamente para fora.
Até as nove horas, fez exatamente o mesmo que nas outras manhãs e,
quando a sra. Maigret apareceu, com um vestido rosa, eles se dirigiram
naturalmente para a escada.
– Bom dia, senhores e senhoras...
Era a inevitável saudação matinal do dono do hotel. Maigret já havia
percebido duas figuras na calçada, um reflexo na objetiva de uma câmera
fotográfica.
– Eles o esperam há uma hora. Não são do La Montagne, onde falam
do senhor esta manhã, mas do La Tribune, de Saint-Étienne.
O homem com a câmera era um ruivo alto, o outro era um moreno
baixo com um ombro mais alto que o outro. Eles se precipitaram até a
entrada.
– Permite que tiremos uma foto, uma só?
De que adiantava recusar? Ele ficou um instante imóvel entre os dois
arbustos que flanqueavam a entrada, enquanto a sra. Maigret recuava na
penumbra.
– Levante um pouco a cabeça, por causa do chapéu...
Era a primeira vez desde muito tempo que o fotografavam com um
chapéu de palha; ele só o usava em Meung-sur-Loire, um velho chapéu de
jardineiro.
– Mais uma... Só um segundo... Obrigado...
– Diga, sr. Maigret, posso lhe perguntar se está se ocupando realmente
do caso?
– Como chefe da Brigada Criminal do Quai des Orfèvres, não devo me
envolver com o que se passa fora de Paris.
– Mas esse crime não lhe interessa?
– Como interessa à maior parte dos seus leitores.
– Ele não apresenta um caráter particular?
– Não entendo o que está querendo dizer...
– A vítima era uma mulher solitária, não se relacionava com ninguém.
Não parece haver nenhum motivo para...
– Quando a conhecermos melhor, o motivo por certo se tornará
evidente.
A frase era banal e não o comprometia. No entanto exprimia uma
verdade. Maigret não era o único a buscar, há muito tempo, conhecer o
caráter das vítimas. Os criminologistas dão cada vez mais importância ao
morto e chegam mesmo, em muitos casos, a atribuir-lhe uma boa parte da
responsabilidade.
Não havia, na vida e no comportamento de Hélène Lange, algo que a
predestinava, de certo modo, a morrer de morte violenta? Tão logo ele a
vira sob as folhagens do parque, ela chamara a atenção do comissário.
É verdade que outros, como o casal de sorridentes, o haviam
interessado também.
– O comissário Lecoeur não fez parte da sua equipe?
– Ele trabalhou na P.J. de Paris.
– O senhor o viu?
– Cumprimentei-o.
– Tornará a vê-lo?
– É provável.
– Discutirá o homicídio com ele?
– Talvez. A menos que falemos apenas do tempo que faz e da luz
especial desta cidade...
– O que ela tem de especial?
– Uma certa vibração, uma certa suavidade...
– Pretende voltar a Vichy no ano que vem?
– Isso dependerá do meu médico.
– Obrigado.
Os dois entraram num velho carro, enquanto Maigret e sua mulher
davam alguns passos na calçada.
– Onde o espero?
O que implicava que o marido iria até a Rue du Bourbonnais.
– Na fonte?
– No jogo de bocha...
Ou seja, ele não esperava ficar muito tempo com Lecoeur. Encontrou-o
na pequena sala, ocupado em telefonar:
– Sente-se, chefe... Alô!... Sim... É uma sorte que a zeladora tenha
ficado no emprego durante tantos anos... Sim... Ela não sabe onde?...
Pegava o metrô?... Sim, na estação Saint-Georges... Não interrompa a
ligação, senhorita... Continue, Julien...
A ligação durou ainda dois ou três minutos.
– Certo, obrigado. Enviarei uma carta precatória para regularizar a
situação. Até lá terá tempo de me enviar o relatório... E sua mulher como
vai?... Claro, crianças sempre dão trabalho... Sei como é, com meus
garotos...
Ele desligou e virou-se para Maigret.
– Era o Julien, que o senhor deve ter conhecido e que atualmente é
inspetor no 9o. Ontem lhe pedi que investigasse na papelada do seu
arrondissement. Ele encontrou o endereço exato de Hélène Lange, na Rue
Notre-Dame-de-Lorette, onde ela morou durante quatro anos...
– Dos 28 aos 32 anos...
– Mais ou menos. A zeladora é a mesma. Parece que a srta. Lange era
uma jovem tranquila. Saía e voltava para casa em horas regulares, como
uma pessoa que trabalha. Raramente saía à noite para ir, ao que parece, ao
teatro ou ao cinema.
“Seu escritório não devia ficar no bairro, pois pegava o metrô. De
manhã cedo saía para fazer compras e não tinha empregada. Por volta de
meio-dia e vinte, voltava para almoçar e tornava a partir à uma e meia.
Depois era vista de volta às seis e meia da tarde...”
– Ela não recebia ninguém?
– Um homem, um só, sempre o mesmo.
– A zeladora sabe o seu nome?
– Não sabe nada dele. Vinha uma ou duas vezes por semana, por volta
das oito e meia da noite, e sempre ia embora às dez.
– Que tipo de homem?
– Um homem fino, ao que parece. Tinha um carro. A zeladora nunca
teve a ideia de anotar a placa. Um carrão preto, certamente americano.
– Que idade?
– Uns quarenta anos. Um sujeito forte, bem-cuidado, bem-vestido.
– Era ele quem pagava o aluguel?
– Ele nunca entrou na zeladoria.
– Eles saíam juntos no fim de semana?
– Uma única vez.
– De férias?
– Não. Hélène Lange, na época, só tirava duas semanas de férias e ia
quase todo ano a Étretat, para onde sua correspondência era enviada a uma
pensão familiar.
– Ela recebia muita correspondência?
– Pouca. De tempo em tempo, uma carta da irmã. Era assinante de
leitura numa biblioteca dos arredores e lia muito...
– Posso dar uma espiada no apartamento?
– Sinta-se em casa, chefe.
Ele notou que a televisão não estava na sala e sim na copa, mobiliada
em estilo provençal e com objetos de cozinha bem conservados. Via-se,
sobre o guarda-louças, uma fotografia de Hélène Lange criança brincando
com um arco e uma outra, de maiô, diante de uma falésia, provavelmente
em Étretat. Ela tinha um corpo bem-proporcionado, longilíneo como o
rosto, sem ser magro nem seco. Era uma dessas mulheres que se arriscam a
ser mal julgadas quando as vemos vestidas.
A cozinha, moderna e alegre, tinha uma máquina de lavar louça e todos
os instrumentos que facilitam o trabalho de uma dona de casa.
Seguindo uma espécie de corredor, chegava-se a um banheiro, também
moderno, e finalmente ao quarto da falecida.
Maigret achou divertido encontrar ali o mesmo leito de cobre que no
hotel e quase os mesmos móveis repletos de arabescos. O papel listrado, nas
paredes, misturava o rosa pálido a um azul ligeiramente violáceo e, aqui
também, uma fotografia mostrava Hélène com a idade aproximada de trinta
anos.
A expressão do rosto era muito diferente e um sorriso espontâneo, sem
mistério, exprimia a alegria de viver.
Era uma foto ampliada, e a folhagem em volta sugeria que fora tirada
num bosque. Ela olhava para a objetiva com uma certa ternura.
– Eu gostaria de saber quem segurava a câmera – resmungou Maigret,
dirigindo-se a Lecoeur que havia se juntado a ele.
– Mulher estranha, não?
– Suponho que tenha se ocupado dos locatários...
– Também pensei que o crime pudesse ter sido cometido por alguém do
interior. A viúva está fora de questão e, além do mais, não é forte o
bastante, apesar do seu volume, para estrangular uma pessoa tão resistente
como a srta. Lange. Verificamos no Carlton, onde ela jogou bridge até onze
e vinte. E, segundo o médico-legista, o crime deve ter sido cometido entre
dez e onze da noite.
– Ou seja, quando a sra. Vivereau voltou, Hélène Lange já estava
morta.
– É praticamente certo.
– Os Maleski viram luz debaixo da porta da sala... Como mais tarde as
luzes estavam apagadas, o assassino ainda devia estar ali.
– Fiquei pensando o dia todo: ou ele voltou com vítima e a estrangulou
antes de vasculhar as gavetas, ou ela o surpreendeu fazendo isso e ele a
estrangulou...
– O homem que a sra. Vivereau afirma ter encontrado na esquina?
– Trabalhamos com essa hipótese. Um dono de bar, que baixava sua
porta corrediça, viu por volta da mesma hora um indivíduo corpulento que
andava depressa. Disse que ele parecia ofegante.
– Andando para onde?
– Em direção à fonte dos Célestins.
– Nenhuma descrição?
– Ele não prestou atenção. Sabe apenas que vestia uma roupa escura e
que não usava chapéu. Acredita lembrar que era um pouco careca na frente.
– Nenhuma carta anônima?
– Ainda não.
Isso ia acontecer. Nenhum caso um pouco misterioso termina sem que
a polícia receba um certo número de cartas anônimas e de telefonemas
enigmáticos.
– Não voltou a ver a irmã?
– Espero-a para saber o que devo fazer do corpo.
E acrescentou, após um silêncio:
– As duas irmãs são muito diferentes, não é mesmo? Enquanto uma
parece ter sido reservada, fechada em si mesma, com um certo desdém por
aquilo que a cercava, a outra é aberta à vida, transbordante de saúde. No
entanto...
Maigret sorriu ao olhar para Lecoeur que, com os anos, criara barriga e
tinha alguns pelos brancos no seu bigode ruivo. Os olhos claros eram
ingênuos, quase infantis, mas Maigret se lembrava dele como de um de seus
melhores colaboradores.
– Por que sorri?
– Porque a vi ainda viva e, a partir das fotografias e do que me disse
dela, você chega às mesmas conclusões que eu...
– Hélène Lange era uma falsa sentimental, uma falsa romântica, não?
– Acho que desempenhava um papel, talvez para si mesma, mas não
podia impedir seu olhar de ser duro e preciso...
– Como a irmã...
– Francine Lange, por sua vez, é o tipo de mulher emancipada,
decidida, que não dá a mínima ao que dizem. Estou convencido de que, em
La Rochelle, é uma figura popular de quem se contam as extravagâncias e
os ditos espirituosos.
– O que não a impede, de vez em quando...
Eles não tinham necessidade de completar suas frases.
– Ela sabe calcular!
– E sabe o que quer, apesar de todos os gigolôs da Terra... Tendo
partido de uma pobre mercearia em Marsilly, aos quarenta anos é dona de
um dos mais importantes salões de beleza de La Rochelle. Conheço a
cidade, a Place d’Armes...
Ele tirou o relógio do bolso.
– Minha mulher me espera.
– Na fonte?
– Vou primeiro refrescar as ideias olhando o jogo de bocha... No
passado o pratiquei, em Porquerolles... Se aqueles senhores insistissem um
pouco...
Afastou-se, enchendo um novo cachimbo. O ar estava mais quente, e
ele se alegrou de voltar à sombra das árvores altas.
– Novidades?
– Nada de interessante.
– Ainda nada se sabe da vida dela em Paris?
A mulher o observava para adivinhar em que momento deveria se calar,
mas ela se sentia animada pelo humor alegre dele.
– Nada de preciso. Apenas que teve um amante, pelo menos...
– Parece que isso lhe agrada.
– Talvez. Pelo menos indica que houve um momento bom na existência
dela. Nem sempre esteve encerrada em si mesma, a repisar sabe lá que
ideias ou que sonhos...
– O que sabem dele?
– Quase nada, a não ser que dirigia um carrão preto, que vinha vê-la
uma ou duas vezes por semana, que ia embora antes das dez da noite e que
eles nunca passavam as férias ou os fins de semana juntos.
– Um homem casado...
– Provavelmente... Com uns quarenta anos... Dez a mais que ela.
– Os moradores da Rue du Bourbonnais nunca o viram?
– Em primeiro lugar, ele não tem mais quarenta anos. Deve estar
próximo dos sessenta, se é que não os atingiu.
– Você acha que...
– Não acho nada. Gostaria de saber como ela vivia em Nice, se houve
uma transição ou se ela se comportava como solteirona, como aqui...
Olhe!... Ele vai acertar o bolim...
Era o jogador sem um braço, que deu um tempo, lançou a bola e
atingiu o bolim de madeira.
– Eu os invejo – murmurou Maigret, involuntariamente.
– Por quê?
Ele a achou rejuvenescida, com manchas de sombra e de sol no rosto
liso, com olhos que cintilavam, e sentiu-se novamente de férias.
– Não notou a atitude deles, seu ar de importância, a expressão de
intensa satisfação quando são bem-sucedidos numa jogada?... Nós, quando
colocamos o ponto final num inquérito...
Não concluiu, mas a expressão dos lábios era eloquente. Para ele, o
ponto final era enviar um homem a explicar-se com a Justiça... A prisão, às
vezes a morte...
Levantou-se, após ter esvaziado o cachimbo.
– Andamos?...
Não estavam ali para isso?

Os colaboradores de Lecoeur haviam interrogado todos os vizinhos. Não


apenas ninguém viu nem ouviu nada na noite do crime, mas todos foram
unânimes em afirmar que Hélène Lange não tinha amigos nem amigas e
não recebia visita alguma.
– De vez em quando ela saía com uma pequena valise na mão, e as
janelas ficavam fechadas durante dois ou três dias.
Nunca levava bagagens mais volumosas. Não tinha carro, não chamava
táxi.
Tampouco era encontrada nas ruas em companhia de uma outra pessoa,
homem ou mulher.
De manhã fazia compras nas mercearias do bairro. Não se mostrava
particularmente avarenta, mas sabia o valor do dinheiro e, nos sábados, ia à
feira, sempre com um chapéu branco no verão, e um escuro no inverno.
Quanto aos locatários atuais, estavam fora de questão. A sra. Vivereau
alugara um quarto por recomendação de uma amiga de Montmartre que
passara várias temporadas seguidas na casa da srta. Lange. Embora
chamasse a atenção por causa da gordura e das falsas joias, não era mulher
de assassinar alguém, sobretudo sem motivo. Seu marido fora florista e, até
morrer, ela o ajudara no seu comércio, no Boulevard des Batignolles, antes
de se retirar num pequeno apartamento da Rue Lamarck.
– Nada tenho o que lhe reprovar – ela disse de Hélène Lange – a não
ser que não gostava de conversar.
Os Maleski faziam o tratamento de Vichy havia quatro anos. No
primeiro ano se hospedaram num hotel e, durante seus passeios, viram uma
placa que anunciava um quarto para alugar na Rue du Bourbonnais.
Informaram-se do preço e reservaram o quarto para o verão seguinte. Era o
terceiro verão que passavam na casa.
Maleski sofria de uma insuficiência hepática que o obrigava a cuidar-se
e a fazer um regime severo. Aos 42 anos era já um homem envelhecido, de
sorriso triste, mas mesmo assim, segundo testemunhos obtidos por telefone
em Grenoble, de um grande valor profissional e de uma consciência
escrupulosa.
Ele e a mulher haviam compreendido, desde o primeiro ano, que a srta.
Lange não desejava manter relações íntimas com seus locatários. Entraram
apenas duas ou três vezes na sala e não conheciam as outras peças do térreo.
Ela nunca os convidara a beber um vinho ou uma taça de café.
Nos dias de chuva, à noite, ouviam às vezes a televisão no andar de
baixo, mas ela era desligada cedo.
Maigret tinha esses detalhes na cabeça ao dormitar, como todas as
tardes, em sua cama, enquanto a sra. Maigret lia junto à janela. Através das
pálpebras ele adivinhava a penumbra dourada, as listas mais claras
desenhadas na parede pelas frestas da janela.
Seus pensamentos giravam no mesmo lugar, deformados, e de repente
ele se perguntou, como se essa questão fosse primordial:
– Por que naquela noite?
Por que não a haviam assassinado na véspera, ou no dia seguinte, um
mês, dois meses mais cedo?
A pergunta parecia despropositada, no entanto, em sua sonolência, ele
lhe dava uma extrema importância.
Havia dez anos, dez longos anos, ela vivia sozinha nessa tranquila rua
de Vichy. Ninguém vinha vê-la. Aparentemente não visitava ninguém, a não
ser, talvez, durante suas breves viagens mensais.
Os vizinhos a viam entrar, sair. Podia-se vê-la também numa cadeira
amarela do parque, bebendo seu copo d’água ou, à noite, escutando o
concerto diante do coreto.
Se ele próprio tivesse conversado com os comerciantes, Maigret teria
feito perguntas que provavelmente os surpreenderiam.
– Ela chegava a pronunciar palavras inúteis?... Inclinava-se às vezes
para acariciar um cachorro?... Falava com as donas de casa que esperavam
na fila e dirigia uma leve saudação às que reencontrava quase todo dia à
mesma hora?
E enfim:
– Alguma vez foi vista rindo?... Ou apenas sorrindo?...
Era preciso remontar a mais de quinze anos para encontrar-lhe um
contato pessoal com um ser humano: o homem que ia uma ou duas vezes
por semana a seu apartamento da Rue Notre-Dame-de-Lorette.
Pode-se viver tantos anos sem se deixar às vezes fazer confidências ou
pelo menos sem exprimir em voz alta o que se tem no coração?
Ela fora estrangulada.
– Mas por que naquela noite?
Para Maigret, semiadormecido, aquilo se tornava a questão número um
e, quando sua mulher lhe anunciou que eram três horas, ele ainda tentava
responder a essa questão.
– Dormiu?
– Um pouco...
– Vamos sair os dois?
– Claro que vamos sair os dois. Não fazemos isso todo dia? Por que me
pergunta?
– Poderia ter um encontro marcado com Lecoeur.
– Não tenho encontro marcado algum.
E, para provar isso a ela, deram uma grande volta, começando pelo
parque infantil, passando pelas quadras de bocha e pela praia, continuando
depois, do outro lado da ponte de Bellerive, o caminho até o Yacht Club,
onde observaram as evoluções dos praticantes de esqui aquático.
E foram ainda mais longe, até os prédios novos que, com uma altura de
doze andares, se erguiam muito brancos no céu, formando uma cidade nos
arredores da cidade.
Na outra margem do Allier, cavalos corriam nas pistas cercadas de
branco do hipódromo e viam-se fileiras de cabeças e ombros nas tribunas,
silhuetas escuras e silhuetas claras sobre a relva.
– A dona do hotel me disse que os aposentados estão se instalando cada
vez mais em Vichy...
Ele ironizou:
– É o que está querendo para mim?
– Já temos nossa casa em Meung...
Descobriram ruas mais antigas. Cada bairro tinha a sua idade, o seu
estilo. As casas eram diferentes e adivinhava-se o tipo de pessoas que as
construíram.
Maigret divertia-se em parar diante dos pequenos restaurantes e em ler
ao lado dos cardápios:
– Quarto para alugar... Quarto com cozinha... Belo quarto mobiliado...
Isso explicava os restaurantes e também as dezenas de milhares de
pessoas que gravitavam nas ruas e ao longo dos passeios.
Às cinco horas os dois se sentaram perto da fonte, com as pernas
fatigadas, e se olharam com um sorriso cúmplice. Não haviam exagerado
um pouco? Não tentavam provar a si mesmos que ainda eram jovens?
Reconheceram um casal na multidão, os dois sorridentes, e havia algo
diferente no olhar que o homem dirigiu a Maigret. Aliás, em vez de passar
ele caminhou diretamente até o comissário e lhe estendeu a mão.
Que outra coisa fazer senão tomá-la?
– Não me reconhece?
– Estou convencido de que já o vi, mas procuro em vão na memória...
– Bébert, isso não lhe diz nada?
Ele conhecera um monte de Bébert, de P’tit Louis e de Grand Jules
durante sua carreira.
– O metrô...
Virou-se para a mulher como para tomá-la por testemunha e estava
mais sorridente do que nunca.
– O senhor me prendeu a primeira vez no Boulevard des Capucines,
num dia de desfile... Não sei mais quem era o chefe de Estado que desfilava
entre os guardas municipais a cavalo... A segunda vez foi na saída do metrô
Bastille... O senhor me seguia havia algum tempo... Isso não foi ontem. Eu
era jovem. O senhor também, com todo o respeito...
Maigret lembrou-se da história do metrô porque, durante a perseguição,
através da Place de la Bastille, perdera um chapéu, um canotier como se
usava na época. Aí estava a prova de que já havia usado um chapéu de
palha!
– Ficou preso por quanto tempo?
– Dois anos... Aprendi a lição e me corrigi. Primeiro trabalhei no ferro-
velho, onde consertava um monte de velharias, pois sempre fui muito hábil
com as mãos...
Uma piscadela deu a entender que isso lhe fora bastante útil quando era
batedor de carteiras.
– Depois conheci minha senhora.
Pronunciou a palavra com ênfase e também com um certo orgulho.
– Nenhuma ficha judiciária. Ela nunca girou a bolsinha. Acabava de
chegar da Bretanha e trabalhava numa leiteria... Com ela a coisa foi
imediatamente séria e passamos pelo cartório. Ela fez questão mesmo de
me levar a seu vilarejo para nos casarmos na igreja e foi um verdadeiro
casamento dos sonhos...
Ele transpirava satisfação por todos os poros.
– Realmente achei que o havia reconhecido. Todo dia eu olhava para o
senhor, mas hesitava... Hoje de manhã, quando abri o jornal e vi sua foto...
Apontou os estojos de palha.
– Nada grave, não?
– Estou bem de saúde.
– Eu também. É o que todos os médicos dizem. Mesmo assim me
enviaram aqui por causa das dores que sinto nos joelhos... Hidroterapia,
hidromassagem, radioterapia, coisas do tipo... E o senhor?
– Copos d’água...
– Então não é nada... Mas não quero retê-lo nem reter sua esposa... O
senhor foi muito legal comigo, no passado. Tempos bons aqueles, não?...
Até logo, sr. comissário... Diga até logo, Bobonne...
Enquanto o casal se afastava, Maigret ainda sorria da truculência e do
destino do ex-batedor de carteiras. Depois sua mulher viu seu rosto ficar
progressivamente mais grave e a testa enrugar-se. Por fim ele deu um
suspiro de alívio.
– Acho que descobri por quê...
– Por que a mulher foi assassinada?
– Não... Por que naquele dia, por que não um mês ou um ano atrás...
– O que está querendo dizer?
– Desde que estamos aqui, encontramos as mesmas pessoas duas ou
três vezes por dia e o rosto delas acaba por nos ser familiar... Somente hoje,
por causa da foto no jornal, esse doido teve certeza de me reconhecer e veio
em minha direção.
“Ora, esse é nosso primeiro tratamento, provavelmente o único... Se
voltássemos no próximo ano, reencontraríamos um certo número de
fregueses...
“Alguém veio, como nós, pela primeira vez a Vichy. Seguiu a rotina,
escolheu um médico, fez exames, análises e lhe deram um programa, o
nome das fontes, o número de centilitros a beber em tal e tal hora...
“Ele encontrou Hélène Lange e teve a impressão de reconhecê-la...
“Depois a viu uma segunda vez, uma terceira... Talvez estivesse não
longe dela, na outra noite, quando ela escutava música...”
Aquilo parecia demasiado simples para a sra. Maigret, e ela se
surpreendeu de que ele se alegrasse com uma descoberta que não era
descoberta alguma.
O comissário mesmo se apressou em ironizar:
– Segundo os folhetos publicitários, vêm cerca de duzentos mil curistas
por ano. Eles se repartem num período de seis meses, o que dá mais de
trinta mil por mês. Digamos que um terço sejam novos, como nós, e temos
aí uns dez mil suspeitos... Não! É preciso descontar mulheres e crianças.
Quantas mulheres e crianças, a seu ver?
– Mais mulheres que homens... Quanto às crianças...
– Espere!... Vimos várias pessoas em cadeiras de roda. Outras andam
com muletas ou bengala. A maior parte dos velhos seria incapaz de
estrangular uma mulher ainda vigorosa...
Ela se perguntava se ele falava sério ou se gracejava.
– Digamos mil homens capazes de matar por estrangulamento... Como,
segundo o testemunho da sra. Vivereau e do dono do bar, trata-se de um
homem alto e forte, eliminamos os baixos e fracos... Ficamos com
quinhentos.
Ela ficou aliviada de ouvi-lo rir.
– Está rindo de quê?
– Da polícia. Da nossa profissão. Daqui a pouco vou anunciar ao bravo
Lecoeur que lhe restam apenas quinhentos suspeitos, a menos que se
encontrem outros a eliminar, os que estavam no teatro naquela noite, por
exemplo, e que podem prová-lo, os que jogavam bridge ou um outro jogo
qualquer... E dizer que é geralmente assim que acabamos por chegar ao
culpado!... Certa vez, a Scotland Yard decidiu interrogar todos os habitantes
de uma cidade de duzentas mil almas... A coisa durou meses...
– Descobriram?
E Maigret concluiu:
– Uma noite, numa outra cidade, por acaso, o sujeito estava bêbado e
falou demais...
Certamente já era tarde para ver Lecoeur naquele dia, pois ele ainda
precisava tomar dois copos d’água com um intervalo de meia hora entre
cada um. Assim tentou interessar-se pelo jornal vespertino, que falava
principalmente das celebridades em férias. Era bastante curioso. Mesmo as
que levavam uma vida desregrada se faziam fotografar com filhos e netos,
dando a entender que lhes dedicavam todo o seu tempo...
Mais tarde, quando a brisa refrescou um pouco, eles viraram a esquina
da Rue d’Auvergne. Uma caminhonete estava parada diante da casa da srta.
Lange.
Ao se aproximarem, ouviram golpes de martelo.
– Volto ao hotel? – murmurou a sra. Maigret.
– Eu a acompanho dentro de um instante.
A porta da sala estava aberta, e homens de avental bege aplicavam
tapeçarias pretas nas paredes.
Lecoeur apareceu.
– Pensei mesmo que viria... Venha por aqui.
Ele o conduziu até o quarto de dormir, que era mais calmo.
– O enterro será em Vichy? – perguntou Maigret. – Foi a irmã que
decidiu?
– Sim. Ela veio me ver no final da manhã.
– Com seu gigolô?
– Não. De táxi.
– Quando será o enterro?
– Depois de amanhã, a fim de dar às pessoas da vizinhança a
possibilidade de desfilarem na capela-ardente...
– Haverá uma bênção?
– Parece que não.
– A família Lange não era católica?
– Os pais, sim. As filhas foram batizadas e fizeram a primeira
comunhão. Depois...
– Talvez ela fosse divorciada...
– Primeiro seria preciso provar que foi casada...
Lecoeur olhou para Maigret, mexendo na ponta do seu bigode ruivo.
– O senhor nunca tinha visto nenhuma das duas, não é mesmo?
– Nunca.
– Mas esteve um certo tempo em La Rochelle...
– Estive lá duas vezes, digamos uns dez dias ao todo... Por quê?
– Porque hoje de manhã notei algo diferente em Francine Lange. Não
parecia tão descontraída. As frases também não brotavam diretamente... O
tempo todo tive a impressão de que havia uma reserva ou de que ela
hesitava em me confiar um segredo...
“Em certo momento, me disse:
“– Era o comissário Maigret que estava aqui ontem, não?
“Perguntei se ela já o tinha visto, e ela respondeu que reconhecera esta
manhã sua foto no jornal...”
– Dezenas de pessoas, entre os milhares com que cruzo todo dia,
tiveram a mesma reação. Há pouco, um dos meus antigos clientes dirigiu-se
a mim com a mão estendida e por pouco não me deu tapinhas nas costas...
– Creio que a coisa é mais complicada – disse Lecoeur, como se
seguisse um pensamento ainda vago.
– Acha que eu teria me ocupado dela no tempo em que vivia em Paris?
– Não é uma impossibilidade, dado o tipo de vida que ela devia levar
lá... Não! O que tenho em mente é menos preciso, mais sutil... Para ela, sou
um policial de província qualquer que cumpre seu ofício da melhor maneira
possível e faz as perguntas que tem a fazer. Uma vez registradas as
respostas, passo à seguinte... Percebe o que quero dizer?... Isso explica por
que, ao chegar aqui ontem à tarde, ela estava muito à vontade e não deixou
de estar. Por uma ou duas vezes lançou um olhar ao seu canto, mas
compreendi que não o reconheceu.
“Ela se hospedou no Hôtel de la Gare. Como na maioria dos hotéis
daqui, levam aos hóspedes o jornal com o café da manhã. Ao ver sua foto,
ela se perguntou por que havia assistido à nossa conversa...”
– Que conclusão tira daí?
– Está esquecendo sua reputação, a ideia que o público faz do senhor...
E corou, temendo que suas palavras fossem mal-interpretadas.
– Aliás, não só o público; na profissão, somos os primeiros...
– Deixe pra lá.
– É importante... Ela não pensou que o senhor estava ali por uma
casualidade... E, mesmo se fosse uma casualidade, o fato de se ocupar do
caso...
– Ela parecia ter medo?
– Eu não diria tanto. Achei-a diferente, prevenida. Fiz-lhe apenas
perguntas insignificantes, mas a cada vez ela se deu ao trabalho de refletir
antes de responder.
– Ela não encontrou o tabelião?
– Também pensei nisso e falei a ela... Seu companheiro fez a lista dos
tabeliães da cidade e lhes telefonou... Parece que nenhum teve Hélène
Lange como cliente. Somente um, que era escrivão dez anos atrás e depois
assumiu o escritório do chefe, lembrou-se de ter redigido a contrato de
compra e venda desta casa...
– Tem o nome dele?
– Sr. Rambaud.
– Não quer telefonar para ele?
– A esta hora?
– No interior, os tabeliães costumam morar na casa onde se encontra
seu escritório.
– O que devo lhe perguntar?
– Se ela pagou com cheque ou se fez uma transferência bancária...
– Preciso pedir aos funcionários que parem de martelar enquanto
telefono...
Maigret, enquanto isso, ficou andando no banheiro, na cozinha, sem
pensar em nada de preciso.
– E então?
– O senhor adivinhou?
– O quê?
– Que ela pagou em cash? Foi a única vez que isso aconteceu ao nosso
Rambaud, de modo que ele lembra. Ela trazia uma pequena valise cheia de
dinheiro.
– Chegou a interrogar os empregados dos guichês da estação
ferroviária?
– Puxa vida! Não pensei nisso.
– Eu teria curiosidade de saber se ela ia todo mês ao mesmo lugar ou a
lugares diferentes...
– Espero lhe dar essa informação amanhã... Bom apetite!... E boa
noitada!
Era dia de música no coreto, e os Maigret tinham caminhado bastante
para terem o direito de se sentar.
CAPÍTULO IV

ELE ESTAVA DEZ MINUTOS ADIANTADO, não sabia por quê. Será que
havia, naquela manhã, menos a ler no La Tribune? A sra. Maigret, que
sempre usava o banheiro depois dele, ainda estava lá, e lhe disse pela porta
entreaberta:
– Já desço... Espere lá embaixo.
Havia um banco pintado de verde na calçada, para os hóspedes do
hotel. O céu continuava limpo. Desde que estavam em Vichy, não chovera
uma única vez.
O dono do hotel o esperava ao pé da escada, como sempre.
– Então, e esse assassino?
– Não me ocupo do caso – ele respondeu sorrindo.
– O senhor acha que esse pessoal de Clermont-Ferrand está à altura?
Não é nada bom, numa cidade como a nossa, haver um estrangulador em
liberdade. Parece que várias senhoras idosas já partiram...
Maigret sorria vagamente ao se dirigir à Rue du Bourbonnais e avistou
de longe um pano preto à porta, com um grande “L” bordado em prata. Não
se via mais o guarda na calçada. Havia um na véspera? Ele não lembrava,
não prestara a atenção. Em suma, não era assunto dele. Estava ali apenas
como um amador, um curista.
Ia apertar o botão da campainha quando viu que a porta pintada de
branco estava encostada. Empurrou-a, viu uma moça muito jovem, de uns
dezesseis anos apenas, que passava um pano molhado no piso do corredor.
Usava um vestido tão curto que, quando se inclinava, aparecia sua
calcinha cor-de-rosa. As pernas e as coxas eram grossas, disformes, como
acontece nessa idade. Pareciam pernas de uma boneca barata, com a mesma
cor artificial.
Quando ela se virou, ele viu uma face redonda, olhos sem expressão. A
moça não lhe perguntou quem era nem o que queria.
– É ali – limitou-se a pronunciar, apontando a porta da sala.
A peça estava na penumbra, com as paredes forradas de preto e o
caixão repousando sobre o que devia ser a mesa da copa. As duas velas não
estavam acesas, mas havia água benta numa tigela, com um ramo de buxo.
A porta da copa estava aberta, a da cozinha também. Na copa haviam
sido amontoados os móveis e os objetos da sala. Na cozinha, o jovem
Dicelle se ocupava em ler uma revista em quadrinhos diante de uma xícara
de café.
– O senhor quer um pouco de café também? Preparei um bule cheio.
...No fogão a gás de Hélène Lange, que provavelmente não teria
apreciado que usassem sua cozinha dessa maneira.
– O comissário Lecoeur não chegou?
– Foi chamado com urgência a Clermont-Ferrand tarde da noite...
Houve um assalto à Caixa de Poupança, com um morto, um sujeito que
passava e que, ao ver a porta entreaberta depois da hora, empurrou-a
automaticamente no momento em que os assaltantes iam sair... Um deles
atirou...
– Nada de novo aqui?
– Que eu saiba, não.
– Esteve na estação ferroviária?
– Meu colega Trigaud é que foi encarregado... Ainda deve estar lá neste
momento.
– Essa empregadinha que acabo de ver foi interrogada, não foi? O que
ela disse?
– Com a cabeça que tem, já é surpreendente que fale. Ela não sabe
nada. Foi contratada apenas para a temporada. Seu trabalho é limpar os
quartos dos locatários. Não se ocupa do térreo, onde a própria srta. Lange
fazia a limpeza.
– Ela nunca viu visitantes?
– Só o funcionário do gás e entregadores. Começa seu serviço às nove
e termina ao meio-dia... Os Maleski estão inquietos lá em cima. Pagaram
até o fim do mês. Querem saber se têm o direito de ficar... Não é fácil achar
um quarto em plena temporada, e eles não têm vontade de ir para um
hotel...
– O que o comissário decidiu?
– Acho que eles ficam... Em todo caso, estão aí. A outra, a gorda, acaba
de sair para ser amassada por um massagista...
– Francine Lange não apareceu?
– Estou à sua espera. Ninguém sabe o que vai haver. Ela insistiu que se
instalasse uma capela ardente, mas me pergunto se as pessoas virão...
Minhas instruções são de ficar aqui e observar discretamente os visitantes,
se vier algum.
– Seja como for, tenha uma boa jornada... – murmurou Maigret,
deixando a cozinha.
Ele pegou automaticamente um livro com uma encadernação preta
numa mesinha que antes estava na sala e fora transportado com o resto para
a copa. Era Lucien Leuwen. O papel amarelado conservava o cheiro
particular dos livros procedentes de bibliotecas ou de livrarias que fazem
assinaturas de leitura.
Um carimbo violeta dava o nome do livreiro e seu endereço.
Repôs o livro no lugar e, uns instantes depois, caminhava com
tranquilidade pela calçada. Uma janela próxima se abriu quando ele
passava. Uma mulher de bobes e penhoar o interpelou:
– Diga, sr. comissário, é verdade que podemos entrar lá?
Foi a expressão dela que o surpreendeu, e ele ficou um instante sem
compreender.
– Penso que sim, pois há uma capela ardente e a porta está
entreaberta...
– Mas é possível vê-la?
– Que eu saiba, o caixão está fechado.
Ela suspirou:
– Ah, melhor assim. É menos impressionante...
Ele encontrou a sra. Maigret sentada no banco verde e ela se mostrou
surpresa de vê-lo voltar tão cedo.
Saíram a caminhar, como nas outras manhãs. Estavam apenas com
alguns minutos de atraso em relação ao horário, um horário que, aliás,
nunca fora estabelecido, mas que seguiam como se tivesse uma importância
capital.
– Há gente lá?
– Ninguém. Estão esperando...
Desta vez começaram pelo parque infantil ainda quase deserto e deram
a volta à sombra das árvores. Algumas delas, como ao longo do Allier, eram
de essências raras, da América, da Índia, do Japão, e portavam um nome
latino e um nome francês numa placa de metal. Muitas haviam sido
enviadas em lembrança de uma cura em Vichy por chefes de Estado
esquecidos, marajás ou pequenos príncipes orientais.
Quase não se detiveram diante dos jogadores de bocha. A sra. Maigret
nunca perguntava aonde o marido estava indo. Ele marchava com firmeza, à
frente, como se tivesse um objetivo, mas na maioria das vezes, se tomava
uma rua em vez de outra, era para mudar, encontrar novas imagens, novos
sons.
Um pouco antes da hora do copo d’água, ele entrou na Rue Georges-
Clemenceau, como se tivesse compras a fazer, mas virou à esquerda numa
das passagens, a Passage du Théâtre, onde, diante de uma livraria, viam-se
livros vendidos a saldo em caixas e outros expostos em mostruários
giratórios.
– Entre... – ele disse à mulher, que hesitava.
O livreiro vestia um longo avental cinza e estava ocupado em pôr
ordem nos livros. Ele pareceu reconhecer Maigret, mas esperou.
– Dispõe de alguns minutos?
– Estou a seu dispor, sr. Maigret. Suponho que deseja me interrogar a
respeito da srta. Lange.
– Era uma de suas clientes, não?
– Vinha pelo menos uma vez por semana, geralmente duas, para trocar
seus livros. Tinha uma assinatura que lhe permitia levar dois ao mesmo
tempo...
– Fazia muito tempo que a conhecia?
– Adquiri o negócio há seis anos. Não sou daqui, mas de Paris, de
Montparnasse. Ela já frequentava o meu predecessor.
– Conversava com ela?
– Não era uma pessoa de falar muito.
– Ela não lhe pedia conselho para a escolha de suas leituras?
– Tinha suas ideias. Venha ver aqui...
Atrás da livraria, uma peça estava coberta do chão até o teto de livros
encadernados de preto.
– Em geral ela passava meia hora ou mesmo uma hora examinando os
volumes, lendo algumas linhas aqui e ali.
– Sua última leitura foi Lucien Leuwen de Stendhal.
– Stendhal foi sua mais recente descoberta. Antes, leu tudo de
Chateaubriand, Alfred de Vigny, Jules Sandeau, Benjamin Constant,
Musset, Georges Sand... Sempre os românticos... Um dia levou um Balzac,
não lembro mais qual, e veio devolvê-lo no dia seguinte. Perguntei-lhe se
não havia gostado e ela respondeu algo como:
“– É muito brutal...
“Balzac, brutal!...”
– Nenhum autor contemporâneo?
– Nunca se interessou. Em contrapartida, leu e releu a correspondência
de Georges Sand e a de Musset...
– Eu lhe agradeço.
Já estava quase na porta quando o livreiro o chamou de volta.
– Esqueci um detalhe que talvez o interesse. Fiquei surpreso de
encontrar livros anotados a lápis. Frases ou palavras sublinhadas. Às vezes
havia apenas uma cruz na margem. Quis saber que cliente tinha essa mania
e acabei por descobrir que era ela...
– Falou-lhe sobre isso?
– Era necessário. Meu empregado não podia passar o tempo todo
apagando essas marcas.
– Qual foi a reação dela?
– Com o ar ofendido, respondeu:
“– Peço-lhe desculpas. Quando leio, esqueço que os livros não são
meus...”
Os curistas, os troncos claros dos plátanos e as manchas de sol estavam
nos seus lugares, assim como as milhares de cadeiras amarelas.
Ela achou Balzac muito duro. Certamente quis dizer que era realista
demais... Refugiava-se na primeira metade do século XIX, ignorando
soberbamente Flaubert, Hugo, Zola, Maupassant... No entanto Maigret
havia percebido no primeiro dia, num canto da sala, uma pilha de revistas...
Como que sem querer, ele procurava penetrar sempre um pouco mais
no retrato que fazia dela. Era uma mulher que se reduzia a leituras
românticas, sentimentais, mas seu olhar era às vezes de uma dureza bastante
real.
– Viu Lecoeur?
– Não. Ele foi chamado a Clermont-Ferrand por causa de um assalto...
– Acha que ele descobrirá o assassino?
Maigret estremeceu. Desta vez, ele é que foi trazido de volta à
realidade. Na verdade não pensava em termos de assassinato. Quase
esquecia que a proprietária da casa de janelas verdes fora estrangulada e
que a questão número um era encontrar o assassino.
Também ele procurava alguém. Inclusive pensava nisso com mais
frequência do que teria desejado, a ponto de virar uma obsessão.
O que o intrigava era o homem que, num determinado momento,
encontrou seu lugar nessa vida solitária.
Não se encontrou nenhum vestígio desse homem na Rue du
Bourbonnais, não havia nenhuma fotografia dele, nenhuma carta ou bilhete.
Nada! Nada também acerca de alguém mais, a não ser faturas.
Era preciso remontar a Paris, à Rue Notre-Dame-de-Lorette, doze anos
antes, para que fosse mencionado um visitante bastante vago que vinha uma
ou duas vezes por semana passar uma hora no apartamento daquela que era
ainda uma mulher jovem.
Mesmo a irmã, Francine, que vivia então na mesma cidade, afirmava
não saber nada.
Ela devorava livros, via televisão, fazia compras, limpava a casa,
passeava sob as árvores do parque, como os curistas, sem dirigir a palavra a
ninguém, e escutava música no coreto olhando reto à frente.
Isso o desconcertava. Ele havia conhecido, durante sua carreira,
indivíduos, homens ou mulheres, ferozmente apaixonados por sua
liberdade. Havia encontrado maníacos que, retirados do mundo,
refugiavam-se nos lugares mais improváveis, muitas vezes os mais
sórdidos.
Mas mesmo estes conservavam sempre uma ligação qualquer com a
vida exterior. Para as mais velhas, por exemplo, era um banco de praça
onde reencontravam uma outra senhora, ou a igreja, o confessionário, o
padre... Os homens tinham como âncora um boteco onde eram reconhecidos
e acolhidos como se fossem uma família.
Aqui, Maigret deparava pela primeira vez com a solidão em estado
puro.
Uma solidão que não era sequer agressiva. A srta. Lange não se
mostrava desagradável com seus vizinhos, seus fornecedores. Não parecia
querer desdenhá-los e, apesar do seu gosto por certas cores e certas formas
de vestido, não se fazia passar por grande dama.
Simplesmente não se ocupava dos outros. Não precisava. Se tinha
locatários, é porque dispunha de quartos vazios e obtinha assim um
rendimento. Entre esses quartos e o térreo uma fronteira fora traçada, e ela
contratara uma empregada mais ou menos estúpida para fazer a limpeza do
andar de cima.
– Permite, sr. comissário?
Uma sombra surgiu diante de Maigret, um homem alto que segurava
uma cadeira pelo encosto. Ele já o tinha visto na Rue du Bourbonnais. Era
um colaborador de Lecoeur, provavelmente Trigaud. Sentou-se e Maigret
lhe perguntou:
– Como soube que me encontraria aqui?
– Dicelle me disse...
– E como é que Dicelle...
– Não existe um policial na cidade que não o conheça de vista, de
modo que, onde quer que vá...
– Há novidades?
– Esta noite passei uma hora na estação ferroviária, pois não são os
mesmos funcionários que de dia. Retornei hoje de manhã. A seguir
telefonei ao comissário Lecoeur, que continua em Clermont.
– Ele não virá hoje?
– Ainda não sabe. De todo modo, virá amanhã de manhã cedo para o
enterro. Ele acha que o senhor estará lá também...
– Você não viu Francine?
– Ela passou na capela mortuária. O sepultamento será às nove horas.
Foi ela certamente que enviou flores...
– Quantas coroas?
– Apenas uma.
– Tem certeza de que foi ela?... Desculpe! Esqueço que isso não me diz
respeito...
– Não é essa a opinião do chefe, pois ele me recomendou claramente
que lhe informasse o que fiquei sabendo... Penso que há alguns na Brigada,
inclusive eu mesmo, que vão viajar...
– Ela ia longe?
Trigaud tirou um maço de papéis do bolso, acabou por encontrar a
folha que procurava.
– Eles não lembram todos os deslocamentos dela, é claro, mas alguns
nomes de cidades lhes chamaram a atenção. Por exemplo, Estrasburgo, um
mês depois de uma viagem a Brest. Também notaram que as linhas diretas
nem sempre eram fáceis e que às vezes ela precisava mudar de trem duas ou
três vezes. Carcassonne, Dieppe, Lyon... É menos distante. Lyon, aliás, é
uma exceção. As viagens, em sua maior parte, eram mais longas... Nancy,
Montélimar...
– Nenhuma cidade pequena? Vilarejos?
– Somente cidades de uma certa importância. É verdade que ela podia,
a seguir, viajar a outro lugar de ônibus...
– Nenhum bilhete a Paris?
– Nenhum.
– Isso dura há quanto tempo?
– O último funcionário que interroguei trabalha há nove anos no
mesmo guichê.
“– Era uma cliente regular – ele me disse.
“Na estação todos a conheciam, esperavam sua visita. Os funcionários
chegavam a apostar sobre a cidade que escolheria.”
– Havia datas mais ou menos fixas?
– Não, justamente... Algumas vezes ela não era vista durante seis
semanas, sobretudo no verão, durante a temporada, certamente por causa
dos seus locatários... Os deslocamentos não correspondiam ao final do mês,
a uma data fixa...
– Lecoeur lhe disse o que pretende fazer?
– Ele encomendou um certo número de fotografias. Começará por
enviar homens às cidades mais próximas. Também mandará pelo correio, a
partir de hoje, fotos às P.J. locais.
– Não sabe por que Lecoeur queria me ver?
– Ele não me disse nada. Deve achar que o senhor tem alguma pista.
Aliás, eu também acho...
Para que protestar? Todos o supunham mais esperto do que era e, se ele
protestasse, teriam certeza de ser uma artimanha.
– Apareceu alguém, na Rue du Bourbonnais?
– Segundo Dicelle, a coisa começou por volta das dez horas. Uma
velhinha de avental empurrou a porta, espiou, depois avançou alguns passos
até a câmara-ardente. Então tirou um rosário do bolso do avental e seus
lábios começaram a se mexer. Fez o sinal da cruz com a água benta e foi
embora...
“Foi ela que deu início ao desfile. Deve ter ido avisar as vizinhas, e
estas também vieram, sozinhas ou em duas...”
– Nenhum homem?
– Alguns. O açougueiro, um carpinteiro que mora na esquina, gente da
vizinhança...
Por que o crime não teria sido cometido por alguém da vizinhança? A
investigação estava sendo feita em toda parte, reconstituindo a vida da
dama de lilás em Nice, em Paris, suas viagens aos quatro cantos do país,
mas ninguém pensava nos vizinhos, nos milhares de pessoas que moravam
no Quartier de France.
Maigret também não.
– Há alguma coisa que me sugere fazer?
Não era por iniciativa própria que Trigaud pronunciava essa frase, ela
certamente lhe fora soprada por aquele esperto do Lecoeur. Já que Maigret
estava à mão, por que não servir-se dele?
– Pergunto-me se os funcionários dos guichês poderiam se lembrar de
algumas datas precisas, não muitas, duas ou três seriam suficientes...
– Já sei de uma: 11 de junho... O sujeito lembrou porque se tratava de
Reims, porque a mulher dele é de lá e porque, nesse dia, era o aniversário
dela...
– Se eu fosse você, iria me certificar no banco se houve uma
movimentação na conta no dia 13 ou 14...
– Entendo o que quer dizer. Uma chantagem, não?
– Ou um pagamento de pensão...
– Por que pagar uma pensão em datas diferentes e em intervalos
irregulares?
– Também me pergunto.
Trigaud olhou Maigret de esguelha, convencido de que este lhe
ocultava alguma coisa ou zombava dele.
– Preferia me ocupar do assalto – resmungou. – Com os bandidos a
gente sabe mais ou menos aonde ir... Perdoe-me por tê-lo perturbado...
Meus respeitos, senhora.
Levantou-se, embaraçado, não sabendo como proceder. O sol batia em
cheio nos seus olhos.
– Passarei no banco no começo da tarde. Depois, se preciso, retornarei
à estação ferroviária...
Maigret também, no passado, fizera esse trabalho, batendo sola durante
horas no chão escaldante ou molhado, interrogando pessoas desconfiadas e
das quais era preciso extrair com paciência as palavras, uma a uma.
– Vamos tomar nosso copo d’água...
Enquanto Trigaud se refrescaria, provavelmente, com um belo copo de
cerveja...

– Na fonte, por volta das onze... Espero que eu possa estar lá.
Havia uma ponta de mau humor na voz dele. Quando chegaram em
Vichy, a sra. Maigret achou que ele se aborreceria sem fazer nada, tendo
apenas sua companhia da manhã à noite. A calma sorridente dos primeiros
dias só a tranquilizou em parte, e ela se perguntou por quanto tempo esse
estado de espírito duraria.
Mas o fato é que, nos últimos três dias, ele ficava realmente
descontente sempre que era privado de um de seus passeios.
Hoje era o enterro. Ele prometera a Lecoeur estar presente. O sol
continuava a brilhar, com a mesma mistura de frescor matinal e de umidade
nas ruas.
A Rue du Bourbonnais apresentava um espetáculo não habitual. Além
dos moradores que se viam nas janelas, debruçados como para assistir a um
desfile, curiosos formavam uma franja ao longo das calçadas, mais espessa
na altura da casa mortuária.
O carro fúnebre já havia chegado. Atrás estava estacionado um carro
preto, certamente fornecido pela agência funerária, e mais um outro que
Maigret não conhecia.
Lecoeur veio a seu encontro.
– Tive que abandonar meus bandidos – explicou. – Assaltos acontecem
todo dia, o público está habituado e não se comove mais. Ao passo que uma
mulher estrangulada em sua casa, numa cidade tão calma quanto Vichy, sem
motivo aparente...
Maigret reconheceu a melena ruiva do fotógrafo do La Tribune. Outros
dois ou três estavam nas imediações e um deles tirou uma foto dos dois
policiais atravessando a rua.
Em suma, não havia nada para ver, e os curiosos se olhavam uns aos
outros com o ar de quem se pergunta o que está fazendo ali.
– Você tem homens na rua?
– Três... Não sei onde está Dicelle, mas não deve estar longe. Ele teve a
ideia de fazer-se acompanhar pelo rapaz do açougue, que conhece todo
mundo e poderá lhe indicar as pessoas que não são do bairro...
Não havia nada de triste nem de impressionante nesse funeral. Todos
aguardavam, Maigret inclusive.
– Vai ao cemitério? – ele perguntou a Lecoeur.
– Gostaria que fosse comigo, chefe. Vim com o meu carro pessoal,
pensando que um carro de polícia seria talvez de mau gosto...
– Francine?
– Chegou há alguns minutos com seu gigolô. Está lá dentro.
– Não vejo o carro deles...
– Os empregados da agência funerária, que sabem o que convém e o
que não convém nessas ocasiões, provavelmente os fizeram compreender
que um carro vermelho conversível não era muito mais apropriado num
cortejo fúnebre do que um carro de polícia... Eles é que ocuparão o carro
preto.
– Falou com ela?
– Ela me cumprimentou vagamente ao chegar. Parece nervosa,
inquieta. Antes de entrar na casa, observou os curiosos ao redor como se
procurasse alguém com os olhos...
– Não estou vendo o seu jovem Dicelle...
– É que ele está observando por alguma janela, nos arredores,
acompanhado do rapaz do açougue.
Pessoas saíam da casa. Duas ainda entraram, mas a deixaram quase em
seguida. O motorista do carro fúnebre tomou seu assento.
Como a um sinal, quatro homens fizeram, não sem dificuldade, o
ataúde transpor a porta e o introduziram no carro. Um deles entrou de novo
na casa, retornou com uma coroa de flores e um ramalhete menor.
– O ramalhete é dos locatários...
Francine Lange esperava na entrada, com um vestido preto que não lhe
caía bem e que ela devia ter comprado na Rue Georges-Clemenceau, na
véspera. Percebia-se o seu companheiro, atrás dela, na penumbra do
corredor.
O carro fúnebre avançou alguns metros. Francine subiu no carro preto
junto com o amante.
– Venha, chefe.
Ao longo das calçadas as pessoas não se mexiam, somente os
fotógrafos corriam para acompanhar o cortejo.
– É tudo? – perguntou Maigret, virando-se.
– Não há outros familiares, nem amigos...
– E os locatários?
– Maleski tem uma consulta com o médico às dez e a gorda sra.
Vivereau, uma sessão de massagem...
Passaram por duas ou três ruas que o comissário conhecia por tê-las
percorrido a pé, ao acaso. Ele encheu o cachimbo, observou as casas,
surpreendeu-se de passar diante da estação ferroviária.
O cemitério, do outro lado da ferrovia, não ficava longe. Estava
deserto. O carro funerário rodou até o final das aleias transitáveis.
Assim, eles eram somente quatro a seguir por um caminho de cascalho,
além do pessoal da funerária. Lecoeur e Maigret se aproximaram
naturalmente do casal. O gigolô havia posto óculos de sol.
– Vai partir em seguida? – perguntou Maigret a Francine.
Fez a pergunta para dizer alguma coisa, sem dar importância à resposta,
mas notou que ela o observou de um modo intenso, como para descobrir
uma segunda intenção por trás de suas palavras.
– Devo ficar provavelmente dois ou três dias a fim de arranjar tudo...
– O que vai fazer com os locatários?
– Deixarei que terminem o mês, não há razão para tirá-los de lá.
Apenas fecharei as peças do térreo...
– Pretende vender a casa?
Ela não teve tempo de responder, pois um dos homens de preto se
aproximou. O caixão foi transportado até uma aleia mais estreita, na
margem do cemitério, onde uma cova estava aberta.
Um fotógrafo – não o ruivo alto, um outro – surgiu sabe lá de onde e
tirou algumas fotos enquanto o caixão era baixado na sepultura, depois que
Francine Lange, por indicação do mestre de cerimônias, jogou uma pá de
terra.
A alguns metros de distância, do outro lado de um muro baixo,
começava um terreno baldio com carcaças de veículos enferrujadas; mais
adiante se erguiam algumas casas brancas.
O carro fúnebre se afastou, o fotógrafo também. Lecoeur lançou um
olhar a Maigret e este, que parecia mergulhado em pensamentos, não
compreendeu. Ele pensava exatamente em quê? Em La Rochelle, cidade de
que gostava muito, na Rue Notre-Dame-de-Lorette, nos tempos do início da
carreira, quando era secretário do comissário de polícia do 9o
arrondissement, nos jogadores de bocha também...
Francine avançou em direção a eles, com um lenço enrolado na mão
que não havia servido para secar lágrimas. Ela não havia chorado, nem se
comovido mais que os agentes funerários ou o coveiro. Fora um enterro
sem a menor emoção, o menos romântico possível.
Se remexia no lenço, era para ocultar seu embaraço.
– Não sei como se costuma fazer. Geralmente, depois dos enterros, há
uma refeição, não é mesmo?... Mas certamente os senhores não têm vontade
de almoçar conosco...
– Tenho minhas ocupações... – murmurou Lecoeur.
– Será que posso ao menos lhes oferecer uma bebida?
Maigret se surpreendeu com a mudança na atitude dela. Mesmo ali, no
cemitério deserto, de onde até mesmo o fotógrafo desaparecera, ela não
parava de olhar ao redor como se um perigo a ameaçasse.
– Certamente teremos uma outra ocasião para nos encontrar –
respondeu diplomaticamente Lecoeur.
– Ainda não descobriu nada?
Não foi para ele que ela olhou ao fazer essa pergunta, mas para o
comissário Maigret, como se fosse dele que esperasse alguma coisa.
– O inquérito continua...
Maigret encheu o cachimbo com leves pressões do indicador,
procurando compreender. Essa mulher certamente havia conhecido golpes
duros e era capaz de olhar a vida de frente sem pestanejar. Não era a morte
da irmã que a preocupava, pois, no primeiro dia, mostrou-se animada, cheia
de vida.
– Nesse caso, senhores... não sei como dizer... até mais ver!... E
obrigada por terem vindo.
Se ela ficasse um minuto a mais, Maigret talvez lhe tivesse perguntado
se alguém a ameaçara. Ela se afastou, equilibrando-se sobre os saltos altos.
Assim que fechasse a porta do seu quarto de hotel, tiraria aquele vestido
preto comprado para a circunstância.
– O que acha disso? – perguntou Maigret a seu colega de Clermont.
– O senhor notou também?... Eu gostaria de ter uma conversa com ela a
sós, mas preciso achar uma razão plausível para convocá-la. Hoje, pareceria
indecente. Ela parece estar com medo...
– É a minha impressão também.
– Acha que ela recebeu ameaças? O que faria no meu lugar?
– Que está querendo dizer?
– Não sabemos por que sua irmã foi estrangulada. Poderia ser, afinal,
um drama de família... Não conhecemos quase nada sobre elas... Talvez seja
um caso em que as duas mulheres estão envolvidas... Ela não lhe disse que
ficaria ainda dois ou três dias em Vichy?... Não tenho muitos homens
disponíveis, mas o assalto pode esperar. Os profissionais, a gente sempre
acaba por pegá-los...
Entraram no carro e partiram em direção à saída do cemitério.
– Vou mandar vigiá-la o mais discretamente possível, embora, num
hotel, seja quase impossível... Onde quer que eu o deixe?
– Em algum lugar nos arredores do parque.
– É verdade, está aqui como curista. Não sei por que não consigo me
acostumar com essa ideia.

Primeiro ele achou que sua mulher não havia chegado, pois não a viu no
lugar habitual. Estavam tão acostumados a se encontrar todo dia no mesmo
lugar que ficou surpreso de vê-la numa outra cadeira, à sombra de uma
outra árvore.
Observou-a por um momento sem ser visto. Ela não parecia
impaciente. Com um vestido claro, mãos no colo, olhava as pessoas
passarem e um leve sorriso de contentamento iluminava-lhe o rosto.
– Oi! – ela exclamou.
E, logo em seguida:
– Ocuparam nossas cadeiras... Eu os escutei e acho que são holandeses.
Espero que estejam só de passagem e que não os vejamos todo dia no nosso
lugar... Não achei que o enterro terminaria tão cedo.
– O cemitério não é longe.
– Havia muita gente?
– Na rua. Depois, éramos apenas quatro.
– Ela levou o amante?... Venha tomar um copo...
Eles ficaram na fila por um momento. A seguir Maigret comprou os
jornais de Paris, que pouco falavam do estrangulador de Vichy. Um único
jornal, na véspera, publicara justamente esta manchete: O estrangulador de
Vichy. E, um pouco mais abaixo, era a foto de Maigret que aparecia.
Ele estava curioso em saber os resultados das investigações feitas em
algumas das cidades que a dama, ou melhor, a senhorita de lilás, visitava
em datas irregulares.
Mas seus pensamentos eram vagos. Ele lia, com o espírito noutra parte,
via as silhuetas dos passantes acima do jornal. Logo tiveram de recuar as
cadeiras por causa do sol que os atingia.
O antigo lugar deles, agora ocupado pelos holandeses, tinha uma
vantagem. Situava-se num local que o sol não atingia nas horas em que
estavam no parque.
– Quer ler um jornal?
– Não... Os dois sorridentes acabam de passar, e ele lhe fez um grande
cumprimento...
Mas já haviam se perdido na multidão.
– A irmã chorou?
– Não.
Francine continuava a preocupá-lo. Ele também, se estivesse
encarregado do inquérito, gostaria de interrogá-la na calma da sua sala.
Pensou nisso ainda várias vezes durante o final da manhã. Voltaram ao
Hôtel de la Bérézina, subiram para se refrescar, dirigiram-se à mesa. Como
sempre, exceto para eles, garrafas de vinho acompanhavam a estreita jarra
de vidro que continha duas ou três flores.
– Há escalopes à milanesa e fígado de vitelo à la bourgeoise.
– Escalopes – ele suspirou. – Mas me servirão na chapa. Estou só de
passagem, enquanto Rian estará aqui no ano que vem e nos próximos. Ele é
quem manda...
– Não se sente melhor do que em Paris?
– Somente porque não estou em Paris. Aliás, nunca me senti realmente
mal. Cansaço, tonturas, suponho que isso acontece a todo o mundo...
– Mesmo assim confia no Pardon...
– É preciso...
Comeram um prato de massa, que fazia as vezes de aperitivo e de
entrada, e os escalopes acabavam de ser servidos quando anunciaram a
Maigret que ele era chamado ao telefone.
Este se achava numa pequena sala cuja janela dava para a rua.
– Alô!... Estou a perturbá-lo?... Já estava almoçando?
Ele reconheceu a voz de Lecoeur e resmungou:
– Se posso chamar isso de almoço!...
– Há novidades! Mandei um dos meus homens vigiar o Hôtel de la
Gare. Ele teve a ideia, antes de começar sua tarefa, de pedir o número do
quarto de Francine Lange. A recepcionista o olhou com um ar surpreso e
disse que ela havia partido...
– Quando?
– Apenas meia hora depois de nos ter deixado... Parece que o casal
chegou ao hotel e, antes de subir, o homem pediu para encerrar a conta.
Devem ter feito as malas com toda pressa, pois dez minutos depois já
estavam prontos. Puseram tudo no carro vermelho que desapareceu no
trânsito...
Maigret ficou calado, Lecoeur também, de modo que houve um
silêncio bastante longo.
– O que está pensando, chefe?
– Ela está com medo...
– Claro, mas já estava com medo hoje de manhã, isso se via. No
entanto declarou que esperava ficar ainda dois ou três dias em Vichy...
– Talvez para que você não a retivesse...
– Com que direito a teria retido, a menos que tivesse alguma coisa
contra ela?
– Você conhece a lei, ela não.
– Saberemos esta noite ou amanhã de manhã se ela voltou a La
Rochelle...
– É o mais provável.
– Também penso que sim, mesmo assim estou furioso. Tinha a intenção
de revê-la e de conversar longamente com ela... É verdade que talvez eu
venha a saber mais... O senhor está livre, às duas horas?
Era o momento da sesta, e ele respondeu com bastante má vontade:
– Não tenho nada de especial a fazer, evidentemente.
– Durante minha ausência, esta manhã, alguém telefonou para a polícia
local e pediu para falar comigo... Neste momento estou na delegacia central.
Acabei por aceitar a sala que me ofereceram... Trata-se de uma moça que
deu seu nome: Madeleine Dubois. E adivinhe o que ela faz na vida?...
Maigret continuou calado.
– É a telefonista da noite no Hôtel de la Gare. Meu colega de Vichy
respondeu-lhe que certamente estarei na delegacia, na Avenue Victoire, por
volta das duas. Também perguntou se ela podia dizer do que se tratava, mas
a moça prefere me ver pessoalmente... Assim a espero daqui a pouco.
– Estarei aí.
Não fez a sesta, mas ficou conhecendo a graciosa casa branca com
torreões, plantada no meio de um jardim, que servia de sede à polícia de
Vichy. Um guarda municipal o conduziu ao final de um corredor, no
primeiro andar, onde uma sala quase vazia de móveis fora destinada a
Lecoeur.
– Faltam cinco para as duas – este observou. – Espero que ela não
mude de ideia... Vou ver se encontro uma terceira cadeira...
Ouviu-se um bater de portas no corredor, até que ele descobriu o que
procurava.
Às duas em ponto, o guarda de plantão bateu à porta e anunciou:
– A sra. Dubois...
Era uma mulher pequena, agitada, de cabelos escuros, com um olhar
muito móvel que passava de um a outro dos dois homens.
– A quem devo me dirigir?
Lecoeur se apresentou; não falou de Maigret, que se sentou num canto.
– Não sei se o que vou dizer lhe interessará... Na hora não dei
importância ao fato... O hotel está cheio... Tive muito trabalho até uma da
madrugada. Depois, como de hábito, houve uma folga... Trata-se de uma de
nossas clientes, a sra. Lange...
– Suponho que fala da srta. Francine Lange...
– Achei que fosse casada. Sei que a irmã dela morreu e que foi
enterrada esta manhã... Ontem à noite, por volta das oito e meia, alguém
quis falar com ela...
– Um homem?
– Sim, um homem com uma voz estranha... Estou quase certa de que
sofre de asma, pois tive um tio com essa doença e que falava da mesma
maneira...
– Ele não se identificou?
– Não.
– Não perguntou o número do quarto?
– Não... Chamei e ninguém atendeu. Então eu disse que a pessoa que
ele procurava não estava no hotel. Ele chamou uma segunda vez às nove
horas, e o quarto 406 continuou sem resposta.
– A srta. Lange e seu companheiro estavam ocupando o mesmo quarto?
– Sim... O homem chamou uma terceira vez às onze horas, e então a
srta. Lange atendeu... Completei a ligação...
Ela pareceu embaraçada, lançou um olhar a Maigret como para
perceber o efeito que produziria sobre ele, pois também devia tê-lo
reconhecido.
– Ouviu a conversa? – murmurou Lecoeur, com gentileza.
– Peço desculpas... Não é meu hábito... Temos a reputação de escutar
as conversas, mas se as pessoas soubessem como isso é pouco interessante
pensariam de outra forma... Foi talvez por causa do assassinato da irmã...
Ou por causa da voz estranha do homem...
“– Quem está falando? – ela perguntou.
“– É a srta. Francine Lange?
“– Sim...
“– Está sozinha no quarto?
“Ela hesitou. Mas tive quase a certeza de que seu companheiro estava
com ela.
“– Sim... Mas afinal o que lhe importa?
“– Tenho uma mensagem confidencial a lhe comunicar... Escute bem...
Se eu for interrompido, voltarei a chamá-la dentro de meia hora.
“Ele tinha a respiração difícil, às vezes com uma espécie de assobio,
como meu tio.
“– Estou escutando... Ainda não me disse quem é...
“– Não tem importância... É indispensável que fique alguns dias em
Vichy... É para o seu próprio interesse... Entrarei em contato, ainda não sei
quando... Nossa conversa poderá fazê-la ganhar um bom dinheiro...
Compreendeu bem?
“Ele se calou e desligou. Depois de alguns minutos, o 406 chamou.
“– Aqui é a srta. Lange. Acabo de receber um telefonema. Pode me
dizer se a chamada era de Vichy ou de outra parte?
“– De Vichy...
“– Obrigada.
“Aí está... Primeiro pensei que isso não me dizia respeito. Mas hoje de
manhã, não podendo dormir, telefonei para cá e perguntei quem era o
encarregado do inquérito...”
Ela mexia nervosa na bolsa de mão, seu olhar ia e vinha de um dos dois
homens ao outro.
– O senhor acha que é importante?
– Não retornou ao hotel?
– Só retomo meu serviço às oito da noite.
– A srta. Lange partiu.
– Ela não assistiu ao enterro da irmã?
– Deixou Vichy quase imediatamente depois do enterro.
– Ah!...
Após um silêncio, ela continuou:
– Esse homem provavelmente queria atraí-la a uma armadilha, não é?
Não seria, por acaso, o estrangulador?
E empalideceu só de pensar que teve, na outra ponta da linha, o
assassino da senhorita de lilás.
Maigret não lamentava mais ter perdido a sesta.
CAPÍTULO V

QUANDO A TELEFONISTA PARTIU, os dois homens permaneceram


onde estavam, Maigret fumando lentamente o cachimbo, Lecoeur com um
cigarro que ameaçava queimar-lhe o bigode. A fumaça se espalhava acima
das cabeças. No pátio, uma dúzia de guardas municipais fazia ginástica.
Houve um silêncio bastante longo. Tanto um como o outro eram
homens experientes que conheciam as manhas da profissão e haviam lidado
com todo tipo de criminosos, com todo tipo de testemunhas.
– Evidentemente foi ele que telefonou – suspirou enfim Lecoeur.
Maigret não respondeu de imediato. Eles não reagiam da mesma forma.
Sem falar de métodos, uma palavra da qual nenhum dos dois gostava, havia
uma diferença na abordagem de um problema.
Assim, desde que a senhorita de lilás fora estrangulada, Maigret havia
se preocupado muito pouco com o assassino. Não era intencional. Ele
continuava obcecado pela mulher que revia na sua cadeira amarela diante
do coreto de música, por seu rosto comprido, por seu sorriso bastante doce
que às vezes desmentia a dureza do olhar.
Pequenas pinceladas haviam se acrescentado a essa imagem, quando
ele conheceu a casa da Rue du Bourbonnais, quando soube da temporada
em Nice, da vida em Paris, apesar do pouco que se sabia dela, e até dos
livros que lia.
O estrangulador era apenas uma silhueta, um homem alto e forte que a
sra. Vivereau afirmava ter visto, andando depressa, na esquina, e que um
dono de bar também vira sem distinguir suas feições.
Aos poucos, imperceptivelmente, ele começava a pensar nesse homem.
– Pergunto-me como ele soube que Francine Lange estava hospedada
no Hôtel de la Gare...
Os jornais que anunciaram a chegada da irmã da vítima não haviam
fornecido nenhum endereço.
Maigret avançava a passos prudentes, com hesitação.
– Por que ele não teria simplesmente telefonado aos diferentes hotéis,
pedindo para falar com a srta. Lange?...
Imaginou-o diante de uma lista telefônica. A relação de hotéis devia ser
longa. Teria procedido por ordem alfabética?
– Talvez você pudesse ligar para um hotel cujo nome comece por A ou
por B...
Com um olhar divertido, Lecoeur pegou o aparelho.
– Pode me fazer uma ligação para o Hôtel de l’Angleterre?... Não, não
a direção nem a recepção. Desejo falar com a telefonista... Alô!... É a
telefonista do Hôtel de l’Angleterre?... Aqui é da Polícia Judiciária...
Alguém lhe pediu para entrar em contato com uma certa srta. Lange?...
Não, não a vítima. A irmã dela, Francine Lange... Isso mesmo... Pergunte à
sua colega...
Ele anunciou a Maigret:
– São duas telefonistas que operam os ramais... O hotel tem quinhentos
ou seiscentos quartos... Alô, sim... Ontem de manhã?... Posso falar com sua
colega?... Alô!... Foi você que recebeu a ligação?... Alguma coisa chamou
sua atenção?... Uma voz rouca, está dizendo?... Como se o homem... Sim...
Compreendo... Obrigado...
E a Maigret:
– Ontem de manhã, por volta das dez horas. Uma voz rouca, ou melhor,
de um homem com dificuldade de respirar...
Alguém que fazia um tratamento, Maigret havia pensado nisso já no
primeiro dia, e que encontrara Hélène Lange por acaso... Ele a seguira para
saber onde morava...
O telefone tocou. Era o inspetor enviado a Lyon. Ele não havia
encontrado traços da vítima nos hotéis da cidade, mas uma funcionária do
Correio se lembrava dela. Tinha vindo duas vezes, em ambas para retirar na
posta-restante um grande envelope de papel pardo. Na primeira vez, esse
envelope esperava havia uma semana. Na segunda, tinha acabado de chegar.
– Tem as datas?
Sonhador, continuando a fumar com prazer o cachimbo, Maigret
olhava seu colega trabalhar.
– Alô!... É do Crédit Lyonnais?... Vocês fizeram a relação dos depósitos
que lhes pedi?... Não... Mandarei buscá-la daqui a pouco... Pode me dizer se
foi feito um depósito logo após l3 de janeiro do ano passado e um outro
após 22 de fevereiro deste ano?... Sim, eu aguardo...
Não levou muito tempo.
– Um depósito de oito mil francos em 15 de janeiro... Outro de cinco
mil francos em 23 de fevereiro deste ano – informou o empregado do
banco.
– A média dos depósitos é em torno de cinco mil francos?
– Quase todos... As exceções são raras... Estou com o extrato à minha
frente. Há cinco anos, uma quantia de 25 mil francos foi creditada em
conta... É a única tão elevada...
– Sempre em dinheiro?
– Sempre.
– Qual o montante até hoje?
– Quatrocentos e cinquenta e dois mil, seiscentos e cinquenta.
Lecoeur repetiu esses números a Maigret.
– Ela era rica – ele murmurou. – No entanto alugava quartos
mobiliados durante a temporada...
E ficou surpreso de ouvir o comissário responder-lhe:
– Ele é muito rico...
– É verdade. Parece que esse dinheiro provém de uma mesma fonte.
Um homem que pode depositar cinco mil francos por mês e,
ocasionalmente, quantias ainda maiores...
Esse homem, porém, ignorava que Hélène Lange tinha em Vichy uma
pequena casa branca com janelas verde-claras, no Quartier de France. A
cada remessa, o endereço era mudado.
O dinheiro não era depositado em data fixa, e a srta. Lange talvez só o
retirasse alguns dias mais tarde, de propósito, a fim de ter certeza de que a
agência do correio não seria vigiada.
Seja como for, um homem rico ou muito abastado... Quando falou com
a irmã dela ao telefone, não marcou um encontro num lugar preciso. Pediu
que ela ficasse mais alguns dias em Vichy e esperasse sua chamada... Por
quê?
– Deve ser casado. Está aqui com a mulher, talvez com os filhos... Não
está livre quando quer...
Lecoeur também se divertia em ver trabalhar o cérebro de Maigret. Era
realmente o cérebro? Agora, o que Maigret procurava era compreender o
homem.
– Na Rue du Bourbonnais ele não encontrou o que procurava... E
Hélène Lange não falou... Se tivesse falado, provavelmente não estaria
morta... Ele quis amedrontá-la para obter a informação de que precisava...
– Então, apesar da esposa, ele estava livre naquela noite...
Maigret se calou, refletindo sobre a objeção.
– O que foi apresentado no teatro, na segunda-feira?
Lecoeur pegou o telefone para se informar.
– La Tosca... Todos os ingressos foram vendidos.
Não era um raciocínio rigoroso, é verdade. Não era sequer um
raciocínio. Maigret tentava imaginar o homem, uma figura bastante
importante, certamente hospedado num dos melhores hotéis de Vichy. Ele
tinha esposa, amigos...
Na véspera ou na antevéspera, havia encontrado Hélène Lange e a
seguira para conhecer seu endereço.
Naquela noite era apresentada La Tosca no teatro do Grand Casino.
Não são as mulheres mais apaixonadas que os homens pela ópera italiana?
– Por que não vai sem mim?... O tratamento me deixa exausto.
Aproveitarei para dormir mais cedo...
Que informação ele queria obter de Hélène Lange e por que esta se
recusava obstinadamente a falar?
Teria ele entrado na casa antes dela, forçando uma fechadura fácil, e
vasculhado o conteúdo dos móveis antes de sua chegada?
Ou, ao contrário, a teria encontrado somente no momento em que ela
chegou, e o crime já teria sido cometido quando ele remexeu nas coisas?
– Por que esse sorriso, chefe?
– Porque estou pensando num detalhe idiota... Antes de chegar ao
Hôtel de la Gare, o assassino deve ter feito, se seguiu a ordem alfabética,
umas trinta ligações... Isso não lhe diz nada?
Ele enchia um novo cachimbo.
– Toda a polícia o procura... É provável que sua mulher ocupe o mesmo
quarto que ele no hotel... No entanto ele terá de repetir um grande número
de vezes um nome que é o mesmo que o da vítima...
“Nos hotéis, todas as ligações passam pela telefonista... Além disso, há
a mulher dele, é uma suposição plausível... É perigoso telefonar de um café,
de um bar, onde se pode ser ouvido... Se eu fosse você, Lecoeur, colocaria
vários homens a vigiar as cabines públicas...”
– Mas ele já falou com Francine Lange!...
– Ele voltará a ligar...
– Ela não está mais em Vichy...
– Ele não sabe disso...
Em Paris, Maigret via sua mulher três vezes por dia, como a maior
parte dos maridos: ao despertar de manhã, ao meio-dia e à noite. E
acontecia-lhe, com frequência, de não voltar para almoçar.
Assim poderia fazer qualquer coisa, sem que ela soubesse, durante o
resto do dia.
Já em Vichy eles passavam praticamente juntos as 24 horas do dia, e
ele não era o único nessa situação.
– Ele não pode sequer demorar muito tempo numa cabine telefônica –
suspirou.
Será que ele descia sob pretexto de ir comprar cigarros ou de tomar ar
enquanto a mulher se vestia? Um telefonema ou dois... Se ela também
estivesse em tratamento e fosse à hidroterapia, isso lhe dava mais algum
tempo...
Imaginou-o aproveitando toda ocasião, provocando-as, mentindo como
um garoto à sua mãe.
Um homem corpulento, de uma certa idade, rico, que ocupa um cargo
importante e que, em Vichy, busca um tratamento para a asma.
– Não está surpreso de que a irmã tenha partido?
Francine Lange amava o dinheiro. Sabe Deus o que fez, quando vivia
em Paris, para obtê-lo. Agora possuía um comércio próspero e receberia
uma herança da irmã.
Mas seria ela mulher de desprezar uma quantia importante?
Era da polícia que tinha medo? Parecia pouco provável. A menos que
tivesse decidido fugir definitivamente, viajando para outro país.
Não! Ela voltou a La Rochelle, onde a polícia poderá interrogá-la do
mesmo modo que em Vichy. Neste momento ainda estava na estrada, com o
gigolô ao volante, enquanto os jovens se viravam com inveja para o carro
vermelho conversível.
– Ela chegará por volta do meio da tarde, pois devem rodar a alta
velocidade...
– Os jornais disseram que ela vive em La Rochelle?
– Não... Apenas anunciaram sua chegada aqui.
– Ela já estava com medo hoje de manhã, na casa mortuária e no
cemitério...
– Eu me pergunto por que foi ao senhor que ela olhou meio às
escondidas...
– Acho que eu sei...
E Maigret sorriu, um pouco embaraçado.
– Os jornalistas me criaram a reputação de uma espécie de confessor...
Ela deve ter hesitado em confiar-se a mim, em pedir-me conselho... Depois
mudou de ideia, pensando no dinheiro a receber...
Lecoeur franziu os cenhos.
– Não estou entendendo...
– O homem tentou obter uma informação de Hélène Lange, e essa
informação era bastante importante para fazê-lo perder todo o controle. É
raro alguém estrangular a sangue frio. Ele veio à Rue Bourbonnais sem
arma, não tinha a intenção de matar. No entanto, foi embora de mãos
vazias...
Pensando no estrangulamento, Maigret acrescentou:
– Se me arrisco a dizer...
– Ele supõe que a irmã possua a mesma informação?
– Com certeza. Caso contrário não teria se dado tanto trabalho e
corrido tantos riscos para saber em que hotel ela estava hospedada. Não
teria telefonado e não lhe teria proposto o pagamento de uma quantia
elevada...
– E ela, será que sabe o que ele quer?
– É possível – murmurou Maigret, olhando a hora no seu relógio.
– É provável, não? E a prova é que ela teve medo a ponto de partir sem
nos dizer nada...
– Preciso ir encontrar minha mulher...
Por pouco não acrescentou:
– Como o outro!
Como aquele homem corpulento, largo de ombros, obrigado a
empregar artimanhas infantis para ir telefonar de uma cabine pública.
Quem sabe? Durante seus passeios cotidianos, os Maigret talvez
tivessem cruzado um certo número de vezes com esse casal. Era possível
que estivessem lado a lado no momento do copo d’água, que suas
cadeiras...
– Não esqueça as cabines telefônicas...
– Eu precisaria de todos os homens que o senhor tem em Paris...
– Sempre careço deles... Quando telefonará a La Rochelle?
– Lá pelas seis da tarde, antes de partir para Clermont-Ferrand, onde
tenho um encontro com o juiz de instrução. Ele me espera em sua casa.
Essa história o incomoda, pois tem boas relações com a concessionária das
águas termais, que não aprecia muito esse tipo de publicidade... Se quiser
vir aqui...
A sra. Maigret o esperava num banco. Em toda a sua vida, os Maigret
nunca tinham se sentado tanto em bancos ou cadeiras de praça. Ele estava
atrasado, mas ela não fez nenhuma queixa, limitando-se a observar que a
expressão dele não era a mesma que de manhã.
Ela conhecia aquele rosto, ao mesmo tempo carrancudo e pensativo.
– Aonde vamos?
– Vamos andar...
Como nos outros dias. Como o outro casal. A mulher não devia
desconfiar de nada. Passeava com o marido sem perceber que este
estremecia ao ver um uniforme da polícia.
Ele era um assassino e não podia fugir sem se tornar suspeito. Devia
continuar, como os Maigret, sua rotina cotidiana.
Estaria hospedado num dos dois ou três hotéis de luxo? Isso não dizia
respeito a Maigret, mas, se ele estivesse no lugar de Lecoeur...
– Lecoeur é um excelente policial... – murmurou.
O que significava, no seu foro interior:
– Com certeza ele pensará nisso. Não há tantos hóspedes, nesses hotéis,
para que...
Mas ele mesmo gostaria de verificar.
– Não esqueça sua consulta com Rian...
– É hoje?
– Amanhã às quatro da tarde.
Teria novamente que se despir, se deixar apalpar, subir na balança,
escutar o jovem médico lhe dizer muito sério a quantidade de água que
beberia dali por diante. Haveria uma mudança nas fontes?
Ele pensou em Janvier que havia se instalado em sua sala, pois Lucas
também estava de férias. Havia escolhido a montanha, algum lugar para os
lados de Chamonix.
Pequenos veleiros em fila navegavam lentamente contra o vento,
virando de um bordo a outro, um de cada vez. Casais passavam de
pedalinho e, abaixo da amurada que costeava o Allier, pequenas quadras de
golfe se sucediam a cada cinquenta metros.
Maigret notou que se virava toda vez que encontravam um homem de
uma certa idade, de uma certa corpulência.
Para ele, o assassino de Hélène Lange deixara de ser uma vaga
entidade. Começava a ganhar forma, a adquirir uma personalidade.
Ele estava na cidade, fazendo um desses passeios que os Maigret
seguiam com tanta constância. Efetuava mais ou menos os mesmos gestos
que eles, via os mesmos espetáculos, os veleiros, os pedalinhos, as cadeiras
amarelas no parque e a multidão que desfilava a um ritmo monótono.
Com ou sem razão, Maigret via uma mulher ao lado desse homem, uma
mulher também corpulenta que talvez se queixasse de dores nos pés.
O que diziam enquanto andavam? De que falavam todos esses casais
entre os quais os Maigret prosseguiam?
Ele havia matado Hélène Lange, era procurado. Uma palavra, um
gesto, uma imprudência, e seria detido.
O desmoronamento de uma vida. Seu nome nas primeiras páginas dos
jornais. Os amigos estupefatos, a fortuna dele e a de sua família ameaçadas.
Uma cela de prisão em vez de um apartamento requintado...
A mudança podia ocorrer dentro de poucos minutos, poucos segundos.
Talvez um desconhecido lhe batesse no ombro e, quando virasse a cabeça,
se veria cara a cara com um distintivo da polícia.
– É o senhor...
Pouco importa o nome. A surpresa, a indignação da mulher.
– Mas é um equívoco, comissário!... Conheço-o bem, é meu marido...
Todo o mundo lhe dirá... Vamos, defenda-se, Jean!...
Jean, ou Pierre, ou Gaston...
Maigret chegou a olhar ao redor como que furtivamente.
– Mesmo assim ele continua...
– Continua o quê?
– ...querendo saber a verdade...
– De quem está falando?
– Você sabe de quem falo. Ele telefonou para Francine Lange, quer
conversar com ela...
– Ele não vai se fazer prender?
– Se ela tivesse avisado Lecoeur a tempo, teriam montado uma
ratoeira... Ainda é possível. Ele ainda não conhece bem sua voz.
Seguramente Lecoeur pensou nisso. Basta colocar uma mulher mais ou
menos da idade dela no quarto 406... Quando ele telefonar...
Maigret deteve-se bem no meio da aleia e resmungou, de punhos
cerrados, como se aquilo o deixasse furioso:
– Mas que diabos ele estará buscando para correr esses riscos?

Uma voz de homem atendeu:


– Alô!
– Eu gostaria de falar com a srta. Francine Lange.
– Quem deseja?
– Comissário divisionário Lecoeur.
– Um instante...
Maigret estava sentado junto a uma escrivaninha vazia, defronte a
Lecoeur, e mantinha ao ouvido um segundo aparelho de escuta.
– Alô!... Não poderia voltar a ligar amanhã de manhã?
– Não.
– Dentro de meia hora?
– Dentro de meia hora estarei na estrada...
– Acabamos de chegar... Francine, quero dizer, a srta. Lange está
tomando banho.
– Pergunte-lhe, da minha parte, se poderia sair do banho...
Lecoeur dirigiu uma piscadela a seu colega de Paris. Ouviu-se de novo
a voz de Lucien Romanel.
– Ela irá atendê-lo dentro de um instante... O tempo de secar-se...
– Parece que não correram muito na estrada...
– Tivemos uma pane. Perdemos cerca de uma hora a procurar uma peça
de reposição... Aqui está ela!...
– Alô!
A voz parecia mais distante que a do gigolô.
– Srta. Lange?... Hoje de manhã me anunciou que ficaria ainda dois ou
três dias em Vichy...
– Era a minha intenção... Mudei de ideia...
– Posso saber por quê?
– Eu poderia lhe responder que mudei de ideia e ponto final. É o meu
direito, não?
– Assim como o meu é munir-me de uma carta rogatória e obrigá-la a
falar...
– Que diferença faz que eu esteja em Vichy ou em La Rochelle?
– Para mim, uma diferença muito grande... Agora, repito minha
pergunta: o que a fez mudar de ideia?
– Tive medo...
– De quê?
– O senhor sabe muito bem... Hoje de manhã eu já estava com medo,
mas pensei que ele não ousaria...
– Seja mais clara, por favor. Medo de quem?
– Do homem que estrangulou minha irmã... Pensei que, se ele a atacou,
também é capaz de me atacar...
– Por que razão?
– Não sei...
– Você o conhece?
– Não.
– Não tem a menor ideia de quem possa ser?
– Não.
– No entanto, ao meio-dia, após ter-me anunciado o prolongamento de
sua estadia em Vichy, deixou o hotel com a maior pressa...
– Tive medo...
– Está mentindo... Mais exatamente, tinha uma razão particular para ter
medo...
– Já lhe disse... Ele matou minha irmã... Poderia também...
– Por que razão?
– Ignoro.
– E ignora também a razão pela qual sua irmã foi morta?
– Se soubesse, já lhe teria dito...
– Nesse caso, por que não me falou do telefonema?
Ele a imaginava de penhoar branco, com os cabelos molhados, no
apartamento onde as malas acabavam de ser abertas. Teria o aparelho uma
segunda escuta? Se não tivesse, Romanel devia estar diante dela, lançando-
lhe olhares interrogativos.
– Que telefonema?
– O que recebeu ontem à noite no seu hotel...
– Não entendo o que o senhor...
– Terei de lhe lembrar as frases do seu interlocutor? Ele não a
aconselhou, justamente, a permanecer mais dois ou três dias em Vichy? Não
lhe anunciou que entraria de novo em contato e que isso poderia lhe render
um bom dinheiro?
– Mal escutei...
– Por que razão?
– Porque achei que fosse uma brincadeira... Também não é essa a sua
impressão?
– Não.
Um não muito seco, seguido de um silêncio ameaçador. Na outra ponta
da linha, ela estava atrapalhada e procurava alguma coisa para dizer.
– Olhe, não sou da polícia... Mas repito que achei que fosse uma farsa.
– Costumam lhe fazer farsas desse tipo?
– Desse tipo, não...
– Não foi essa conversa telefônica que a assustou suficientemente para
fazê-la deixar Vichy o mais cedo possível?
– Já que não acredita em mim...
– Acreditarei quando for sincera.
– Aquilo me impressionou...
– O quê?
– Saber que o homem ainda estava na cidade... Todas as mulheres
devem sentir medo diante da ideia de que um estrangulador anda solto nas
ruas...
– Nem por isso os hotéis se esvaziaram de uma hora para a outra... Já
tinha ouvido essa voz?
– Não creio...
– Uma voz bastante característica...
– Não reparei. Estava muito surpresa...
– Há pouco falou de uma farsa de mau gosto...
– Estou fatigada... Anteontem à tarde, estava ainda em férias nas
Baleares... Desde então quase não dormi...
– Não é uma razão para mentir...
– Não estou habituada a interrogatórios. Com mais razão ainda por
telefone, após ter sido tirada do meu banho...
– Se prefere, receberá dentro de uma hora a visita oficial do meu colega
de La Rochelle e tudo o que disser será devidamente registrado...
– Estou fazendo o melhor possível para lhe responder...
Os olhos de Maigret riam. Lecoeur fazia um ótimo trabalho. Ele não
teria agido exatamente do mesmo modo, mas o resultado teria sido idêntico.
– A senhorita sabia, ontem, que a polícia estava atrás do assassino da
sua irmã... Não ignorava que o menor indício poderia ser precioso...
– Sim, admito.
– Ora, é muito provável que o seu interlocutor invisível fosse
justamente o assassino... Você pensou nisso. Inclusive se convenceu, já que
teve medo... No entanto é uma mulher destemida...
– Talvez eu tenha pensado, mas não tinha certeza...
– Qualquer outra pessoa, no seu lugar, teria nos telefonado para
informar... Por que não telefonou?
– Esquece que eu acabava de perder minha irmã, que era minha única
parente, e que seu enterro foi hoje...
– O que não a comoveu nem um pouco...
– Como sabe?
– Responda à minha pergunta.
– O senhor talvez tivesse me retido...
– Não são assuntos urgentes que a chamam a La Rochelle, já que
esperava ficar vários dias ainda nas Baleares...
– A atmosfera me oprimia... A ideia de que esse homem...
– Não foi antes a ideia de que, em consequência desse telefonema,
poderíamos lhe fazer certas perguntas?
– Poderiam querer me usar como isca... Quando ele tivesse me ligado
para marcar um encontro, o senhor me enviaria até lá e...
– E...?
– Nada... Tive medo...
– Por que sua irmã foi estrangulada?
– Como quer que eu saiba?
– Alguém a reencontrou após certos anos, seguiu-a, entrou na casa
dela...
– Achei que ela havia surpreendido um assaltante...
– Não é tão ingênua... Ele tinha uma pergunta a fazer a ela, uma
pergunta fundamental...
– Que pergunta?
– É exatamente o que busco descobrir... Sua irmã havia recebido uma
herança, srta. Lange?
– De quem?
– É o que pergunto.
– Nós duas herdamos de minha mãe... Ela não era rica. Uma mercearia
em Marsilly e alguns milhares de francos numa conta da Caixa de
Poupança...
– O amante da sua irmã era rico?
– Que amante?...
– O que ia vê-la uma ou duas vezes por semana em Paris, no
apartamento da Rue Notre-Dame-de-Lorette.
– Não estou sabendo...
– Nunca o encontrou?
– Não...
– Não desligue, senhorita... Ainda temos muito o que conversar...
Alô!...
– Estou ouvindo...
– Sua irmã era estenodatilógrafa... Você era manicure...
– Tornei-me esteticista...
– Que seja. Duas jovens de Marsilly cujos pais não tinham muito
dinheiro. As duas vão a Paris. Não vivem juntas, mas durante vários anos
ambas se veem lá...
– O que isso tem de extraordinário?
– Afirma nada saber do que a irmã fazia... Não soube me dizer sequer
onde ela trabalhava...
– Em primeiro lugar, havia uma diferença de idade entre nós... Além
disso, nunca nos demos bem, mesmo quando crianças...
– Não terminei... O fato é que, a seguir, você se tornou dona, ainda
jovem, de um salão de beleza em La Rochelle que deve ter-lhe custado
caro...
– Paguei uma parte do imóvel em prestações...
– É possível que, mais tarde, tenhamos que esclarecer esse ponto.
Quanto à sua irmã, ela desaparece de circulação, de certo modo. Primeiro
passa cinco anos em Nice... Chegou a visitá-la?
– Não.
– Tinha o endereço dela?
– Ela me enviou três ou quatro cartões postais.
– Em cinco anos?
– Nada tínhamos a nos dizer...
– E quando ela se instalou em Vichy?
– Ela não me falou disso...
– Não lhe escreveu que morava agora nesta cidade onde havia
comprado uma casa?
– Eu soube através de amigos...
– Que amigos?
– Não lembro... Pessoas que a encontraram em Vichy...
– E que falaram com ela?
– É possível... O senhor me confunde...
Lecoeur, contente consigo, deu uma nova piscadela a Maigret, cujo
cachimbo se apagara e que fazia uma delicada ginástica para tornar a
acendê-lo sem soltar o aparelho de escuta.
– A senhorita foi ao Crédit Lyonnais?
– Que Crédit Lyonnais?
– O de Vichy.
– Não.
– Não teve a curiosidade de saber que quantia vai herdar?
– É o meu advogado daqui que se ocupará da sucessão. Não entendo
nada dessas coisas...
– No entanto é uma mulher de negócios... Tem uma ideia da quantia
que sua irmã tinha no banco?
Houve um novo silêncio.
– Eu a estou escutando...
– Não posso lhe responder...
– Por quê?
– Porque não sei...
– Ficaria surpresa de saber que é algo em torno de quinhentos mil
francos?
– É muito...
Disse isso com uma voz calma.
– Muito para uma datilógrafa que um belo dia partiu de Marsilly e que
só trabalhou em Paris uma dezena de anos...
– Ela não me fez confidências...
– Reflita antes de responder, pois temos meios de verificar a veracidade
de suas palavras... Quando se instalou em La Rochelle, não foi sua irmã que
financiou os primeiros fundos?
Novo silêncio. E o silêncio é mais impressionante ao telefone do que
quando se está diante do interlocutor. Há um corte completo.
– Tem necessidade de refletir?
– Ela me emprestou um pouco de dinheiro...
– Quanto?
– Teria que perguntar ao meu advogado...
– Sua irmã, nessa época, não morava em Nice?
– É possível... Sim...
– Portanto, teve um contato com ela. E não apenas por uma troca de
cartões-postais... É provável que tenha ido vê-la a fim de lhe dar detalhes do
seu projeto...
– Tive que ir até lá...
– Disse-me o contrário um instante atrás...
– É que me confundo com suas perguntas...
– No entanto elas são claras, suas respostas já nem tanto...
– Terminou?
– Ainda não. E aconselho-a mais vivamente que nunca a não desligar, o
que me forçaria a tomar medidas bastante desagradáveis... Desta vez, quero
uma resposta clara, do tipo sim ou não... Na certidão de compra do salão de
beleza, é o seu nome ou o de sua irmã que consta? Em outras palavras, é
sua irmã a verdadeira proprietária?
– Não.
– É você?
– Não.
– Quem é?
– Nós duas.
– Então eram sócias e tentou fazer-me acreditar que não tinha nenhum
contato com sua irmã...
– São questões de família que não dizem respeito a ninguém...
– Não quando um crime acontece.
– Não existe relação alguma...
– Tem certeza?
– Tenho.
– Tem tão pouca certeza que deixou Vichy como uma louca...
– Ainda tem perguntas a me fazer?
Maigret fez um sinal que sim, pegou um lápis em cima da mesa e
escreveu algumas palavras num bloco.
– Um instante... Não desligue...
– Vai demorar?
– Aqui está... A senhorita teve um filho, não é mesmo?
– Já lhe falei disso.
– Deu à luz em Paris?
– Não.
– Por quê?
No bilhete de Maigret, lia-se apenas: Onde ela deu à luz? Onde a
criança foi registrada?
Lecoeur se esmerava, talvez por causa da presença do seu ilustre colega
parisiense.
– Eu não queria que ninguém soubesse...
– Para onde foi?
– À Borgonha...
– A que lugar exatamente?
– Mesnil-le-Mont...
– É uma cidadezinha?
– Mais uma aldeia.
– Tem um médico?
– Naquela época não tinha.
– E escolheu, para dar à luz, uma aldeia sem médico?
– Como acha que nossas mães davam à luz?
– Foi você que escolheu esse lugar? Já tinha ido até lá?
– Não. Vi num mapa rodoviário.
– Foi sozinha?
– Eu me pergunto como interroga os culpados, se é desse modo que
tortura as pessoas que nada fizeram e que, ao contrário...
– Perguntei-lhe se foi sozinha...
– Não.
– Assim está melhor. Está vendo que é mais simples dizer a verdade do
que usar de artimanhas. Quem a acompanhava?
– Minha irmã.
– Está se referindo à sua irmã Hélène?
– Não tenho outra.
– Nesse tempo vocês duas viviam em Paris, onde só se encontravam
por acaso. Você não sabia onde ela trabalhava. Ela poderia também ser
sustentada por alguém...
– Isso não me dizia respeito.
– Não gostavam uma da outra e tinham o mínimo contato possível, no
entanto ela abandonou de repente seu trabalho para acompanhá-la a uma
aldeia perdida na Borgonha...
Francine nada encontrou a dizer.
– Quanto tempo ficaram lá?
– Um mês.
– Num hotel?
– No albergue...
– Foi uma parteira que a assistiu?
– Não estou certa de que fosse parteira, mas ela ajudava todas as
mulheres grávidas da região...
– Como ela se chama?
– Tinha mais de sessenta anos na época, já deve ter morrido...
– Não lembra o nome dela?
– Sra. Radèche...
– Registrou a criança na prefeitura?
– Claro.
– Você mesma?
– Eu estava no leito. Minha irmã foi até lá com o dono do albergue, que
serviu de testemunha...
– A seguir, viu o registro de nascimento?
– Por que teria ido vê-lo?
– Possui uma cópia da certidão?
– Depois de tanto tempo...
– Para onde foram a seguir?
– Escute, não aguento mais. Se faz questão absoluta de me interrogar
durante horas, venha até aqui me ver...
Imperturbável, Lecoeur pronunciou:
– Para onde levaram a criança?
– A Saint-André... Saint-André-du-Lavion, nos Vosges...
– De carro?
– Eu ainda não tinha carro...
– Sua irmã também não?
– Ela nunca dirigiu...
– Ela a acompanhava?
– Sim!...Sim!... Sim!... E agora, pense o que quiser... Estou farta,
entende? Farta!... Farta!...
E desligou.
CAPÍTULO VI

– EM QUE ESTÁ PENSANDO?


A pergunta de todos os casais, de todos os que vivem lado a lado
durante anos, que veem viver um ao outro e que, deparando-se diante do
muro do rosto, do muro do olhar, não podem deixar de murmurar
timidamente: “Em que está pensando?”.
A sra. Maigret, é verdade, só pronunciava essas palavras quando
percebia o marido relaxado, como se houvesse uma zona na qual ela não se
reconhecesse o direito de penetrar.
Depois do longo telefonema a La Rochelle, seguiu-se a calma do jantar,
no restaurante branco e repousante do hotel, com suas plantas verdes, suas
garrafas de vinho e suas flores nas mesas.
Ninguém, aparentemente, se ocupava dos Maigret, que no entanto eram
o centro de uma atenção discreta, ao mesmo tempo admirativa e afetuosa.
Agora era o momento do passeio noturno. Em alguma parte do céu
rolavam trovoadas e, no ar imóvel, passavam súbitas rajadas de vento.
Eles haviam seguido, como que automaticamente, pela Rue du
Bourbonnais, onde a luz estava acesa numa das janelas do primeiro andar,
no quarto da gorda sra. Vivereau. Os Maleski haviam saído, para passear ou
ir ao cinema.
O térreo estava às escuras, silencioso. Os móveis haviam retomado seu
lugar. Hélène Lange desaparecera.
Um dia, certamente, o conteúdo da casa se amontoaria na calçada, e um
agente de leilões brincalhão colocaria em oferta o que havia sido o quadro
de uma existência.
Teria Francine levado as fotografias? Era improvável. Improvável
também que as mandasse buscar. Elas seriam vendidas com o resto.
Os dois seguiram andando em direção ao parque, onde os passeios
quase fatalmente terminavam, quando a sra. Maigret fez sua pergunta.
– Eu estava pensando que Lecoeur é um excelente investigador –
respondeu o marido.
As perguntas que o comissário de Clermont-Ferrand fizera uma atrás
da outra, sem dar a Francine o tempo de se recompor, a deixaram
desnorteada. Ele havia tirado o melhor partido possível dos elementos em
posse dela e obtido resultados tangíveis que serviriam de base para a
continuação do inquérito.
Por que Maigret não estava inteiramente satisfeito? Ele teria agido de
outro modo, com certeza. Dois homens, mesmo se aplicam um mesmo
método, o fazem de maneiras diferentes.
Mas não se tratava de método. O comissário, no fundo, invejava o
brilhantismo do colega, sua segurança, sua confiança em si mesmo.
Para Maigret, por exemplo, a senhorita de lilás não era apenas a vítima
de um assassinato, nem uma pessoa que tivera determinado tipo de
existência. Ele começava a conhecê-la e procurava, quase de forma
involuntária, aprofundar esse conhecimento.
Antes de tudo, era na história das duas irmãs que ele matutava ao fazer
seu passeio, enquanto um Lecoeur sem angústias partira satisfeito para seu
encontro com o juiz de instrução.
Este, por sua vez, o que conheceria realmente do caso, sentado no seu
gabinete onde tudo o que fora vida acabava por se resumir a frases de
relatórios oficiais?
Duas irmãs, nascidas numa aldeia da costa atlântica, Marsilly, onde a
mãe tinha uma mercearia perto da igreja. Maigret conhecia essa aldeia, na
qual se trabalhava tanto na terra quanto no mar. Quatro ou cinco
proprietários dedicavam-se ali à criação de ostras e de mexilhões.
Ele reviu as mulheres, moças e velhas, inclusive meninas pequenas,
partindo ao raiar do dia, às vezes ainda de noite, conforme a hora da maré.
Calçando botas de borracha, elas vestiam malhas espessas e velhos casacos
masculinos.
Na praia juntavam as ostras cujos bancos estavam descobertos,
enquanto os homens se ocupavam dos mexilhões presos nas ramagens
mantidas por estacas.
A maior parte das meninas não frequentava a escola, e os rapazes
raramente ultrapassavam a instrução primária, pelo menos na época em que
as irmãs Lange viveram ali.
Hélène era uma exceção. Frequentara a escola e adquirira instrução
suficiente para trabalhar num escritório. Partia de manhã, de bicicleta, e
voltava à noite. Era uma mulher independente.
Mais tarde, também a irmã haveria de se emancipar.
– As duas estão em Paris... Não as vemos mais ali... Elas os
desprezam...
Suas ex-amigas continuavam a raspar de manhã os bancos de ostras e a
trabalhar no viveiro de mexilhões. Haviam se casado, criavam filhos que
agora brincavam na praça da Igreja.
Hélène Lange conseguiu o que queria à força de uma vontade fria.
Muito jovem, recusou a vida que lhe reservavam, traçou um outro caminho,
escolhendo um mundo pessoal ilustrado, a seus olhos, por alguns escritores
românticos.
Balzac era muito duro para ela, muito próximo de Marsilly, do
armazém familiar e dos viveiros de mexilhões onde o frio endurecia as
mãos.
Francine também havia escapado, à sua maneira. Aos quinze anos, um
motorista de táxi a desvirginou e ela não viu por que não tirar proveito do
seu corpo atraente e carnudo, por que não atrair os homens com seu sorriso
provocante.
Não haviam as duas, afinal, sido bem-sucedidas?
A proprietária da casa de Vichy possuía uma grande conta bancária, e a
irmã mais moça, de volta à região, exibia sua opulência no melhor salão de
beleza de La Rochelle.
Lecoeur não sentia a necessidade de viver com elas, de compreendê-
las. Ele estabelecia fatos, fazia deduções e, portanto, não tinha problemas de
consciência.
Essas duas vidas se envolveram com um homem, um homem cujo rosto
ninguém conhecia mas que estava aqui, em Vichy, no seu quarto de hotel,
numa aleia do parque, numa sala do Grand Casino ou em algum outro lugar.
Esse homem havia matado e estava sendo perseguido. Não podia
ignorar que a polícia, aos poucos, com os enormes meios de que dispõe, se
aproximava dele e o cercaria cada vez mais, até o momento em que uma
mão indiferente pousaria no seu ombro.
Também ele tinha uma vida atrás de si. Fora criança, jovem,
apaixonado, provavelmente se casara, pois o desconhecido que em Paris ia
uma ou duas noites por semana à Rue Notre-Dame-de-Lorette ficava lá
somente uma hora.
Hélène então desapareceu, foi viver sozinha em Nice, onde parecia ter
mergulhado voluntariamente na multidão anônima.
Antes fez um desvio por uma pequena aldeia da Borgonha, viveu um
mês num albergue com a irmã, que dera à luz.
Maigret também tinha necessidade de conhecer esse homem. Era alto e
forte. A asma, que certamente o levara a fazer uma cura em Vichy, dava-lhe
uma voz muito reconhecível.
Ele matara por nada. Não tinha ido à Rue du Bourbonnais para matar,
mas para fazer uma pergunta.
Hélène Lange se calara. Mesmo quando ele a pegou pelo pescoço para
assustá-la, ela se recusou a falar e pagou com a vida seu silêncio.
Ele poderia ter desistido, a prudência lhe recomendava. Qualquer
movimento da parte dele se tornava perigoso. A máquina policial fora
acionada.
Ele já saberia da existência da irmã, de Francine Lange? Esta afirmou
que não, e talvez fosse verdade.
Um jornal lhe informou que ela existia, que acabara de chegar a Vichy.
Ele pôs na cabeça entrar em contato com ela, mobilizou toda a sua
paciência e sua astúcia para descobrir o nome do hotel onde estava
hospedada.
Se Hélène não havia falado, a irmã mais moça resistiria à tentação de
ganhar um bom dinheiro?
O homem era rico, importante. Caso contrário, como teria pago a
Hélène quinhentos mil francos nos últimos anos?
Quinhentos mil francos em troca de nada. Ele não recebia nada. Não
sabia inclusive onde vivia a mulher a quem enviava o dinheiro em espécie
às diferentes agências de correio que ela lhe indicava.
Se soubesse, Hélène Lange teria morrido mais cedo?
– Fique ainda em Vichy por dois ou três dias...
Ele tentava sua última chance, com o risco de fazer-se prender. Ia
telefonar, mas estava preocupado. Dependia do momento em que pudesse
escapar à presença da sua mulher.
Mas agora havia, nas proximidades da maior parte das cabines
públicas, um colaborador de Lecoeur à espreita.
Maigret teria se enganado ao pensar que ele não telefonaria de um café,
de um bar, do quarto do hotel?
Ele e a sra. Maigret passaram diante de uma dessas cabines. Através do
vidro, viram uma mocinha que falava com uma alegre animação.
– Acha que ele se deixará prender?
– Sim, muito em breve.
Esse homem acabaria preso porque queria apaixonadamente alguma
coisa. Talvez vivesse, havia anos, com essa ideia fixa, sempre à espera,
desde que mensalmente enviava o dinheiro, desse acaso que levara quinze
anos para acontecer.
Talvez fosse um excelente homem de negócios que, na vida normal,
jamais perdesse a serenidade.
Quinze anos ruminando uma ideia...
Ele a apertara com muita força, sem querer matar. Ou então...
Maigret parou de andar no meio de uma aleia e sua mulher também
parou automaticamente, lançando-lhe um rápido olhar.
...Ou então deparou com algo monstruoso, inesperado, inaceitável...
– Pergunto-me como Lecoeur conseguirá – murmurou.
– Conseguirá o quê?
– Fazê-lo confessar.
– Primeiro ele precisa ser encontrado e detido...
– Ele se deixará prender.
Seria um alívio para esse homem não ter mais que procurar, fingir,
enganar...
– Espero que ele não esteja armado...
Por causa da observação da sua mulher, Maigret considerou uma nova
eventualidade. O homem, em vez de entregar-se, decidiria acabar de vez
com a vida...
Teria Lecoeur recomendado cautela a seus auxiliares? Maigret não
podia intervir. Ele era, nesse caso, apenas um espectador passivo, tão
discreto quanto possível.
E mesmo que o homem se deixasse prender, por que falaria? Isso não
modificaria em nada seu gesto nem a decisão dos jurados. Para estes, ele era
um estrangulador, e os estranguladores nunca inspiram a indulgência, muito
menos a simpatia, seja qual for sua história.
– Confesse que teria gostado de se ocupar de...
A sra. Maigret se permitia, em Vichy, observações que jamais teria
feito em Paris. Era porque estavam de férias? Porque passavam juntos todas
as horas do dia e um contato mais íntimo se estabelecia entre os dois?
Ela quase o ouvia pensar.
– Eu me pergunto... Não... Acho que não...
Por que ele se inquietava? Estava ali para repousar e para limpar o
organismo, segundo a expressão do dr. Rian. No dia seguinte estava
marcada uma consulta com o doutor e, durante meia hora, ele seria apenas
um paciente preocupado com o fígado, o estômago, o baço, a pressão
arterial e as tonturas.
Que idade tinha Lecoeur? Apenas cinco anos menos que ele. Dentro de
cinco anos, também Lecoeur começaria a pensar na aposentadoria e a
perguntar-se o que fazer dos seus dias.
Eles passaram diante dos dois hotéis mais luxuosos da cidade, atrás do
cassino. Vários carrões estavam estacionados junto à calçada. Um homem
de smoking tomava o ar fresco, numa cadeira de jardim ao lado da porta
giratória.
Um lustre de cristal iluminava o hall com tapete do Oriente, colunas de
mármore, e um recepcionista enfeitado de galões respondia às perguntas de
uma velha senhora com um vestido de gala.
Talvez fosse naquele hotel que o homem estava hospedado, ou no hotel
vizinho, ou ainda no Pavillon Sévigné, perto da ponte de Bellerive. Um
moço de recados muito jovem, de olhar já entediado, esperava diante do
elevador.
Lecoeur havia atacado o ponto mais fraco, isto é, Francine Lange. Esta,
surpreendida, falara bastante.
Provavelmente ele daria um jeito de interrogá-la de novo. Ela lhe
contaria mais coisas? Já não teria dito tudo o que sabia?
– Espere um instante. Preciso comprar tabaco.
Ele entrou num café barulhento, onde a maior parte dos consumidores
olhava a televisão instalada num console acima das cabeças. O ar cheirava a
vinho e cerveja. O dono, calvo, não parava de encher copos que uma
garçonete, vestida de preto com avental branco, levava até as mesas.
Olhou automaticamente para a cabine telefônica com porta
envidraçada, no fundo da sala, ao lado dos sanitários. Estava vazia.
– Três pacotes de fumo gris...
O Hôtel de la Bérézina não ficava longe e, ao se aproximarem, viram o
jovem Dicelle na entrada.
– Posso lhe falar um instante, chefe?
A sra. Maigret não esperou mais para entrar e pegar a chave na
recepção.
– Que tal caminharmos um pouco?
As ruas estavam vazias, os passos se ouviam de longe.
– Foi Lecoeur que o aconselhou a me procurar?
– Sim. Falei com ele por telefone. Estava em sua casa, em Clermont,
com a mulher e os filhos...
– Quantos filhos ele tem?
– Três... O mais velho está com dezoito anos e será talvez campeão de
natação...
– E então, o que se passa?
– Somos uns dez a vigiar as cabines telefônicas. O comissário não
dispõe de homens suficientes para colocar um por cabine e escolhemos as
do centro, sobretudo aquelas não muitos afastadas dos principais hotéis...
– Prenderam alguém?
– Ainda não... Espero o comissário, que deve estar a caminho... Tudo
falhou por minha culpa... Eu estava vigiando nas proximidades de uma
cabine, no Boulevard Kennedy... Era fácil me esconder, por causa das
árvores...
– Um homem entrou para telefonar?
– Sim. Um homem alto, corpulento, que correspondia à descrição que
nos deram. Parecia desconfiado. Olhou ao redor mas não me viu...
“Começou a discar um número... Será que avancei demais a cabeça?...
É possível... É possível também que de repente tenha mudado de ideia...
Após ter discado três número, parou e saiu da cabine...”
– Não o deteve?
– Recebi instruções de não prendê-lo sob hipótese alguma, mas de
acompanhá-lo. Fiquei surpreso de vê-lo, a menos de vinte metros, juntar-se
a uma mulher que estava na sombra, esperando...
– Que tipo de mulher?
– Uma muito elegante, de uns cinquenta anos...
– Davam a impressão de agir em comum acordo?
– Não. Ela tomou-lhe o braço e os dois caminharam até o Hôtel des
Ambassadeurs.
Era aquele cujo hall e o lustre de cristal Maigret contemplara, uma hora
antes.
– E a seguir?
– Nada. O homem dirigiu-se ao recepcionista que lhe estendeu a chave
e desejou-lhe boa noite.
– Pôde vê-lo bem?
– Bastante bem. Acho que é mais velho que a mulher, deve ter uns
sessenta anos... Entraram no elevador e não tornei a vê-los.
– Estava de smoking?
– Não. Vestia um terno escuro muito bem-talhado. Tem os cabelos
prateados penteados para trás, a pele rosada e, acredito, um bigodinho
branco.
– Interrogou o recepcionista?
– Claro. O casal ocupa o 105, no primeiro andar, um quarto amplo com
uma sala. É o primeiro ano que vêm a Vichy, mas já conheciam o
proprietário, que possui também um hotel em La Baule. Trata-se de Louis
Pélardeau, industrial, domiciliado em Paris, Boulevard Suchet...
– Ele faz um tratamento?
– Faz. Perguntei se não falava de um modo particular e o recepcionista
me confirmou que é asmático. O dr. Rian está medicando os dois...
– A sra. Pélardeau também faz um tratamento?
– Sim... Não parecem ter filhos... No hotel encontraram amigos de
Paris com os quais dividem a mesa, no restaurante. Às vezes vão juntos ao
teatro...
– Alguém está vigiando o hotel?
– Encarreguei um guarda municipal de fazê-lo, até que um colega
chegue ao local, o que já deve ter acontecido... O guarda, que poderia não
ter aceito, mostrou-se muito cooperativo.
Dicelle estava agitado.
– O que o senhor acha?... É ele, não?
Maigret não respondeu de imediato, levou um tempo a acender o
cachimbo. Eles estavam a uns cem metros da casa da dama de lilás.
– É, acho que é ele – suspirou.
O jovem inspetor o olhou espantado, pois podia jurar que o comissário
pronunciara aquelas palavras com pesar.
– Devo esperar meu chefe diante do hotel. Ele deve chegar dentro de
uns vinte minutos...
– Ele quer que eu esteja lá?
– Disse-me que o senhor certamente me acompanharia...
– Primeiro devo avisar minha mulher...
O intervalo, no teatro do Grand Casino, havia despejado na rua uma grande
quantidade de espectadores, sobretudo mulheres com vestidos leves ou
muito decotados, que olhavam com inquietação o céu iluminado por
relâmpagos.
Nuvens passavam baixas, ligeiras, mas havia principalmente, vindo do
oeste, uma massa escura, ameaçadora, quase sólida.
Diante do Hôtel des Ambassadeurs, Maigret e Dicelle esperavam em
silêncio enquanto, atrás do balcão de madeira envernizada, tendo ao fundo
os compartimentos da estante com chaves penduradas, o recepcionista os
observava.
Lecoeur chegou no momento em que grossas gotas de chuva fria
começavam a cair e ressoava a campainha anunciando o final do intervalo.
Ele teve que fazer várias manobras complicadas para estacionar o carro e
por fim se aproximou, com a fronte preocupada.
– Ele está no quarto? – perguntou.
Dicelle se apressou a responder:
– O 105, no primeiro andar. As janelas dão para a rua...
– Sua mulher também está?
– Sim. Entraram juntos.
Uma silhueta saiu da sombra e um policial que Maigret não conhecia
veio perguntar a meia-voz:
– Continuo a vigiar?
– Continue.
Lecoeur acendeu um cigarro, abrigou-se junto à entrada.
– Não tenho o direito de detê-lo entre o pôr e o nascer do sol, salvo em
caso de flagrante delito...
Pôs uma certa ironia na recitação desse artigo do Código de Instrução
Criminal e acrescentou, pensativo:
– Não tenho sequer acusações contra ele para obter uma ordem de
prisão.
Parecia pedir socorro a Maigret, mas este não disse nada.
– Não quero deixá-lo de molho a noite toda... Ele desconfia que foi
identificado... Aconteceu alguma coisa que o impediu de dar seu
telefonema... A presença da mulher a poucos passos da cabine telefônica
me intriga...
E acrescentou como uma queixa:
– Não diz nada, chefe?
– Nada tenho a dizer...
– O que faria em meu lugar?
– Também não esperaria... Evitaria subir lá em cima, onde certamente
eles estão ocupados em se despir... Seria mais discreto enviar-lhe um
recado...
– Dizendo o quê, por exemplo?
– Que alguém, no hall, tem uma comunicação pessoal a lhe fazer...
– Acredita que ele descerá?
– Aposto que sim.
– Espere-nos aqui, certo, Dicelle? Convém não entrarmos todos no
hotel.
Lecoeur dirigiu-se à recepção enquanto Maigret ficou de pé no meio do
hall, olhando vagamente o imenso saguão quase vazio. Todos os lustres
estavam acesos e, num canto afastado, como num outro mundo, quatro
pessoas de idade, dois homens e duas mulheres, jogavam bridge com
movimentos lentos. A distância dava uma impressão de irrealidade, como
um filme passando em câmera lenta.
O moço de recados precipitou-se em direção ao elevador, com um
envelope na mão. A voz abafada de Lecoeur pronunciou:
– Veremos no que vai dar...
E então, talvez impressionado pela atmosfera solene, retirou o chapéu.
Maigret também já tinha o seu chapéu de palha na mão. Na rua, a
tempestade desabara e chovia a cântaros diante da porta. Várias pessoas,
das quais só se viam as costas, haviam se refugiado na entrada.
O moço de recados não tardou a retornar e veio lhe dizer:
– O sr. Pélardeau descerá em seguida.
Contra a vontade, eles se viraram em direção ao elevador. Maigret pôde
constatar no seu colega, que alisava o bigode entre o polegar e o indicador,
um certo nervosismo.
Uma chamada, no primeiro andar. O elevador subiu, deteve-se um
momento e logo tornou a descer.
Dele saiu um homem de terno escuro, pele rosada, cabelos prateados;
seus olhos percorreram o hall e ele caminhou até os dois homens, com o
olhar interrogativo.
Lecoeur trazia na palma da mão seu distintivo de comissário, que
mostrou discretamente.
– Gostaria de ter uma conversa com o senhor, sr. Pélardeau.
– Agora?
Era exatamente a voz rouca que lhes fora descrita. O homem não
estava agitado. Sem dúvida havia reconhecido Maigret e parecia surpreso
de vê-lo desempenhar um papel mudo.
– Sim, agora. Meu carro está à porta. Eu o conduzirei até minha sala.
O rosto ficou menos rosado. Pélardeau devia ter uns sessenta anos, mas
mantinha uma postura ereta e, nos gestos, nas expressões fisionômicas,
conservava muita dignidade.
– Suponho que seria inútil recusar...
– Só complicaria as coisas...
Um olhar dirigido ao recepcionista, depois à sala onde as quatro
figuras, num canto, continuavam a se desenhar na distância. Um olhar
também à chuva que caía.
– Também seria desnecessário subir para buscar um chapéu ou uma
capa, não é mesmo?
Maigret olhou para Lecoeur e, com os olhos, indicou-lhe o teto. Era
inútil e cruel deixar a mulher esperando lá em cima. A noite se anunciava
longa e havia pouca chance de o marido voltar para tranquilizá-la.
Lecoeur murmurou:
– O senhor pode deixar um bilhete para a sra. Pélardeau. A menos que
ela já esteja sabendo...
– Não... O que devo escrever?
– Não sei... Que talvez ficará retido por mais tempo do que
imaginava...
O homem dirigiu-se até o balcão.
– Tem uma folha de papel, Marcel?
Ele estava mais triste do que oprimido ou assustado. Com uma
esferográfica, escreveu algumas palavras, recusou o envelope que o
recepcionista lhe estendeu.
– Espere alguns minutos antes de fazê-lo subir.
– Pois não, sr. Pélardeau.
O recepcionista teve vontade de acrescentar alguma coisa, mas, não
encontrando as palavras, se calou.
– Acompanhe-me...
Lecoeur deu instruções em voz baixa a Dicelle, já molhado de chuva, e
abriu a porta traseira.
– Entre...
O empresário se curvou e entrou no carro.
– O senhor também, chefe.
Maigret compreendeu que seu colega não queria deixar o prisioneiro
sozinho no banco de trás. Uns instantes depois o carro rodava pelas ruas.
Algumas pessoas corriam, enquanto outras procuravam abrigo debaixo das
árvores. Havia gente até sob o coreto de música, na praça.
O carro entrou no pátio do prédio da polícia, na Avenue Victoire, e
Lecoeur disse algumas palavras ao guarda de plantão. Apenas uma parte
das lâmpadas estava acesa nos corredores, e o caminho pareceu longo a
Maigret.
– Entre... Não é confortável, mas prefiro não levá-lo desde já a
Clermont-Ferrand.
Tirou o chapéu, hesitou em tirar o casaco, cujos ombros estavam
molhados como os dos dois companheiros. Em comparação com a
temperatura externa, que baixara subitamente com a chuva, fazia muito
calor no ar fechado da peça.
– Sente-se...
Maigret se postou no seu canto, enchendo devagar um cachimbo sem
desviar os olhos do rosto do industrial. Este havia se sentado numa cadeira
e esperava, aparentemente calmo.
Era uma calma dramática, quase dilacerante, o comissário notou.
Nenhum traço do rosto se mexia. Os olhos iam de um policial a outro, e
certamente ele tentava compreender o papel apagado que Maigret
desempenhava.
Para se dar um tempo, Lecoeur pôs um bloco à sua frente, um lápis, e
murmurou como para si mesmo:
– Suas respostas às minhas perguntas não serão registradas, pois isto
não é um interrogatório oficial.
O homem inclinou a cabeça em sinal de assentimento.
– O senhor se chama Louis Pélardeau e é industrial. Mora em Paris, no
Boulevard Suchet.
– Exato.
– É casado, não?
– Sou.
– Tem filhos?
Houve uma hesitação, ele pronunciou com uma curiosa amargura:
– Não.
– Está aqui em tratamento?
– Sim.
– É a primeira vez que vem a Vichy?
– Eu já havia atravessado a cidade de carro.
– Nunca para encontrar aqui uma determinada pessoa?
– Não.
Lecoeur inseriu um cigarro na sua piteira, acendeu-o, ficou ainda um
bom momento em silêncio.
– Suponho que não ignora a razão pela qual eu o trouxe aqui...
O homem refletiu, com o rosto sempre indecifrável, mas Maigret já
havia compreendido. Aquela calma, aquela falta de expressão, não era tanto
um autocontrole e sim o resultado de uma extrema emoção.
Ele estava em estado de choque e sabe lá como as imagens, ao redor,
lhe apareciam, de que maneira a voz de Lecoeur ressoava a seus ouvidos.
– Prefiro não responder...
– O senhor me acompanhou sem protestar...
– Sim...
– Estava esperando que isso acontecesse?
O homem se virou para Maigret como para chamá-lo em socorro,
depois repetiu em voz baixa:
– Prefiro não responder...
Lecoeur rabiscou uma palavra no bloco, procurou um outro ataque.
– O senhor teve a surpresa de encontrar, em Vichy, uma pessoa que não
via há mais de quinze anos...
Os olhos estavam ligeiramente úmidos, mas não se viam lágrimas.
Talvez fosse a consequência da luz crua. Essa peça, no fim de um corredor,
era tão raramente utilizada que quase não tinha mobília, e a iluminação se
reduzia a uma lâmpada na ponta de um fio.
– Hoje à noite, quando saiu com sua esposa, sabia que daria uma
parada para telefonar?
Ele hesitou, fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Sua esposa também estava sabendo?
– Do telefonema que eu ia dar?
– Se quiser.
– Não.
– Ela ignora alguns dos seus atos?
– Totalmente.
– Mesmo assim o senhor entrou numa cabine pública...
– Ela me acompanhou no último momento... Não tive a paciência de
esperar uma nova ocasião... Disse a ela que eu havia deixado a chave do
nosso apartamento na porta e que telefonaria à recepção do hotel...
– Por que não terminou de compor o número?
– Senti que estava sendo observado...
– Viu alguém?
– Alguma coisa se mexeu atrás de uma árvore. Ao mesmo tempo
pensei que esse telefonema seria inútil...
– Por quê?
Ele não respondeu. Mantinha as duas mãos pousadas sobre os joelhos,
mãos um pouco gordas, brancas e bem cuidadas.
– Se quiser fumar...
– Não fumo.
– A fumaça o incomoda?
– Minha mulher fuma muito... Demais...
– Desconfiou que não era Francine Lange que atenderia seu
telefonema?
Ele não respondeu, de novo, mas também não negou.
– O senhor ligou para ela ontem à noite... Anunciou-lhe um novo
telefonema para marcar um encontro... Posso supor que a hora e o lugar
desse encontro estavam, hoje à noite, fixados no seu espírito...
– Escuso-me por não cooperar mais...
Precisou tomar fôlego e um leve assobio saía-lhe da garganta entre
algumas palavras.
– Não é má vontade de minha parte, acredite...
– Espera ser assistido por um advogado?
Sua mão direita fez um gesto vago, como para varrer essa ideia.
– No entanto precisará de um...
– Sim, já que a lei exige...
– Compreende, sr. Pélardeau, que a partir de agora está privado da sua
liberdade?
Lecoeur teve o tato de não pronunciar a palavra prisioneiro e Maigret
felicitou-o interiormente por isso.
O homem causava uma admiração nos dois, sobretudo nessa sala
exígua, de paredes neutras. Sentado numa cadeira de madeira torneada,
parecia maior e mais imponente, e conservava uma calma, uma dignidade
inesperadas.
Ambos já haviam interrogado centenas de suspeitos, e era preciso
muito para ficarem impressionados, como nesta noite estavam.
– Eu poderia adiar esta conversa para amanhã, mas não adiantaria nada,
não é mesmo?
O homem deu a entender que o problema era do comissário e não dele.
– A propósito, em que setor da indústria trabalha?
– Fabricação de fios metálicos.
Era abordado um tema do qual ele podia falar e fornecer alguns
detalhes, em vez de dizer não a tudo ou de se calar sistematicamente.
– Herdei do meu pai uma trefilaria bastante modesta, perto de Le
Havre... Pude fazê-la crescer, construí outra em Rouen, depois em
Estrasburgo...
– Portanto, dirige um negócio importante...
– Sim.
Ele pareceu escusar-se.
– Seu escritório fica em Paris?
– A sede social. Temos escritórios mais modernos em Rouen e em
Estrasburgo, mas fiz questão de conservar a velha sede social no Boulevard
Voltaire...
Para ele, era o passado. Naquela noite, enquanto um moço de recados
com galões dourados subia pelo elevador levando um bilhete na mão, toda
uma parte da sua vida deixava de existir.
Ele sabia e era talvez por isso que aceitava falar.
– Está casado há muito tempo?
– Trinta anos...
– Por acaso uma certa Hélène Lange trabalhou para o senhor no
passado?
– Prefiro não responder.
Era assim toda vez que o ponto sensível se aproximava.
– Percebe, sr. Pélardeau, que não está facilitando minha tarefa?
– Desculpe-me.
– Se tem a intenção de negar os fatos que devo lhe apresentar, eu
preferiria saber desde já.
– Ignoro o que vai dizer...
– O senhor afirma que é inocente?
– Num certo sentido, não...
Lecoeur e Maigret se olharam, pois ele acabava de pronunciar essa
frase terrível com simplicidade, com naturalidade, sem que um traço do
rosto se mexesse.
Maigret reviu as folhagens do parque, os tons irreais que o verde, em
alguns lugares, adquiria sob a luz dos lampadários, os músicos com
uniformes enfeitados de franjas e dragonas.
Reviu sobretudo o rosto fino e comprido de Hélène Lange que ainda
era apenas, para ele e sua mulher, a dama ou a senhorita de lilás.
– O senhor conheceu a srta. Lange?
Ele permaneceu imóvel, a respiração contida, como se sufocasse. De
fato, teve uma crise de asma. O rosto ficou muito vermelho. Tirou um lenço
do bolso, abriu a boca e pôs-se a tossir sem parar, com o corpo curvado.
Maigret se contentou por não estar no lugar do colega. Por uma vez, ele
deixava o trabalho desagradável a um outro.
– Eu lhe...
– Espere um pouco, por favor...
Com os olhos embaçados, ele procurava em vão parar a tosse, que
durou vários minutos.
Quando se recompôs, ainda avermelhado, começou por enxugar o
rosto.
– Perdoe-me...
A voz mal se ouvia.
– Isso me acontece várias vezes por dia... O dr. Rian afirma que o
tratamento me fará bem...
A ironia dessas palavras o atingiu de repente.
– Quero dizer, me teria feito bem...
Eles tinham o mesmo médico, Maigret e ele. Haviam se despido na
mesma peça de móveis laqueados, se estendido na mesma mesa coberta de
um lençol branco...
– O senhor me perguntou...?
– Se conheceu Hélène Lange...
– De nada me serviria negar...
– O senhor a odiava?
Se pudesse, Maigret teria feito um sinal ao colega de que enveredava
por um mau caminho.
O homem, de fato, olhou Lecoeur com um espanto que não era fingido
e, por um instante, esse personagem de sessenta anos mostrou-se de uma
candura quase infantil.
– Por quê? – murmurou. – Por que a teria odiado?
E virou-se para Maigret como para tomá-lo por testemunha.
– O senhor a amou?
Assistia-se a uma transformação inesperada. O homem franzia as
sobrancelhas, buscando compreender. As duas últimas perguntas o haviam
surpreendido, como se tudo agora fosse incerto.
– Não percebo bem... – balbuciou.
Depois, mais uma vez, seu olhar passou de um a outro, detendo-se mais
longamente no rosto de Maigret.
Havia um mal-entendido no ar.
– O senhor a visitava no seu apartamento da Rue Notre-Dame-de-
Lorette...
– Sim...
E pareceu acrescentar: “Mas o que importa isso?”.
– Era o senhor que pagava o aluguel?
Ele respondeu com um sinal discreto.
– Ela era sua secretária?
– Uma de minhas funcionárias...
O mal-entendido subsistia, era visível.
– Eu ia vê-la uma ou duas vezes por semana...
– Sua mulher sabia?
– Não, evidentemente...
– Ela soube num certo momento?
– Nunca...
– E agora?
O pobre Pélardeau dava a impressão de um homem que esbarra o
tempo todo no mesmo muro.
– Agora também não... Isso não tem relação alguma...
Relação alguma com o quê? Com o crime? Com seus telefonemas?
Cada um falava uma linguagem, cada um seguia sua ideia, e ambos estavam
surpresos de não se compreender.
CAPÍTULO VII

O OLHAR DE LECOEUR POUSOU no aparelho telefônico em cima da


mesa, e ele pareceu hesitar. Depois percebeu uma pequena placa com um
botão branco e acabou por pressionar o botão.
– O senhor me dá licença?... Não sei onde é que soa isso, se é que soa
em alguma parte. É o que veremos se aparecer alguém...
Ele sentia a necessidade de uma pausa, e eles esperaram em silêncio
evitando se olhar. Dos três, talvez Pélardeau fosse o mais calmo, o mais
senhor de si, pelo menos na aparência. É verdade que, no que lhe concernia,
a sorte estava lançada, e ele não tinha mais nada a perder.
Acabaram ouvindo, muito longe, um ruído nos degraus de uma escada
de ferro, depois o de passos num corredor, por fim batidas discretas à porta.
– Entre!
Era um guarda municipal muito jovem, de uniforme novo, que, diante
daqueles três homens de uma certa idade, dava uma impressão de força
vital.
Lecoeur, que não era um estranho na casa, lhe perguntou:
– Tem um momento livre?
– Claro, sr. comissário. Estávamos jogando cartas...
– Poderia ficar com o sr. Pélardeau durante nossa ausência?
O guarda não sabia de nada e olhou com espanto aquele homem
elegante que o impressionava.
– Certamente, sr. comissário.
Alguns instantes depois, Lecoeur e Maigret chegavam a um peristilo.
Degraus cobertos por uma marquise permitiam abrigar-se da chuva, que
desenhava riscos espessos na obscuridade.
– Eu estava sufocando lá dentro... Achei que também lhe agradaria
tomar um pouco de ar...
A nuvem enorme de onde partiam os raios estava bem acima da cidade
e ventava forte. A rua estava deserta, só de vez em quando passava um
carro em baixa velocidade levantando feixes de água.
O chefe da P.J. de Clermont-Ferrand acendeu um cigarro, ficou
olhando a chuva ricochetear no cimento, agitar a folhagem do jardim.
– Sinto que estou patinando lamentavelmente, chefe... Deveria ter-lhe
cedido o lugar...
– Que outra coisa eu teria feito?... Você lhe deu confiança... Ele estava
num ponto em que parecia inútil responder a suas perguntas. Preferia se
calar, não importa o que acontecesse... Era um homem sem recursos, que
não reagia mais, que aceitava...
– Tive essa impressão...
– Aos poucos você lhe arrancou algumas respostas... Ele começou a se
mostrar interessado... Depois aconteceu uma coisa que ainda não
compreendo... Alguma frase que disse o atingiu...
– Qual?
– Não lembro... O que sei é que algo foi acionado... Não parei de
observar o rosto dele, no qual li, de repente, uma surpresa imensa... Seria
preciso pesar todas as palavras que foram ditas... Ele estava certo de que
sabíamos mais...
– Sabíamos mais o quê?
Maigret se calou e deu uma tragada no cachimbo.
– Um fato que para ele é evidente, mas que nos escapou...
– Eu deveria ter registrado a conversa...
– Ele teria se calado...
– Não quer mesmo continuar o interrogatório, chefe?
– Não apenas seria irregular e o advogado dele, mais tarde, poderia se
aproveitar desse fato, como eu não faria melhor que você. Talvez menos
bem.
– Não sei mais por qual ponta pegá-lo, e o pior é que, por mais culpado
que seja, tenho pena dele. Não é o tipo de criminoso com o qual geralmente
lidamos. Quando deixamos o hotel, há pouco, pareceu-me que um mundo
acabava de se fechar brutalmente às suas costas...
– Ele também sentiu isso...
– O senhor acha?
– Ele quis manter a todo custo uma dignidade e consideraria qualquer
piedade como uma esmola...
– Pergunto-me se ele acabará por ceder...
– Ele falará...
– Esta noite?
– Talvez...
– Em que ponto?
Maigret abriu a boca para dizer alguma coisa, tornou a fechá-la, voltou
a fumar seu cachimbo. Depois falou, de forma evasiva:
– Num dado momento, não imediatamente, você poderia fazer alusão a
Mesnil-le-Mont... Perguntando-lhe, por exemplo, se foi até lá...
Ele parecia, pessoalmente, dar apenas pouca importância a essa
pergunta.
– Acha que ele foi?
– Sou incapaz de responder.
– Por que razão ele teria ido até lá e que relação isso pode ter com os
acontecimentos de Vichy?
– Uma vaga intuição – escusou-se Maigret. – Quando somos arrastados
na correnteza, agarramo-nos a qualquer coisa...
O guarda de sentinela na rua também era jovem e, a seus olhos, os dois
homens que conversavam sob a marquise eram figuras de prestígio que
haviam atingido o topo da hierarquia.
– Bem que eu gostaria de tomar um copo de cerveja... – disse Lecoeur.
Havia um bar na esquina, mas era impensável encarar o dilúvio.
Quanto a Maigret, a palavra cerveja trouxe a seus lábios um sorriso
resignado. Ele havia prometido a Rian. Cumpria a promessa.
– Subimos?
Encontraram o guarda encostado à parede. Este rapidamente se pôs em
posição de sentido, enquanto o prisioneiro observava ora um, ora outro.
– Obrigado, meu rapaz. Pode ir.
Lecoeur retomou seu lugar e deslocou um pouco o bloco, o lápis, o
aparelho telefônico.
– Dei-lhe alguns minutos para refletir, sr. Pélardeau... Não quero
pressioná-lo com perguntas destinadas a confundi-lo... Por ora, tento formar
uma ideia... Não é fácil entrar sem cerimônia na vida de um homem sem
cometer erros...
Ele buscava o tom, como os músicos no fosso da orquestra antes de
levantar a cortina, e o homem o olhava com atenção, mas sem emoção
aparente.
– O senhor estava casado havia um certo tempo, suponho, quando
conheceu Hélène Lange...
– Eu havia passado dos quarenta... Não era mais um jovem e tinha
catorze anos de vida conjugal...
– Era um casamento por amor?
– É uma palavra à qual se dá um sentido diferente à medida que
avançam os anos...
– Não seria um casamento de conveniência ou de interesse?
– Não... Eu escolhi... E, nesse ponto, não lamento nada, a não ser o
sofrimento que vou causar à minha mulher... Somos bons amigos. Sempre
fomos, e encontrei junto dela a maior compreensão...
– Mesmo em relação a Hélène Lange?
– Não falei disso a ela...
– Por quê?
Ele os olhou sucessivamente.
– É um assunto que me é difícil abordar... Não sou um mulherengo...
Trabalhei muito na vida e, durante muito tempo, fui talvez bastante
ingênuo.
– Uma paixão?
– Não sei a palavra que convém... Descobri uma criatura muito
diferente das que eu conhecia... Hélène me atraía e me assustava... Sua
exaltação me desconcertava...
– Tornou-se amante dela?
– Depois de muito tempo...
– Ela o fez esperar?
– Não. Fui eu... Ela não havia tido casos amorosos antes de mim. Mas,
para o senhor, tudo isso é banal, não é mesmo?... Eu a amei... Enfim,
acreditei amá-la... Ela não pedia nada, contentava-se com um pequeno
emprego na vida, com aquelas visitas semanais que mencionou...
– Nunca pensou em se divorciar?
– Nunca! Aliás, eu continuava amando minha mulher, de uma outra
maneira, e não aceitaria abandoná-la...
Pobre homem! Certamente estava mais à vontade no seu escritório, nas
suas fábricas, ou presidindo um conselho administrativo.
– Foi Hélène que o abandonou?
– Sim...
Lecoeur lançou um breve olhar a Maigret.
– Diga-me, sr. Pélardeau, esteve em Mesnil-le-Mont?...
O rosto ficou rubro, ele baixou a cabeça, balbuciou:
– Não...
– Soube que ela estava lá?
– Não naquele momento...
– Já estavam separados quando ela foi até lá?
– Ela havia anunciado que não voltaria a me ver...
– Por quê?
De novo o atordoamento, a incompreensão. De novo aqueles olhares de
homem que não sabe mais onde está.
– Ela não queria que nosso filho...
Foi a vez de Lecoeur arregalar os olhos, mas Maigret não se mexeu,
enrolado sobre si mesmo, relaxado, como um gato satisfeito.
– De que filho está falando?
– Mas... o de Hélène... Do meu filho...
Contra sua vontade, ele pronunciou essa última palavra com orgulho.
– Está dizendo que ela teve um filho do senhor?
– Sim, Philippe...
Lecoeur se agitava.
– Ela conseguiu fazê-lo acreditar que...
Mas seu interlocutor, paciente, sacudiu a cabeça.
– Ela não me fez acreditar em nada... Tenho a prova.
– Que prova?
– A cópia da certidão de nascimento...
– Assinada pelo prefeito de Mesnil-le-Mont?
– Claro.
– Ela traz, como nome da mãe, o de Hélène Lange?
– Evidentemente...
– E o senhor não foi ver essa criança que consideraria como seu filho?
– Que considero como meu filho, que é meu filho... Não fui até lá
porque não sabia ainda onde Hélène daria à luz...
– Por que esse mistério?
– Porque ela não queria que seu filho se visse mais tarde numa
situação... como dizer?... numa situação equívoca...
– Não acha que esses escrúpulos estão fora de moda?
– Para alguns, talvez... Hélène também, nesse sentido, estava fora de
moda... Ela tinha um profundo sentimento de...
– Escute, sr. Pélardeau... Creio que começo a compreender, mas
precisamos deixar de lado, por ora, essas questões de sentimentos...
Desculpe-me por ser brutal... Os fatos existem, e nada se pode contra eles,
nem o senhor, nem eu...
– Não vejo aonde quer chegar...
Uma inquietação ainda vaga começava a se mostrar sob sua aparente
segurança.
– Conhecia Francine Lange?
– Não...
– Nunca a encontrou em Paris?
– Nunca. Nem em outro lugar...
– Ignorava que Hélène tinha uma irmã?
– Não. Ela me falou de uma irmã mais moça... As duas ficaram órfãs...
Hélène precisou abandonar seus estudos para trabalhar, a fim de que a
irmã...
Incapaz de conter-se, Lecoeur levantou-se, ficou de pé e, se a sala fosse
maior, teria se posto a percorrê-la furiosamente.
– Continue... Continue...
Ele passou a mão na testa.
– ...a fim de que a irmã pudesse receber a educação que merecia..
– Que merecia, é?... Não me queira mal, sr. Pélardeau... Vou fazê-lo
sofrer... Talvez eu devesse agir de outro modo, prepará-lo para a verdade...
– Que verdade?...
– A irmã dela, aos quinze anos, trabalhava num salão de beleza, em La
Rochelle, e era a amante de um motorista de táxi, antes de ser a de não sei
quantos homens...
– Mas eu li as cartas dela...
– De quem?
– De Francine... Era aluna interna de uma escola suíça muito
conhecida...
– O senhor foi até lá?
– Evidente que não...
– Guardou essas cartas?
– Apenas passei os olhos por elas...
– Acontece que nessa época Francine era manicure num salão da
Champs-Élysées... Começa a compreender?... Tudo o que viu era apenas
uma fachada...
O homem ainda relutava. Mas suas feições, que haviam permanecido
firmes, começavam a afrouxar, e de repente a boca fez um beicinho tão
lamentável que Maigret e Lecoeur desviaram a cabeça.
– Não é possível... – balbuciou.
– Infelizmente é a verdade...
– Mas por quê?
Era um último apelo ao destino. Ele queria que lhe dissessem que não
era verdade, que lhe confessassem que a polícia tentava confundi-lo e
inventava para isso histórias ignóbeis...
– Peço-lhe perdão, sr. Pélardeau... Até esta noite, até uns minutos atrás,
eu também ignorava até que ponto as duas irmãs eram cúmplices...
Ele hesitou em voltar a sentar-se. Ainda estava muito nervoso.
– Hélène nunca lhe falou de casamento?
– Não...
O não já era menos categórico.
– Mesmo quando lhe anunciou que estava grávida?
– Ela não queria interferir no meu casamento...
– Então ela lhe falou disso...
– Não no sentido que imagina, mas para me anunciar, justamente, que
ia desaparecer...
– Suicidar-se?
– Certamente não, mas já que o filho não podia ser legítimo...
Lecoeur suspirou, olhou mais uma vez para Maigret. Os dois se
compreendiam. Imaginavam as cenas que devem ter se passado entre
Hélène e seu amante.
– O senhor não acredita em mim. Eu mesmo...
– Procure olhar a verdade de frente... Isso só pode lhe fazer bem...
– A mim, no ponto em que estou?...
E apontou as paredes ao redor, como teria apontado os muros de uma
prisão.
– Deixe-me terminar, por mais ridículo que isso lhe pareça... Ela queria
dedicar o resto da vida a educar nosso filho, assim como educara a irmã...
– Sem que o senhor jamais o visse?
– Como lhe seria explicada minha presença?
– Poderia se apresentar como um tio, um amigo...
– Hélène odiava a mentira...
Mas já havia uma ponta de ironia na voz, o que era um bom sinal.
– Então ela não queria que seu filho soubesse um dia que o senhor era
o pai?
– Mais tarde, na maioridade dele, lhe teria falado...
E acrescentou com a voz sempre rouca:
– Agora ele tem quinze anos...
Lecoeur e Maigret guardaram um silêncio penoso.
– Quando a reencontrei em Vichy, decidi...
– Continue...
– ...vê-lo, saber onde estava...
– Soube?
Ele sacudiu a cabeça e tinha enfim lágrimas verdadeiras nos olhos.
– Não...
– Onde Hélène lhe disse que daria à luz?
– Numa aldeia que ela conhecia... Não disse qual... Só dois meses mais
tarde é que me enviou a cópia da certidão de nascimento... A carta vinha de
Marselha...
– Quanto dinheiro lhe deu quando ela partiu?
– Isso tem importância?
– Muita... O senhor verá.
– Vinte mil francos... Depois enviei-lhe trinta mil em Marselha... A
seguir me comprometi a pagar-lhe uma pensão, a fim de que nosso filho
recebesse a melhor educação possível...
– Cinco mil francos por mês?
– Sim...
– Sob que pretexto ela o fazia enviar esse dinheiro a cidades diferentes?
– Não estava certa da minha força de caráter...
– Foi o termo que ela empregou?
– Sim... Acabei por aceitar não ver meu filho antes dos seus vinte e um
anos...
Lecoeur parecia perguntar a Maigret:
– Que devo fazer?
Maigret baixou duas ou três vezes as pálpebras e apertou ainda mais o
tubo do cachimbo entre os dentes.
CAPÍTULO VIII

LECOEUR VOLTOU A SENTAR-SE, devagar. Virou-se para o homem de


feições confusas que ele acabava de submeter a tantas emoções e
pronunciou, como a contragosto:
– Vou fazê-lo sofrer ainda mais, sr. Pélardeau...
Um sorriso amargo pareceu responder: “Acha que é possível me fazer
sofrer mais?”.
– Tenho muita simpatia e mesmo respeito pela sua pessoa. Não faço
nenhuma comédia a fim de obter confissões cuja necessidade, aliás, não
temos... O que devo lhe dizer, como o que lhe disse até este momento, é a
estrita verdade, e lamento que seja tão crua...
Deu um tempo, para que o interlocutor pudesse se preparar.
– O senhor nunca teve um filho de Hélène Lange...
Ele esperava um protesto veemente ou mesmo uma cena violenta. No
entanto viu-se diante de um ser abatido, sem reação, que não pronunciou
uma palavra.
– Nunca suspeitou isso?
Pélardeau levantou a cabeça, sacudiu-a, para explicar que não podia
falar em seguida. Mal teve o tempo de tirar o lenço do bolso antes de ser
tomado por uma crise de asma mais violenta que a anterior.
No silêncio, Maigret percebeu que, também na rua, havia agora
silêncio, as trovoadas haviam cessado, a chuva não ricocheteava mais no
calçamento das ruas.
– Peço que me perdoe...
– Chegou a suspeitar a verdade, não é mesmo?
– Uma vez... uma só...
– Quando?
– Aqui... Na noite em que...
– Quantos dias antes a havia reencontrado?
– Dois dias...
– O senhor a seguiu?
– De longe... Para saber onde morava... Eu esperava vê-la com meu
filho, ou vê-lo sair da casa...
– Na segunda-feira à noite o senhor se mostrou no momento em que ela
chegava em casa?
– Não... Vi saírem os locatários... Eu sabia que ela estava no parque,
escutando música... Ela sempre gostou de música... Não tive nenhuma
dificuldade de abrir a porta... A chave do meu quarto foi suficiente...
– E vasculhou as gavetas...
– Primeiro vi que só havia um leito...
– As fotos?
– Dela... Somente dela... Eu teria dado tudo para descobrir uma foto do
menino...
– E para encontrar cartas?
– Sim... Sentia-me diante de um vazio inexplicável... Mesmo se
Philippe fosse um aluno interno, ele devia...
– Ela o surpreendeu quando chegou em casa?
– Sim... Supliquei que me dissesse onde estava o nosso filho... Lembro
de ter-lhe perguntado se ele havia morrido, se sofrera um acidente...
– Ela se recusou a responder?
– Estava mais calma do que eu... Lembrou-me nosso pacto...
– A promessa de apresentar-lhe o filho quando ele tivesse vinte e um
anos?
– Sim... Eu havia prometido não tentar entrar em contato com ele...
– Ela lhe dava notícias do menino?
– Com muitos detalhes... Seus primeiros dentes... Suas doenças
infantis... A babá que ela contratou numa época em que se sentia fraca...
Depois a escola... Contava-me a vida dele quase dia a dia...
– Sem mencionar o lugar?...
– Sim... Nos últimos tempos, dizia que ele queria ser médico...
E olhou o comissário sem falso pudor.
– Ele nunca existiu?
– Existiu... mas não era seu filho...
– Havia um outro homem?
Lecoeur fez que não com a cabeça.
– Foi Francine Lange que deu à luz um garoto, em Mesnil-le-Mont...
Até o senhor me afirmar, eu ignorava, confesso, que o menino tivesse sido
registrado como filho de Hélène Lange... Certamente a ideia ocorreu às
duas irmãs quando Francine engravidou. Como conheço esta última, seu
primeiro pensamento deve ter sido suprimi-lo... Hélène viu mais longe...
– Pensei nisso, numa fração de segundo... Como lhe disse, naquela
noite, após ter suplicado, a ameacei... Durante quinze anos vivi pensando
nesse filho que eu conheceria um dia... Eu e minha esposa não temos
filhos... Quando me senti pai... Mas de que adianta?...
– O senhor a pegou pelo pescoço?
– Para amedrontá-la, para que falasse... Gritei-lhe que me dissesse a
verdade... Não pensava na irmã, mas temia que o menino tivesse morrido,
ou que fosse deficiente...
Ele deixou pender as duas mãos como se no seu corpo volumoso não
restasse nenhuma parcela de energia...
– Apertei com força demais, não me dei conta... Se o rosto dela tivesse
exprimido uma emoção qualquer!... Mas não!... Não demonstrava sequer
medo...
– Quando soube pelo jornal que a irmã estava em Vichy, voltou a ter
esperança?
– Se o menino estivesse vivo, se apenas Hélène soubesse onde ele
estava, não haveria mais ninguém para se ocupar dele... Eu esperava ser
preso de um dia para o outro... Vocês devem ter obtido minhas impressões
digitais...
– Sem compará-las com as suas... Mesmo assim acabaríamos por
chegar até o senhor...
– Eu precisava saber, tomar providências...
– Então telefonou a diferentes hotéis, seguindo a ordem alfabética...
– Como sabe?
Era infantil, mas Lecoeur tinha necessidade de uma satisfação.
– Ligou de diferentes cabines públicas...
– Então me identificaram?
– Quase.
– Mas Philippe?...
– O filho de Francine Lange foi deixado com uma ama de leite, pouco
depois de nascer, numa família Berteaux, pequenos proprietários rurais de
Saint-André-du-Lavion, nos Vosges... Com o seu dinheiro, as duas irmãs
compraram um salão de beleza em La Rochelle... Nenhuma das duas se
ocupou com a criança, que continuou a viver no campo até que, com dois
anos e meio de idade, caiu num lago...
– Morreu?
– Sim... Para o senhor ele devia permanecer vivo, e Hélène foi
inventando aos poucos sua história, suas primeiras aulas, suas brincadeiras
e, nos últimos tempos, seu interesse pela medicina...
– É monstruoso...
– Sim...
– Que uma mulher pudesse...
Ele sacudiu a cabeça.
– Não ponho em dúvida suas palavras. Mas algo dentro de mim se
revolta contra essa verdade...
– Não é a primeira vez que um caso assim se verifica nos registros
criminais. Eu poderia citar-lhe precedentes...
– Não – ele falou.
Estava recolhido em si mesmo, sem energia, sem ter mais onde se
agarrar.
– O senhor teve razão, há pouco, ao dizer que não sentia necessidade
de um advogado. Será suficiente contar sua história diante dos jurados...
O homem permanecia imóvel, com a cabeça entre as mãos.
– Sua esposa deve estar preocupada. Em minha opinião, a verdade lhe
fará menos mal do que aquilo que puder imaginar...
Ele parecia não ter pensado mais nela. Por fim, mostrou seu rosto
congestionado.
– Que direi a ela?...
– Infelizmente não lhe poderá dizer nada agora... Não tenho o direito
de deixá-lo em liberdade, mesmo por um tempo bastante curto. Devo levá-
lo a Clermont-Ferrand... A menos que o juiz de instrução se oponha, o que
me surpreenderia, sua esposa será autorizada a visitá-lo...
Esse pensamento perturbava Pélardeau que, com um ar desesperado,
acabou por olhar para Maigret.
– Será que o senhor não poderia se encarregar disso?
Maigret interrogou o colega com um olhar e Lecoeur levantou os
ombros como para dizer que não era da sua alçada.
– Farei o melhor possível...
– Deverá ter cuidado, pois, de uns anos para cá, o coração dela não
anda bem. Não somos mais jovens, nenhum dos dois...
Maigret também não. Sentia-se velho nessa noite. Tinha pressa de
voltar à sua mulher, à rotina dos passeios em Vichy e às cadeiras amarelas
do parque.
Eles desceram juntos.
– Levo-o até o hotel, chefe?
– Prefiro caminhar...
As pedras do calçamento brilhavam. O carro preto se afastou levando
Lecoeur e Pélardeau para Clermont-Ferrand.
Maigret acendeu o cachimbo e enfiou automaticamente as mãos nos
bolsos. Não estava frio, mas a temperatura, por causa da tempestade,
baixara vários graus.
A água pingava dos dois arbustos que flanqueavam a porta do Hôtel de
la Bérézina.
– É você, enfim! – suspirou a sra. Maigret, saindo da cama para acolhê-
lo. – Sonhei que estava no Quai des Orfèvres conduzindo um interrogatório
interminável, e você não parava de mandar subir copos de cerveja.
Depois de tê-lo observado por um momento, ela murmurou:
– Acabou?
– Sim...
– Quem é ele?
– Um homem muito elegante, que dirige milhares de empregados e
operários, mas que permaneceu muito ingênuo...
– Espero que durma até mais tarde amanhã...
– Infelizmente não... Preciso ir explicar à mulher dele...
– Ela não sabe?
– Não.
– Está aqui?
– No Hôtel des Ambassadeurs.
– E ele?
– Dentro de meia hora, entrará na prisão de Clermont-Ferrand.
Enquanto ele se despia, ela continuou a observá-lo, achando-o um tanto
esquisito.
– Quantos anos acha que ele...
E Maigret, enchendo o último cachimbo do dia, no qual dava apenas
algumas tragadas antes de ir se deitar:
– Espero que seja absolvido...

Épalinges (Vaud), 11 de setembro de 1967.


SOBRE O AUTOR

GEORGES JOSEPH CHRISTIAN SIMENON nasceu na cidade belga de


Liège, em 12 de fevereiro de 1903, filho de Desiré Simenon, contador de
uma companhia de seguros, e Henriette. A família era católica, e o
comparecimento a rituais da Igreja foi uma constante na infância do autor.
Christian, filho mais novo do casal, era o preferido de Henriette, enquanto
Georges venerava o pai, um homem paciente que não desperdiçava
palavras. Era adolescente quando Liège foi ocupada pelos alemães durante
a Primeira Guerra Mundial.
Ainda na juventude do autor, seu pai adoeceu gravemente do coração.
Georges abandonou a escola e começou a trabalhar. Passou por vários
empregos, até que, em janeiro de 1919, foi admitido como office boy no
Gazette de Liège, sendo posteriormente promovido a repórter. Escreveu sob
vários pseudônimos, até chegar ao nome de Georges Sim, que usaria por
doze anos. Na atividade jornalística, adquiriu habilidades que muito lhe
valeriam na carreira de romancista: escrever rápido e respeitar prazos.
Paralelamente ao trabalho, nesse período Simenon aplicou-se no estudo de
medicina forense. Também nessa época começou suas primeiras
experimentações literárias e conheceu Régine Renchon, a quem apelidou de
Tigy, sua futura mulher.
Seu pai morreu em 1921, e, após cumprir o serviço militar, Georges
mudou-se para Paris, em 1922, onde se sustentou graças ao salário de
secretário particular. Nos anos seguintes, ele se estabeleceria como autor de
literatura pulp, além de frequentar artistas da cena francesa, como o cineasta
Jean Renoir, de quem se tornou amigo, e a cantora americana Josephine
Baker, de quem foi amante. Já nessa época estava em gestação aquele que
se tornaria um dos mais famosos personagens da literatura ocidental, o
inspetor Jules Maigret.
Entre 1929 e 1930, Simenon escreveu sob pseudônimo vários textos
que prenunciavam o surgimento da série em que o comissário da Polícia
Judiciária francesa desvenda uma série de crimes. Os anos de 1930 e 1931
foram dedicados à redação dos romances que comporiam a série Maigret e
que seriam publicados já com o nome do autor pela editora francesa Fayard
a partir de 1931. Pietr-le-Letton (O assassino sem rosto) foi o primeiro
desses romances a ser escrito, mas Monsieur Gallet, décédé foi o primeiro a
ser publicado, obtendo sucesso imediato, como os demais livros que se
seguiriam. Todo o universo e a ética de Maigret já estavam estabelecidos
nos primeiros livros da série. As histórias protagonizadas pelo inspetor
Maigret – parisiense, fumante de cachimbo, usando sempre um sobretudo
de gola de veludo e chapéu – compõem uma categoria sui generis da
literatura policial: o êxito junto ao público deve-se menos ao enredo e à
descoberta do mistério do que ao misto de ceticismo e esperança com o qual
o taciturno Maigret vê a sociedade – visão psicológica que é a principal
arma desse humanista no combate contra o crime. Com o passar dos anos, a
composição dos personagens secundários se tornaria mais complexa e o
tom dos romances, mais filosófico.
Em 1933, já havia escrito seis romances em um estilo diferente do que
praticara até então, que ele chamou de roman dur : romances que não
necessariamente giram em torno de um crime e que se apoiam, sobretudo,
na riqueza psicológica dos personagens. A essa altura a família já estava
vivendo na propriedade em La Rochelle, na costa oeste da França.
Em 1945, Simenon – já com problemas de coração –, Tigy e o filho do
casal, Marc, deixaram a Europa em direção à América. Lá, ele conheceu
Denyse Ouimet, que se tornaria sua segunda mulher. Em 1953, nasceu
Marie-Jo, a única filha do autor, que acabaria se suicidando em 1978. Em
1955, a família retornou à Europa, estabelecendo-se na Suíça.
A década que se seguiu foi turbulenta: Denyse sofreu de problemas
psiquiátricos que a levaram à internação, em 1962, e, em 1964, abandonou
a recém-construída residência familiar, na cidade suíça de Épalinges. Em
1970, morreu a mãe de Simenon, com quem ele sempre tivera relações
problemáticas, e nesse mesmo ano ele escreveu seu último roman dur, Les
Innocents, além de Maigret e o sumiço do sr. Charles, o último romance
protagonizado por Jules Maigret. A partir de 1973, Simenon ditou e
escreveu apenas livros de memórias que, como seus textos autobiográficos,
são vistos com reservas por muitos estudiosos de sua obra, no que diz
respeito à veracidade dos fatos. Nos últimos anos, o escritor viveu recluso,
fazendo aparições públicas apenas ocasionalmente, das quais a mais famosa
foi a entrevista dada ao cineasta e amigo Federico Fellini, na qual afirmou
ter mantido relações com dez mil mulheres. Morreu aos 86 anos, no dia 4
de setembro de 1989, em Lausanne.
Simenon, o mais emblemático caso de proficuidade literária do século
XX, é autor de mais de duzentos romances (75 dos quais protagonizados
pelo inspetor Maigret), 155 contos (trinta com Maigret) e 25 textos
autobiográficos. Esses números são apenas aproximados, já que vários
escritos foram publicados apenas em periódicos, sob até 29 pseudônimos.
Dezenas de livros seus foram adaptados para a tevê, cinema e quadrinhos, e
a sua venda mundial é estimada em 1,5 bilhão de exemplares, em mais de
cinquenta línguas. Atestando a sua permanência literária e a excelência de
sua ficção, foi recentemente eleito o segundo melhor autor de livros de
mistério pelo jornal The Times, somente atrás de Patricia Highsmith.
Texto de acordo com a nova ortografia.

Título original: Maigret à Vichy


Tradução: Paulo Neves
Capa: Ivan Pinheiro Machado. Foto: Album / Yvan Travert /Akg-
Images/Latinstock
Preparação: Lia Cremonese
Revisão: Ana Maria Montardo

Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj.

S599m

Simenon, Georges, 1903-1989


Maigret em Vichy / Georges Simenon ; tradução de Paulo Neves. – Porto
Alegre, RS: L&PM, 2011.
(Coleção L&PM POCKET; v. 953)
Tradução de: Maigret à Vichy

ISBN 978.85.254.2380-1

1. Romance francês. I. Neves, Paulo. II. Título. III. Série.


11-1042. CDD: 843
CDU: 821.133.1-3

Maigret à Vichy © 1968 Georges Simenon Limited, a Chorion Company.


All rights reserved.
Maigret em Vichy © 2011 Georges Simenon Limited, a Chorion Company.
All rights reserved.

Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores


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