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Capítulo I
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
LIVRO DOIS
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo I
Selden parou surpreso. Na correria de fim de tarde na Grand Central
Station seus olhos tiveram um refresco diante da visão de Miss Lily Bart.
Era uma segunda-feira no início de setembro e ele estava retornando
para seu trabalho após uma breve estada no interior; mas o que Miss Bart
estava fazendo na cidade naquela época do ano? Se parecesse que estava
pegando um trem, ele poderia deduzir que a apanhara na transição entre
uma casa de campo e outra das muitas que disputavam a sua presença após
o final da temporada de Newport; mas seu olhar perdido o surpreendeu.
Estava a parte da multidão que passava por ela a caminho da plataforma ou
da rua e tinha um quê de indecisão que poderia, como o supôs, muito bem
ser a máscara de um firme propósito. Passou pela sua cabeça que ela
poderia estar esperando alguém, mas ele não sabia ao certo por que lhe
ocorrera tal ideia. Havia algo diferente em Lily Bart, pois ele nunca a viu
parada com ares de desinteresse: era característica sua sempre despertar
especulações, que até mesmo seus atos mais corriqueiros pareciam
carregados de segundas intenções.
A curiosidade o fez desviar da linha reta até a porta e passar por ela.
Ele sabia que caso não quisesse ser vista ela daria um jeito de fugir; e foi
divertido testar as habilidades dela.
– Mr. Selde, que sorte!
Ela avançou sorrindo, praticamente ansiosa, no seu propósito de
interceptá-lo. Uma ou duas pessoas que passavam por eles deram uma
olhada, pois Miss Bart era do tipo capaz de chamar a atenção até mesmo de
um passageiro que corria apressado para pegar o último trem para o
subúrbio.
Selden nunca a vira tão radiante. Seu rosto vívido, suavizado pelos
tons opacos da multidão, destacava-se mais do que se estivesse em um salão
de baile, e sob o chapéu e véu escuros ela recuperara a delicadeza da
adolescência, o tom da pureza, que estava começando se dissipar após onze
anos dormindo tarde e dançando incansavelmente. Seria mesmo onze anos,
Selden se perguntou, e será mesmo que ela tinha completado os vinte e
nove que suas rivais lhe davam?
– Que sorte! – repetiu ela. – Quanta gentileza sua vir me salvar!
Ele reagiu com entusiasmo, pois esta era a sua missão de vida e
perguntou que tipo de ajuda poderia lhe oferecer.
– Oh, qualquer tipo, até mesmo sentar em um banco e conversar
comigo. Se alguém é capaz de perder uma dança, por que não perder um
trem? Aqui não está mais quente do que no jardim de inverno de Mrs. Van
Osburgh e algumas mulheres até que não são feias? – ela se interrompeu,
rindo, para explicar que estava de passagem pela cidade, vindo de Tuxedo, e
que estava indo para a casa de Gus Trenor, em Bellomont, mas tinha
perdido o trem das quinze e quinze para Rhinebeck. – E não tem outro até
as dezessete e trinta – ela deu uma olhadinha no relógio de pulso entre as
rendas da manga. – Duas horinhas de espera. E não sei o que fazer. Minha
criada veio hoje cedo para fazer umas comprinhas para mim. Era para eu ter
pegado o trem das treze horas para Bellomont e a casa da minha tia está
fechada, e não conheço ninguém na cidade – deu outra olhada desanimada
ao redor. – Está mesmo muito mais quente do que no jardim de inverno de
Mrs. Van Osburgh. Se pudesse tirar um tempinho para levar-me para um
algum lugar mais fresco.
Ele declarou que estava à disposição dela, pois a aventura lhe pareceu
divertida. Como espectador, ele sempre gostara de Lily Bart; e seu curso
corria tão distante da orbita dela que ele ficou surpreso por ter sido atraído
momentaneamente para a inesperada intimidade implícita no convite.
– O que acha de irmos ao Sherry’s para uma xícara de chá?
Ela sorriu de acordo e em seguida franziu levemente o cenho.
– A cidade fica tão cheia às segundas que é certeza encontrarmos
muitos chatos. Mas tudo bem, sou mais velha que as montanhas, e isto não
vai fazer diferença. Sei que eu tenho idade suficiente, já você não – ela
argumentou brincalhona. – Estou morrendo de vontade de tomar um chá,
mas será que não existe um lugar mais sossegado?
Ele retribuiu o sorriso, que permaneceu vívido em seu rosto. As
reservas dela o interessavam quase tanto quanto as suas imprudências; ele
estava certo que ambos faziam parte do mesmo plano cuidadosamente
elaborado. Ao julgar Miss Bart, ele sempre costumava usar o “argumento
da criação divina”.
– As opções em Nova York são um tanto escassas – disse ele –, mas
vou chamar uma carruagem primeiro e depois pensamos em algo.
Ele a conduziu em meio à multidão de turistas retornando de férias,
passando por meninas pálidas em chapéus exagerados e mulheres de seios
exprimidos lutando com embrulhos e leques de folha de palmeira. Seria
mesmo possível que ela pertencesse a mesma raça? O desânimo, a crueza
desta amostra do sexo feminino mediano fez com que ele percebesse o quão
especial ela era.
Uma chuvinha rápida refrescou o ar e as nuvens ainda pairavam sobre
as ruas molhadas.
– Que delícia! Vamos caminhar um pouco – disse ela enquanto eles
saiam da estação.
Eles viraram na Avenida Madison e seguiram rumo ao norte. À
medida que ela se movia ao seu lado, a passos longos e leves, Selden tinha
consciência do prazer da proximidade: o formato da orelhinha, a ondulação
dos cachos – será que seus cabelos sempre brilhavam assim naturalmente? –
e os cílios pretos volumosos e retos. Tudo nela era ao mesmo tempo
vigoroso e requintado, ao mesmo tempo forte e fino. Ele tinha a estranha
sensação de que a sua produção tivera um alto custo, que uma porção de
pessoas feias e chatas muito provavelmente, de algum modo misterioso,
tinha sido sacrificada para produzi-la. Ele tinha consciência de que as
qualidades que a distinguiam da grande maioria do seu gênero eram
primordialmente externas: como se uma fina camada de verniz da beleza e
da perfeição tivesse sido aplicada sobre um barro qualquer. Mas a analogia
não foi satisfatória, pois uma textura tão grosseira não teria um acabamento
tão fino. Contudo, será que não seria possível que o material fosse fino e
que as circunstâncias o tivessem moldado num formato mais fútil?
Nesse ponto de suas conjecturas o sol apareceu e a sobrinha erguida
por ela interrompeu seu divertimento. Um ou dois minutos depois ela parou
com um suspiro.
– Oh, minha nossa, estou morrendo de calor e sede. Como Nova York
é horrível! – ela olhou desesperada de um lado para o outro na rua sem
graça.
– Outras cidades vestem as suas melhores roupas no verão, mas Nova
York parece vestir camisa sem manga – seus olhos percorreram umas das
ruas adjacentes. – Alguém teve a humanidade de plantar algumas árvores,
lá. Vamos para a sombra?
– Fico feliz que a minha rua esteja a seu gosto – disse Selden
enquanto eles dobravam a esquina.
– A sua rua? Você mora aqui?
Ela olhou interessada para as fachadas novas de tijolos e pedra
calcária, fantasticamente variadas em obediência ao anseio americano por
novidade, mas frescas e acolhedoras com suas floreiras e toldos.
– Ah, sim, claro: O BENEDTICK. Belo prédio! Acho que nunca o vi
antes. Ela deu uma olhada para o prédio com pórtico de mármore e fachada
pseudo-georgiana. – Quais sãos as suas janelas? Aquelas com toldos?
– As do andar de cima.
– E aquela sacada simpática é sua? Como deve ser fresquinho lá em
cima!
Ele parou por um momento
– Suba e veja – ele sugeriu. – Posso lhe oferecer uma xícara de chá
rapidinho e você não vai encontrar ninguém chato.
Ela enrubesceu ainda mais, pois ainda dominava a arte de ruborizar no
momento certo e aceitou ao convite com a mesma naturalidade com que foi
feito.
– Por que não? É muito tentador. Vou correr o risco – declarou.
– Oh, não sou perigoso – disse ele no mesmo tom. Na verdade, nunca
gostara tanto dela quanto naquele momento. Ele sabia que ela aceitara sem
pensar, pois tinha consciência de que nunca fora um fator nos cálculos dela,
e havia uma surpresa, quase um frescor, no modo espontâneo como ela
aceitara o convite.
À soleira da porta ele parou por um segundo, encaixando a chave no
trinco.
– Não tem ninguém aqui, mas tenho uma criada que costuma vir na
parte da manhã e é possível que ela tenha deixado as coisas prontas para o
chá e providenciado um bolo.
Ele a conduziu por um corredorzinho estreito cheio de fotos antigas
penduradas nas paredes. Ela viu algumas cartas e notas empilhadas sobre
uma mesa ao lado de luvas e bengalas; em seguida se vislumbrou uma
pequena biblioteca, escura, mas convidativa, com paredes cobertas de
livros, um tapete turco desbotado no ponto certo, uma escrivaninha
bagunçada, e, conforme ele tinha prometido, uma bandeja com chá em cima
de uma mesinha perto da janela. Uma brisa suave soprou balançando as
cortinas de musselina e trazendo junto um perfume fresco de resedá e
petúnias da floreira da sacada.
Lily afundou com um suspiro em uma das poltronas de couro
surradas.
– Que delícia ter um lugar como este só para a gente! Como é horrível
ser mulher – recostou-se num luxo de descontentamento.
Selden revirava um armário à procura do bolo.
– Até mesmo as mulheres – disse ele – têm usufruído dos confortos de
um apartamento.
– Oh, preceptoras ou viúvas. Mas não moças… não moças pobres,
miseráveis e solteiras!
– Conheço uma que mora em um apartamento.
Ela se endireitou surpresa.
– Você conhece?
– Conheço – ele assegurou, saindo do armário com o bolo.
– Oh, já sei! Você está falando da Gerty Farish – ela soltou um
sorrisinho maldoso. – Mas me referia às CASADOURAS. Além do mais,
ela mora num lugarzinho horrível, não tem criada e come mal. A cozinheira
dela lava a roupa e a comida tem gosto de sabão. Eu odiaria isso, sabe.
– Você não deveria jantar com ela nos dias de lavar roupa – disse
Selden, cortando o bolo.
Os dois riram e ele se ajoelhou ao lado da mesa para ascender o
fogareiro sob a chaleira e ela retirou uma medida de chá de um potinho
verde esmaltado. Enquanto observava a mão dela, delicada como uma
antiga estatueta de marfim, com suas unhas compridas e rosadas e a pulseira
de safiras pendendo no pulso, ele se deu conta da ironia de ter sugerido uma
vida como a que a sua prima Gertrude Farish tinha escolhido. Ela era tão
vítima da civilização que a criara, que os elos da sua pulseira pareciam
algemas que a prendiam ao seu destino.
Ela pareceu ler seus pensamentos.
– Que horrível eu ter falado aquilo da Gerty – disse com uma
compaixão encantadora. – Esqueci que ela era sua prima. Mas somos tão
diferentes, sabe: ela gosta de ser boa e eu de ser feliz. Além do mais, ela é
livre e eu não. Se eu fosse, acho que seria feliz até mesmo no apartamento
dela. Deve ser uma delícia poder arrumar os móveis do jeito que a gente
quer, e não ter de dar a mínima para os homens. Se eu pudesse redecorar a
sala de estar da minha tia, ao menos, tenho certeza de que seria uma mulher
melhor.
– Está tão ruim assim? – perguntou ele, solidário.
Ela sorriu por cima do bule de chá que segurava para ser enchido.
– Isto mostra o quão pouco você tem ido me visitar. Por que não
aparece mais vezes?
– Quando vou, não fico olhando para os móveis de Mrs. Peniston.
– Bobagem – disse ela. – Você nunca aparece, apesar de termos nos
dado tão bem quando nos conhecemos.
– Talvez seja por isso – respondeu ele de bate e pronto. – Acho que
não tenho creme… você gostaria de uma fatia de limão em vez de creme?
– Prefiro – esperou enquanto ele cortava o limão e colocava a
rodelinha na xícara. – Mas isso não é motivo – insistiu.
– Motivo para o quê?
– Para você nunca ir – ela inclinou-se para frente com uma pontinha
de surpresa nos olhos encantadores. – Eu gostaria de entender você. Claro
que sei que têm homens que não gostam de mim; dá para perceber só de
olhar. E tem alguns que têm medo de mim: eles acham que quero casar-me
com eles – soltou um sorriso sincero. – Mas não acho que você não goste de
mim e não é possível que pense que quero me casar com você.
– Não, não se preocupe com isso – ele concordou.
– Então…?
Ele aproximou-se da lareira, levando junto a xícara de chá, e parou
recostado à cornija com os olhos voltados para ela com ares de quem estava
se divertindo. A provocação nos olhos dela o divertiu ainda mais, nunca
imaginara que ela pudesse gastar sua munição em um joguinho tão
insignificante; mas, talvez, só estivesse trinando; ou, talvez, uma moça
como ela não tivesse outro tipo de assunto senão o pessoal. De qualquer
maneira, ela estava maravilhosa, e ele a convidara para um chá e agora
precisava cumprir seu papel.
– Então… – disse ele subitamente – talvez seja esse o motivo.
– Qual?
– O fato de que você não querer se casar comigo. Talvez eu não veja
isso como um incentivo para ir visitá-la – ele sentiu um arrepiozinho na
espinha ao entrar naquele campo, mas a risada dela o tranquilizou.
– Meu querido, Mr. Selden, isto não lhe cai bem. Seria burrice sua se
apaixonar por mim e não é do seu feitio fazer papel de bobo – ela recostou-
se de volta tomando um gole de chá de um jeito tão encantadoramente
imparcial que, se eles estivessem na sala de estar da tia dela, ele teria
tentado contradizer a dedução.
– Não percebe – continuou ela – que já existem muitos homens para
paparicar-me o que eu quero é um amigo que não tenha medo de falar
coisas desagradáveis quando preciso ouvi-las? Às vezes imagino que você
poderia ser esse amigo… não sei por que, só sei que não é pedante, nem
puritano e que eu não teria de fingir nada na sua frente e nem ficar alerta –
sua voz assumira um tom sério e ela ficou olhando para ele como se fosse
uma criança em apuros.
– Você não imagina o quanto preciso de um amigo – disse. – Minha
tia tem vários livros de etiqueta, mas todos se aplicam à conduta do início
dos anos 1850. Sempre senti que para viver de acordo com eles seria
preciso usar vestidos de musselina bege e mangas longas. Quanto às outras
mulheres, as minhas melhores amigas, bem, elas usam e abusam de mim;
mas não dão a mínima para o que acontece comigo. Já estou avulsa há
muito tempo e as pessoas estão se cansando de mim. Elas estão começando
a falar que eu preciso me casar.
Uma pausa se seguiu durante a qual Selden pensou em uma ou duas
respostas para alegrar um pouco o clima, mas acabou rejeitando a favor da
simples pergunta:
– E por que não se casa?
Ela ruborizou e riu.
– Ah, vejo que é um amigo de verdade e um com as qualidades
desagradáveis que eu tanto procurava.
– Não tive intenção de ser desagradável – disse ele, retomando o tom
amistoso. – Casamento não é a sua vocação? Não é para isso que todas
vocês são criadas?
Ela suspirou.
– Acho que sim. O que há mais para fazer?
– Exatamente. Então por que não cria coragem e faz logo isso?
Ela encolheu os ombros.
– Você fala como se eu devesse me casar com o primeiro homem que
aparecer.
– Eu não quis dizer que está tão encalhada assim. Mas deve ter
alguém com os requisitos necessários.
Ela meneou a cabeça como se estivesse cansada.
– Desperdicei uma ou duas boas oportunidades quando fui
apresentada à sociedade… acho que todas as garotas fazem isso; e você
sabe que sou muito pobre, e que gasto muito. Preciso de um bom dinheiro
para manter-me.
Selden tinha se virado para pegar uma cigarreira de cima da cornija.
– O que aconteceu com Dillworth? – perguntou.
– Oh, a mãe dele assustou. Ela ficou com medo que eu ficasse com
todas as joias da família. E ela queria que eu prometesse que não iria
redecorar a sala de estar.
– O único motivo pelo qual você se casaria!
– Exatamente. Por isso ela o mandou para Índia.
– Que azar! Mas você vai conseguiu arrumar alguém melhor do que
Dillworth.
Ele ofereceu a caixinha e ela pegou três dos quatro cigarros,
colocando um nos lábios e guardando os outros em uma caixinha dourada
presa ao seu longo colar de pérolas.
– Será que ainda tenho tempo? Só uma tragada, então – ela inclinou-
se para frente, encostando a ponta do cigarro ao dele. Quanto o fez, ele
notou, com um deleite impessoal, o quanto os cílios dela pareciam ainda
mais pretos presos às pálpebras brancas e lisas, e como as olheiras
arroxeadas se misturavam ao tom pálido das faces.
Ela saiu andando pela sala, examinando as estantes de livros entre
uma tragada e outra. Alguns dos volumes tinham um tom maduro do
manuseio e de couro marroquino antigo, e seus olhos passearem por eles
displicentes, não com a apreciação de um especialista, mas com o prazer de
ver os tons e as texturas que mais lhe agradavam. Subitamente, sua
expressão mudou do puro prazer para conjectura ativa e ela se voltou para
Selden com uma pergunta:
– Você coleciona, não é mesmo… sabe tudo sobre primeiras edições e
coisas assim?
– Tanto quanto um homem que não tem muito dinheiro para gastar.
De vez em quando encontro alguma coisa em uma montanha de lixo; e
estou sempre atrás de boas liquidações.
Novamente voltou-se para as estantes, mas seus olhos agora
passeavam displicentes e ele notou que ela estava preocupada com alguma
coisa nova.
– E antiguidades americanas… você coleciona antiguidades
americanas?
Selden encarou-a e riu.
– Não, isso está acima das minhas posses. Não sou um colecionador
de verdade, sabe; apenas gosto de ter boas edições dos meus livros
preferidos.
Ela soltou um sorrisinho.
– E antiguidades americanas são muito maçantes, suponho?
– Eu diria que sim, exceto para os historiadores. Mas os
colecionadores de verdade dão valor a um objeto pela sua raridade. Não
acho que os compradores de antiguidades americanas passem a noite
lendo… o velho Jefferson Gryce certamente não o fazia.
Ela ouvia atenta.
– E mesmo assim elas alcançam preços fabulosos, não é mesmo? É
esquisito querer pagar uma fortuna por um livro velho e caindo aos pedaços
que ninguém jamais lerá! E suponho que a maioria dos colecionadores de
antiguidades americanas nem seja historiadores.
– Não. São poucos os historiadores que podem se dar ao luxo. Eles só
têm acesso aos exemplares disponíveis nas bibliotecas públicas ou de
coleções particulares. Tenho a impressão de que o simples fato de ser raro é
o que atrai a maioria dos colecionadores.
Ele se encontrava sentado agora na poltrona perto de onde ela estava
em pé, e ela seguiu fazendo perguntas, indagando quais eram os volumes
mais raros, se a coleção de Jefferson Gryce era mesmo considerada a
melhor do mundo, e qual era o preço mais alto já pago por um volume.
Era tão prazeroso ficar sentado ali observando, enquanto ela pegava
um livro e depois outro das prateleiras, folheando as páginas entres os
dedos, com o perfil se destacando das antigas encadernações ao fundo, que
ele seguiu falando sem parar para pensar o porquê daquele súbito interesse
em um tema tão pouco sugestivo. Mas foi impossível conseguir permanecer
por muito tempo sem tentar descobrir a razão daquilo tudo, e, enquanto ela
guardava de volta na estante a primeira edição de La Bruyere e dava as
costas à estante, ele começou a imaginar o que ela estaria tramando. A
próxima pergunta não foi nada esclarecedora. Ela parou diante dele com um
sorriso, que ao mesmo tempo em que pareceu projetado para dar liberdade,
serviu também para lembrá-lo das restrições impostas.
– Você não se importa – perguntou ela de repente – de não ser rico o
bastante para comprar todos os livros que deseja?
Ele acompanhou o olhar dela ao redor da sala de móveis velhos e
paredes desbotadas.
– Você acha que não ligo? Pensa que sou um santo em um pedestal?
– E ter de trabalhar… você não se importar?
– Oh, o trabalho em si não é tão ruim… mas gosto mais do Direito.
– Não, mas de ficar preso: a rotina… você nunca sentiu vontade de
ficar livre disso, de conhecer novos lugares e pessoas?
– Muito, especialmente quando vejo todos meus amigos entrando em
um navio.
Ela soltou um suspiro solidário.
– Mas você não se incomoda tanto ao ponto de se casar para se livrar
disso?
Selden caiu na risada.
– Deus me livre! – declarou.
Ela se levantou soltando uma baforada e jogando o cigarro na lareira.
– Ah, tem uma diferença… uma garota é obrigada a se casar, já um
homem pode escolher – e o encarou com um olhar crítico. – Se o seu paletó
estiver um pouco velhinho, quem se importará? Isto não impedirá as
pessoas de convidá-lo para jantar. Já se eu andasse malvestida ninguém iria
me convidar para nada: uma mulher é convidada mais pelas suas roupas do
que por ela mesma. As roupas são o cenário, a moldura, se assim preferir.
Elas não garantem o sucesso, mas fazem parte. Quem quer ver uma mulher
maltrapilha? É esperado que sejamos bonitas e bem-vestidas até o fim, e se
não conseguimos manter tudo isso sozinha, precisamos sair em busca de um
parceiro.
Seldon olhou-a surpreso. Era impossível, até mesmo com aqueles
olhos encantadores implorando, solidarizar com a situação dela.
– Ah, bem, tem muito capital por aí para tal investimento. Talvez você
encontre seu destino na casa dos Trenors, nesta noite.
Ela respondeu com uma expressão interrogativa.
– Pensei que fosse lá… oh, não para isso! Mas vários amigos seus
estarão lá: Gwen Van Osburgh, os Wetheralss, Lady Vressida Raith e os
Dorset.
Ela hesitou antes do último nome e piscou como se indagando, mas
ele se manteve firme.
– Mrs. Trenor me convidou, mas estarei ocupado até o final de
semana. E estes grandes encontros me cansam.
– Ah, a mim também! – exclamou ela.
– Então, por que vai?
– Faz parte. Você se esqueceu? Além do mais, se eu não for, terei de
ficar jogando bezique com a minha tia em Richfield Springs.
– Isso é quase tão ruim quanto se casar com Dillworth – concordou
ele, e os dois riram pelo puro prazer da intimidade inesperada.
Ela deu uma olhada no relógio.
– Minha nossa! Preciso ir. Já passa das cinco.
Antes deu uma paradinha diante da lareira, verificando a aparência no
espelho enquanto ajeitava o véu. O gesto revelou a longa inclinação dos
seus contornos laterais delicados, o que conferiu um tipo de beleza
selvagem ao seu perfil, como se ela fosse uma dríade cativa submetida às
convenções sociais. Seldon concluiu que era aquela fagulha de liberdade
selvagem era que dava um toque especial à sua artificialidade.
Ele a acompanhou pela sala até o vestíbulo, mas na soleira da porta
ela ergueu a mão num aceno.
– Adorei a estada, mas agora preciso pegar o trem.
– Não quer que eu acompanhe até a estação?
– Não. Vamos nos despedir aqui mesmo, por favor.
Com um sorriso encantador no rosto, ela deixou a mão sobre a dele
um pouco mais.
– Adeus, então. E boa sorte em Bellomont! – disse, abrindo a porta
para ela.
No primeiro andar ela parou para olhar ao redor. As chances de
encontrar alguém eram de uma em mil, mas nunca se sabe, e ela sempre
pagou por seus raros deslizes com violenta reprovação. Não havia ninguém
à vista além da faxineira que esfregava os degraus. Seu corpo robusto e os
materiais de limpeza ocupavam tanto espaço que Lily, para poder passar,
teve de erguer a saia e se espremer contra a parede. Quando o fez, a mulher
interrompeu o trabalho e olhou para cima curiosa, segurando firme o pano
molhado que tinha acabado de tirar do balde. Seu rosto era redondo e
pálido, com algumas marcas de varíola, e os finos fios de cabelo cor de
palha mal cobriam o couro cabeludo que brilhava desagradavelmente.
– Queira me desculpar – disse Lily educadamente para ocultar uma
crítica aos modos da outra.
A mulher, sem dizer nada, empurrou o balde para o lado, e continuou
encarando-a enquanto Miss Bart passava com o farfalhar das anáguas de
seda. Lily sentiu-se ruborizando sob o olhar. O que será que a criatura
estava pensando? Será que não era possível fazer a coisa mais simples e
inofensiva sem despertar as conjecturas mais odiosas nos outros? Na
metade do lance de escada, ela sorriu ao pensar que o fato de a faxineira a
ter encarado não era motivo para preocupação. A pobre criatura
provavelmente tinha ficado incomodada com a aparição indesejada. Mas
será que tais aparições eram indesejadas na escada de Selden? Miss Bart
não conhecia o código moral dos prédios ocupados por solteiros, e seu rosto
corou novamente quando lhe ocorreu que o olhar fixo da mulher, talvez,
estivesse ligado a uma série de associações passadas. Mas ela esqueceu-se
daquela ideia, rindo dos próprios temores, e seguiu em frente apressada,
pensando se conseguiria encontrar uma carruagem de aluguel na Quinta
Avenida.
Sob a marquise georgiana ela parou novamente olhando para a rua de
um lado para o outro em busca de uma carruagem. Não havia ninguém a
vista, mas ao pisar na calçada topou com um homem elegante, com uma
gardênia na lapela, que tirou o chapéu com uma exclamação de surpresa.
– Miss Bart? Que surpresa vê-la! Que sorte – declarou ele; e ela
percebeu uma pontinha de curiosidade em seus lábios contraídos.
– Oh, Mr. Rosedale! Como tem passado? – o saldou, ciente de que a
irritação incontrolável em seu rosto se refletia no sorrisinho de súbita
intimidade dele.
Mr. Rosedale ficou olhando para ela com interesse e aprovação. Ele
fazia o tipo judeu loiro, rechonchudo e rosado, com seus trajes londrinos
elegantes que o deixavam ainda mais gorducho, e olhinhos esbugalhados
que lhe davam um ar de que estava sempre avaliando as pessoas como se
elas fossem uma peça de antiguidade. Ele lançou um olhar questionador
para a entrada do Benedick.
– Está na cidade para fazer umas comprinhas, suponho? – indagou
num tom que tinha um toque de intimidade.
Miss Bart ficou um pouco acanhada e saiu dando explicações
precipitadas.
– Sim. Vim para dar uma passadinha na minha modista. Estou indo
pegar o trem para a casa dos Trenors.
– Ah, a sua modista, claro – disse ele, de modo brando. – Eu não sabia
que tinha uma costureira no Benedick.
– No Benedick? – ela pareceu um pouco confusa. – Este é o nome
deste prédio?
– Sim, este é o nome. Acredito que era assim que costumavam se
referir a rapazes solteiros antigamente, não é? Por acaso sou proprietário do
prédio, por isso que sei – seu sorriso alargou enquanto ele adicionava ainda
mais seguro: – Mas permita que eu a acompanhe até a estação. Os Trenor
estão em Bellmont, não é mesmo? Está em cima da hora para pegar o trem
da dezessete e quarenta. A sua costureira a fez esperar, suponho.
Lily enrijeceu por conta da brincadeirinha.
– Oh, obrigada – soltou; e naquele momento viu uma carruagem
descendo à Avenida Madison e começou a gesticular desesperada.
– É muita gentileza sua, mas não quero incomodá-lo – disse ela e
estendeu a mão para Mr. Rosedale. Sem dar atenção aos protestos dele ela
entrou apressada no veículo e deu as instruções ao chofer, esbaforida.
Capítulo 2
Na carruagem, ela recostou com um suspiro. Por que uma garota tinha
de pagar tão caro por uma escapadinha da rotina? Por que alguém nunca
podia fazer algo natural sem ter de ocultar isso por trás de uma estrutura
artificial? Ela tinha cedido ao impulso de ir ao apartamento de Lawrence
Selden. Este, de qualquer maneira, iria custar muito mais do que ela podia
pagar. Ficou irritada ao perceber que, apesar dos anos de muito cuidado,
tinha cometido dois deslizes no espaço de tempo de cinco minutos. Aquela
história sobre a modista fora péssima; teria sido bem mais simples dizer a
Rosedale que ela tomara um chá com Selden! A simples constatação do fato
o teria tornado inócuo. Mas depois ter sido apanhada em uma mentira, foi
estupidez em dobro ter esnobado a companhia da testemunha. Se tivesse
tido a presença de espírito de permitir que Rosedale a acompanhasse até a
estação, a concessão poderia ter comprado o silêncio dele. Ele possuía a
capacidade nata da sua raça de avaliar as coisas e ser visto na plataforma
em meio à multidão do final de tarde na companhia de Miss Lily Bart
poderia significar dinheiro para o seu bolso, como ele mesmo teria dito. Ele
sabia, é claro, que iria acontecer uma grande festa em Bellomont e a
possibilidade de ele ser aceito como um dos convidados de Mrs. Trenor
estava sem dúvida incluída em seus cálculos. Mr. Rosedale ainda se
encontrava em um estágio de ascendência social em que era importante
causar tais impressões.
A pior parte era que Lily sabia de tudo isso, sabia o quanto teria sido
fácil silenciá-lo na hora, e o quanto seria difícil conseguir isso agora. Mr.
Simon Rosedale era um homem que gostava de saber da vida de todo
mundo, e, que para provar que estava à vontade nas rodas sociais
costumava mostrar uma inconveniente familiaridade com os hábitos
daqueles os quais ele desejava se fazer de íntimo. Lily tinha certeza de que
dentro de vinte quatro horas a história da sua visita à modista no Benedick
já estaria circulando entre os conhecidos de Mr. Rosedale. O pior de tudo
era que ela sempre o esnobara e ignorara. Na sua primeira aparição, quando
seu primo imprudente, Jack Stepney, conseguiu (em troca de favores
concedidos) um convite para ele em um daqueles imensos “aglomerados”
impessoais promovidos por Van Osburgh, Rosedale, com aquela mistura
artística de sensibilidade e astúcia para os negócios, próprio da sua raça,
instantaneamente foi ao encontro de Miss Bart. Ela entendia os motivos,
pois seu rumo era guiado por cálculos precisos. Treino e experiência tinham
lhe ensinado a ser receptiva com os recém-chegados, uma vez que, até
mesmo o menos promissor poderia se mostrar útil algum dia, e havia uma
porção de masmorras disponíveis para guardá-los, caso eles não se
mostrassem úteis.
Mas uma repugnância intuitiva, adquirida ao longo de vários anos de
vida em sociedade, levou-a a jogar Mr. Rosedale na masmorra sem
julgamento prévio. Ele deixou para trás apenas a onda de divertimento
causada entre os amigos dela pelo modo como foi despachado; e, apesar de
depois (para seguir na metáfora) ele ter reaparecido mais em baixa do que a
maré; foram apenas algumas aparições fugazes, com longos intervalos entre
um mergulho e outro.
Até então Lily seguiu sem se preocupar com escrúpulos. No seu
pequeno grupinho Mr. Rosedale tinha sido declarado “proibido”, e Jack
Stepney foi categoricamente esnobado por conta das suas tentativas de
pagar as dívidas com convites para jantar. Até mesmo Mrs. Trenor, cujo
gosto pela novidade levou-a a experiências perigosas, resistiu às investidas
de Jack de tentar apresentar Mr. Rodesale como uma novidade e declarou
que se recordava de que ele era o mesmo judeuzinho que tinha sido servido
e rejeitado na sociedade uma dúzia de vezes. Enquanto Judy Trenor
seguisse firme em seu intuito, as chances de Mr. Rosadale sair do limbo dos
aglomerados de Van Osburgh eram mínimas. Jack desistiu da empreitada
com um “vocês vão ver”, e, usando as armas que tinha, desfilou ao lado de
Rosedale nos restaurantes da moda, na companhia de damas vividas,
socialmente obscuras, disponíveis para tais propósitos. Mas a tentativa foi
em vão, e enquanto Rosedale sem dúvida bancava os jantares, o motivo de
piada sobrou para o devedor.
Mr. Rosadale, como veremos, não era até então um fator a ser temido,
a menos que alguém se colocasse nas mãos dele. E foi exatamente isso que
Miss Bart tinha feito. Sua mentirinha mal feita permitiu que ele percebesse
que ela estava escondendo algo; e ela sabia que ele tinha contas a acertar
com ela. Algo no sorriso dele insinuou que ele não tinha esquecido.
Ela despertou das divagações com um leve calafrio, que a
acompanhou até a estação, e desceu junto até a plataforma com a mesma
persistência de Mr. Rosadale.
Só teve tempo de sentar antes de o trem partir. Contudo, tendo se
acomodado em um cantinho com aquela sensação que por conta do impacto
nunca a abandonou, ela olhou ao redor, esperando encontrar outro
convidado dos Trenor. Sua vontade era livrar-se de si mesma e conversar
era o único meio de escapar que ela conhecia.
Sua busca foi recompensada com a descoberta de um jovem muito
loiro com uma barba levemente ruiva, que, no outro extremo do vagão,
parecia tentar se esconder atrás de um jornal aberto. Os olhos de Lily
brilharam e um sorrisinho relaxou as linhas ao redor da boca. Ela sabia que
Mr. Percy Gryce estaria em Bellmont, mas não contava com a sorte de
encontrá-lo no trem; e o fato apagou todas as preocupações com Mr.
Rosedeale. Afinal, quem sabe, o dia não fosse terminar mais favorável do
que tinha começado.
Ela se pôs a separar as páginas de um romance, analisando
tranquilamente sua presa sob os cílios baixos enquanto tramava um método
de ataque. Algo na aparente concentração indicou que ele estava ciente da
sua presença: ninguém nunca mostrara tanto interesse por um jornal da
tarde! Ela imaginou que ele fosse muito tímido para se aproximar, e que por
isso teria que arrumar uma desculpa para se aproximar sem parecer
oferecida. Foi engraçado imaginar que alguém tão rico como Mr. Percy
Gryce fosse tímido; mas ela tinha o dom de saber lidar com tais
idiossincrasias, e, além do mais, a timidez dele poderia ser muito mais útil
aos seus propósitos do que o excesso de segurança. Ela tinha o dom de
oferecer autoconfiança ao inseguro, mas não tinha a mesma certeza se
conseguiria disfarçar a sua autoconfiança.
Esperou até que o trem saísse do túnel e estivesse percorrendo a
periferia norte. Então, quando o trem diminuiu a velocidade perto de
Yonkers, ela se levantou e saiu andando devagar pelo vagão. Quando
passava por Mr. Gryce, o trem deu um solavanco, e ele notou uma mão
delicada se apoiando no encosto da sua poltrona. Ele levantou-se de
repente, seu rosto ingênuo parecia ter mergulhado em tinta vermelha: até
mesmo o tom ruivo da barba parecia mais intenso. O trem deu outro
solavanco, quase atirando Miss Bart nos braços dele.
Ela se firmou com uma risada e recuou, mas ele estava inebriado com
o perfume do vestido dela e seu ombro sentia o toque suave dela.
– Oh, Mr. Gryce, é o senhor? Mil perdões, eu estava indo atrás do
garçom para pedir um chá.
Ela tirou a mão quando a velocidade do trem estabilizou e os dois
trocaram algumas palavras no corredor. Sim, ele estava indo para
Bellomont. Tinha ouvido falar que ela estaria na festa. Mais uma vez ele
corou ao admitir isso. Ele ia passar a semana toda lá? Que maravilha!
Mas nisso um ou dois passageiros que tinham entrado na última
estação pediram passagem e Lily teve que retomar ao seu assento.
– O lugar ao meu lado está vazio… sente-se aqui – disse ela sobre o
ombro e Mr. Gryce, consideravelmente sem jeito, conseguiu efetuar uma
troca que possibilitou a mudança dele e da sua bagagem para perto dela.
– Ah, lá vem o garçom, talvez consigamos um chá.
Ela fez sinal para que o funcionário e pouco tempo depois, com a
mesma facilidade com a qual parecia ter todos seus desejos concedidos,
uma mesinha foi posta entre os assentos e ela ajudou Mr. Gryce a acomodar
seus membros atrapalhados embaixo.
Quando o chá chegou ele observou fascinado enquanto as mãos dela
se moviam sobre a bandeja, aparentando miraculosamente finas e delicadas
em contraste com a louça grosseira e o pão cascudo. Parecia fascinante que
alguém pudesse desempenhar com tanta desenvoltura o desafio de preparar
chá em público em um trem em movimento. Ele jamais ousaria pedir o chá,
muito menos chamar atenção dos seus companheiros de viagem. Mas,
seguro sob a proteção da segurança dela, ele bebeu a bebida escura com
uma deliciosa sensação de euforia.
Lily, que ainda tinha nos lábios o sabor do caravan servido por
Selden, não estava com muita vontade de saborear a mistura servida pela
companhia ferroviária que parecia um néctar para seu companheiro.
Entretanto, como um dos encantos do chá é bebê-lo acompanhado, ela deu
o último toque ao divertimento de Mr. Gryce, sorrindo por trás da xícara
erguida.
– Até que ficou bom… não está muito forte? – perguntou ela, solicita;
e ele respondeu convicto de que nunca tinha provado chá melhor.
– Eu diria que sim – refletiu ela e sua imaginação foi invadida pela
ideia de que Mr. Gryce, que provavelmente mergulhara nas profundezas
complexa dos pequenos prazeres, estivesse talvez fazendo a sua primeira
viagem acompanhado de uma mulher bonita.
Pareceu-lhe providencial que ela fosse o instrumento da iniciação
dele. Algumas garotas não saberiam como lidar. Elas poderiam valorizar
demasiadamente a novidade da aventura, na tentativa de fazer com que ele
sentisse o gostinho do desatino. Mas os métodos de Lily eram mais sutis.
Ela se lembrava que uma vez seu primo Jack Stepney definiu Mr. Gryce
como um menino que prometeu à mãe que nunca sairia na chuva sem
galochas; e agindo de acordo com a dica, ela resolveu dar um toque
levemente doméstico à cena na esperança de que seu companheiro, em vez
de achar que estava fazendo algo ousado e incomum, fosse levado a
apreciar a vantagem de sempre ter uma companheira para preparar o chá no
trem.
Mas apesar dos seus esforços, o assunto esgotou depois que a bandeja
foi levada, e ela foi obrigada a tomar novas medidas contra as limitações de
Mr. Gryce. Afinal não era oportunidade que lhe faltava, mas sim falta de
imaginação: ele tinha um paladar mental que nunca iria aprender a
distinguir um chá de trem de um néctar. No entanto, havia um tópico
confiável: uma molinha que bastava ser acionada para colocar a máquina
para funcionar. Ela vinha se abstendo de acioná-la porque seria um último
recurso e ela optou por outros artifícios para estimular outras sensações.
Mas quando o tédio começou a transparecer no rosto cândido dele, ela
percebeu que seria necessário tomar atitudes extremas.
– Como – disse ela, inclinando-se para frente – vai a sua coleção de
antiguidade americana?
Seus olhos se tornaram um pouco menos opacos: foi como se uma
película incipiente tivesse sido removida, e ela sentiu o orgulho de um
operador habilidoso.
– Comprei algumas coisas novas – respondeu ele, satisfeito, mas
abaixando o tom da voz como se temesse que seus companheiros de viagem
estivessem tramando roubar-lhe.
Ela seguiu fazendo-lhe perguntas de modo simpático e aos poucos ele
entrou na conversa, contanto sobre as suas últimas aquisições. Este era um
dos assuntos capaz de fazer com que ele se esquecesse de si mesmo, ou
melhor, que permitia lembrar-se de si mesmo sem constrangimentos, pois
ele se sentia à vontade com isso, e era capaz de demonstrar certa
superioridade que poucos seriam capazes de tentar desbancar. Quase
nenhum dos seus conhecidos dava importância para antiguidades
americanas, ou sabiam algo a respeito; e a consciência de tal ignorância era
para Mr. Gryce de grande alívio. A única dificuldade era como introduzir o
tópico e seguir adiante com o tema. A maioria das pessoas não gostava de
ter sua ignorância exposta e Mr. Gryce parecia um comerciante cujos
depósitos estavam abarrotados de mercadorias não comercializáveis.
Mas Miss Bart, pelo visto, realmente parecia interessada em saber
sobre as raridades americanas; e, além disso, estava suficientemente
informada para tornar o desafio da aquisição de mais conhecimento muito
mais fácil e agradável. Assim, fez perguntas inteligentes, escutou de modo
submisso; e, preparada para o olhar de lassitude que normalmente pairava
nos rostos de seus ouvintes, ele se tornou ainda mais eloquente diante do
olhar receptivo dela. Os “pontos” que ela teve a presença de espírito de
buscar com Selden, ao se preparar para tal situação, serviram tão bem aos
propósitos que ela começou a achar que a visita tinha sido o melhor
incidente do dia. Mais uma vez ela mostrou seu talento em lidar com o
inesperado e as perigosas teorias sobre ceder a um impulso germinavam sob
o semblante sorridente e atento que ela mostrava para seu companheiro.
As sensações de Mr. Gryce, embora menos definidas, eram
igualmente agradáveis. Ele sentiu a vibração confusa que as partes baixas
do corpo sentem nos momentos de satisfação e todos seus sentidos estavam
alerta num vago bem-estar, ao qual Miss Barty percebeu com certa
satisfação.
O interesse de Mr. Gryce pelas antiguidades americanas não nascera
com ele. Era impossível pensar nele como alguém capaz de adquirir o gosto
por algo sozinho. Um tio deixou de herança uma coleção que já era
respeitada pelos bibliófilos; a existência de tal coleção era a única coisa que
dava algum destaque ao sobrenome Gryce e o sobrinho cuidava da herança
como se fosse fruto do seu trabalho. Na verdade, aos poucos ele começou a
considerá-la como tal, e sentia uma sensação de complacência pessoal
quando alterava qualquer referência da Coleção Americana Gryce. Ansioso
como era para não chamar atenção, ele sentia, quando via a menção
impressa do seu nome, um prazer tão grande e especial que parecia ser uma
compensação para seu medo de publicidade.
Para usufruir da sensação o máximo possível, ele assinava todas as
revistas especializadas em coleções de livros e de história americana em
particular, e, à medida que a alusões ao seu nome começaram abundar nas
páginas daqueles periódicos, que era sua única fonte de leitura, ele passou a
se ver como uma figura de destaque e a apreciar a ideia do interesse que,
eventualmente, pudesse despertar nas pessoas com as quais viesse cruzar na
rua, ou dentro de um trem, quando ficassem sabendo que ele era o dono da
Coleção Americana Gryce.
Os mais tímidos têm esse tipo de compensações secretas e Miss Bart
era esperta o suficiente para saber que a vaidade interior geralmente é
proporcional ao autodesprezo pela aparência externa. Com uma pessoa mais
confiante ela não teria ousado se estender sobre o mesmo tema por tanto
tempo, ou de mostrar um interesse tão exagerado, mas ela adivinhou
acertadamente que o egocentrismo de Mr. Gryce era um solo sedento, que
requeria cuidados constantes de fora. Miss Bart tinha o dom de acompanhar
os pensamentos profundos enquanto aparentava navegar na superfície da
conversa; e neste caso sua excursão mental assumiu a forma de uma rápida
visão do futuro de Mr. Gryce associado ao seu.
Os Gryce eram da Albânia, e tinham vindo para a metrópole há pouco
tempo; para onde mãe e filho se mudaram depois da morte do velho
Jefferson Gryce, para tomarem posse da casa que ele tinha na Avenida
Madson: uma casa horrorosa, toda de pedra marrom por fora e nogueira
escura por dentro, com a biblioteca Gryce em um anexo à prova de fogo
que parecia mais um mausoléu. Lily, no entanto, sabia tudo sobre eles: a
chegada de Mr. Gryce agitou os seios maternos de Nova York e quando
uma moça não tem uma mãe para palpitar por sua causa ela é obrigada a
ficar alerta por si mesma. Lily não só deu um jeito de se colocar no
caminho do jovem, como também conheceu Mrs. Gryce, uma mulher
monumental com voz de orador e uma mente preocupada com as
iniquidades dos seus criados, e que costumava visitar Mrs. Peniston para
aprender com a outra os métodos de impedir que as criadas da cozinha
conseguissem sair da casa levando comida.
Mrs. Gryce tinha um tipo de benevolência impessoal: casos de
necessidades pessoais ela via com desconfiança, mas se comprometeu a
colaborar com algumas instituições quando seus balanços anuais mostraram
um excedente impressionante. Várias eram suas obrigações domésticas,
pois elas abrangiam desde inspeções furtivas aos quartos de seus criados a
visitas surpresa à adega. Mas ela nunca se permitia muitos prazeres. Uma
vez, porém, ela conseguiu uma edição especial do Rito Sarum escrito em
latim litúrgico e o mostrou para todos os clérigos da diocese. O álbum
dourado com todas as cartas de agradecimentos deles foi colocado como
ornamento principal sobre a mesa da sua sala de estar.
Percy, portanto, foi criado de acordo com os princípios de que uma
mulher perfeita era algo inimaginável. Todas as formas de prudência e
desconfiança tinham sido enxertadas em uma natureza originalmente
relutante e cautelosa, tornando totalmente desnecessário para Mrs. Gryce
arrancar dele a promessa sobre as galochas, pois era bem pouco provável
que ele ousasse sair na chuva. Depois que atingiu a maioridade, e de se
tornar o herdeiro da fortuna conquistada pelo falecido Mr. Gryce por causa
da patente de um aparelho de tirar o ar fresco dos hotéis, o jovem continuou
morando com a mãe na Albânia. Com a morte de Jeferson Gryce, contudo,
quando uma imensa fortuna passou para as mãos do seu filho, Mrs. Gryce
achou que aquilo que ela chamava de “interesses” dele exigia a sua
presença em Nova York. E assim, ela se instalou na mansão da Avenida
Madson, e Percy, cujo senso de dever não era inferior ao da mãe, passava os
dias úteis no elegante escritório da rua Broad onde um bando de homens
pálidos, recebendo baixos salários, tinha envelhecido cuidando do
patrimônio Gryce e onde ele foi iniciado com reverência a cada detalhe da
arte da acumulação.
Até onde Lily conseguira descobrir, aquela era, portanto, a única
ocupação de Mr. Gryce, e ela deveria ser perdoada por pensar que não seria
muito difícil prender o interesse de um jovem que tinha sido mantido em
uma dieta tão pobre. De qualquer maneira, ela se sentiu tão no comando da
situação que sucumbiu a uma sensação de segurança, na qual todo o medo
da indiscrição de Mr. Rosedale e das dificuldades relacionadas ao medo,
escaparam dos limites dos seus pensamentos.
A parada do trem em Garrison não a teria desviado desses
pensamentos, não fosse pelo súbito desinteresse nos olhos de seu
companheiro. O assento dele ficava de frente para a porta, e ela achou que
ele tivesse se distraído por conta da chegada de um conhecido; um fato que
se confirmou pelas cabeças que se viraram e a comoção geral que a sua
própria entrada em um vagão de trem era capaz de produzir.
Ela reconheceu os sintomas na hora e não se surpreendeu quando
sentiu as notas do perfume de uma mulher bonita, que entrou no trem
acompanhada de uma criada, um bull-terrier, e um lacaio tentando se
equilibrar com as malas e caixas de vestidos.
– Oh, Lily, você está indo para Bellomont? Então não vai poder ceder
o seu lugar, suponho? Mas preciso sentar neste vagão. Cobrador, você
precisar arrumar um lugar para mim imediatamente. Será que alguém não
poderia trocar de lugar? Quero ficar com meus amigos. Oh, como vai, Mr.
Gryce? Por favor, faça-o entender que preciso de um lugar perto de você e
da Lily.
Mrs. George Dorset, apesar da gentileza de um viajante com uma
mala de lona, que estava fazendo o favor de ceder seu lugar para ela
trocando de vagão, ficou parada no meio do corredor espalhando aquela
sensação comum de exasperação que uma mulher bonita em viagem
costuma criar.
Ela era mais baixa e mais magra do que Lily Bart, tinha um jeito
agitado, como se fosse capaz de se encolher e passar correndo por dentro de
um aro, igual as pregas sinuosas de seu vestido. Seu rostinho pálido parecia
servir de mero cenário para um par de olhos castanhos-escuros exagerados,
cujo olhar visionário contrastava com seu tom de voz e gestos arrogantes;
tanto que, como observou um de seus amigos, ela parecia um espírito
desencarnado que ocupava muito espaço.
Depois de finalmente descobrir que o assento ao lado de Miss Bart
estava à sua disposição, ela se apoderou do lugar causando uma última
comoção ao redor, explicando enquanto o fazia que tinha vindo do Monte
Kisco de carro naquela manhã, e que ficara esperando uma hora na estação
de Garrions, sem contar com nem mesmo o alívio de um cigarro, pois o
bruto do seu marido se esquecera de reabastecer a sua cigarreira antes de
partirem naquela manhã.
– E a esta hora do dia não creio que você ainda tenha um restando,
tem, Lily? – concluiu em tom de lamento.
Miss Bart percebeu o olhar surpreso de Mr. Percy Gryce, cujos lábios
nunca tinham sido corrompidos pelo tabaco.
– Que pergunta absurda, Bertha! – exclamou ela, ruborizando ao se
lembrar do estoque que fizera na casa de Lawrence Selden.
– Por que, você não fuma? Desde quando largou? Como assim… você
nunca… e você também não, Mr. Gyrce? Ah, claro! Que bobagem a minha.
Entendi.
E com isso Mrs. Dorset recostou nas suas almofadas de viagem com
um sorriso que fez Lily desejar que nunca tivesse surgido um lugar vago ao
lado do seu.
Capítulo 3
O jogo de bridge em Bellomont costumava varar a madrugada e
quando Lilly foi para a cama na noite anterior ela tinha jogado
demasiadamente muito para seu próprio bem.
Sem um pingo de vontade de participar da conversinha consigo
mesma que a esperava em seu quarto, ela ficou enrolando na ampla
escadaria, olhando para o saguão abaixo, onde os últimos jogadores
estavam reunidos ao redor da bandeja com taças altas e decanteres com
gargalo de prata que o mordomo tinha acabado de colocar sobre uma
mesinha próxima à lareira.
O saguão era em formato de arcada, com uma galeria apoiada por
colunas de mármore amarelo clarinho. Arranjos altos de plantas floridas
tinham sido dispostos sob um fundo de folhagens escuras nos nichos. Um
lebréu escocês e dois ou três spenials cochilavam preguiçosos diante da
lareira, e a luz do imenso lustre central iluminava os cabelos das mulheres e
refletia de suas joias quando elas se moviam.
Houve momentos em que tais cenas encantaram Lily, satisfazendo a
sua noção de beleza e ânsia pelo verniz da vida; e outros que
proporcionaram uma noção dura da sua falta de opções. Este foi um dos
momentos em que a noção de contraste se destacou ainda mais, e ela deu as
costas impaciente enquanto Mrs. George Dorset, brilhando em uma
serpentina de lantejoulas, puxou Percy Gryce para um cantinho reservado
embaixo da galeria.
Não que Miss Bart estivesse com medo de perder sua recente posse
sobre Mr. Gryce. Mrs. Dorset podia até ter surpreendido ou encantado, mas
ela não possuía nem o talento e nem a paciência para capturá-lo
definitivamente. Era muito preocupada consigo mesma para conseguir
transpor a timidez dele, e além do mais, por que ela iria se dar ao trabalho?
Quando muito poderia ser divertido brincar com a simplicidade dele por
uma noite, mas depois disso ele acabaria se tornando um fardo, e, sabendo
disso, ela era muito experiente para encorajá-lo. Mas a simples ideia de que
outra mulher, que poderia seduzir um homem e depois abandoná-lo quando
quisesse, sem ter de vê-lo como um possível fator nos seus planos, encheu
Lily de inveja. A tarde que tinha passado ao lado de Percy Gryce tinha sido
de puro tédio, a simples lembrança despertou o eco da voz chata dele, mas
ela não poderia ignorá-lo no dia seguinte, deveria continuar perseguindo seu
sucesso, teria de se submeter a mais tédio, ficar preparada para concordar e
se adequar, e tudo pela chance de que ele finalmente decidisse lhe conceder
a honra de entediar a sua vida para sempre.
Era um destino detestável, mas como escapar? Que opções ela tinha?
Ser ela mesma, ou uma Gerty Farish. Quando entrou em seu quarto,
suavemente iluminado, e viu a sua camisola de renda sobre a colcha de
seda, os chinelinhos bordados na frente da lareira, um vaso de cravos
perfumando o ambiente, e os últimos romances e revistas intocados sobre
uma mesa ao lado de um abajur, ela se lembrou do apartamentinho de Miss
Farish, com seus móveis baratos e papel de parede horroroso. Não; ela não
tinha sido feita para viver em ambientes simples e baratos, para as
condições degradantes da pobreza. Todo seu ser expandia em uma
atmosfera de luxo; era o cenário que ela precisava, o único clima onde era
capaz de respirar. Mas não era o luxo dos outros que ela queria. Poucos
anos antes isto lhe bastava: ela assumira uma rotina de prazer sem se
importar com quem proporcionasse. Agora ela estava começando a se
cansar das obrigações que isto lhe impunha, a se sentir uma prisioneira no
esplendor do qual parecia ser seu. Houve momentos em que chegou a ter
consciência de que teria de pagar pelo caminho escolhido.
Por muito tempo ela se recusou a jogar bridge, pois sabia que não
podia bancar, e tinha medo de adquirir um vício tão caro. Tinha visto o
perigo exemplificado em mais do que um dos seus amigos: no jovem Ned
Silverton, por exemplo, o rapaz belo e encantador que agora andava
totalmente a mercê de Mrs. Fisher, uma divorciada atraente com olhos e
vestidos tão marcantes quanto às manchetes sobre o seu “caso”. Lily se
lembrava de quando o jovem Silverton surgiu, com um ar de acadiano
perdido que tinha publicado sonetos encantadores no jornal do colégio.
Desde aquela época ele pegou gosto por Mrs. Fisher e pelo bridge, e o
último o envolveu em dívidas das quais mais de uma vez ele teve de ser
socorrido por mocinhas casadouras, que apreciavam seus sonetos, e
estavam sem açúcar para pôr no chá para segurarem seus queridinhos. Lily
acompanhou o caso de Ned: viu seus olhos encantadores – que, por sinal,
tinha mais poeticidade do que seus sonetos – mudando da surpresa para o
divertimento, e da diversão para a ansiedade, à medida que era possuído
pelo feitiço do terrível deus da mudança; e ela temia identificar os mesmos
sintomas no seu próprio caso.
Pois, no último ano ela descobrira que as suas anfitriãs esperavam que
ela ocupasse um lugar à mesa de jogo. Era uma das taxas a serem pagas
pela prolongada hospitalidade oferecida, e pelos vestidos e acessórios que
ocasionalmente reabasteciam seu guarda-roupa insuficiente. E a partir do
momento que começou a jogar regularmente, a paixão cresceu dentro dela.
Uma ou duas vezes ganhou uma imensa quantia, mas em vez de guardar
para perdas futuras, gastou com vestidos ou joias; e a vontade de reparar a
imprudência, combinado com a euforia crescente do jogo, levou-a a apostar
quantias cada vez altas a cada partida. Ela tentou se justificar com a
desculpa de que, na casa dos Trenor, ou se jogava alto ou era taxado de
pedante ou sovina; mas ela sabia que já estava viciada no jogo, e que no
meio em que se encontrava as chances de resistir eram mínimas.
Nesta noite a sorte foi persistentemente ruim, e a pequena bolsinha
dourada que pendia entre seus acessórios estava quase vazia quando ela
retornou para seu quarto. Ela abriu o guarda-roupa, pegou o porta-joias e
deu uma olhada no maço de notas embaixo da bandeja de onde tinha
reabastecido a bolsa antes de descer para o jantar. Restavam apenas vinte
dólares: a descoberta foi tão assustadora que por um momento ela achou
que tivesse sido roubada. Pegou então papel e lápis, sentou-se à
escrivaninha e tentou lembrar o quanto tinha gastado durante o dia. Sua
cabeça latejava de cansaço, e, por conta disso, teve de refazer os cálculos
várias vezes. Mas no fim ficou claro que tinha perdido uma fortuna de
trezentos dólares nas cartas. Ela pegou o talão de cheques para verificar se o
saldo era maior do que imaginava que fosse, mas descobriu que tinha errado
para menos. Então retomou os cálculos, mas descobriu enquanto o fazia que
não iria conseguir recuperar os trezentos dólares perdidos. Era a quantia que
tinha sido reservada para acalmar os ânimos da sua modista – a menos que
decidisse usar o dinheiro para adoçar o joalheiro. De qualquer maneira,
tinha tantos destinos para aquele dinheiro que a insuficiência para cobrir
tudo a levara a apostar alto na esperança de dobrar o montante. Mas claro
que acabou perdendo – ela que precisava de cada centavo, enquanto Bertha
Dorset, cujo marido derramava dinheiro, muito provavelmente embolsara
uns quinhentos dólares, e Judy Trenor, que poderia se dar ao luxo de perder
mil por noite, deixara a mesa segurando um monte de notas tão grande que
nem pôde trocar apertos de mãos com seus convidados quando lhe
desejaram boa noite.
Um mundo onde tais coisas o tornavam um lugar miserável do ponto
de vista de Lily Bart; mas ela nunca foi muito boa mesmo em entender as
leis de um universo que insistia em colocá-la de escanteio.
Começou se despir sem tocar a sineta da criada, pois dissera a esta
que não era preciso esperar. Já fazia tanto tempo que era obrigada a
satisfazer o prazer de outros que aprendera a ter consideração por aqueles
que dependiam dela, e, quando ficava de mau humor às vezes tinha a
impressão de que ela e sua criada ocupavam a mesma posição, com a
diferença de que a última recebia os salários mais regularmente.
Sentou diante do espelho escovando os cabelos, seu rosto parecia
cansado e pálido, e ela se assustou ao notar duas ruguinhas perto da boca,
pequenas falhas nas curvas suave das suas bochechas.
– Preciso parar de me preocupar! – exclamou. – Talvez seja a luz
elétrica… – refletiu, levantando com um pulo para ascender as velas sobre a
penteadeira.
Apagou então as luzes e olhou-se no espelho iluminado pelas velas. O
contorno oval do seu rosto oscilava sobre o fundo escuro, a fraca
iluminação embaçava igual uma neblina, mas as duas linhas sobre a boca
ainda estavam lá.
Lily levantou e se despiu apressada.
– É só porque estou cansada e preocupada com tantas coisas
desagradáveis – ficou repetindo; e lhe pareceu injusto que as preocupações
pudessem deixar um rastro na sua beleza que era a sua única arma contra
elas.
Mas as coisas odiosas estavam lá e não foram embora. Cansada,
voltou a pensar em Percy Gryce, como se fosse um andarilho que pegasse
uma carga pesada para retomar a sua jornada, após um breve descanso.
Estava quase certa de que tinha conseguido “derrubá-lo”: mais alguns dias
de trabalho e conquistaria a sua recompensa. Mas a recompensa não parecia
nada aprazível naquele momento. Ela não conseguia se animar com a ideia
da vitória. A vitória seria um refresco para as preocupações, nada mais; e
quão insignificante teria sido alguns anos antes! Suas ambições foram aos
poucos diminuindo diante da perspectiva sufocante do fracasso. Mas por
que ela tinha falhado? Tinha sido por culpa sua ou do destino?
Recordou-se então do modo como sua mãe falava com uma fúria
vingativa, depois que eles perderam todo dinheiro que tinham: – Você vai
recuperar tudo de volta… vai recuperar tudo de volta, com essa sua carinha.
A lembrança despertou uma série de associações e ela ficou deitada
no escuro rememorando o passado que a colocara na atual situação.
Uma casa onde ninguém jantava a menos que tivessem “convidados”;
uma sineta que não parava de tocar; uma mesa no vestíbulo cheia de
envelopes quadrados que eram abertos às presas, e envelopes retangulares
que ficavam acumulando poeira no fundo de um jarro de bronze; uma
porção de criadas francesas e inglesas falando em meio à confusão de
roupas e closets; uma dinastia igualmente variada de babás e lacaios; brigas
na despensa, na cozinha e na sala de estar; viagens de última hora para
Europa e retornos com baús lotados e dias intermináveis desfazendo as
malas; discussões anuais sobre onde passar o verão, insinuações sobre
economia e reações estupendas de gastos – este era o cenário das primeiras
lembranças de Lily.
Quem administrava esse elemento turbulento chamado de lar era a
figura vigorosa e determinada de uma mãe ainda jovem o suficiente para se
acabar de dançar nos bailes, enquanto o vulto sem cor de um pai ocupava o
espaço indeterminado entre o mordomo e o homem que vinha acertar os
relógios. Até mesmo aos olhos da infância, Mrs. Hudson Bart parecia
jovem, mas Lily não conseguia se lembrar do seu pai com mais cabelo e
menos encurvado, ou sem os poucos cabelos grisalhos que ainda lhe
restaram e um caminhar menos cansado. Foi um choque quando descobriu
que ele era apenas dois anos mais velho do que sua mãe.
Lily quase nunca via o pai à luz do dia. Ele passava o dia no “centro”;
e no inverno só muito tempo depois de a noite ter caído que ela ouvia seus
passos cansados subindo a escada e a mão abrindo a porta da sala de
estudos. Ele a beijava calado, fazia uma ou duas perguntas a babá ou a
preceptora; então a criada de Mrs. Bart aparecia para lembrá-lo de que eles
iam jantar fora, e ele saía apressado após um menear de cabeça para Lily.
No verão, quando vinha passar o domingo com elas em Newport ou
Sothampton, ele parecia ainda mais apagado e calado do que no inverno. O
descanso parecia cansá-lo, e ele passava horas sentado em um canto
sossegado da varanda, olhando para a linha do horizonte no mar, enquanto a
esposa falava sem parar a poucos metros de distância sem ser ouvida.
Geralmente, Mrs. Bart e Lily costumavam ir para a Europa no verão, e
antes que o vapor estivesse na metade do caminho, Mr. Bart já tinha
afundando além do horizonte. Às vezes sua filha ouvia-o sendo acusado de
ter se esquecido de pagar os impostos de importação de Mrs. Bart; mas na
maioria das vezes ele não era mencionado ou lembrado até a sua figura
paciente e encurvada se apresentar no porto de Nova York como se fosse
um escudo protetor entre a montanha de bagagem da esposa e as restrições
da alfândega americana.
E foi neste estilo de vida incoerente e ao mesmo tempo agitado que
Lily viveu até a adolescência: uma corredeira ziguezagueada que a
embarcação da família percorreu numa corrente rápida e divertida, puxados
para baixo por uma necessidade constante – a necessidade de mais dinheiro.
Lily não conseguia se lembrar da época que havia dinheiro suficiente, e
indiretamente a culpa pela falta sempre parecia recair sobre seu pai. A culpa
certamente não era de Mrs. Bart, que era tida pelos amigos como uma
“excelente administradora”. Mrs. Bart era famosa pelo efeito ilimitado que
era capaz de produzir com um recurso limitado; e para a dama e seus
conhecidos havia algo de heroico em viver como se fosse mais rico do que
o seu saldo bancário.
Lily naturalmente se orgulhava do talento da mãe neste quesito. Tinha
sido criada acreditando que, custasse o quanto custasse, era preciso ter uma
boa cozinheira e ser considerada “decentemente vestida”, como costumava
dizer Mrs. Bart. A maior crítica que Mrs. Bart costumava dirigir ao marido
era quando lhe perguntava se ele esperava que ela “vivesse como uma
porca”; e a resposta negativa era sempre usada como justificativa para
enviar um telegrama para Paris, encomendando um ou dois vestidos novos,
e um telefonema para o joalheiro para que este, finalmente, mandasse
entregar em casa a pulseira de turquesa que ela tinha visto naquela manhã.
Lily conhecia pessoas que “viviam como porcos”, e a aparência deles
e o meio em que estavam inseridos justificava a repugnância da sua mãe por
aquela forma de existência. Elas eram em sua maioria primos, que viviam
em casas sujas como gravuras de A Viagem da Vida de Cole nas paredes
[1]
da sala de estar, e criadas desleixadas que diziam: “Vou ver” aos visitantes
num horário em que todas as pessoas de bom senso costumam não estar em
casa. A pior parte disso é que muitos desses primos eram ricos, e por conta
disso Lily imbuiu a ideia de que se as pessoas viviam como porcos era por
opção ou por falta de um modelo melhor de conduta. Isto acabou lhe dando
um senso refletido de superioridade, e ela nem precisou dos comentários de
Mrs. Bart sobre as mazelas e avarezas para adotar seu gosto nato pelo
esplendor.
Lily tinha dezenove anos quando as circunstâncias a obrigaram a
rever a sua visão de mundo.
No ano anterior ela havia debutado com glamour à custa de uma
montanha de notas por pagar. O brilho do baile ainda era lembrando, mas a
montanha cresceu, e, de repente veio abaixo. A surpresa se somou ao horror
e, às vezes, Lily revivia com dolorosa nitidez cada detalhe do dia em que
tudo desmoronou. Ela e a mãe estavam sentadas à mesa de almoço,
comendo um chaufroix e salmão frio que tinham sobrado do jantar da noite
anterior, uma das poucas encomias de Mrs. Bart era consumir o que sobrava
dos seus caros jantares oferecidos. Lily sentia a agradável languidez que era
a penalidade cobrada dos jovens por dançarem até o dia amanhecer; mas
sua mãe, apesar de algumas ruguinhas ao redor da boca, e embaixo dos
cachos dourados nas têmporas, estava alerta, determinada e corada como se
tivesse acordado de uma noite tranquila de sono.
No centro da mesa, entre o Marron Glacê derretendo e as cerejas
cristalizadas, um arranjo de rosas vermelhas com seus talos vigorosos; elas
mantinham a cabeça tão erguida quanto Mrs. Bart, mas o vermelho já tinha
desbotado para um tom arroxeado opaco, e o apurado senso estético de Lily
estava incomodado com o retorno delas para a mesa de almoço.
– Sabe, mamãe, acho que deveríamos comprar flores frescas para o
almoço – disse em tom de reprovação. – Alguns narcisos ou lírios-do-
vale…
Mrs. Bart ficou olhando apenas. Seu perfeccionismo tinha os olhos
voltando para o mundo, e ela nunca se preocupou com a decoração da mesa
de almoço quando não estava presente ninguém além da família. Mas
mesmo assim sorriu para a inocência da filha.
– Lírios-do-vale – disse ela calmamente – custam dois dólares a dúzia
nesta época do ano.
Lily não se impressionou, pois desconhecia o valor do dinheiro.
– Acho que uma meia-dúzia seria o suficiente para encher este vaso –
argumentou.
– Meia dúzia do quê? – perguntou seu pai, da entrada.
As duas ergueram os olhos surpresas; apesar de ser sábado, a visão de
Mr. Bart na sala de almoço era algo inusitado. Mas nem a esposa ou a filha
estavam suficientemente interessadas para perguntar o motivo.
Mr. Bart sentou pesado em uma cadeira e ficou olhando distraído para
o salmão que o mordomo tinha colocado à sua frente.
– Eu só estava dizendo – iniciou Lily – que detesto ver flores
desbotadas à mesa de almoço e mamãe disse que um arranjo de lírios-do-
vale pode custar mais do que doze dólares. Posso dizer para o florista enviar
algumas todos os dias?
Ela se inclinou confiante na direção do pai, pois raramente ele lhe
negava alguma coisa, e Mrs. Bart a ensinara a implorar para ele quando
suas próprias súplicas falhavam.
Mr. Bart permaneceu imóvel, o olhar ainda fixo no salmão, e de
queixo caído; ele parecia mais pálido do que o normal e os fios ralos de
cabelo caíam bagunçados sobre a teta. De repente, ele olhou para a filha e
riu. A risada soou tão esquisita que Lily ruborizou. Ela não gostava de ser
ridicularizada e seu pai pareceu ter visto algo de ridículo no seu pedido.
Talvez ele tivesse achado que era bobagem da parte dela incomodá-lo com
algo tão trivial.
– Doze dólares… doze dólares por dia em flores? Oh, claro, minha
querida, encomende duzentos – ele continuou rindo.
Mrs. Bart olhou de relance para ele.
– Pode se retirar, Poleworth. Tocarei a sineta se precisar – disse ela ao
mordomo.
O mordomo se retirou com cara de reprovação, deixando os retos do
caufroix no aparador.
– O que aconteceu, Hudson? Você está doente? – perguntou Mrs. Bart
num tom severo.
Ela não tinha um pingo de paciência para cenas que não fossem suas e
odiava a ideia do marido fazendo isso na frente dos criados.
– Você está doente? – repetiu.
– Doente?… Não, estou falido – respondeu ele.
Lily deixou escapar um gemido assustado e Mrs. Bart se levantou.
– Falido…? – berrou ela. Recuperando o controle logo em seguida,
ela virou o rosto calmo para Lily e disse: – Feche a porta da copa.
Lily obedeceu e quando voltou para a sala seu pai estava sentado com
os cotovelos sobre a mesa, o prato de salmão entre eles, e a cabeça apoiada
sobre as mãos.
Mrs. Bart estava em pé atrás dele tão pálida que conferiu aos seus
cabelos um tom loiro artificial. Ela olhou para Lily enquanto essa se
aproximava: sua feição era horrenda, mas a voz tinha um tom de alegria
assustadora.
– Seu pai não está bem. Ele não sabe o que está dizendo. Não é nada,
mas é melhor você subir; e não comente nada com os criados – adicionou.
Lily obedeceu; sempre obedecia quando sua mãe falava naquele tom.
Mas as palavras de Mrs. Bart não enganaram: ela soube na hora que eles
estavam falidos. Nos momentos sombrios que vieram aquele acontecimento
terrível ofuscou até mesmo a morte lenta e difícil de seu pai. Para sua
esposa ele não contava mais. Deixou de existir para ela depois que parou de
cumprir com seu propósito e ela ficou ao lado dele com uma cara de
viajante que espera o trem atrasado partir. Os sentimentos de Lily foram
mais brandos: ela sentiu pena dele de um modo inutilmente assustador. Mas
o fato de ele ter permanecido distante a maior parte do tempo, e que a sua
atenção quando ela irrompeu na sala ter se desaviado dela logo em seguida,
o transformou numa pessoa ainda mais estranha do que no tempo da salinha
de estudo quando ele nunca chegava à casa antes de anoitecer. Ela tinha a
impressão de que sempre o vira encoberto por uma névoa – primeiro de
sono, depois de distância e indiferença – e agora o nevoeiro tinha
aumentado e ele estava praticamente indistinguível. Se pudesse ter feito
alguma coisa por ele, ou dito a ele algumas daquelas palavras afetuosas
adquiridas ao longo das horas de leitura de romances, o instinto filial
poderia ter aflorado dentro dela; mas como seu sentimento de pena não teve
nenhum tipo de retorno, este permaneceu num estado de espectador,
ofuscado pelo ressentimento sombrio e implacável da sua mãe. Cada olhar e
atitude de Mrs. Bart parecia dizer: – Você está com pena dele agora, mas vai
mudar de ideia quando perceber o que ele fez conosco.
Foi um alívio para Lily quando seu pai morreu.
Em seguida veio um longo inverno. Restara pouco dinheiro, mas para
Mrs. Bart parecia ser pior do que se não tivesse restado nada; era uma
amostra da vida que teria pela frente. De que adiantava continuar vivendo
se fosse para viver como um porco? Ela mergulhou um tipo de apatia
nervosa, um estado inerte de raiva contra o destino. Sua habilidade de
“administrar” a abandonou, ou ela não tinha mais orgulho de exercê-la. Era
bom “administrar” quando ao fazê-lo ainda dava para manter a própria
carruagem; mas quando mesmo economizando não era mais possível
esconder o fato de ser obrigada a andar a pé, o esforço deixou de valer a
pena.
Lily e sua mãe mudaram de um lugar para outro, passando longas
temporadas com parentes cujas casas Mrs. Bart costumava criticar, e que
reprovavam o fato de que ela permitia que Lily tomasse o desjejum na cama
sendo que a garota não tinha nenhuma perspectiva pela frente, e agora
vegetava com refeições matinais parcas, enquanto Mrs. Bart se mantinha
afastada das mesas de chá modestas das suas companheiras de infortúnio.
Ela tomava ainda mais cuidado para evitar os antigos amigos e os locais
onde costumava ostentar seu sucesso. Estar pobre parecia ser para ela
assumir o fracasso de um modo tal que beirava a desgraça e ela detectou
uma pontinha de pena naqueles que tentaram se aproximar.
Apenas um pensamento a consolava, e era a contemplação da beleza
de Lily. Ela a observava com um tipo de paixão, como se fosse uma arma
que ela tinha moldado lentamente para sua vingança. Este era o único
recurso que restava para elas, o núcleo ao redor do qual a vida delas seria
reconstruída. Ela via isso com ciúme, como se fosse propriedade sua e Lily
fosse apenas uma portadora; e ela tentou incutir na menina a
responsabilidade que fardo envolvia. Ela tomou como modelo a carreira de
outras beldades, apontando para a filha o que poderia ser conquistado com
um dom como este, e advertiu várias vezes sobre aquelas que, apesar disso,
tinham falhado em conseguir o que queriam. Para Mrs. Bart, apenas a
burrice podia explicar o lamentável desenlace de alguns dos seus exemplos.
Ela não estava acima da inconsistência de culpar o destino, em vez de a si
mesma, por seus infortúnios; mas falava com tanto amargor contra os pares
perfeitos que Lily chegou a imaginar que o casamento dela tinha se dado
nestas circunstâncias, não fosse por Mrs. Bart assegurar com frequência que
ela tinha sido “induzida aquilo”; por quem, ela nunca deixou claro.
Lily ficou encantada com seu leque de oportunidades. O desalento da
situação em que se encontrava ganhou um alívio com a perspectiva de vida
ao qual estava destinada. Para uma inteligência menos iluminada os
conselhos de Mrs. Bart teriam sido perigosos; mas Lily entendeu que a
beleza era apenas o material bruto para a conquista, e que para converter
isto em sucesso era preciso recorrer a outros artifícios. Ela sabia que trair
qualquer senso de superioridade era uma forma sutil de burrice que a sua
mãe denunciava, e não demorou muito para aprender que a beleza requer
mais tato para o portador do que para a maioria comum.
Suas ambições não eram tão rudes quanto às de Mrs. Bart. Foi entre
os agravos desta mulher que seu marido – no começo, antes de ficar muito
cansado – passou suas noites no que ela descrevia vagamente como “lendo
poesia”; e entre os bens que restaram dos leiloes após a sua morte havia um
ou dois volumes surrados que ainda lutavam pela própria existência entre as
botas e os frascos de remédios nas prateleiras do closet dele. Lily tinha uma
veia do sentimento, talvez transmitida por esta fonte, que contribuiu para
um leve toque idealista aos seus propósitos mais prosaicos. Ela gostava de
imaginar que a sua beleza era um poder que poderia ser canalizado para o
bem, que lhe daria a oportunidade de atingir uma posição na qual ela
poderia usar da sua influência para difundir o refinamento e o bom gosto.
Ela gostava de quadros e flores, e romances, e achava que o fato de possuir
tais preferências lhe dava o direito de ambicionar por vantagens mundanas.
Na verdade não queria se casar com um homem que fosse rico apenas; no
fundo ela tinha vergonha da paixão da sua mãe pelo dinheiro. Lily gostaria
de se casar com um nobre inglês com ambições políticas e vastas
propriedades; ou, como segunda opção, um príncipe italiano com um
castelo nos montes Apeninos e um posto hereditário no Vaticano. Causas
perdidas tinham um charme romântico e ela gostava de se imaginar alheia à
imprensa vulgar do Quirinal, sacrificando seus prazeres em nome de uma
tradição de longa data…
Há quanto tempo e quão distante parecia tudo aquilo! Tais ambições
não eram mais fúteis e infantis do que uma das primeiras que girou em
torno da posse de uma boneca articulada francês com cabelos de verdade.
Fazia apenas dez anos apenas desde que a sua imaginação oscilara entre o
conde inglês e o príncipe italiano? De modo implacável sua memória
retomou o triste intervalo…
Após dois anos passando fome, Mrs. Bart morreu; morreu de
profundo desgosto. Ela odiava a pobreza e o seu destino a transformara em
uma pessoa pobre. Suas ambições de um casamento brilhante para Lily se
desfizeram depois do primeiro ano.
– As pessoas não podem se casar com você se não a virem e como
poderão vê-la nestes buracos onde estamos enterradas? – esse era o peso do
seu lamento; e o último conselho que deu para a filha foi fugir da pobreza
se conseguisse.
– Não deixe isso tomar conta de você e derrubá-la. Lute para sair
disso; você é jovem, consegue – insistiu.
Ela morreu durante uma das suas breves estadas em Nova York e
então Lily se tornou o centro de uma reunião de família composta pelos
parentes ricos que ela tinha sido ensinada a desprezar por viverem como
porcos. Talvez eles desconfiassem dos sentimentos que lhe tinham sido
incutidos, pois nenhum deles manifestou entusiasmo pela sua companhia.
Na verdade, a questão correu o risco de ficar sem solução até Mrs. Peniston
anunciar com um suspiro:
– Vou experimentar ficar com ela por um ano.
Todos ficaram surpresos, mas esconderam a surpresa, do contrário
Mrs. Peniston poderia se assustar e reconsiderar a decisão.
Mrs. Peniston era a irmã viúva de Mr. Bart, que apesar de não ser a
mais rica da família, era vista pelos outros membros, por vários motivos,
como a pessoa enviada pela providência divina para assumir a
responsabilidade de assumir Lily. Em primeiro lugar, ela era sozinha, e seria
bom ter uma companhia jovem. Em segundo, ela costumava viajar, e a
familiaridade de Lily com os costumes de outros países – visto pelos seus
parentes mais conservadores como algo ruim – poderia ao menos permitir
que ela atuasse como um tipo de guia para a tia. Mas na verdade tais opções
não passaram pela cabeça de Mrs. Peniston. Ela resolveu ficar com a garota
simplesmente porque ninguém queria, e porque tinha um tipo de timidez
que dificultava a demonstração de egoísmo em público, apesar disso, não
interferir na licença para exercê-la na vida privada. Seria impossível para
Mrs. Peniston ser uma heroína em uma ilha deserta, mas com os olhos do
seu mundinho voltados para sua pessoa ela sentiu certa satisfação com o
ato.
Ela colheu a recompensa ao qual o desinteresse tem direito, mas
acabou descobrindo uma agradável companheira na sobrinha. Ela esperava
que Lily fosse teimosa, crítica e “de hábitos estrangeiros”, pois apesar de
Mrs. Peniston já ter viajado algumas vezes para fora do país, a família tinha
horror a estrangeiros. Contudo, a menina se mostrou dócil, o que, para uma
mente mais astuta do que a da sua tia, poderia ter sido menos confiável do
que o egoísmo explícito da juventude. O infortúnio transformara Lily numa
pessoa flexível em vez de endurecê-la, e uma substância maleável é mais
fácil de quebrar do que uma dura.
Mrs. Peniston, no entanto, não tinha a mesma capacidade de
adaptação da sobrinha. Lily não tinha intenção de se aproveitar da boa
natureza da tia. Na verdade, ficou grata pelo refúgio que lhe fora oferecido:
o opulento interior de Mrs. Peniston pelo menos não parecia ser pobre por
fora. Mas a pobreza é uma qualidade capaz de se disfarçar de várias
maneiras e logo Lily descobriu que esta era tão latente no estilo de vida
caro da sua tia quanto na estada provisória em uma pensão.
Mrs. Peniston era uma dessas pessoas episódicas que fazem parte das
massas. Era impossível imaginá-la como o centro das atenções. O fato mais
interessante sobre ela era que a sua avó tinha sido uma Van Alstyne. Este
parentesco com a casta abastada e bem alimentada família do início de
Nova York revelava-se na pureza glacial da sala de estar de Mrs. Peniston e
na excelência da sua cozinha. Ela pertencia às famílias tradicionais de nova-
iorquinos que sempre viveram bem, se vestiam bem e não faziam muito
mais do que isso; e Mrs. Peniston cumpria estas obrigações herdadas
fielmente. Ela sempre foi uma espectadora da vida, e sua mente lembrava
aqueles espelhos que seus antepassados holandeses costumavam afixar nas
janelas superiores, para que assim pudessem ver o que estava acontecendo
na rua das profundezas de uma domesticidade impenetrável.
Mrs. Peniston possuía uma casa de campo em Nova Jersey, mas ela
nunca mais voltara para lá desde a morte do marido; um acontecimento
remoto, mas que parecia habitar em sua memória como um divisor de águas
nas reminiscências pessoais que formavam o tópico principal das suas
conversas. Ela era uma mulher que se recordava de datas com precisão, e
era capaz de dizer sem hesitar se as cortinas da sala de estar tinham sido
trocadas antes ou depois da última doença de Mr. Peniston.
Mrs. Peniston considerava a vida no campo solitária, com suas
árvores úmidas e nutria um vago receio de topar com um touro. Para se
proteger de tais contingências ela costumava frequentar locais mais
movimentados, onde se instalava em uma casa alugada de onde via a vida
passar através da tela de proteção da sua varanda. Sob os cuidados de tal
guardiã, Lily logo percebeu que só iria poder aproveitar as vantagens da boa
comida e roupas caras; e, embora estivesse longe de desprezá-los, ela os
trocaria de bom grado pelo que Mrs. Bart a ensinara a ver como
oportunidades. Ela adorava imaginar tudo que ela e a mãe teriam feito se
tivessem sido contempladas com os recursos de Mrs. Peniston. Lily tinha
energia de sobra, mas se viu obrigada a refreá-la pela necessidade de se
adaptar aos hábitos da tia, pois percebera que deveria a todo custo se manter
de bem com Mrs. Peniston até, como diria Mrs. Bart, que ela pudesse andar
com as próprias pernas. Lily não se importava com a vida errante da tia, e
para se adaptar à Mrs. Peniston ela até chegara a assumir, até certo ponto, a
atitude passiva da senhora. No começo ela achou que ia ser fácil atrair a tia
para o turbilhão da sua vida agitada, mas havia uma força estática em Mrs.
Peniston contra a qual os esforços da sobrinha foram gastos em vão. Tentar
engajá-la em uma relação de atividade com a vida foi o mesmo que tentar
arrastar um móvel parafusado ao chão. Na verdade, ela não esperava que
Lily permanecesse igualmente imóvel: ela tinha toda a indulgência dos
guardiões americanos para a volatilidade da juventude.
Assim como também era indulgente para com outros hábitos da
sobrinha. Parecia natural para ela que Lily gastasse todo seu dinheiro com
vestidos, e, ocasionalmente, ela complementava a parca renda da moça com
“agradinhos” para serem aplicados com o mesmo propósito. Lily, que era
muito prática, preferia uma mesada fixa; mas Mrs. Peniston gostava de
mostrar sua gratidão periodicamente através de cheques inesperados, e,
talvez, fosse astuta o bastante para perceber que tal método mantinha vivo o
salutar senso de dependência da sobrinha.
Além disso, Mrs. Peniston não se sentiu no dever de fazer mais nada
pela sua protegida, e, assim, simplesmente permaneceu à parte e deixou que
esta fosse à luta. Lily foi, primeiro com a confiança de posse garantida,
depois as exigências foram diminuindo, até que por último ela se viu
lutando para se firmar no amplo campo que antes parecia todo seu. Como as
coisas tinham chegado a esse ponto, ela não sabia. Às vezes achava que
Mrs. Peniston tinha sido muito passiva, mas depois desconfiava que ela é
que não tinha sido passiva o suficiente. Será que não mostrara
indevidamente uma ânsia muito grande de vencer? Será que lhe faltara
paciência, flexibilidade e dissimulação? No fim das contas não fazia a
menor diferença se culpasse a si mesma ou se absolvesse das falhas que a
levaram ao fracasso. Dúzias de meninas bonitas e jovens tinham se casado e
ela com vinte e nove anos ainda era Miss Bart.
Ela estava começando a se revoltar com o destino, quando pensou em
abandonar a corrida e conquistar uma vida independente. Mas que tipo de
vida seria? Ela mal tinha dinheiro para pagar a conta da modista e suas
dívidas de jogo e nenhum dos interesses aleatórios que ela classificava
como “preferências” parecia promissor o bastante para ela viver bem na
obscuridade. Ela sabia que odiava a pobreza tanto quanto sua mãe, e por
conta disso pretendia lutar até o seu último suspiro contra isso, emergindo
repetidas vezes acima desta maré até alcançar o ápice do sucesso que se
apresentava na forma de uma superfície difícil de ser alcançada.
Capítulo 4
Na manhã seguinte, Miss Bart encontrou um bilhete da sua anfitriã na
bandeja do desjejum.
– Querida Lily – estava escrito – se não for muito incômodo, você
poderia descer por volta das dez até a sala de estar para me ajudar com uns
assuntos chatinhos?
Lily jogou para o lado o bilhete e afundou sobre os travesseiros com
um suspiro. Era um incômodo descer por volta das dez – a hora em
Bellmonte era vagamente sincronizada com o nascer do sol – e ela sabia
muito bem qual era a natureza desses assuntos chatos. Miss Pragg, a
secretária, tinha sido solicitada na cidade, e havia convites e cartões de
agradecimento de jantares para escrever, uma porção de endereços a serem
procurados e outras obrigações sociais a serem cumpridas. Estava implícito
que Miss Bart preenchesse tal lacuna em tais emergências, e, normalmente,
ela cumpria suas obrigações sem reclamar.
Mas hoje, no entanto, o sentimento de servidão se renovou com a
lembrança da consulta ao talão de cheques realizada na noite anterior. Tudo
ao seu redor despertava um sentimento de calma e amenidade. As janelas
estavam abertas para o frescor reluzente das manhãs de setembro, e entre os
ramos amarelos ela avistou sebes e canteiros dando certa formalidade às
variações livres do parque. Sua criada tinha deixado um fogo agradável na
lareira, que competia com os raios de sol que incidiam sobre o tapete verde
e nos contornos laterais torneados da antiga escrivaninha em marchetaria.
Próxima à cama havia uma mesinha que servia de apoio para a sua bandeja
de café da manhã, com peças de porcelana e prata combinando, um
arranjinho de violetas em um vasinho delicado, e o jornal da manhã
dobrado embaixo da correspondência. Não havia nada de novo para Lily
nestes símbolos de luxo estudado; contudo, apesar de fazerem parte da sua
atmosfera, eles nunca perderam o encanto para ela. A simples exibição
despertou nela uma sensação de distinção superior; pois ela tinha uma
afinidade para todas as manifestações sutis da riqueza.
A convocação de Mrs. Trenor, no entanto, fez com que se lembrasse
da sua situação de dependência, e ela levantou e se vestiu com uma
irritabilidade que normalmente era muito prudente para se deixar afetar.
Sabia que tais sentimentos deixavam marcas no rosto assim como no caráter
e ela estava disposta a tomar cuidado com as ruguinhas que sua pesquisa da
meia-noite revelara.
O tom natural da saudação de Mrs. Trenor irritou-a ainda mais. Se
alguém é tirado da cama a uma hora daquelas e desce linda e radiante para a
monotonia de escrever convites, esta pessoa merece algum reconhecimento
especial pelo seu sacrifício. Mas o tom de Mrs. Trenor não demonstrou
nenhum tipo de consciência do fato.
– Oh, Lily, que bondade a sua – ela mal sussurrou entre o caos de
cartas, notas e outros documentos domésticos que davam um toque
comercial que não combinava com a elegância da escrivaninha.
– Tenho tantas coisas chatas para fazer hoje – adicionou, abrindo um
espaço no meio da confusão e levantando para ceder seu lugar à Miss Bart.
Mrs. Trenor era uma mulher alta e bonita, cuja altura a salvava da
redundância. Seu loiro-avermelhado sobrevivera a quarenta anos de
atividades inúteis sem mostrar muito traços de desgaste, exceto por uma
suave mudança nas feições. Era difícil defini-la sem dizer que ela tinha
nascido para ser uma anfitriã, não porque fosse dotada de instinto
exagerado de hospitalidade, mas porque ela não suportaria a vida se não
estivesse cercada de gente. A natureza coletiva dos seus interesses a
dispensavam das rivalidades comuns ao seu sexo, e ela não conhecia maior
emoção pessoal do que o ódio pela mulher que supostamente tinha
oferecido um jantar maior ou uma festa mais divertida do que a sua. Seus
talentos sociais, patrocinados pela conta bancária de Mr. Trenor, quase
sempre lhe assegurava a posição de triunfo absoluto em tais competições, e
o sucesso acabou desenvolvendo nela uma natureza inescrupulosamente
boa com relação ao restante do seu sexo, e, de acordo com o ranque
utilitário das amigas de Miss Bart, Mrs. Trenor ocupava a posição da
mulher menos provável de lhe “dar as costas”.
– Foi simplesmente desumano Pragg ter ido embora agora – declarou
Mrs. Trenor, enquanto a amiga se sentava à escrivaninha. – Ela disse que a
irmã vai ter um bebê; como se isso se comparasse ao planejamento para
receber pessoas em casa! Estou certa de que vou fazer a maior confusão e
um péssimo arranjo de lugares. Quando eu estava em Tuxedo convidei um
monte de gente para a semana que vem, mas perdi a lista e não consigo me
lembrar de quem vem. E esta semana também vai ser um fracasso e depois
Gwen Van Osburgh vai voltar e dizer para a mãe o quanto as pessoas
estavam entediadas aqui. Pensei em convidar os Wetherall, mas isso foi um
erro do Gus. Eles não gostam de Carry Fisher, sabe. Como se alguém
pudesse deixar de convidar Carry Fisher! Foi tolice dela se divorciar pela
segunda vez, Carry sempre exagera; mas ela disse que o único jeito de tirar
um centavo de Fisher foi se divorciando dele e fazendo-o pagar uma pensão
alimentícia. A pobre Carry é obrigada a cortar cada dólar. É um absurdo
Alice Wetherall fazer tanto barulho por causa disso, quando todos sabem
que a sociedade caminha para isto. Outro dia alguém disse que haverá um
divórcio e um caso de apendicite em todas as famílias. Além do mais, Carry
é a única pessoa que consegue deixar Gus de bom-humor quando estamos
recebendo pessoas chatas. Você já percebeu que todos os maridos gostam
dela? Todos, menos o dela. Ela foi muito esperta em se especializar em
divertir pessoas aborrecidas, o campo de atuação é amplo, e é praticamente
só dela. Sem dúvida ela tem suas compensações. Sei que ela pegou dinheiro
emprestado do Gus, mas eu seria capaz de pagar para ela para mantê-lo de
bom- humor, sendo assim não tenho do que reclamar.
Mrs. Trenor fez uma pausa para assistir ao espetáculo de Miss Bart
tentando desvendar a confusão da sua correspondência.
– Mas é apenas os Wetherall e Carry – ela recomeçou, com um novo
tom de lamento. – A verdade é que estou muito desapontada com lady
Cressida Raith.
– Desapontada? Você já a conhecia?
– Céus, não! Nunca a vi até ontem. Lady Skiddaw a recomendou aos
Van Osburgh, e ouvi dizer que Maria Van Osburgh pretendia dar uma festa
nesta semana para conhecê-la, por isso achei que seria divertido roubá-la, e
Jack Stpeney, que a conheceu na Índia, cuidou disso para mim. Maria ficou
furiosa e teve a imprudência de fazer Gwen se convidar para vir aqui, para
que assim eles não ficassem de fora, mas se eu soubesse como lady
Cressida era, teria deixado ela todinha para eles! Mas imaginei que
qualquer pessoa amiga dos Skiddaw certamente seria divertida. Você se
lembra do quão divertida era lady Skiddaw? Chegou um momento que
simplesmente tive de mandar as meninas para o quarto. Além do mais, lady
Cressida é irmã da duquesa de Beltshire, e, naturalmente, achei que ela seria
parecida. Mas nunca se pode ter certeza de nada em se tratando daquelas
famílias inglesas. Elas são tão grandes que têm espaço para todos os tipos.
Portanto, acabei descobrindo que lady Cressida é a moralista, casada com
um clérigo e que faz trabalho voluntário em East End. Imagine todo o
trabalho que tive por causa da mulher de um clérigo que usa joias indianas e
gosta de botânica! Ela fez Gus levá-la até a estufa ontem e quase o matou
de tédio perguntando os nomes das plantas. Tratou Gus como se ele fosse o
jardineiro!
Mrs. Trenor contou isso num crescendo de indignação.
– Bem, talvez lady Cressida consiga fazer com que os Wetherall se
reconciliem com Carry Fisher – disse Miss Bart pacificamente.
– Espero que sim! Mas ela vai cansar todos os homens, e se começar a
distribuir panfletos, o que ouvi dizer que ela costuma fazer, vai ser o fim. O
pior é que ela seria tão útil no momento certo. Você sabe que costumamos
receber o bispo uma vez por ano e ela daria o tom certo à ocasião. Sempre
dou azar com as visitas do bispo – adicionou Mrs. Trenor, cujo desgosto
estava sendo alimentado por uma enxurrada de lembranças. – No ano
passado, quando ele veio, Gus se esqueceu totalmente que ele viria e trouxe
para casa os Ned Winton e os Farley: cinco divórcios e seis pares de
crianças entre eles!
– Quando lady Cressida chega? – inqueriu Lily.
Mrs. Trenor lançou um olhar desesperado.
– Minha querida, seu ao menos eu soubesse! Eu estava com tanta
pressa de me livrar de Maria que acabei me esquecendo de marcar o dia e
Gus disse que ela falou para alguém que pretendia passar o inverno todo
aqui.
– Aqui? Nesta casa?
– Não, na América. Mas se ninguém mais a convidar… você sabe que
eles nunca ficam em hotéis.
– Talvez Gus só tenha dito isso para assustá-la.
– Não. Eu a ouvi dizendo para Bertha Dorset que ela tem seis meses
de folga enquanto seu marido estiver fazendo um tratamento em Engadine.
Você precisava ver a cara de desentendida da Bertha! Mas sem brincadeira,
se ela resolver passar o outono inteiro aqui ela vai estragar tudo, e Maria
Van Osburgh simplesmente vai adorar.
Só de pensar nisso a voz de Mrs. Trenor estremeceu de dó de si
mesma.
– Oh, Judy, como se alguém ficasse entediado em Bellmomont! –
Miss Bart protestou com jeitinho. – Você sabe muito bem que, se Mrs. Van
Osbrugh pegasse todas as pessoas certas e deixasse para você as erradas,
você iria dar um jeito de fazer as coisas funcionarem e ela não.
Tal garantia normalmente teria restaurado a complacência de Mrs.
Trenor, mas dessa vez não conseguiu espantar a ruguinha de preocupação
da sua testa.
– O problema não é apenas lady Cressida – ela lamentou. – Tudo deu
errado nesta semana. Sei que Bertha Dorset está furiosa comigo.
– Furiosa com você? Por quê?
– Porque falei para ela que Lawrence Selden viria, mas ele não virá e
ela é insensata o suficiente para achar que a culpa é minha.
Miss Bart baixou a caneta e ficou olhando distraída para o convite que
tinha começado a escrever.
– Achei que estivesse tudo acabado – comentou.
– Acabou da parte dele. E claro que Bertha está ociosa desde então.
Mas acho que ela está sem ter o que fazer no momento, e alguém me deu
uma dica de que seria melhor convidar Lawrence. Bem, eu o convidei, mas
não consegui convencê-lo a vir; e agora creio que ela vai se vingar de mim,
sendo desagradável com todos os outros.
– Oh, ela pode se vingar dele sendo encantadora… com outra pessoa.
Mrs. Trenor balançou a cabeça desanimada.
– Ela sabe que ele não iria se importar. E quem mais estará aqui?
Alice Wetherall está sempre de olho em Lucius. Ned Silverton não tira os
olhos de Carry Fisher… coitado! Gus se cansa de Bertha, Jack Stepney a
conhece muito bem, e, bem, tem Percy Gryce!
Ela sorriu com a ideia.
O semblante de Miss Bart não refletiu o sorriso.
– Oh, é pouco provável que ela e Mr. Gryce combinem.
– Você quer dizer que ela o chocaria e ele a deixaria entediada? Bem,
até que não é um mau começo, sabe. Mas espero que ela não resolva ser
simpática com ele, pois o convidei por sua causa.
Lily riu.
– Obrigada pelo elogio! Certamente eu não teria chances contra
Bertha.
– Você acha que não estou sendo lisonjeira? Na verdade, estou. Todo
mundo sabe que você é mil vezes mais bonita e mais inteligente do que
Bertha, mas só que você não é malvada. E por sempre acabar conseguindo o
que quer, eu a vejo como uma mulher perversa.
Miss Bart fitou com um olhar de reprovação.
– Achei que você gostasse da Bertha.
– Ah, eu gosto. É mais seguro ser amiga de pessoas perigosas. Mas
ela é perigosa e estou certa de que ela está tramando alguma coisa. Posso
perceber pelo jeito do pobre George. Aquele homem é um verdadeiro
barômetro. Ele sempre sabe quando Bertha vai…
– Aprontar? – sugeriu Miss Bart.
– Não faça essa cara! Você sabe que ele ainda acredita nela. E claro
que não vou dizer que exista algum mal verdadeiro em Bertha, mas ela
adora magoar as pessoas, principalmente o pobre George.
– Bom, ele parece perfeito para esse papel. Não é de admirar que ela
procure por companhias mais divertidas.
– Ah, George não é tão chato quanto você imagina. Se Bertha não o
aborrecesse ele poderia ser uma pessoa diferente. Ou se ela o deixasse em
paz, e o deixasse seguir a vida como bem entendesse. Mas ela não o
abandona por causa do dinheiro, e por isso quando ele não está com ciúme,
mas ela finge estar.
Miss Bart continuou escrevendo em silêncio e a anfitriã seguiu dando
vazão a sua linha de raciocínio com o cenho franzido.
– Sabe! – exclamou ela após uma longa pausa. – Acho que vou
telefonar para Lawrence e pedir para ele vir?
– Ah, não faça isso – disse Lily com um rubor que a surpreendeu
tanto quanto à sua anfitriã, que, apesar de não ser uma boa observadora das
mudanças faciais, ficou olhando confusa.
– Minha nossa, Lily, como você é bonita! Mas, por quê? Você não
gosta dele tanto assim?
– De forma alguma; gosto dele. Mas se estiver fazendo isso para me
proteger da Bertha, não creio que eu precise da sua proteção.
Mrs. Trenor se endireitou no assento com uma exclamação.
– Lily!… Percy? Você está insinuando que fez isso?
Miss Bart sorriu.
– Só quero dizer que Mr. Gryce e eu estamos nos tornando bons
amigos.
– Hum, sei – Mrs. Trenor fitou-a de modo arrebatador. – Dizem que
ele tem uma retirada de oitocentos mil por ano e que não gasta nada, exceto
com alguns livros velhos. E a mãe tem uma doença no coração e vai deixar
muito mais para ele. Oh, Lilly, vá devagar – sua amiga a aconselhou.
Miss Bart continuou sorrindo imperturbável.
– Eu jamais iria, por exemplo – apontou ela – me precipitar e dizer
que ele tem um monte de livros velhos.
– Oh, eu não quis dizer isso. Além do mais, ele nem levaria a sério –
disse Mrs. Trenor com astúcia. – Mas você sabe que, às vezes, as coisas
aqui ficam um tanto animadas. Vou dar uma dica para o Jack e o Gus, caso
ele pense que você é o que a mãe dele chamaria de avançadinha… Ah, bem,
você sabe o que quero dizer. Não use aquele seu vestido de crepe de seda
vermelho no jantar e não fume se conseguir se segurar, Lily querida!
Lily empurrou para o lado o trabalho concluído com um sorrisinho
sem graça.
– É muita gentiliza sua, Judy. Vou guardar meus cigarros e usar aquele
vestido que você mandou para mim nesta manhã. Se estiver realmente
interessada no meu futuro, talvez, faça a bondade de não me convidar para
jogar bridge outra vez nesta noite.
– Bridge? Ele também não gosta de bridge? Oh, Lily, que vida chata
você terá! Mas é claro que não a convidarei. Por que não me avisou na noite
passada? Não tem nada que eu não faria para vê-la feliz, bobinha!
E Mrs. Trenor, esbanjando o desejo característico ao seu sexo de
facilitar o caminho do amor verdadeiro, envolveu Lily em um longo abraço.
– Você tem certeza – adicionou solícita, enquanto a última se
desvencilhava – que não quer que eu telefone para Lawrence Selden?
– Absoluta – respondeu Lily.
***
***
Na casa de Mrs. Fisher, em meio a fumaça de cigarro que envolvia o
atelier, uma dúzia de vozes saldou Selden. Estava tocando uma música
quando ele entrou, e ele sentou ao lado da anfitriã, enquanto seus olhos
buscavam por Miss Bart. Mas ela não estava lá, e a descoberta causou uma
pontada despropositada; uma vez que o bilhete que trazia no bolso
assegurava que eles iriam se encontrar às quatro horas do dia seguinte. Para
sua impaciência era uma eternidade, e meio sem jeito, ele se aproximou de
Mrs. Fisher para perguntar, quando a música terminou, se Miss Bart tinha
jantado com ela.
– Lily? Ela acabou de sair. Teve que ir correndo, me esqueci para
onde. Ela não estava maravilhosa, ontem à noite?
– Quem? A Lily? – perguntou Jack Stepney, sentado em uma
poltrona, ao fundo. – Sério, você sabe que não sou puritano, mas ver uma
garota exposta como se estivesse em um leilão; pensei seriamente em falar
com a tia Julia.
– Você sabia que Jack virou o nosso fiscal da sociedade? – disse Mrs.
Fisher para Selden com uma risada; e Stepney resfolegou, em meio à
gargalhada coletiva: – Mas ela é minha prima, sabe, e quando um homem se
casa… O Town Talk só falava dela hoje de manhã.
– Sim, bela leitura – comentou Mr. Ned Van Alstyne, mexendo no
bigode para tentar disfarçar uma risadinha. – Pensa que comprei o
jornaleco? Claro que não; um amigo me emprestou, mas eu já tinha ouvido
umas histórias antes. Quando uma moça é bonita daquele jeito é melhor se
casar logo, para acabar com os falatórios. A nossa sociedade imperfeita
ainda não oferece espaço para moças que usufruem dos privilégios do
casamento sem assumir as suas obrigações.
– Bem, entendi que Lily está prestes a assumi-las com Mr. Rosedale –
disse Mrs. Fisher com uma risada.
– Rosedale, céus! – exclamou Van Alstyne, olhando para o seu copo.
– Stepney, a culpa é sua por ter nos provocado.
– Oh, você deve ter entendido errado, nenhum membro da nossa
família se casaria com Rosedale – protestou Stepney preguiçosamente, mas
sua esposa, que se encontrava numa posição desconfortável no outro
extremo da sala, o confrontou com a seguinte sentença: – Na situação que
Lily se encontra é um erro manter um padrão tão alto.
– Ouvi dizer que até mesmo Rosedale se assustou com as últimas
fofocas – retomou Mrs. Fisher –, mas a apresentação dela de ontem à noite
o fez perder a cabeça. O que acha que ele disse para mim depois do Tableau
dela? ‘Minha nossa, Mrs. Fisher, seu eu pudesse mandar Paul Morpeth
pintar um retrato dela daquele jeito, o quadro iria valer cem vezes mais
dentro de dez anos’”.
– Minha nossa, mas ela não está por aqui? – exclamou Van Alstyne,
retomando seu copo com um olhar ansioso.
– Não, ela foi embora enquanto vocês estavam preparando o ponche,
lá embaixo. Por falar nisso, para onde ela foi? O que está acontecendo nesta
noite? Não fiquei sabendo de nada.
– Oh, acho que não foi para uma festa – disse o jovem e ingênuo
Farish que tinha chegado atrasado. – Ela pegou o mesmo coche que cheguei
e deu o endereço da casa dos Trenor.
– Os Trenor?! – exclamou Mrs. Jack Stepney. – Mas não tem ninguém
em casa, Judy telefonou para mim de Bellomont, hoje à tarde.
– É mesmo? Estranho. Tenho certeza de que ouvi direito. De qualquer
maneira Trenor está em casa, se bem que… não ouvi falar – ele parou,
advertido pelo chute de um pé ao lado, e pelas risadinhas ao redor.
Durante a descoberta desagradável, Selden se levantou e estava
trocando um aperto de mão com a anfitriã. O ar estava sufocante, e ele se
perguntou como aguentara ficar tanto tempo ali.
Na soleira da porta, ele parou, lembrando-se de uma das frases de
Lily:
“Tenho a impressão de que você passa muito tempo em um ambiente
que desaprova”.
Bem, o que o levara ali senão a busca por ela? Aquele era o ambiente
dela, não o seu. Mas ele poderia tirá-la dali e levá-la para longe! Aquele
Além! Na carta dela parecia um grito de socorro. Ele sabia que a missão de
Perseu não chegara ao fim quando ele libertou Andrômeda das correntes,
pois suas pernas estavam fracas para sustentá-la e caminhar depois de ter
ficado tanto tempo presa, mas ela se agarrou a ele com força enquanto ele
voava de volta para a Terra, carregando seu fardo. Bem, ele tinha força
pelos dois – foi a fraqueza dela que lhe dera forças. Mas, infelizmente, não
era uma sucessão de ondas cristalinas que eles precisavam vencer, mas um
pântano de lama formado por associações e hábitos antigos, e naquele
momento os vapores deste pântano atingiam seu pescoço. Mas mesmo
assim ele conseguia enxergar com clareza, respirar livremente na presença
dela: ela era o mesmo tempo o peso morto no seu peito e a tábua de
salvação. Ele riu das metáforas que tentava construir para se defender das
influências da última hora. Era uma pena que ele, que conhecia os motivos
sobre os quais pairavam o julgamento da sociedade, ainda se deixasse
abalar tanto por estes. Como ele poderia alçar Lily para uma visão de vida
mais liberal, se a visão que tinha dela era influenciada pelas mentes onde
ele a via refletida?
A opressão moral tinha causado uma falta de ar física e ele saiu
andando e expandindo os pulmões para o ar frio da noite. Na esquina da
Quinta Avenida Van Alistyne fez sinal, oferecendo companhia.
– Vai caminhar? Faz bem para se livrar do cheiro de fumaça. Agora
que as mulheres também estão fumando, parece que vivemos mergulhados
em uma banheira de nicotina. Seria interessante estudar os feitos do cigarro
nos dois sexos. A fumaça tem uma capacidade de dispersão quase tão boa
quanto à do divórcio: ambos tendem a obscurecer a questão moral.
Nada poderia ter destoado menos do humor de Selden do que os
aforismos pós-jantar de Van Alstyne, mas enquanto o último se limitava as
generalidades os nervos do primeiro estavam controlados. Felizmente, Van
Alstyne se orgulhava da sua capacidade de resumir os aspectos sociais e
com Selden como espectador ele ansiava por exibir seu talento. Mrs. Fisher
morava a leste do Central Parque, e à medida que os dois desciam a Quinta
Avenida as novas construções arquitetônicas da via versátil convidaram Van
Alstyne a fazer o seguinte comentário:
– Veja a casa de Greniner, trata-se de um típico degrau social! O
homem que construiu veio de um meio onde todos os pratos são colocados
à mesa de uma só vez. A fachada arquitetônica é um banquete completo; se
tivesse omitido um estilo seus amigos poderiam pensar que ele estava sem
dinheiro. Não foi uma má compra para Rosedale: chama a atenção e atrai os
visitantes do oeste. Com o tempo ele vai sair dessa fase e vai querer algo
menos chamativo. Especialmente se casar com a espertinha da minha
prima…
Selden entrou no assunto:
– E a casa dos Wellington Bry? Tem um estilo bem melhor, não acha?
Eles estavam diante de uma imensa fachada branca, com linhas ricas
contidas, que sugeria a contenção dentro de um espartilho de um corpo de
formas avantajadas.
– Este é o estágio seguinte: o desejo de mostrar que esteve na Europa
e adotou os padrões. Estou certo de que Mrs. Bry pensa que sua casa é uma
cópia do Trianon; na América todas das casas forradas com mármore e
decoradas com móveis dourados são consideradas cópia do Trianon. Muito
inteligente este arquiteto: sabe refletir a imagem de seus clientes! Ele usou a
de Mrs. Bry para compor a sua obra. Agora veja a dos Trenor, lembre-se,
ele escolheu o estilo coríntio: exuberante, mas baseado nos melhores
precedentes. A casa dos Trenor é uma das suas melhores criações, não
parece uma sala de jantar do avesso. Ouvi dizer que Mrs. Trenor quer
construir um novo salão de baile e a divergência de Gus por isso a tem
mantido em Bellomont. As medidas do salão de baile dos Bry devem estar
dando nos nervos dela. Pode estar certo de que ela sabe direitinho quanto
mede como se tivesse estado lá na noite passada. Por falar nisso, quem disse
que ela estava na cidade? Foi o Farish? Mas ela não está, sabe; Mrs.
Stepney estava certa; a casa está escura, como pode ver, suponho que Gus
deve ocupar o quarto dos fundos.
Ele tinha parado na esquina oposta à da casa de Trenor e Selden foi
forçado a diminuir o passo também. A casa estava escura e parecia vazia;
apenas um facho alongado de luz acima da porta indicava a ocupação
provisória.
– Eles compraram a casa que ficava no fundo, isso deu a eles mais
45.000 metros na rua lateral. É lá que ficará o salão de baile, com uma
galeria ligando a ele, a sala de jogos e assim por diante. Sugeri que
mudassem a entrada e colocassem a sala de estar de frente para a Quinta
Avenida. Está vendo a porta da frente combina com as janelas…
A bengala que Van Alstyne usava para apontar caiu com um estalo
quando a porta se abriu e duas silhuetas surgiram contra a luz do vestíbulo.
Logo em seguida, um coche parou junto ao meio fio, e uma das figuras saiu
apressada num farfalhar de tecidos finos; enquanto a outra, escura e
volumosa, permaneceu parada, projetada contra a luz.
Durante um tempo indeterminado os dois espectadores do incidente
permaneceram calados; então a porta da casa fechou, o coche foi embora e
a cena passou como num giro de um estereoscópio.
Van Alstyne baixou o monóculo com um assovio.
– Hum… não é nada disso que você está pensando, hein, Selden? Sei
que posso contar com você como se fosse da família, as aparências
enganam, a iluminação da Quinta Avenida não é nada boa…
– Boa noite – disse Selden, virando a rua, sem olhar para a mão
estendida do outro.
***
***
***
No quartinho abafado do hotel para onde tinha ido assim que chegou,
Lily Bart repassou toda a sua situação, naquela noite. Era a última semana
de junho, e nenhuma das suas amigas estava na cidade. Os poucos parentes
que tinham ficado, ou voltado, para a leitura do testamento de Mrs.
Peniston, tinham partido novamente naquela tarde para Newport ou Long
Island; e nenhum deles ofereceu hospitalidade a Lily. Pela primeira vez na
sua vida ela se viu totalmente sozinha, com a exceção de Gerty Farish. Nem
mesmo no momento do rompimento com os Dorset ela teve noção das
consequências, pois a duquesa de Beltshire, quando ficou sabendo da
catástrofe por lorde Hubert, na hora ofereceu sua proteção, e sob a asa dela
Lily praticamente triunfou em Londres. Lá, ela se viu tentada a se demorar
um pouco mais em uma sociedade que só lhe pedia para diverti-los e
encantá-los, sem perguntas curiosas de como ela tinha adquirido todo
aquele talento. Mas Selden, antes de se despedirem, a pressionou para que
voltasse o quanto antes para a tia, e lorde Hubert, assim que chegou a
Londres, reforçou o mesmo conselho. Ninguém precisou dizer para Lily
que a companhia da duquesa não era o melhor caminho para a reabilitação
social, e assim como sabia que sua nobre defensora a qualquer momento
poderia trocá-la por uma nova protegida, ela resolveu, ainda que relutante,
retornar para a América. Mas não fazia nem dez minutos que tinha pisado
na sua terra natal quando se deu conta de que tinha demorado muito para
voltar. Os Dorset, os Stepney, os Bry – todos os personagens e testemunhas
do drama infeliz – já tinha voltado e dado a versão deles sobre o caso; e,
mesmo que tivesse tido uma chance de ser ouvida, um desdém e uma
relutância a teriam impedido de fazê-lo. Ela sabia que não seria por meio de
explicações e contra-acusações que iria conseguir recuperar o posto
perdido; mas mesmo que achasse que isto poderia adiantar alguma coisa,
mesmo assim ela teria se segurando pelo mesmo sentimento que a impediu
de se defender para Gerty Farish – um sentimento que era uma mistura de
orgulho com humilhação. Pois embora soubesse que tinha sido cruelmente
sacrificada em nome da determinação de Bertha Dorset de recuperar o
marido, e embora a sua relação com Dorset não passasse de uma simples
amizade, desde o começo ela sabia que seu papel era, assim como Carry
Fisher tinha colocado brutalmente, distrair a atenção de Dorset da esposa.
Era “para isso” que ela estava lá: este foi o preço que ela escolheu pagar por
três meses de luxo e liberdade. Seu hábito de encarar os fatos de modo
resoluto, nos seus raros momentos de introspecção, agora não lhe permitia
encobrir com um brilho falso a situação. Ela estava sofrendo as
consequências por ter cumprido a sua parte do trato implícito, mas a parte
não era nada bonita, e, agora, via isso em toda a feiura do fracasso.
Viu também, sob a mesma luz intransigente, a corrente de
consequências resultante desse fracasso; e isto foi se tornando claro dia
após dia, após sua chegada. Ela buscou pelo conforto da amizade de Gerty
Farish em parte por que não sabia para onde ir. Sabia muito bem a natureza
do desafio que teria de enfrentar. Teria de se preparar para recuperar, aos
poucos, a posição que tinha perdido; e o primeiro passo deste desafio
cansativo era descobrir, assim que possível, quantas eram as amigas com
quem ainda poderia contar. Suas esperanças estavam centradas em Mrs.
Trenor, que costumava desculpar com facilidade aqueles que a divertiam ou
lhe eram úteis, e que mesmo em meio ao murmurinho da voz da difamação
ainda podia ser ouvida. Mas Judy, que embora tivesse ficado sabendo sobre
o retorno de Miss Bart, não enviou nem mesmo um telegrama de
condolências que o luto da amiga requeria. Qualquer tentativa de
aproximação por parte de Lily poderia ser perigosa: não havia nada a fazer
além de confiar na sorte de um encontro casual, e Lily sabia que, apesar de
a temporada estar terminando, sempre havia uma esperança de cruzar com
uma de suas amigas em uma de suas frequentes visitas a cidade.
Com este intuito apareceu várias vezes nos restaurantes que elas
frequentavam, onde, acompanhada da preocupada Gerty, almoçava sem
medir as despesas, como ela dissera, por sua conta.
– Minha querida, Gerty, você não vai querer que o maître pense que
não tenho nada para viver além da herança da tia Julia? Imagine a satisfação
de Grace Stepney se ela aparecer e ver que estamos almoçando carne de
carneiro fria e chá! Que sobremesa vamos pedir hoje, querida: Coupe
Jacques ou pêssegos melba?
Ela soltou o cardápio abruptamente, com um rubor súbito, e Gerty,
acompanhando seu olhar, percebeu o avanço vindo do salão do fundo, de
um grupo encabeçado por Mrs. Trenor e Carry Fisher. Seria impossível para
essas damas e seus acompanhantes – entre os quais Lily já tinha distinguido
Trenor e Rosedale – não passarem, ao saírem, pela mesa onde as duas
estavam sentadas; e Gerty mostrou que estava ciente deste detalhe por meio
de um tremor incontrolável. Miss Bart, ao contrário, se inclinou para frente
num gesto delicado, e não se encolheu com a aproximação dos amigos ou
aparentou expectativa, dando assim ao encontro o mesmo toque de
naturalidade que era capaz de demonstrar nas situações mais tensas. Os
constrangimentos ficaram a cargo de Mrs. Trenor, manifestados com uma
mistura de calor exagerado com certa reserva. Sua alegria exagerada ao ver
Miss Bart assumiu a forma de uma generalização nebulosa, que não incluiu
perguntas sobre o seu futuro e tão pouco expressou um desejo de encontrá-
la novamente. Lily, versada na linguagem destas omissões, sabia que elas
também tinham sido compreendidas pelos outros membros do grupo: até
mesmo Rosedale, roborizado como estava pela importância de estar em
meio a tais companhias, na hora percebeu o grau da cordialidade de Mrs.
Trenor, e refletiu isso ao cumprimentar Miss Bart sem estender a mão.
Trenor, vermelho e desconfortável, safou-se da situação com a desculpa de
que precisava falar com o maître, e o restante do grupo saiu no rastro de
Mrs. Trenor.
Tudo acabou muito rápido – o garçom, com o cardápio na mão,
esperando para anotar a escolha do Coupe Jacks e do Pêssego Melba – mas
Miss Bart, neste intervalo, teve uma dimensão do seu destino. Judy Trenor
era um modelo a ser seguido por todo mundo; e Lily se sentiu como um
náufrago condenado à morte que vê em vão as velas indo embora.
Ela se lembrou, então, das reclamações de Mrs. Trenor sobre a
voracidade de Carry Fisher, e percebeu que elas denotavam um inesperado
conhecimento sobre a vida particular do seu marido. No grande tumulto da
vida em Bellomont, onde ninguém parecia ter tempo para observar
ninguém, e os interesses pessoais e objetivos particulares passavam
despercebidos na correria das atividades coletivas, Lily se sentia protegida
de um olhar mais atento; mas se Judy ficou sabendo quando Mrs. Fisher
pegou dinheiro emprestado do seu marido, será que teria ignorado a mesma
transação por parte de Lily? Se por um lado ela não se preocupava com as
escapadas dele, por outro ela morria de ciúme do bolso dele; e pensando
nisso Lily entendeu o motivo da repulsa dela. O resultado imediato destas
conclusões foi um grande desejo de quitar de uma vez por todas suas
dívidas com Trenor. Uma vez livre desta obrigação, restaria apenas mil
dólares da herança de Mrs. Peniston, e nada mais para viver além da sua
pequena renda, que era consideravelmente menor do que a miséria que
Gerty Farish ganhava; mas isto foi esquecido em nome do seu orgulho
ferido. Primeiro ela precisava ficar livre dos Trenor; depois disso pensaria
no futuro.
Na sua ignorância sobre as procrastinações legais ela imaginou que
sua parte da herança seria paga alguns dias depois da leitura do testamento
da tia; e após um período de espera ansiosa, ela escreveu para saber a causa
da demora. Houve outro intervalo de espera antes de o advogado de Mrs.
Peniston, que era também um dos executores, responder que por conta de
alguns pontos relativos à interpretação do testamento terem sido levantados,
ele e seus sócios não poderiam liberar o pagamento da herança antes final
dos doze meses legalmente previstos para a liquidação. Perplexa e
indignada, Lily tentou um apelo pessoal; mas retornou da empreitada com
uma sensação de que a beleza e o charme não tinham nenhum poder sobre
os processos insensível da lei. A ideia de viver mais um ano sob o peso da
sua dívida parecia intolerável; em seu desespero, ela procurou Miss
Stepney, que ainda se encontrava na cidade, imensa no agradável dever de
“aceitar” os efeitos da sua benfeitora. Foi muito amargo para Lily ter de
pedir um favor para Grace Stepney, mas a alternativa era pior; e numa
manhã ela compareceu à casa de Mrs. Peniston, onde Grace, para facilitar a
árdua missão, tinha tomado como moradia provisória.
A estranheza de entrar como uma pedinte na casa que ela dominara
por tanto tempo, aumentou o desejo de Lily de dar cabo o quanto antes à
questão; e quando Miss Stepney entrou na sala de estar escura, farfalhando
seu traje de crepe da melhor qualidade, a visitante foi direito ao ponto: será
que ela poderia adiantar a sua parte da herança?
Grace, em resposta, chorou e ponderou sobre o pedido, lamentou a
inflexibilidade da lei, e ficou surpresa ao descobrir que Lily não sabia que
as duas se encontravam na mesma situação. Será que ela estava pensando
que apenas a sua parte ainda não tinha sido paga? Pois, Miss Stepney
também não tinha recebido nem um centavo ainda da herança, e estava
pagando aluguel – sim, estava! – pelo privilégio de morar em uma casa que
era sua. Ela tinha certeza de que este não era o desejo da querida tia Julia –
chegou a dizer isso na cara dos executores; mas eles não tinham bom senso,
e não restava mais nada a fazer senão esperar. Que Lily seguisse seu
exemplo, e tivesse paciência – que as duas se lembrassem do quão paciente
tia Julia sempre foi.
Lily fez um gesto que mostrou que não tinha entendido muito bem o
exemplo.
– Mas você vai ficar com tudo, Grace… seria fácil para você me
emprestar dez vezes mais do que a quantia que estou lhe pendido.
– Emprestar, seria fácil para eu emprestar? – Grace Stepney se
levantou enfurecida. – Você imaginou por um momento que eu levantaria
dinheiro contando com o que vou receber da tia Julia, quando sei muito
bem o horror indescritível que ela tinha por teste tipo de transação? Para
dizer a verdade, Lily, foram as suas dívidas que a fez adoecer, você se
lembra de que ela teve um pequeno ataque antes da sua partida. Oh, não sei
dos detalhes, é claro, e não quero saber, mas correram boatos sobre o seu
caso que a deixaram muito triste… todo mundo podia perceber. Não posso
fazer nada se ficou ofendida pelo que acabei de lhe dizer, se houver algo
que eu possa fazer para que você perceba a insensatez de seus atos, e o quão
profundamente ela os desaprovou, sinto que este será o único modo de fazê-
la sentir pela perda dela.
Capítulo 5
Lily teve a impressão, assim que a porta de Mrs. Peniston se fechou
para ela, de que estava se despedindo da sua antiga vida. O futuro se
mostrava sombrio e vazio como a deserta Quinta Avenida, e as
oportunidades tão escassas quanto os poucos coches que passavam à cata de
um passageiro que não aparecia. Mas a concretude da analogia foi
interrompida assim que ela pisou na calçada e um coche parou ao vê-la.
Sob a capota carregada de bagagem, ela viu uma mão acenando; e em
seguida Mrs. Fisher desceu, e a envolveu em um abraço.
– Não me diga que você ainda está na cidade, querida? Quando a vi
outro dia no Sherry’s não tive tempo de perguntar… – ela parou, e
adicionou num rompante de franqueza: – A verdade é que agi muito mal, e
desde então estou para lhe dizer isso.
– Oh… – Miss Bart protestou, afastando-se do afago de culpa; mas
Mrs. Fisher prosseguiu com sua franqueza habitual: – Escute, Lily, vamos
deixar de rodeios: metade dos problemas da vida acontece por fingirmos
que não existem. Mas este não é o meu estilo, e só posso dizer que estou
tremendamente envergonhada por ter seguido a liderança de outras
mulheres. Mas depois falaremos disso; agora me diga onde você está
hospedada e quais são seus planos. Não acho que esteja dividindo o teto
com Grace Stepney, está? Tenho a impressão de que você está em
dificuldade.
No estado de espírito de Lily que se encontrava não havia por que
tentar resistir à oferta sincera de amizade, e ela disse com um sorriso:
– Estou em dificuldades no momento, mas Gerty Farish ainda está na
cidade, e ela tem me feito companhia sempre que tem um tempo livre.
Mrs. Fisher soltou um leve sorriso.
– Hum… que uma companhia sóbria. Oh, eu sei, a companhia de
Gerty é um trunfo, e vale muito mais do que a de todas nós juntas; mas você
está acostumada com um pouquinho mais de tempero, não está, querida?
Além do mais, creio que logo ela irá partir, no dia primeiro de gosto, foi
isso que você falou? Escute, você não pode passar o verão inteiro na cidade;
mas vamos falar sobre isso também depois. Por agora, o que acha de fazer
uma malinha e ir comigo para a casa dos Sam Gormer, hoje à noite?”
Enquanto ponderava sobre o inesperado convite irresistível, Lily
manteve seu sorriso fácil.
– Você não os conhece e eles não conhecem você; mas isso não tem
problema. Eles compraram a casa de Van Alstyne em Roslyn, e recebi carta
branca para levar os amigos que quiser; quanto mais, melhor. Eles sabem
receber bem, e haverá uma festa muito divertida neste final de semana… –
ela parou, detida pela mudança de expressão de Miss Bart. – Oh, não se
trata do povo que você já conhece: é um grupo totalmente diferente, mas
muito divertido. A verdade é que, os Gormer seguem a linha deles: e o que
eles querem é se divertirem, e do jeito deles. Eles experimentaram o outro
lado por alguns meses, sob a minha tutela, e estavam indo muito bem,
aprendendo mais rápido do que os Bry, porque eles não se preocupam
muito, mas, de repente, eles se cansaram, e que perceberam o que queriam
mesmo era estarem entre pessoas com quem pudessem se sentir mais à
vontade. Muito original da parte deles, não acha? Mattie Gormer ainda tem
aspirações; as mulheres sempre têm; mas ela é muito sossegada, e Sam não
vai se incomodar, e os dois gostam de serem o centro das atenções, por isso
eles criaram um estilo próprio de vida, é um tipo de Coney Island social,
onde todos são bem-vindos e podem se divertir à vontade desde que não
sejam esnobes. Acho muito divertido: é um pessoal do meio artístico, sabe,
qualquer atriz em ascensão, e assim por diante. Neste final de semana, por
exemplo, eles vão receber Audrey Anstell, que fez um tremendo sucesso no
último verão com ‘The Winning of Winny’; e Paul Morpeth, ele vai pintar o
retrato de Mattie Gormer, e os Dick Bellinger, e Kate Corby, enfim, um
monte de gente divertida. Não fique parada com esse nariz empinado,
minha querida, vai ser bem melhor do que passar o domingo escaldante na
cidade, e você terá uma chance de conhecer gente inteligente e divertida.
Morpeht, que admira muito a Mattie, sempre leve uma ou duas pessoas do
seu meio.
Mrs. Fisher empurrou Lily na direção do coche com uma autoridade
amistosa.
– Entre logo, minha querida, vamos para o seu hotel arrumar as suas
coisas, depois podemos tomar um chá, e nossas criadas podem nos
encontrar no trem.
***
***
Miss Bart foi com os Gomer para o Alaska; e a viagem, se não
produziu o resultado almejado pela sua amiga, teve ao menos a vantagem
negativa de tirá-la do centro nervoso do criticismo e falatórios. Gerty Farish
se opôs ao plano com toda a energia da sua natureza um tanto inarticulada.
Chegou até a dizer que iria desistir da sua visita ao Lago George, e ficar na
cidade com Miss Bart, se esta também desistisse da sua; mas Lily conseguiu
disfarçar o verdadeiro motivo pelo qual detestou o plano com uma boa
desculpa.
– Você é tão inocente, minha querida, não percebe – ela protestou –
que Carry está certa, e que preciso retomar à minha vida, e circular entre o
maior número de pessoas possível? Se meus antigos amigos optaram por
acreditar em mentiras sobre a minha pessoa então devo arrumar novos
amigos, é isso; e você sabe que pedintes não podem se dar ao luxo de
escolher muito. Não que eu não goste de Mattie Gormer, gosto dela: ela e
gentil e franca, e não é afetada; e não pense que não sou grata a ela por ter
me recebido quando, como você mesma viu, minha própria família lavou as
mãos para mim?
Gerty balançou a cabeça, sem se convencer. Além de achar que Lily
estava se rebaixando a recorrer a uma amizade que jamais teria cultivado
por opção própria, mas por que, ao retomar ao seu antigo estilo de vida, ela
estava desperdiçando a sua última chance de escapar disso. Gerty fazia uma
vaga ideia do que tinha Lily passado: mas suas consequências tinham
deixado um sentimento de pena duradouro desde a noite memorável quando
ela abriu mão das suas esperanças secretas em nome do desespero da amiga.
Para personagens como Gerty, tal sacrifício representa uma reivindicação
moral em nome da pessoa beneficiada. Depois de ter ajudado Lily uma vez,
ela teria de continuar ajudando; e ao ajudá-la, ela precisava acreditar nela,
pois a fé é a mola propulsora em tais naturezas. Mas mesmo que Miss Bart,
após retomar seu gosto pelas comodidades da vida, voltasse para a aridez de
agosto em Nova York, mitigada apenas pela presença da pobre Gerty, sua
sabedoria de vida a acolheria contra tal ato de abnegação. Ela sabia que
Carry Fisher estava certa: que uma ausência oportuna era o primeiro passo
para a reabilitação, e que, de qualquer maneira, ficar na cidade fora da
temporada era uma admissão fatal de fracasso. Da agitada viagem em
companhia dos Gormer pelo continente pelo natal deles, ela retornou com
uma visão distinta da sua situação. O hábito renovado do luxo – o despertar
todos os dias sem ter de se preocupar com a presença ou acesso aos bens
materiais – gradualmente atenuou seu apreço por estes bens, deixando-a
mais consciente do vazio que eles não eram capazes de preencher. A boa-
natureza sem preconceitos de Mattie Gormer, e seu círculo social de amigos
despretensiosos, que tratavam Lily como tratavam uns aos outros – todas
essas nuances de diferenças começaram a fortalecer a sua resistência; e
quanto mais motivos ela via para criticar seus companheiros, menos
justificativas encontrava para se aproveitar deles. A ânsia de retomar para o
seu meio se transformou em uma ideia fixa: mas junto com o fortalecimento
da sua determinação veio a inevitável noção de que, para atingir seus
objetivos, ela deveria, mais uma vez, fazer novas concessões ao seu
orgulho. Concessões estas que se concretizaram na desagradável forma de
continuar pendurada aos seus anfitriões após o retorno da viagem ao
Alaska. Aos poucos ela acabou se tornando o centro do círculo social deles,
sua imensa facilidade de socialização, sua antiga capacidade de se adaptar
aos outros sem se omitir, a habilidade de aplicar todos seus recursos, a
ajudou a conquistar um posto importante no grupo dos Gormer. Se a alegria
esfuziante deles nunca seria sua, ela ao menos contribuiu com uma nota de
elegância mais valiosa para Mattie Gormer do que a passagem barulhenta
de uma banda. Sam Gormer e seus companheiros na verdade não deram
muita importância para ela: mas os seguidores de Mattie, encabeçados por
Paul Morpeth, levaram-na a perceber que eles a valorizavam exatamente
pelas qualidades que lhes faltavam. Apesar de Morpeth, cuja indolência
social era tão grande quanto seus talentos artísticos, ter se entregado a
existência fácil com os Gormer, onde as pequenas exigências de cortesia
eram desconhecidas ou ignoradas, e onde um homem podia quebrar suas
promessas, ou mantê-las vestindo robe e chinelos, ele ainda preservou seu
discernimento, e o apreço pelas qualidades que ele não tinha tempo de
cultivar. Durante os preparativos para o Tableax dos Bry ele ficou
impressionado com as perspectivas artística de Lily – “não o rosto: muito
controlado para se expressar; mas todo o restante dela – céus, que modelo
ela daria!” – e apesar da sua aversão pelo mundo onde a conhecera ainda
ser muito grande para ele pensar em voltar lá para procurar por ela, ele
ficou muito contente por ter tido o privilégio de poder olhar para ela e ouvi-
la enquanto relaxava na sala de estar bagunçada de Mattie Gormer.
Desta maneira, Lily acabou formando, no tumultuado círculo onde
estava inserida, um pequeno núcleo de relações amistosas que serviu para
diminuir a crueza da realidade de continuar com os Gormer depois do
retorno deles. Mesmo assim ela não perdeu de vista, ainda que a distância,
as coisas o que estavam acontecendo no seu mundo, especialmente após o
final da temporada em Newport que arrastou a corrente social de volta para
Long Island. Kate Corby, cujos gostos a tornaram tão promíscua quanto
Carry Fisher, vivia presa as suas necessidades, vez ou outra recorria aos
Gormer, onde, após o primeiro impacto de surpresa, viu a presença de Lily
como algo normal. Mrs. Fisher, que também costumava aparecer com
frequência, vinha compartilhar suas experiências e dar a Lily o que ela
chamava de o último relatório meteorológico; e esta, apesar de nunca ter
solicitado diretamente a sua confidência, mesmo assim se sentia mais à
vontade com ela do que com Gerty Farish, em cuja presença era impossível
até mesmo admitir a existência de tudo que Mrs. Fisher convenientemente
considerava certo.
Mrs. Fisher, além disso, não fazia perguntas embaraçosas. Não tinha
intenção de investigar a fundo a situação de Lily, mas simplesmente
observar tudo de fora, e chegar as suas conclusões; e uma destas conclusões
foi compartilhada com a amiga, mais uma vez, ao final de uma conversa
confidencial, de maneira sucinta:
– Você precisa se casar o mais rápido possível.
Lily soltou uma risadinha – pela falta de originalidade de Mrs. Fisher.
– Você está querendo dizer, assim como Gerty Farish, que o remédio é
o amor de um homem bom?
– Não, não acho que nenhum dos meus candidatos corresponda a essa
descrição – disse Mrs. Fisher após uma pausa para pensar.
– Nenhum? Você tem dois?
– Bem, talvez fosse mais correto dizer um e meio, por enquanto.
Miss Bart achou isso ainda mais engraçado.
– Do jeito que vão as coisas, acho que prefiro meio marido: quem é
ele?
– Não brigue comigo antes que eu possa explicar: George Dorset.
– Oh! – exclamou Lily num tom de reprovação; mas Mrs. Fisher não
se deu por vencida.
– Por que, não? Eles passaram algumas semanas em lua de mel depois
que voltaram da Europa, mas agora as coisas estão ficando ruim outra vez.
Bertha tem se comportado como uma maluca, e a capacidade de George de
aguentar as crueldades estão se esgotando. Eles estão na casa daqui, e
passei a última semana com eles. Foi um encontro horrível, não foi
ninguém, além do pobre Neddy Silverton, que parecia um servo (eles
costumavam dizer que eu deixava o pobre garoto infeliz!)… e depois do
almoço George me convidou para uma longa caminhada, e me contou que o
final estava próximo.
Miss Bart fez um gesto incrédulo.
– Do jeito que as coisas são, o fim nunca chegará. Bertha sempre
saberá como trazê-lo de volta quando quiser.
Mrs. Fisher prosseguiu com seu discurso tentador.
– Não se ele tiver outra pessoa a quem recorrer! Sim, esta é a verdade:
a pobre criatura não consegue se sustentar sozinha. E lembro que ele era um
sujeito muito bom, cheio de vida e entusiasmo – ela fez uma pausa e
continuou desviando o olhar de Lily: – Ele não teria ficado dez minutos
com ela se soubesse…
– Soubesse…? – repetiu Miss Bart.
– Você sabe, por exemplo, com as oportunidades que você teve! Se
ele tivesse uma demonstração positiva, quer dizer…
Lily a interrompeu com um rubor de contrariedade.
– Por favor, vamos mudar de assunto, Carry: é muito repulsivo para
mim.
E para desviar a atenção da amiga ela adicionou, numa tentativa de
atenuar o clima: – E o seu segundo candidato? Não podemos nos esquecer
dele.
Mrs. Fisher ecoou a risada dela.
– Não sei se você vai esbravejar tanto quanto antes quando eu disser:
Rosedale?
Miss Bart não esbravejou: ela ficou calada, olhando pensativa para a
amiga. A sugestão, na verdade, deu voz a uma possibilidade que nas últimas
semanas, mais de uma vez tinha lhe ocorrido; mas após um momento ela
disse com desdém:
– Mr. Rosedale quer uma esposa que possa colocá-lo no convívio
íntimo com os Van Osburgh e os Trenor.
Mrs. Fisher emendou ansiosa.
– E isso que você poderia fazer, com o dinheiro dele! Não vê como
funcionaria para os dois?
– Não vejo nenhum modo de fazê-lo enxergar isso – retomou Lily,
com uma risada insinuando que estava na hora de mudar de assunto.
Mas na verdade o tema persistiu em seus pensamentos após a partida
de Mrs. Fisher. Desde que se aliara aos Gormer ela o tinha visto em poucas
ocasiões, pois ele ainda tinha fortes esperanças de entrar no paraíso do qual
ela tinha sido expulsa; mas uma ou duas vezes, na ausência de um convite
melhor, ele apareceu num domingo, e nestas ocasiões não deixou nenhuma
dúvida quanto à visão que tinha da situação dela. Que ainda a admirava,
mais do que nunca, ainda era ofensivamente evidente; pois no círculo dos
Gormer, onde ele circulava como se estivesse em casa, não restava
nenhuma dúvida quanto à plena expressão da sua aprovação. Mas foi na
expressão da sua admiração que ela leu o modo como ele qualificava
astutamente a sua situação. Ele adorou mostrar para os Gormer que já
conhecia “Miss Lily” – pois ela era “Miss Lily” para ele agora – antes
mesmo de eles existirem socialmente. Adorou mais ainda impressionar Paul
Morpeth ao dizer que a intimidade vinha de longa data. Mas deu a entender
que tal intimidade tratava-se de uma mera ondulação na superfície da
correnteza social, o tipo de relaxamento que um homem, de grandes
interesses e preocupações, se dá ao luxo nas horas vagas.
A necessidade de aceitar esta versão da relação passada deles, e de ver
isso como motivo de chacota entre seus novos amigos, foi profundamente
humilhante para Lily. Mas agora, mais do que nunca, ela não ousaria brigar
com Rosedale. Ela desconfiava que sua rejeição figurava entre as mais
inesquecíveis que ele já tinha sofrido, e o fato de que ele saber algo sobre o
seu triste desfecho com os Trenor, e a certeza de que jogaria a culpa nela,
parecia colocá-la de modo inevitável nas mãos deles. Por mais que não
gostasse de Rosedale, ela já não o desprezava mais terminantemente. Pois
aos poucos ele estava atingindo seu objetivo de vida, e isso, para Lily,
sempre foi menos desprezível do que perdê-lo. Com a persistência lenta e
inabalável que ela sempre reconhecera nele, ele estava conseguindo abrir
seu caminho em meio a massa densa dos antagonismos sociais. A sua
riqueza, e o uso magistral que fazia dela, já estavam lhe dando fama o
suficiente no mundo dos negócios, e sujeitando Wall Street a obrigações
que apenas a Quinta Avenida poderia pagar. Como resultado, seu nome
começou a figurar nos comitês municipais e comissões de beneficentes; ele
foi convidado para banquetes de desconhecidos e a sua candidatura para se
tornar membro de um dos clubes da moda foi discutida sem grandes
oposições. Foi convidado uma ou duas vezes para os jantares dos Trenor, e
aprendeu a falar com o tom exato de desdém dos casos dos Van Osburgh; e
agora só lhe faltava uma esposa cuja filiação pudesse encurtar os últimos
passos da sua cansativa escalada. Foi com este objetivo, que, um ano antes,
ele expôs seus afetos a Miss Bart; mas neste intervalo ele chegou bem perto
de atingir seu objetivo, enquanto ela perdeu o poder de abreviar os passos
que ainda faltavam. Tudo isso ela viu com a clareza de visão que a acometia
nos momentos de desânimo. Foi o sucesso que a cegou – mas agora, no
crepúsculo do fracasso, ela conseguia enxergar tudo com clareza. E este
crepúsculo, agora que procurava analisar profundamente, aos poucos se
iluminava com uma faísca de esperança. Camuflado nos motivos utilitários
da corte de Rosedale, ela viu, com toda clareza, o calor das inclinações
pessoais dele. Não o detestava tanto a ponto de negar que sabia que ele
ousara admirá-la. E se a paixão ainda persistisse, apesar de o outro motivo
ter deixado de existir? Ela nunca tentara agradá-lo – apesar do desdém ele
se sentiu atraído por ela. E se agora ela resolvesse exercer o poder que, até
mesmo em seu estado passivo, ele sentira tão fortemente? Se se ela o
fizesse se casar por amor, agora que ele não tinha outro motivo?
Capítulo 6
Como tinham se tornado pessoas importantes, os Gormer resolveram
construir uma casa de campo em Long Island; e parte das obrigações de
Miss Bart era acompanhar seus anfitriões nas frequentes visitas de inspeção
da obra. Lá, enquanto Mrs. Gormer se ocupava com problemas de
iluminação e saneamento, Lily tinha o prazer de passear, sob o sol intenso
de outono, ao longo da baía margeada de árvores. Apesar de não ser muita
adepta a solidão, aqueles momentos acabaram se tornando uma fuga bem-
vinda dos ruídos vazios da sua vida. Estava cansada de se deixar levar pelas
correntes do prazer e dos negócios dos quais não fazia parte; cansada de ver
outras pessoas correndo atrás de diversão e esbanjando dinheiro, enquanto
ela tinha a sensação de que não passava de um brinquedo caro nas mãos de
uma criança mimada.
Foi com este retrato em mente que, enquanto se afastada da costa
numa manhã, por uma trilha desconhecia, ela topou com a figura de George
Dorset. A casa de Dorset ficava ao lado do terreno recém-adquirido pelos
Gormer, e em uma das suas viagens de carro para lá com Mrs. Gormer, Lily
viu de longe uma ou duas vezes o casal; mas eles orbitavam numa esfera
tão diferente que ela não considerou a possibilidade de um encontro direto.
Dorset, caminhando distraído de cabeça baixa, só viu Miss Bart
quando chegou mais perto; mas a visão, em vez de fazê-lo parar, como ela
esperava, fez com ele se movesse ao encontro dela com uma ansiedade
expressa na maneira como a cumprimentou.
– Miss Bart! Ainda somos amigos, não somos? Eu esperava encontrá-
la, eu deveria ter escrito se tivesse tido coragem.
Sua fisionomia, com seus cabelos ruivos em desalinho e o bigode
penteado, tinha certa agitação, como se a vida tivesse se transformado em
uma corrida incessante entre ele mesmo e os pensamentos que o
perseguiam.
Isso fez com que Lily o cumprimentasse com compaixão, e ele se
adiantou, como se encorajado pelo tom dela:
– Eu queria pedir desculpa… pedir que me desculpasse pelo papel que
fiz…
Ela o desculpou com um gesto rápido.
– Não vamos falar disso, senti muito por você – disse ela, com uma
pontinha de desdém que, como ela percebeu, não passou despercebida por
ele.
Ele ficou com vergonha dos olhos abatidos, com tanta vergonha que
ela se arrependeu do impulso.
– Você tem toda razão, permita que eu me explique. Fui enganado:
terrivelmente enganado…
– Sinto mais ainda, então – ela interpôs, com ironia, – mas entenda
que não sou a melhor pessoa para falar sobre esse assunto.
Ele ouviu isso surpreso.
– Por que, não? Afinal, é para você que devo uma explicação…
– Não é preciso explicar nada: a situação ficou muito clara para mim.
– Ah… – ele murmurou, baixando cabeça novamente, e sua mão
indecisa tocou num arbusto. Mas quando Lily fez um movimento para
seguir em frente, ele rompeu com uma nova veemência: – Miss Bart, pelo
amor de Deus não dê as costas para mim! Nós éramos amigos, você sempre
foi gentil comigo… e não imagina o quanto estou precisando de um amigo
agora.
A fraqueza lamentável de suas palavras causou uma pontada de
piedade no peito de Lily. Ela também precisava de amigos, tinha
experimentado a dor da solidão; e o ressentimento pela crueldade de Bertha
Dorset amoleceu seu coração para o pobre coitado que era a maior vítima
de Bertha.
– Ainda quero ser gentil; não tenho nada contra você – disse ela. –
Mas depois do que aconteceu não podemos voltar a ser amigos, não
podemos nos encontrar.
– Ah, como você é boa, como é generosa… sempre foi! – ele a fitou
com seu olhar triste. – Mas por que não podemos ser amigos… por que não,
se estou tão arrependido? É justo me condenar pela falsidade e traição dos
outros? Já fui punido o bastante, não há trégua para mim?
– Achei que tivesse encontrado toda a trégua na reconciliação que se
deu às minhas custas – iniciou Lily, impaciente; mas ele a interrompeu,
implorando:
– Não fale assim, desse que foi o pior castigo para mim. Meu Deus! O
que eu poderia ter feito, que poder eu tinha? Você foi escolhida como bode
expiatório. Qualquer coisa que eu dissesse teria sido usada contra você…
– Já disse que não o culpo; só peço que entenda que, depois do modo
como Bertha me usou, depois das consequências acarretadas pelo
comportamento dela, é impossível que nós nos encontremos.
Em sua fraqueza, ele continuou parado diante dela.
– Precisa ser assim? Nestas circunstâncias…? – ele parou para pensar
novamente, arrancando as ervas daninhas ao redor. Então retomou: – Miss
Bart, escute, só peço um minuto. Se não pudermos nos encontrar
novamente, então ao menos me escute agora. Você diz que não podemos ser
amigos depois… depois do que aconteceu. Mas posso ao menos apelar pela
sua piedade? Não irá se comover se eu pedir que me veja como um
prisioneiro… um prisioneiro que só você pode libertar?
A surpresa de Lily transpareceu um ligeiro rubor: seria mesmo
possível que esse fosse o sentido dos comentários de Carry Fisher?
– Não vejo como posso ajudá-lo – ela murmurou, recuando por conta
do olhar cada vez mais agitado dele.
Seu tom pareceu acalmá-lo, como tinha feito tantas vezes nos
momentos de nervosismo dele. As linhas de seu rosto relaxaram, e ele disse,
com certa docilidade: – Você veria, se fosse tão boa como costumava ser: e
Deus sabe o quanto estou precisando de ajuda!
Ela parou por um momento, comovida, contra vontade, pela
lembrança da influência que exercia sobre ele. Suas fibras tinham sido
amaciadas pelo sofrimento, e o rápido vislumbre da vida triste e desgraçada
que ele estava levando desarmou o desprezo que sentia por sua fraqueza.
– Sinto muito, eu o ajudaria de bom grado, mas você deve ter outros
amigos, outros conselheiros.
– Nunca tive uma amiga como você – ele respondeu simplesmente. –
Além do mais, não percebe? Você é a única – sua voz se transformou num
sussurro – a única que sabe de tudo.
Mais uma vez ela sentiu a cor mudando; mais uma vez seus
batimentos cardíacos aceleraram para esperar o que ela sentia que estava
por vir. Ele ergueu os olhos, implorando.
– Você percebe, não? Entende? Estou desesperado… estou ficando
sem forças. Quero ficar livre, e você pode me libertar. Você sabe que pode.
Você não quer que eu continue preso neste inferno, quer? Não é possível
que queira se vingar desta maneira. Você sempre foi boa, seus olhos exalam
bondade neste momento. Você diz que sente muito por mim. Bem, cabe a
você mostrar isso; e Deus sabe que nada a impede. Claro que você sabe de
tudo, ninguém iria ficar sabendo, nada seria dito que pudesse ligá-la a isso.
Nunca chegaria a esse ponto, você sabe: tudo que preciso é poder falar com
certeza: ‘Sei disso… e daquilo… e daquilo’… e a briga chegaria ao fim, a
caminho estaria limpo, e todo esse negócio nojento esquecido num piscar
de olhos.
Ele falava de modo ofegante, como se fosse um corredor cansado,
com pausas entre uma palavra e outra; e entre as pausas ela percebeu, como
se fossem raios dourados penetrando através da neblina, chances de paz e
segurança. Pois não restavam dúvidas quanto à intenção por trás do vago
apelo; ela teria sido capaz de preencher as lacunas até mesmo sem as
insinuações anteriores de Mrs. Fisher. Ali estava um homem que tinha se
voltado para ela no momento extremo de humilhação e solidão: se ela o
socorresse em um momento como aquele ele seria seu com todas as forças
da sua fé desiludida. E o poder de colocá-lo na palma da sua mão – estava
lá de um modo tal que ele nem podia imaginar. Ela poderia se vingar e se
reabilitar num piscar de olhos – havia algo de fascinante na plenitude da
oportunidade.
Ela permaneceu calada, olhando além dele para a paisagem de outono
que se entendia pela trilha deserta. E de repente, foi tomada pelo medo –
medo por ela mesma, e pela força terrível da tentação. Todas as suas
fraquezas passadas pareciam empurrá-la na direção do caminho aos seus
pés, que parecia tão suave. Ela virou rapidamente, e estendeu a mão para
Dorset.
– Adeus… sinto muito, mas não tem nada que eu possa fazer.
– Nada? Ah, não diga isso! – ele gritou. – Diga a verdade: que você
me abandonou assim como os outros. Você, a única que poderia me salvar!
– Adeus… adeus – ela repetiu apressada; e enquanto se afastava ainda
uma última súplica:
– Pelo menos permita que eu a veja uma vez mais?
***
***
Foram poucas as vezes que Lily viu Rosedale desde a sua conversa
humilhante com Mrs. Fisher, mas nas duas ou três ocasiões quando eles se
encontraram, ela notou que estava caindo cada vez mais nas graças dele.
Não havia dúvida de que ele a admirava tanto quanto antes, e ela achou que
cabia a ela mesma alimentar tal admiração ao ponto se tornar impossível
evitar a convivência. Não era um desafio fácil; mas também não era fácil,
durante as longas noites sem dormir, encarar a ideia do que George Dorset
estava prestes a pedir a sua mão. Baixeza por baixeza, ela odiava menos a
primeira opção: havia momentos em que o casamento com Rosedale
parecia ser a única saída honrada para seus problemas. Mas ela não permitia
que sua imaginação voasse além do dia do pedido. Depois que aquela tarde
caiu em uma névoa de bem-estar material, onde a imagem do seu benfeitor
pairava vagamente distante. Ela tinha aprendido, durante as longas vigílias,
que havia certas coisas que era melhor nem pensar, certas imagens que
surgiam à meia-noite que deveriam ser exorcizadas a qualquer custo – e
uma destas imagens era a dela mesma como esposa de Rosedale.
Carry Fisher, como prêmio pelo sucesso dos Brys em Newport, tirou
um descanso merecido de alguns meses, no outono, em uma casinha em
Tuxedo; e foi para lá que Lily foi no domingo após a visita de Dorset.
Apesar de já estar quase na hora do jantar quando ela chegou, sua anfitriã
ainda não tinha chegado, e a casa silenciosa, iluminada pelo fogo da lareira
tocou seu espírito com uma sensação de paz e intimidade. Era de se duvidar
que tais sentimentos pudessem ter sido despertados na casa de Carry Fisher;
mas, comparado ao mundo que Lily estava vivendo, havia um clima de
repouso e estabilidade na disposição dos móveis e até mesmo no modo
calmo como a criada a conduziu até o seu quarto. A informalidade de Mrs.
Fisher, na verdade, não passava de uma mera divergência com as crenças
sociais herdadas, enquanto as atitudes do círculo social dos Gormer
representavam o primeiro passo para o estabelecimento de uma crença para
eles mesmos.
Era a primeira vez, desde que voltara da Europa, que Lily se
encontrava em uma atmosfera agradável, e a emoção despertada pelas
sensações conhecidas quase a fez pensar, enquanto descia a escada antes do
jantar, que iria encontrar um grupo de velhos amigos. Mas a expectativa
logo foi substituída pela noção de que os amigos que ainda eram leais eram
justamente aqueles os que menos queriam expô-la a tal encontro; e foi uma
surpresa quando ela encontrou, em vez desses amigos, Mr. Rosedale
ajoelhado no centro da sala de estar, numa cena doméstica, diante de uma
menininha que o recebia.
Nem no papel paternal a figura de Rosedale conseguiu amolecer o
coração de Lily; apesar de não ter deixado de notar uma bondade no modo
como se ele se dirigia a criança. O gesto, de qualquer maneira, não era um
carinho premeditado e superficial de um visitante sob o olhar da sua
anfitriã, pois ele e a menininha estavam sozinhos na sala; e algo na sua
atitude fez com que ele parecesse um ser simples e gentil comparado à
criaturinha que recebia a sua homenagem. Sim, ele podia ser gentil – Lily,
na entrada da sala, teve tempo de perceber isso – gentil no seu modo
grosseiro, inescrupuloso e explorador, do mesmo modo que o predador é
gentil com seu companheiro. Ela teve um momento apenas para decidir se a
visão do homem perto da lareira atenuava a sua repugnância ou, em vez
disso, dava a ela uma forma mais concreta e íntima, pois assim que a viu ele
se levantou, e era o mesmo Rosedale sanguíneo e dominador da sala de
estar de Mattie Gormer.
Não foi surpresa para Lily descobrir que ele tinha sido selecionado
como seu único companheiro de visita. Apesar de ela e sua anfitriã ainda
não terem se encontrado desde a tentativa da última de discutir seu futuro,
Lily sabia que a astúcia que garantia a Mrs. Fisher circular em segurança
num mundo de forças antagônicas era frequentemente usada a favor de seus
amigos. Esta era, na verdade, a característica de Carry que, enquanto
juntava ativamente seu próprio estoque no campo de influências, suas
simpatias verdadeiras estavam do outro lado – com as azaradas, as
excluídas, as fracassadas, com todas suas companheiras de labuta famintas
tentando agarrar as migalhas do sucesso.
A experiência de Mrs. Fisher a impediu de cometer o erro de expor
Lily, na primeira noite, única e exclusivamente a Rosedale. Kate Corby e
mais dois ou três homens apareceram para jantar, e Lily, atenta a todos os
detalhes da metodologia da amiga, percebeu que as oportunidades para ela
planejadas deveriam ser postergadas, por assim dizer, até que ela criasse
coragem para usá-las efetivamente. Ela concordou com o plano com a
mesma passividade que um paciente resignado se submete ao exame de um
médico; e esta sensação de desamparo quase letárgico persistiu quando,
após a partida dos convidados, Mrs. Fisher a seguiu para até o andar de
cima.
– Posso fumar um cigarro com você no seu quarto? Se ficarmos
conversando no meu vamos acordar a criança – Mrs. Fisher fitou-a com um
olhar solene de anfitriã. – Espero que esteja bem acomodada, querida? A
casinha não é muito simpática? É uma benção poder ter algumas semanas
de sossego com a minha filha.
Carry, em seus raros momentos de prosperidade, se tornava tão
maternal que Miss Bart as vezes conjecturava se, caso ela tivesse tempo e
dinheiro suficientes, não os usaria apenas com a filha.
– É um descanso merecido, posso dizer – ela continuou, sentando com
um suspiro satisfeito na poltrona próxima à lareira. – Louisa Bry é uma
controladora exigente, sinto saudades dos Gormer. Por falar em amor que
desperta inveja e desconfiança… isto não tem nada a ver com ambição
social! Louisa costumava passar a noite em claro pensando se as mulheres
que nos visitaram tinham vindo me visitar porque eu estava com ela, ou se
tinham vindo visitá-la porque ela estava comigo; e ela sempre tentava armar
armadilhas para tentar descobrir o que eu achava. Claro que tive de fingir
que não conhecia minhas velhas amigas para que ela não desconfiasse que
só estava fazendo novas amizades por causa de mim… quando, na verdade,
foi exatamente por isso que ela me manteve ao seu lado, e por isso que
assinou um belo cheque no final da temporada!
Mrs. Fisher não era uma mulher que costumava falar sobre si mesma
sem motivo, e a praticidade do discurso direto, longe de impedi-la de
recorrer ocasionalmente a métodos mais indiretos, funcionava, em
momentos cruciais, como a conversinha do trapaceiro enquanto ele puxa
sorrateiramente algo de dentro da manga. Através da fumacinha do cigarro
ela olhava pensativa para Miss Bart, que, tendo dispensado sua criada,
estava sentada diante da penteadeira escovando os cabelos que desciam
ondulados sobre os ombros.
– Seu cabelo é lindo, Lily. É mais fino…? Mas que diferença faz se
tem tanto brilho e vida? As preocupações de muitas mulheres parecem
refletir diretamente em seus cabelos, mas os seus parecem nunca ter
passado por nenhuma ansiedade. Nunca a vi tão linda quanto nesta noite.
Mattie Gormer me contou que Morpeth queria pintar um retrato seu… por
que você não deixou?
A resposta de Miss Bart foi endereçada com um olhar crítico a
imagem do rosto em discussão. Então ela disse, com um leve tom de
irritação:
– Não quis um retrato de Paul Morpeth.
Mrs. Fisher refletiu.
– Não. Especialmente agora… que ele pode pintar um seu depois de
casada – ela esperou um momento. Então, continuou: – Por falar nisso,
Mattie veio me visitar outro dia. Ela apareceu aqui sábado passado, e estava
com Bertha Dorset, imagine só!
Parou novamente para analisar o efeito do anúncio na sua ouvinte,
mas a escova na mão de Miss Bart desceu inabalada da testa até a nuca.
– Foi uma grande surpresa – prosseguiu Mrs. Fisher. – Nunca vi duas
mulheres menos predestinadas a intimidade, isto é, do ponto de vista de
Bertha; pois é claro que a pobre Mattie acha que é natural que ela seja
escolhia; não há dúvida de que o coelho sempre fica fascinado pela
anaconda. Bem, você sabe que sempre falei que Mattie sempre sonhou em
segredo circular na alta sociedade; e agora que a oportunidade surgiu, vejo
que ela é capaz de sacrificar todas as velhas amigas por isso.
Lily pousou a escova e virou um olhar penetrante na direção da
amiga.
– Inclusive eu? – ela sugeriu.
– Ah, minha querida – murmurou Mrs. Fisher, levantando para ajeitar
uma tora dentro da lareira.
– Esta é a intenção de Bertha, não é? – Miss Bart continuou
calmamente. – Pois ela sempre está tramando alguma coisa; e antes de
partir de Long Island vi que ela estava começando a armar algo para cima
de Mattie.
Mrs. Fisher soltou um suspiro evasivo.
– De qualquer maneira, ela está saboreando seu banquete agora. Em
pensar que toda aquela independência espalhafatosa de Mattie não passava
de uma forma de esnobismos oculta! Bertha já consegue fazê-la acreditar no
que ela quiser, e temo que ela tenha começado, minha querida, insinuando
coisas horríveis a seu respeito.
Lily ruborizou sob a sombra dos seus cabelos caídos.
– O mundo é muito ruim – murmurou, evitando o olhar ansioso de
Mrs. Fisher.
– Não é um lugar bom; e o único modo de manter os pés firmes é
lutando nos termos dele, e acima de tudo, minha querida, nunca sozinho! –
Mrs. Fisher resumiu suas insinuações de modo resoluto. – Você me contou
tão pouco que só pude supor o que aconteceu; mas na correria que vivemos
não dá tempo de odiar os outros sem motivo, e se Bertha ainda está
perdendo tempo em inventar coisas a seu respeito, só pode ser por que
ainda está com medo de você. Do ponto de vista dela só existe um motivo
para ter medo de você; e penso que, se quisesse se vingar dela, você
poderia. Acho que você pode se casar com George Dorset amanhã; mas se
não quiser recorrer a essa pequena vingança, a única coisa que pode salvá-la
de Bertha é se você se casar com outra pessoa.
Capítulo 7
A luz projetada sobre a situação por Mrs. Fisher tinha o mesmo tom
triste de um amanhecer de inverno. Ela realçava os fatos com uma precisão
fria e precisamente inalterada pelo sombreado ou pela cor; e refratava,
assim, das paredes brancas das limitações circundantes: ela tinha aberto as
janelas para onde não era possível ver o céu. Mas o idealista subjugado às
necessidades vulgares precisa recorrer a mentes vulgares para delinear as
interferências aos quais ele não é capaz de ceder; e foi mais fácil para Lily
permitir que Mrs. Fisher formulasse seu caso do que fazer ela mesma. Uma
vez confrontada, no entanto, ela abraçou o caso até as últimas
consequências; e estas nunca estiveram mais claras do que quando, na tarde
seguinte, ela saiu para passear com Rosedale.
Era um daqueles dias parados de novembro quando o ar ainda é
assombrado com a luz do verão, e algo nas linhas da paisagem, e no brilho
dourado que as banham, fez Miss Bart se lembrar da tarde de setembro
quando ela subiu as colinas de Bellomont com Selden. A lembrança
inoportuna se apresentou como um contraste irônico da sua situação atual,
uma vez que seu passeio com Selden representava um voou irresistível de
um clímax ao passo que o passeio atual tinha sido planejado para dar
resultados. Mas outras lembranças a importunaram também; a lembrança de
situações parecidas, tão habilidosamente arquitetas quanto, mas que por um
azar do destino, ou por sua falta de determinação, acabaram não atingindo o
resultado desejado. Bem, sua determinação era firme agora. Ela sabia que
teria de reiniciar o cansativo trabalho de reabilitação novamente, e contra
adversidades ainda maiores, caso Bertha Dorset conseguisse estragar a sua
amizade com os Gormer; e a sua necessidade de um abrigo e segurança se
tornou ainda mais importante por conta do desejo de Bertha de vencer a
qualquer custo, uma vez que somente a riqueza e a supremacia poderiam
vencê-la. Como esposa de Rosedale – o Rosedale que ela sentia que tinha
poder de criar – ela poderia ao menos apresentar uma fachada de
invulnerabilidade à sua inimiga.
Ela teve de se agarrar a esse pensamento, como se fosse um
estimulante potente, para conseguir desempenhar seu papel na cena para a
qual Rosedale mostrava sinais claros de que queria participar. Enquanto
caminhava ao lado dele, repudiando cada olhar e tom que ele tomava a
liberdade de dirigir a ela, e enquanto dizia a si mesma que suportar a
investidas era o preço que teria de pagar para dominá-lo definitivamente,
ela calculava o momento certo em que a concessão deveria se transformar
em resistência, e o preço que ele teria de pagar ficaria igualmente claro para
ele. Mas a sua autoconfiança atenta parecia impenetrável para tais sinais, e
ela sentiu que havia um autocontrole firme por trás de seus modos
superficialmente calorosos.
Eles estavam sentados há algum tempo em um vale rochoso isolado,
acima do lago, quando subitamente ela interrompeu o auge do momento
romântico, voltando-se para ele, com seu encantador olhar grave.
– Acredito quando diz, Mr. Rosedale – disse calmamente –, e estou
pronta para me casar com você quando desejar.
Rosedale, vermelho até as raízes do seu cabelo emplastrado, recebeu o
anúncio com um recuo que o levou a ficar de pé com um impulso, onde
ficou parado diante dela numa pose quase cômica de desconforto.
– Pois suponho que é isto que deseja – prosseguiu ela, no mesmo tom
calmo. – E, embora eu estivesse impossibilitada de aceitar quando falou
sobre isso comigo, agora, que o conheço bem melhor, estou pronta para
confiar a minha felicidade em suas mãos.
Ela falou do modo mais direito que conseguia em tais ocasiões, e que
foi como uma luz intensa lançada na escuridão tortuosa da situação. Sob o
foco inconveniente, Rosedale pareceu hesitar por um momento, como se
soubesse que cada rota de fuga estava iluminada, de modo desagradável.
Então ele soltou uma risadinha, e sacou uma cigarreira dourada, onde,
com seus dedos cheios de anéis, buscou um cigarro com a ponta dourada.
Escolheu um e parou para contemplá-lo por um momento antes de dizer:
– Minha querida, Miss Lily, sinto se houve algum mal-entendido entre
nós, mas você me fez acreditar que meu pedido era tão inútil que eu não
tinha intenção de renová-lo.
Lily ruborizou com a grosseria da rejeição; mas conteve o primeiro
ímpeto de raiva, e disse num tom de dignidade:
– Só posso culpar a mim mesma se lhe dei a impressão de que a
minha decisão era definitiva.
O jogo de palavras dela sempre foi muito rápido para ele, e essa
reposta o deixou emudecido enquanto ela estendeu a mão e adicionou, com
um leve tom de tristeza na voz:
– Antes de nos despedirmos, eu gostaria ao menos de agradecê-lo por
um dia ter pensado em mim.
O toque da mão dela, a delicadeza comovente de seu olhar, abalou
Rosedale. Foi a sua inacessibilidade requintada, a noção de distanciamento
que ela foi capaz de impor sem nenhuma sombra de desprezo, que tornou
difícil para ele desistir dela.
– Por que está falando em dizer adeus? Não podemos continuar sendo
bons amigos mesmo assim? – ele incitou, sem soltar a mão dela.
Ela retirou a mão calada.
– Qual é a sua ideia de ser bons amigos? – ela devolveu a pergunta
com um sorrisinho. – Fazer amor comigo sem me pedir em casamento? –
Rosedale riu, recuperando o bom humor.
– Bem, suponho que seja mais ou menos isso. Claro que eu gostaria
de fazer amor com você… que homem não gostaria; mas não pretendo
pedi-la em casamento enquanto puder evitar isso.
Ela continuou sorrindo.
– Aprecio a sua franqueza; mas não creio que nossa amizade possa
continuar em outros termos – ela virou, como se para mostrar que era o fim,
e ele a seguiu por alguns passos com uma sensação desconcertante de que o
jogo estava nas mãos dela novamente.
– Miss Lily… – ele iniciou, num impulso; mas ela seguiu, fingindo
que não tinha escutado.
Ele a alcançou com alguns passos largos, e a segurou pelo braço.
– Miss Lily… não corra assim. Esta sendo muito crítica; mas se não
se importa em falar a verdade, não entendo por que não tenho permissão
para fazer o mesmo.
Ela parou um momento com as sobrancelhas erguidas, esquivando-se
instintivamente da mão dele, apesar de não ter se esforçado para fugir das
palavras ditas.
– Tive a impressão – ela retomou –, de que fez isso sem esperar pela
minha permissão.
– Bem… por que não escuta meus motivos para isso, então? Não
somos mais tão jovens a ponto de nos ofendermos com uma conversa
franca. Gosto de você: isso não é nenhuma novidade. Estou mais
apaixonado por você do que estava nesta mesma época, no ano passado:
mas preciso encarar o fato de que a situação mudou.
Ela continuou confrontando-o com o mesmo tom de ironia.
– Você quer dizer que não sou mais uma candidata tão desejável
quanto antes?
– Sim; é exatamente isso que quero dizer – ele respondeu de modo
resoluto. – Não vou entrar em detalhes. Não acredito nos boatos que correm
sobre você, não quero acreditar. Mas eles existem e o fato de eu não
acreditar não vai mudar a situação.
Ela enfureceu, mas a necessidade extrema conteve sua resposta e ela
continuou encarando-o de modo composto.
– Se eles não são verdadeiros – disse apenas – isto não altera a
situação?
Ele a fitou com seus olhos de especulador da bolsa, o que a fez se
sentir como uma mercadoria humana de luxo.
– Acredito que mude nos romances, mas estou certo de que na vida
real não. Você sabe disso tão bem quanto eu. Se vamos falar a verdade,
vamos falar por inteiro, então. No ano passado eu estava louco para me
casar com você, e você nem olhava para mim. Já neste ano… bem, você
parece disposta. O que mudou neste intervalo? A sua situação. Então você
achou que poderia se sair bem; agora…
– E você não acha que pode? – ela o interrompeu ironicamente.
– Sim, eu acho: de certo modo, sim – ele ficou diante dela, com as
mãos nos bolsos, o peito estufado sobre o colete vistoso. – Tenho me saído
muito bem nestes últimos anos, na conquista da minha posição social. Não
acha engraçado eu dizer isso? Por que eu iria me importar em dizer que
quero entrar para a sociedade? Um homem não se envergonha de dizer que
gostaria de ter um haras ou uma galeria de arte. Bem, o desejo de fazer
parte da sociedade é apenas outro tipo de hobby. Talvez eu queira me vingar
de algumas pessoas que me ignoraram, no ano passado… vamos colocar
assim se soar melhor. De qualquer maneira, quero frequentar as melhores
casas; e estou conseguindo, aos poucos. Mas sei que o modo mais rápido de
ser malvisto pelas pessoas certas é ser visto com as pessoas erradas; e é por
isso que quero evitar erros.
Miss Bart continuou parada diante dele num silêncio que poderia ter
sido interpretado tanto como desdém como por um respeito meio relutante
diante da sinceridade dele, e após uma breve pausa, ele continuou:
– É isso. Estou mais apaixonado por você do que nunca, mas se me
casasse com você agora eu seria malvisto, e tudo aquilo pelo qual trabalhei
durante todos esses anos seria jogado fora.
Ela escutou isso de um modo tal que parecia que todo ressentimento
tinha desaparecido. Após anos circulando em meio a uma sociedade falsa,
foi um refresco se deparar com tanta franqueza.
– Eu o entendo – disse ela. – Um ano atrás eu teria sido útil para você,
e agora eu seria um estorvo; e aprecio por ter sido tão sincero comigo – ela
estendeu a mão com um sorriso.
Mais uma vez o gesto teve um efeito perturbador no autocontrole de
Rosedale.
– Por causa de George, você é carta fora do baralho! – ele exclamou, e
enquanto ela retomava o caminho, ele a irrompeu abruptamente: – Miss
Lily, espere. Você sabe que não acredito nos boatos, acho que tudo não
passa de invenção de uma mulher que não hesitou em sacrificá-la em nome
dela mesma…
Lily se afastou com um gesto de desdém: era mais fácil aguentar a
insolência dele do que sua piedade.
– É muita gentileza sua, mas não creio que devemos discutir mais este
assunto.
Mas a impermeabilidade natural de Rosedale o fez ignorar a
demonstração de resistência.
– Não quero discutir nada; só quero falar claramente sobre o caso.
Ela parou contrariada, detida pelo tom de um novo propósito no olhar
e na voz dele; e ele prosseguiu, encarando-a com firmeza:
– Estou admirado que tenha esperado tanto para enquadrar aquela
mulher, quando tem o poder em suas mãos.
Ela continuou calada, apesar da surpresa que as palavras causaram, e
ele avançou um passo para perguntar mais diretamente: – Por que não usa
aquelas cartas que comprou no ano passado?
Lily ficou emudecida por conta do choque causado pela pergunta. Em
tudo que dissera anteriormente ela tinha, quando muito, insinuado uma
suposta influência sobre George Dorset; mas nada que pudesse justificar o
modo espantosamente indelicado com o qual Rosedale se referiu a isso.
Agora ela percebia o quão perto sua máscara tinha caído; e a surpresa de
saber que ele tinha descoberto o segredo das cartas fez com que, por um
momento, ela não fizesse a menor ideia de como ele pretendia fazer uso
deste conhecimento.
A perda temporária de controle deu a ele tempo de insistir no seu
ponto, e ele agarrou a oportunidade mais que depressa, como se para
garantir o total controle da situação:
– Percebe agora onde quero chegar, sei que ela está em suas mãos.
Isso soa uma fala teatral, não é mesmo? Mas sempre há um fundo de
verdade nas farsas antigas; e não suponho que tenha comprado essas cartas
simplesmente por que gosta de colecionar assinaturas.
Ela continuou olhando para ele ainda mais assombrada: a única coisa
do qual tinha certeza era a sensação de medo do poder dele.
– Você deve estar se perguntando como fiquei sabendo? – ele
prosseguiu, respondendo a expressão dela com uma nota de orgulha. –
Talvez tenha se esquecido de que eu sou o proprietário do Benedick, mas
isso não vem ao caso. Manter-me bem informado pode ser útil nos
negócios, e costumo estender isso para a minha vida privada. E isto é da
minha conta, percebe, pelo menos, depende de você para que seja. Vamos
analisar friamente a situação. Mrs. Dosert, por motivos que desconhecemos,
puxou seu tapete no último verão. Todos sabem como Mrs. Dorset é, e seus
melhores amigos não acreditariam nela se não tivessem interesse; mas
contanto que não se envolvam em confusão é bem melhor seguir a liderança
dela do que se declararem contra, e assim você foi sacrificada pela preguiça
e pelo egoísmo deles. Não foi uma bela explicação para o caso? Bem,
algumas pessoas dizem que você tem a vingança em suas mãos: que George
Dorset se casaria com você amanhã, caso contasse para ele tudo que sabe, e
desse a ele a chance de mostrar a porta da rua para sua senhora. Acho que
ele faria isso; mas você não parece nada interessada nesta forma de
vingança, e, vendo a questão de um ponto de vista de puro interesse, acho
que você tem razão. Em uma negociata dessas, ninguém sai com as mãos
limpas, e o único jeito de se reabilitar socialmente é fazendo as pazes com
Bertha Dorset, em vez de tentar enfrentá-la.
Ele parou o suficiente para recuperar o fôlego, mas não para dar
tempo a ela de expressar resistência; e enquanto ele seguia em frente,
expondo e elucidando sua ideia com a franqueza de um homem que não
duvida dos seus motivos, ela sentia a indignação congelando aos poucos em
seus lábios, viu-se cercada pela mera frieza com que ele expunha os
argumentos. Não havia tempo agora para ficar tentando descobrir como ele
tinha ficado sabendo sobre as cartas: todo seu mundo estava sendo
monstruosamente envolto pela sombra do esquema dele para usá-las. Ele se
casaria com ela somente se ela conseguisse fazer as pazes com Bertha
Dorset; e para induzir a retomada desta amizade, e a retratação implícita de
tudo que tinha causado o rompimento, ela teria apenas de apontar à dama
em questão a ameaça latente contida no maço de cartas que tinham vindo
para em suas mãos milagrosamente.
Na hora Lily reconheceu que esta opção seria bem mais vantajosa do
que a oferecida pelo pobre Dorset. O sucesso do outro plano dependia da
imposição de uma punição aberta, enquanto este reduzia a transação a um
acordo privado, do qual não seria necessário envolver uma terceira pessoa.
Colocado por Rosedale nos termos de uma negociação de dar e receber, este
acordo assumia o tom inofensivo de um entendimento bom para as duas
partes, como uma transferência de propriedade ou uma revisão de
fronteiras. Certamente era mais fácil ver isso como um ajuste permanente,
uma transação política, onde cada concessão tinha seu equivalente. A mente
cansada de Lily ficou fascinada com esta opção de fuga das avaliações
éticas variáveis para uma região de pesos e medidas concretos.
Rosedale, enquanto ela o ouvia, parecia ler em seu silêncio não
apenas uma aceitação gradual do seu plano, mas uma percepção perigosa
das possibilidades que este oferecia; pois enquanto ela se manteve parada
diante dele sem nada dizer, ele retomou rapidamente:
– Você percebeu como é simples, não? Mas não se deixe enganar pela
ideia de que é tão simples assim. Não é como se tivesse começado com um
atestado de saúde limpo. Agora que estamos nos entendendo, vamos
chamar as coisas pelos nomes certos e esclarecer o negócio. Você sabe
muito bem que Bertha Dorset não teria conseguido atingi-la, se não
tivessem surgido dúvidas, alguns pontinhos de interrogação, não é mesmo?
Passíveis de ocorrer em se tratando de uma moça bonita, com parentes
sovinas, suponho; mas foi o que aconteceu, e ela viu nisso o terreno para se
preparar. Percebe onde quero chegar? Você não quer que essas dúvidas
voltem à tona. Uma coisa é colocar Bertha na linha, mas o que você quer é
que ela continue lá. Você pode dar um susto nela com a maior facilidade,
mas como vai fazer para que ela não perca o medo? Mostrando que você é
tão poderosa quanto ela. Nem mesmo todas as cartas do mundo vão ajudá-la
na sua atual situação; mas com um bom respaldo, você vai conseguir
mantê-la no lugar que quiser. É aí que eu entro; é isto que estou lhe
oferecendo. Você não vai conseguir fazer isso sem a minha ajuda, não
adianta pensar que vai conseguir. Em seis meses você estará na mesma
situação atual, ou pior; mas aqui estou eu, pronto para tirá-la disso amanhã
se disser que sim. O que acha, Miss Lily? – ele adicionou, avançando de
repente.
As palavras, e o movimento que as acompanharam, se juntaram para
tirar Lily do estado de transe que ela se encontrava. A luz chega por
caminhos tortuosos em uma mente dispersa, e esta a atingiu com a noção
assustadora de que seu suposto cúmplice tinha assumido, como algo
natural, a probabilidade de ela desconfiar dele e tentar enganá-lo. Este
vislumbre dos pensamentos dele deu a transação um novo aspecto, e ela
percebeu que a baixeza básica do ato jazia na total ausência de risco.
Ela recuou com um gesto rápido de rejeição, dizendo, numa voz que
soou diferente para seus próprios ouvidos:
– Você está enganado, muito enganado, tantos nos fatos quanto na
conclusão ao qual chegou.
Rosedale a encarou por um momento, surpreso pela súbita mudança
de direção da qual ela aparentemente estava se deixando guiar.
– O que está querendo dizer? Pensei que tivéssemos nos entendido! –
ele exclamou; e para o sussurro dela de “Agora nós nos entendemos” ele
retorquiu num tom subitamente violento: – Suponho que seja porque as
cartas são dele? Duvido que vá receber algum sinal de gratidão dele!
Capítulo 8
Os dias de outono viraram inverno. Mais uma vez o mundo do
divertimento estava em transição entre o campo e a cidade, e a Quinta
Avenida, ainda deserta aos finais de semana, exibia de segunda a quinta um
trânsito cada vez mais intenso de carruagens passando em frente as casas
que aos poucos ganhavam vida novamente.
A Exposição de Cavalos, que tinha ocorrido em torno de duas
semanas antes, contribuiu para o clima de animação, enchendo os teatros e
restaurantes com um desfile de humanos do mesmo padrão alto e valor
daqueles que circulavam diariamente nas pistas. No mundo de Miss Bart a
exposição, e o público que ele atraía estava entre os espetáculos
desprezados; mas, como o senhor feudal por uma questão de capricho acaba
participando da dança em seus campos verdes, da mesma forma a
sociedade, não oficialmente e ocasionalmente, ainda costumava aparecer.
Mrs. Gormer, assim como os outros, não ia perder esta oportunidade de
exibir ela mesma e seus cavalos; e Lily teve a oportunidade de aparecer
uma ou duas vezes ao lado da amiga no camarote mais evidente da casa.
Mas a ligeira aparência de intimidade serviu apenas para ressaltar a
mudança nos termos da sua amizade com Mattie. Era inevitável que Lily
fosse a primeira a ser sacrificada em nome do novo ideal, e ela sabia que,
assim que os Gormer conseguissem se firmar na cidade, a agitação da
sociedade acabaria colaborando para que Mattie se afastasse dela
definitivamente. Ela tinha, em suma, falhado em se fazer indispensável; ou
melhor, a sua tentativa de fazê-lo tinha sido frustrada por uma influência
mais forte do que a que ela era capaz de exercer. Esta influência, em última
análise, era simplesmente o poder do dinheiro: o crédito social de Bertha
Dorset era baseado em um saldo bancário muito sólido.
Lily sabia que Rosedale não tinha exagerado nem na dificuldade da
sua posição e nem na possibilidade de concretização da vingança que ele
tinha oferecido: quando Bertha se deparasse com uma fonte de recursos
financeiros equiparados ao seu, seria fácil para Lily, com seus talentos
superiores, dominar a sua oponente. Uma noção do que tal domínio poderia
significar, e das desvantagens resultantes da sua rejeição, se tornaram muito
claras para Lily ao longo das primeiras semanas do inverno. Até então, ela
matinha uma aparente movimentação social; mas com o retorno de todos
para a cidade, e as várias atividades, o simples fato de não ter conseguido
retomar seus antigos hábitos de vida mostrou de modo inequívoco que ela
tinha sido posta de lado. A pessoa que não participava ativamente das
atividades sociais da temporada caía numa esfera de inexistência social.
Lily, apesar de todas as suas desilusões, nunca tinha imaginado a
possibilidade de se ver em outra esfera: era fácil desprezar o mundo, mas
era muito mais difícil encontrar outra região habitável. Seu senso crítico
nunca a abandonou, e ela ainda conseguia notar, rindo de si mesma, o valor
absurdo que os detalhes mais cansativos e insignificantes da sua vida
pregressa tinha adquirido. Até mesmo as labutas tinham seus encantos
agora que ela tinha sido involuntariamente privada delas: cartões de
despedida, responder cartas, a gentileza forçada para com os chatos e os
idosos, e aguentar sorrindo os jantares cansativos – como estas obrigações
teriam preenchido de modo tão agradável seus dias vazios! Na verdade, ela
continuou enviando cartas; se manteve sorrindo e persistiu corajosamente,
bem aos olhos do seu mundo; assim como não sofreu nenhuma daquelas
invertidas grosseiras que costumam produzir uma sensação de desprezo em
suas vítimas. A sociedade não virou as costas para ela, ela simplesmente se
afastou, ocupada e desatenta, fazendo com que ela sentisse toda a dimensão
do seu orgulho ferido, o quão culpada era por tudo isso.
Ela tinha rechaçado a sugestão de Rosedale com uma demonstração
de desprezo tão imediata que surpreendeu a si mesma: não tinha perdido a
sua capacidade de se indignar. Mas ela não conseguia respirar por muito
tempo nas alturas; não tinha sido treinada para manter a força moral. O que
ela ansiava, e realmente acreditava ser o certo, era uma situação em que a
atitude mais nobre deveria ser também a mais fácil. Até então seus impulsos
intermitentes de resistência tinham sido suficientes para manter o respeito
por si mesma. Se tinha cometido um deslize ela recuperara o equilíbrio, mas
só depois se deu conta de que a recuperação a deixara num nível um pouco
mais baixo. Tinha recusado a oferta de Rosedale sem muito esforço; todo
seu ser se revoltara contra aquilo; e nem percebeu que, pelo simples fato de
ter dado ouvidos a ele, ela acabou aprendendo a conviver com ideias que
antes lhe pareciam intoleráveis.
***
Para Gerty Farish, que continuou de olho nela com o mesmo carinho,
mas com menos discernimento do que Mrs. Fisher, os resultados da luta já
podiam ser percebidos. Ela, na verdade, não sabia o quão refém Lily era da
situação; mas notou o seu empenho apaixonado e irremediável pela política
desastrosa de “se manter por cima”. Gerty chegou a achar graça por ter
imaginado que a amiga pudesse se renovar através da adversidade. Ela
entendeu com toda clareza que Lily não era daquelas pessoas cujas
privações ensinam a importância daquilo que perderam. Mas este fato, para
Gerty, tornava sua amiga ainda mais digna de piedade e necessitada de
ajuda, pois quanto mais carinho recebia menos ela percebia o quanto
precisava.
Desde que voltara a cidade, foram poucas as ocasiões em que Lily
subira os degraus de Miss Farish. Havia algo de irritante para ela no
interrogatório mudo da solidariedade de Gerty: era como se não pudesse
compartilhar as verdadeiras dificuldades da sua situação com alguém cujos
valores eram tão diferentes dos seus, e as restrições da vida de Gerty, que
um dia tiveram seu charme por ser diferente, agora eram uma lembrança
dolorosa das limitações para a qual a sua própria existência estava se
resumindo. Numa tarde, quando finalmente resolveu fazer uma visita à
amiga, a sensação de limitação a acometeu com uma intensidade nunca
antes experimentada. Na Quinta Avenida, sob o brilho intenso do sol de
inverno, se desdobrava uma fileira interminável de carruagens de luxo –
dando a ela, através das janelinhas dos coches, a oportunidade de ver de
relance rostos conhecidos debruçados sobre listas de visitantes, de mãos
apressadas entregando bilhetes e cartões aos criados de plantão – este
vislumbre das rodas da grande máquina social sempre girando tornou Lily
mais ciente do que nunca da inclinação e estreiteza dos degraus de Gerty, e
do beco escuro e apertado da vida para onde aquela escada levava. Escadas
feias feitas para serem usadas por pessoas sem brilho: milhares de figuras
insignificantes subiam e desciam escadas como aquelas pelo mundo todo,
naquele exato momento – figuras tão maltrapilhas e embotadas como a
senhora de meia-idade vestida de preto que saiu do andar de Gerty quando
Lily estava entrando!
– Aquela é a pobre Miss Jane Silverton, ela veio falar comigo. Ela e a
irmã querem fazer alguma coisa para se sustentarem – explicou Gerty,
enquanto Lily a seguia até a sala de estar.
– Para se sustentarem? Elas se encontram em dificuldades
financeiras? – perguntou Miss Bart com um toque de irritação, afinal, não
tinha vindo para se inteirar sobre as desgraças alheias.
– Elas estão sem nada. As dívidas de Ned consumiram tudo. Elas
tinham algumas esperanças quando ele terminou com Carry Fisher;
acharam que Bertha Dorset poderia ser uma boa influência, pois ela não
gosta de jogar baralho, e… bem, ela disse coisas tão bonitas para Miss Jane
sobre considerar Ned como se fosse seu irmão caçula, e que queria levá-lo
junto para uma viagem no seu iate, para que assim ele tivesse uma chance
de abandonar as cartas e as corridas, e retomar o trabalho com a literatura
novamente.
Miss Farish parou com um suspiro que refletiu a perplexidade da sua
visitante que ameaçava ir embora.
– Mas isso não é tudo; não nem o pior. Parece que Ned se
desentendeu com os Dorset; ou pelo menos Bertha não quer recebê-lo mais,
e ele está tão triste por isso que voltou a jogar novamente, e tem andado na
companhia de todo tipo de gente estranha. E a prima Grace Van Osburgh o
acusa de ser uma péssima influência para Freddy, que abanadou Harvard no
verão passado e tem sido visto na companhia de Ned desde então. Ela
mandou chamar Miss Jane, e fez uma cena assustadora; e Jack Stepney e
Hebert Melson, que também estavam presentes, contaram para Miss Jane
que Freddy estava querendo se casar com uma mulher que Ned tinha
apresentado a ele, e que eles não poderiam fazer nada para impedi-lo, pois
agora ele já é maior de idade e tem seu próprio dinheiro. Você imagina
como a pobre Jane se sentiu; ela me procurou logo em seguida, e imaginou
que eu pudesse ajudá-la a arrumar um trabalho para que assim ela pudesse
ganhar dinheiro suficiente para pagar as dívidas de Ned e mandá-lo para
longe, mas não entendo como ele pôde gastar muito mais sobre a influência
de Bertha do que sob a de Carry; você entende?
Lily respondeu a pergunta com um gesto impaciente.
– Minha querida, Gerty, sempre entendo como as pessoas conseguem
gastar mais, nunca como podem gastar menos!
Ela soltou a pelerine e se acomodou na poltrona de Gerty, enquanto a
amiga servia um chá.
– Mas o que pode ser feito pelas Misses Silverton? O que elas vão
fazer para se sustentarem? – perguntou ela, ciente do tom de irritação que
persistia em sua voz. Este era o último assunto que pretendia falar sobre –
não lhe interessava nenhum pouco – mas ela foi acometida por uma súbita
curiosidade preserva para saber como as duas vítimas das experiências
sentimentais do jovem Silverton iam se virar com a necessidade sombria
que também rondava sua porta.
– Não sei, estou tentando arrumar alguma coisa para as duas. Miss
Jane lê muito bem em voz alta, mas é muito difícil encontrar alguém
precisando deste tipo de trabalho. E Miss Annie pinta um pouco…
– Oh, eu sei, flor de macieira em mata-borrão; é o tipo de coisa que
farei no futuro! – exclamou Lily, levantando-se com um movimento tão
brusco que quase quebrou a delicada mesinha de chá de Miss Farish.
Lily se inclinou para amparar as xícaras; em seguida, sentou com um
baque na poltrona.
– Eu tinha me esquecido de que mal dá para se mexer aqui, é preciso
saber se comportar em um apartamentinho! Oh, Gerty, não fui feita para me
comportar – ela suspirou.
Gerty olhou preocupada para seu rosto pálido, onde olhos brilhavam
com um brilho peculiar de noites mal dormidas.
– Você parece muito cansada, Lily, tome seu chá, e pegue esta
almofada para recostar.
Miss Bart aceitou a xícara de chá, mas recusou a almofada com um
gesto impaciente.
– Não quero isso! Não quero recostar, acabarei dormindo se fizer isso.
– E por que não, querida? Ficarei quietinha como um rato – disse
Gerty num tom carinhoso.
– Não, não; não fiquei quieta; converse comigo, mantenha-me
acordada! Não tenho dormindo à noite e a tarde sinto muito sono.
– Você não tem dormido à noite? Desde quando?
– Não sei, não consigo me lembrar.
Ela se levantou e pousou a xícara vazia sobre a bandeja. – Mais um
pouco, e mais forte, por favor; se não me mantiver acordada terei uma noite
horrível, horrível!
– Mas será pior se tomar muito chá.
– Não, não, dê-me mais um pouco; e não venha com sermões, por
favor – Lily retomou imperativa. Sua voz tinha algo de ameaçador, e Gerty
notou que a sua mão tremeu quando ela a ergueu para pegar a segunda
xícara.
– Mas você parece tão cansada. Desse jeito vai acabar adoecendo…
Miss Bart pousou a xícara de repente.
– Pareço doente? Meu rosto está mostrando isso? – ela se levantou e
correu na direção do espelhinho que havia em cima da escrivaninha. – Que
espelho horrível, está todo manchado e desbotado. Qualquer um pareceria
um fantasma olhando nele! – ela virou de volta, encarando Gerty com seu
olhar tristonho. – Sua tola, por que está dizendo essas coisas horríveis para
mim? Basta dizer que alguém parece estar doente para a pessoa adoecer!
Parecer doente significa estar feia.
Ela segurou Gerty pelo pulso e a puxou para perto da janela. – Mas
prefiro que fale a verdade. Olhe bem no meu rosto, Gerty, e me diga: estou
muito assustadora?
– Você está linda, Lily. Seus olhos estão brilhando e suas bochechas
ficaram tão rosadas de repente…
– Ah, elas estavam pálidas, então… como um fantasma, quando
cheguei? Por que não diz logo que estou horrível? Meus olhos estão
brilhando agora porque estou nervosa, mas de manhã eles estão opacos. E
vejo as linhas aparecendo no meu rosto, as marcas de preocupação,
decepção e fracasso! Cada noite sem dormir deixa mais uma, mas como vou
conseguir dormir, quando penso em coisas tão assustadoras?
– Coisas assustadoras, que coisas? – perguntou Gerty, livrando o
pulso delicadamente dos dedos nervosos da amiga.
– Que coisas? Bem, pobreza, por exemplo, e não conheço nada mais
assustador do que isso – Lily virou e sentou, soltando o peso do corpo sobre
a poltrona próxima à mesa de chá. – Há pouco você me perguntou se eu
sabia como Ned Silverton pode gastar tanto dinheiro. Claro que eu sei, ele
gastou vivendo como um rico. Você pensa que vivemos à custa dos ricos, e
não com eles; e vivemos mesmo, de certo modo, mas é um privilégio pelo
qual temos de pagar! Jantamos com eles, bebemos o vinho deles e fumamos
os cigarros deles, usamos suas carruagens e os camarotes da ópera e os
vagões particulares deles, sim, mas é preciso pagar por cada um desses
luxos. O homem paga dando fartas gorjetas aos criados, apostando no
baralho acima das suas posses, mandando flores e presentes, e… fazendo
várias outras coisas que custam caro; a moça paga isso com gorjetas e jogos
de baralho também… ah, sim, nós também temos de jogar bridge, e
frequentando as melhores modistas, tendo os vestidos certos para cada
ocasião, e precisamos nos apresentar sempre descansadas, bonitas e bem-
humoradas!
Ela recostou por um momento, fechando os olhos, e enquanto ficou
assim, seus lábios pálidos se entreabriram, e quando as pálpebras baixaram
sobre os olhos cansados, Gerty percebeu a tremenda mudança em seu rosto
– do mesmo jeito que um clarão cinza parece perder repentinamente seu
brilho artificial. Ela olhou para cima e a visão despareceu.
– Não parece muito divertido, não é mesmo? E não é. Estou cansada
disso! E mesmo assim a ideia de abrir mão disso está me matando, é o que
tem me mantido acordada à noite, e me deixa louca para tomar o seu chá
forte. Pois não posso continuar assim, sabe, estou quase sem forças. Além
do mais, o que eu posso fazer, como vou fazer para me sustentar sozinha?
Vejo que vou acabar tendo o mesmo destino da pobre Siverton, procurando
emprego de agência em agência, e tentando vender mata-borrão pintado
para a Women’s Exchanges! E já existem milhares e milhares de mulheres
tentando fazer isso, e nenhuma delas, assim como eu, tem a menor ideia de
como ganhar um dólar!
Ela se levantou novamente e deu uma olhada para o relógio.
– Já é tarde, preciso ir, tenho um encontro marcado com Carry Fisher.
Não se preocupe, minha querida. Não fique pensando nas bobagens que eu
falei.
Ela estava diante do espelho novamente, ajeitando o cabelo com
delicadeza, abaixando o véu, e deu uma última arrumada na pelerine. –
Ainda não cheguei ao ponto de passar de agência em agência e pintar mata-
borrão: mas estou sem dinheiro, e se conseguisse arrumar alguma coisa para
fazer, como escrever cartar e listas de convidados, coisas assim, me ajudaria
até eu receber a minha parte da herança. Carry prometeu que vai arrumar
alguém que esteja precisando de uma secretária social, sabe, para ajudar
pessoas ricas sem tempo.
***
Miss Bart não revelou para Gerty toda a extensão da sua ansiedade.
Ela, na verdade, estava precisando muito de dinheiro, e imediatamente:
dinheiro para bancar as despesas comuns da semana, que não podiam ser
adiadas ou postergadas. Abrir mão do seu quarto no hotel, cair na
obscuridade de uma pensão, ou contar provisoriamente com a hospitalidade
de uma cama na sala de Gerty Farish, eram opções que só iriam adiar o
problema; e parecia mais sensato e aceitável permanecer onde estava e
encontrar um meio de ganhar a vida. A possibilidade de ter de fazer isto era
uma que ela nunca tinha considerado seriamente antes, e a descoberta de
que, como trabalhadora, ela provavelmente acabaria se mostrando tão
inapetente e inútil quanto as pobres Misses Silverton, foi um tremendo
golpe para sua autoconfiança.
Acostumada a se ver de acordo com a visão que os outros tinham
dela, como uma pessoa cheia de energia e recursos, capaz de se adaptar a
qualquer situação, ela imaginou que tais talentos não seriam muitos úteis
para aqueles que buscavam por direcionamento social; mas infelizmente
não havia uma função específica para a qual a arte de dizer e fazer a coisa
certa pudesse ser oferecida no mercado, e até mesmo a criatividade
inesgotável de Mrs. Fisher falhou diante da dificuldade de descobrir uma
linha a ser explorada no vasto leque de encantos de Lily. Mrs. Fisher
conhecia vários meios indiretos de ganhar a vida, e já tinha dado várias
chances para Lily; mas métodos mais específicos de ganhar o pão de cada
dia estavam tão fora da sua linha assim como estavam além da capacidade
daqueles que costumavam recorrer a sua ajuda para ascender socialmente.
O fracasso de Lily de lucrar com as oportunidades que já tinham sido
oferecidas podia, de certo modo, se justificar pela falta de esforço de sua
parte; mas a natureza boa e incansável de Mrs. Fisher fez dela uma
especialista em criar demandas artificiais para um produto de verdade. Com
este intuito ela saiu em busca de algo para Miss Bart; e para compartilhar o
resultado da busca, mandou chamar Lily com um anúncio de que tinha
“encontrado algo”.
***
***
Naquela noite Lily não tomou remédio para dormir. Passou a noite em
claro na cama, analisando sua situação sob a luz cruel lançada pela visita de
Rosedale. Ao rechaçar a oferta que ele renovou de bom grado, não teria ela
se sacrificado em nome de uma daquelas noções abstratas de honra mais
conhecidas como convenções da vida moral? Que satisfação ela devia para
uma classe social que a tinha condenado e banido sem julgamento prévio?
Ela nunca teve uma chance de se defender; era inocente da acusação pela
qual tinha sido declarada culpada; e a irregularidade da sua condenação
poderia justificar o uso de métodos pouco ortodoxos para a recuperação dos
seus direitos perdidos. Bertha Dorset, para se salvar, não teve escrúpulos em
arruiná-la sob um pretexto falso; por que ela deveria hesitar em se utilizar
dos fatos que o acaso tinha colocado no seu caminho? Afinal, metade do
opróbrio de tais atos depende do nome que se dá a ele. Chame de
chantagem e o ato se torna inadmissível; mas diga que não vai prejudicar
ninguém, e que os direitos por ele recuperados foram usurpados
injustamente, e ele se transforma em uma concepção formal de um fato ao
ponto de não encontrar nenhum argumento contra sua defesa.
Os argumentos que justificavam isso para Lily eram os mesmos
incontestáveis que justificavam sua situação pessoal: o sentimento de
injustiça, de fracasso, o desejo árduo de ter uma chance contra o despotismo
egoísta da sociedade. Ela tinha aprendido com a experiência que não tinha
nem aptidão ou constância moral para refazer sua vida de acordo com
novos padrões; para se tornar uma trabalhadora em meio aos trabalhadores,
e esquecer o mundo de luxo e prazeres. Ela não podia se responsabilizar
pela tentativa não ter dado certo, e talvez fosse menos culpada do que
imaginava. Tendências herdadas tinham sido combinadas com um
treinamento desde a tenra idade com o intuito de transformá-la no produto
altamente requintado que ela era: um organismo tão indefeso quanto uma
anêmona lançada contra uma pedra. Ela tinha sido moldada para adornar e
encantar; para que outros fins a natureza arredondou a pétala da rosa e
coloriu o peito do beija-flor? Seria culpa sua que a missão puramente
decorativa era mais difícil de ser exercida entre os seres da sociedade do
que no mundo da natureza? Que esta pode ser dificultada por necessidades
materiais ou atrapalhada por escrúpulos morais?
Essas foram as duas forças antagônicas que travaram uma batalha
dentro do seu peito durante a longa noite em claro; e quando se levantou na
manhã seguinte ela não fazia ideia de qual das duas tinha saído vencedora.
Ela estava exausta pelo efeito de uma noite sem dormir, após várias noites
de descanso obtido artificialmente; e sob à luz distorcida do cansaço o
futuro se mostrou cinza, interminável e desolador.
Ela ficou até mais tarde na cama, recusando o café e os ovos fritos
que a simpática criada irlandesa deixara à sua porta, e odiando os barulhos
domésticos íntimos da casa e dos gritos e rumores vindos da rua. A semana
ociosa a tinha colocado cara a cara de modo brutal com estes pequenos
agravantes da vida em uma pensão, e ela sentiu saudades daquela outra vida
de luxo, cujo maquinário ficava cuidadosamente escondido para que as
cenas mudassem de uma para outra sem percalços.
Finalmente ela se levantou e se vestiu. Desde que tinha perdido o
emprego no atelier de Madame Regina que passava os dias vagando pelas
ruas, em parte para fugir das promiscuidades insuportáveis da pensão, e em
parte na esperança de que o cansaço físico a ajudasse a dormir. Mas assim
que saiu, ela não conseguiu decidir para onde iria; pois vinha evitando
Gerty desde a demissão, e não tinha certeza se seria recebida em outro
lugar.
A manhã estava difícil comparada ao dia anterior. O céu carregado era
um prenúncio de chuva, e um veto forte soprava a poeira em espirais
violentos pelas ruas. Lily seguiu pela Quinta Avenida em direção ao parque,
na esperança de encontrar um lugar protegido onde pudesse se sentar; mas o
vento estava congelante, e depois de vagar uma hora sob os galhos agitados
ela resolveu se abrigar em um pequeno restaurante na rua Cinquenta e
Nove. Não estava com fome, e pretendia sair sem almoçar; mas estava
muito cansada para voltar para casa, e a visão das mesas forradas de branco
se apresentava de modo sedutor através das janelas.
O salão estava cheio de mulheres e moças, todas estavam muito
ocupadas com seus chás e tortas para notarem a sua chegada. O
murmurinho de vozes estridentes reverberava contra o pé direito baixo,
deixando Lily encerrada em um pequeno círculo de silêncio. Ela sentiu uma
pontada súbita de solidão. Tinha perdido a noção do tempo, e parecia que
não conversava com alguém há dias. Seus olhos buscaram nos rostos ao
redor, ansiando por um olhar receptivo, algum sinal de que alguém notara a
sua situação. Mas as mulheres, ocupadas com suas bolsas, cadernos e
partituras, pareciam muito envolvidas com seus próprios afazeres, até
mesmo aquelas que estavam sentadas sozinhas corrigindo provas ou lendo
revistas entre goles apressados de chá. Lily por sua vez não tinha
absolutamente nada para fazer.
Ela bebeu várias xícaras de chá que foram servidas com uma porção
de ostras cozidas, e sua mente parecia mais clara e desperta quando ela
pisou na rua novamente. Enquanto estava sentada no restaurante, ela
percebeu que inconscientemente tinha chegado a uma decisão final. A
descoberta lhe deu uma ilusão momentânea de ocupação: foi excitante
pensar que tinha um motivo para voltar correndo para casa. Para prolongar
o sabor da sensação ela resolveu andar; mas a distância era muito grande e
por conta disso acabou olhando ansiosa para os relógios que encontrou ao
longo do caminho. Uma das surpresas do seu estado de desocupação foi a
descoberta de que o tempo, quando é deixado por contra própria e não sofre
nenhum tipo de cobrança definida, não passa a um ritmo reconhecível.
Normalmente ele se estende; mas justamente quando alguém conta com a
sua lentidão, ele dispara de repente num galope selvagem.
Ela descobriu, entretanto, ao chegar em casa, que ainda dava tempo de
sentar e descansar por alguns minutos antes de colocar o plano em ação. A
demora não enfraqueceu sua determinação. Ela estava assustada e ao
mesmo tempo empolgada pela força da resolução que sentia dentro de si:
viu que seria mais fácil, muito mais fácil do que tinha imaginado.
Às cinco ela se levantou, destrancou seu baú, e pegou um pacote
fechado que guardou dentro do decote do vestido. Nem mesmo o contato
com o pacote abalou seus nervos como ela esperava. Ela tinha a sensação
de que estava protegida por uma forte barreira de indiferença, como se a
determinação tivesse finalmente entorpecido sua sensibilidade.
Mais uma vez ela se preparou para sair, trancou a porta e saiu.
Quando pisou na calçada, o dia ainda estava claro, mas a ameaça de chuva
escurecia o céu e rajadas de vento frio agitavam as placas das lojas ao longo
da rua. Quando chegou à Quinta Avenida ela diminuiu o ritmo. Conhecia
bem os hábitos de Mrs. Dorset a ponto de saber que ela sempre costumava
estar em casa depois das cinco. Ela poderia, na verdade, até não estar
disposta a receber visitas, especialmente uma tão indesejada, e contra o qual
ela muito possivelmente tinha se precavido de receber por meio de ordens
explícitas; mas Lily tinha escrito um bilhete que pretendia enviar para se
anunciar, e tinha certeza de que seria recebida.
Ela dera tempo suficiente para caminhar até a casa de Mrs. Dorset,
imaginando que o exercício durante a tarde fria iria ajudar a acalmar seus
nervos; mas na verdade ela nem precisava se acalmar. Sua perspectiva
diante da situação se matinha calma e inabalada.
Quando alcançou a rua Cinquenta, as nuvens romperam
abruptamente, e uma rajada de chuva fria colidiu contra o seu rosto. Ela não
tinha guarda-chuva e a umidade encharcou rapidamente o fino vestido de
verão. Ainda estava a quase um quilometro do seu destino, e resolveu
seguir até a Avenida Madison e pegar um bonde. Ao entrar na rua lateral,
foi acometida por uma vaga lembrança. A fileira de árvores brotando, as
novas fachadas de tijolos e blocos de calcário, os prédios de apartamento
estilo georgiano com floreiras nas sacadas, se fundiram no cenário que lhe
parecia familiar. Foi por esta rua que ela caminhou com Selden, naquele dia
de setembro, dois anos antes; poucos metros adiante ficava a porta por onde
eles tinham entrado juntos. A lembrança desencadeou uma série de
sensações entorpecidas – anseios, arrependimentos, fantasias, a lembrança
pulsante da única primavera que seu coração tivera. Foi estranho passar ao
acaso pela casa dele. De repente, ela viu sua atitude como ele veria – e o
fato de ele estar ligado a isso, o fato de que, para atingir seu objetivo, ela
teria de usar o nome dele, e lucrar com um segredo do seu passado, causou
um calafrio de vergonha. Que longa jornada ela tinha percorrido desde a
primeira vez que eles conversaram! Naquele dia seus passos seguiam para o
mesmo destino que se dirigiam agora – naquele dia ela resistiu em aceitar a
mão que ele estendera.
Todo seu ressentimento pela suposta frieza dele foi esquecido por
conta desta lembrança envolvente. Por duas vezes ele se ofereceu para
ajudá-la – ajudá-la amando-a, como ele dissera – e se, na terceira vez, ele
hesitou, quem senão ela mesma seria a culpada?… Bem, aquela parte da
sua vida estava encerrada; ela não sabia por que seus pensamentos ainda
estavam presos a isso. Mas a súbita vontade de vê-lo permaneceu;
intensificou quando ela parou na calçada oposta à da porta dele. A rua
estava escura e vazia, molhada da chuva. Ela imaginou o apartamento dele,
as estantes de livros, e o fogo na lareira. Olhou para o alto e viu luz na
janela dele; então atravessou a rua e entrou no prédio.
Capítulo 12
A biblioteca estava do jeitinho que ela tinha imaginado. Os abajures
verdes refletiam círculos de luz calmantes na penumbra de fim de tarde, um
foguinho crepitava na lareira, e a poltrona de Selden, que ficava próxima,
tinha sido empurrada para o lado quando ele se levantou para atendê-la.
Sua primeira reação foi de surpresa, e ele ficou calado, esperando ela
falar, enquanto ela permaneceu por um momento na soleira, acometida por
uma avalanche de lembranças.
O cenário não tinha mudado nada. Ela reconheceu a fileira de estantes
de onde ele tinha tira o seu La Bruyere, e o braço surrado da poltrona onde
ele se apoiara enquanto ela examinava o precioso volume. Mas então a luz
intensa de setembro invadira a sala, fazendo com que aquilo parecesse fazer
parte de outro mundo: agora a sombra dos abajures e o calor da lareira,
destacando da escuridão que tomava a rua, conferiu à cena uma nota de
intimidade.
Ao perceber a surpresa no silêncio de Selden, Lily voltou-se para ele e
disse simplesmente:
– Vim lhe dizer que sinto muito pelo modo como nos despedimos,
pelo que eu lhe disse daquele dia no apartamento de Mrs. Hatch.
As palavras brotarem em seus lábios espontaneamente. Nem mesmo
enquanto subia a escada, ela pensou em arrumar uma desculpa para
justificar a sua visita, mas agora sentiu um forte desejo de dissipar a nuvem
de mal-entendidos que pairava entre eles.
Selden devolveu com um sorriso.
– Eu também sinto muito que tenhamos nos despedido daquela
maneira, mas creio que nem pensei nisso. Sorte a minha que eu tinha
previsto o risco que estava correndo…
– Então você não nem se importou? – ela deixou escapar no seu velho
tom irônico.
– Eu estava preparado para as consequências – ele corrigiu bem-
humorado. – Mas vamos falar disso depois. Entre e sente perto do fogo.
Recomendo que se sente na poltrona, e se permitir posso colocar uma
almofada às suas costas.
Enquanto ele falava, ela avançava lentamente sala adentro, e parou
perto da escrivaninha, onde a luminária, com a cúpula virada para cima,
lançava uma sombra exagerada sobre a palidez do seu rosto abatido.
– Você parece cansada, sente-se – repetiu ele gentilmente.
Ela pareceu nem ouvir a oferta.
– Eu gostaria que soubesse que deixei Mrs. Hatch logo depois que
estivemos juntos – disse ela, como se dando continuidade à sua confissão.
– Sim, sim; eu sei – assentiu ele, com certo embaraço.
– E o fiz porque você me falou para eu fazer. Antes que fosse me ver
eu já estava começando a perceber que seria impossível continuar com ela,
pelos mesmos motivos que você me deu; mas não pude admitir… Não quis
que percebesse que entendi o que a sua insinuação...
– Ah, eu tinha certeza de que você iria conseguir sair daquela
situação, não me responsabilize pela minha intromissão!
O tom tão suave dele, que, se estivesse mais calma ela teria percebido
o esforço para superar o momento constrangedor, despertou nela uma
vontade imensa de ser compreendida. No seu estranho estado de lucidez,
que lhe dava a sensação de estar no cerne da situação, pareceu incrível que
alguém pudesse achar necessário continuar com o convencional joguinho de
palavras evasivas.
– Não é isso, fui muito ingrata – ela insistiu. Mas o poder de se
expressar falhou de repente; ela sentiu um tremor na garganta, e duas
lágrimas brotaram e desceram lentamente de seus olhos.
Selden avançou e tomou a mão dela.
– Você está muito cansada. Por que não senta e permiti que eu ajude a
se sentir confortável?
Ele a conduziu até a poltrona próxima à lareira, e colocou uma
almofada para amparar as costas dela.
– Agora permita que eu lhe sirva um chá: você sabe que sempre posso
oferecer ao menos isso.
Ela balançou a cabeça, e mais duas lágrimas desceram. Mas ela não
era de chorar facilmente, e o antigo hábito de se controlar se impôs, apesar
de ainda ter restado um tremor na voz.
– Posso colocar uma água para ferver em cinco minutos – continuou
Selden, falando como se ela fosse uma criança em apuros.
As palavras fizeram com que ela se lembrasse daquela tarde quando
eles sentaram juntos à mesa de chá e falaram brincando sobre o futuro dela.
Havia momentos em que aquele dia parecia mais remoto do que qualquer
outro acontecimento da sua vida; mas mesmo assim ela ainda conseguia se
lembrar de cada detalhe.
Ela recusou com um gesto.
– Não: tenho bebido muito chá. Prefiro ficar sentada um pouco, já vou
embora – adicionou confusa.
Selden continuava de pé perto dela, apoiado no mantel da lareira. A
sombra de constrangimento estava começando se destacar, apesar da sua
postura aparentemente amigável. Seu egocentrismo não lhe permitiu
perceber isso no começo, mas agora que sua mente estava mais
desanuviada, ela notou que sua presença era o motivo do embaraço. Tal
situação só pode ser salva por meio de um jorro imediato de sentimento;
mas da parte de Selden ainda lhe faltava o impulso determinante.
A descoberta não perturbou Lily como teria perturbado antes. Ela
tinha passado da fase da reciprocidade educada, quando cada demonstração
deve ser escrupulosamente dimensionada de acordo com as emoções
despertadas, e a generosidade de sentimento é uma ostentação proibida.
Mas o sentimento de solidão retornou com força redobrada quando ela se
viu para sempre expulsa da intimidade de Selden. Ela tinha vindo sem um
motivo definido: tinha sido guiada pelo mero desejo de vê-lo; mas a
esperança secreta que trouxera consigo de repente se revelou com dor
profunda.
– Preciso ir – repetiu ela, fazendo menção de se levantar. – Mas talvez
não o veja novamente por um longo período, e quero lhe dizer que nunca
me esqueci das coisas que me disse em Bellomont, e que às vezes… às
vezes, quando parece que vou me esquecer… e como aquilo me ajudou, e
me impediu de errar; me impediu de me tornar aquilo que muitas pessoas
pensavam que eu fosse.
Apesar do esforço para organizar as ideias, as palavras não fluíam
com clareza; mesmo assim ela sentiu que não poderia ir embora sem tentar
fazer com que ele entendesse que ela tinha conseguido se salvar da aparente
ruína da sua vida.
Uma mudança se esboçou no rosto de Selden enquanto ela falava. Sua
fisionomia reservada tinha cedido para uma expressão que, apesar de não
demonstrar emoções pessoais, mostrava uma compreensão afetuosa.
– Estou feliz por ter me dito isso; mas nada do que eu disse realmente
fez diferença. A diferença está em você; sempre esteve. E uma vez que já
estava aí, você não deveria se preocupar com o que as pessoas pensam a seu
respeito: tenha certeza de que seus amigos sempre irão compreendê-la.
– Não diga isso, não diga que o que me disse não fez diferença.
Aquilo pareceu me isolar; me condenou a viver isolada em meio a outras
pessoas.
Ela tinha se levantado e estava diante dele, mais uma vez
completamente a mercê da necessidade de se abrir. A relutância dele já não
fazia mais diferença. Querendo ou não, ele iria vê-la por inteiro antes de se
despedirem.
Sua voz tinha ganhado força, e ela olhou fixamente nos olhos dele à
medida que seguia adiante:
– Uma, duas vezes, você me deu uma chance de fugir da minha vida,
e eu recusei: recusei porque era covarde. Depois percebi meu erro, vi que
nunca poderia ser feliz com aquilo que me contentava antes. Já era tarde
demais para a felicidade, mas não tarde o bastante para me consolar com a
ideia do que perdi. É por isso que tenho me orientado, não tire isso de mim!
Mesmo nos piores momentos isto foi como uma luz na escuridão. Algumas
mulheres são fortes o bastante para acreditarem nelas mesmas, mas eu
precisei da sua ajuda para acreditar em mim. Talvez eu tenha resistido a
uma grande tentação, mas foram as pequenas que acabaram me derrubando.
Mas então eu me recordo, eu me recordo de você dizendo que eu nunca me
contentaria com esta vida; e eu tive vergonha de admitir que eu poderia. Foi
isso que você fez por mim, é por isso que eu queria lhe agradecer. Eu queria
lhe dizer nunca me esqueci disso; e que tenho tentado… tenho tentado
muito…
Ela parou de repente. As lágrimas caíam novamente, e ao buscar pelo
lenço seus dedos roçaram o pacote que estava entre as camadas do seu
vestido. Ela foi acometida por uma onda de rubor, e as palavras morreram
em seus lábios. Então ela ergueu os olhos até os dele e continuou num tom
de voz alterado.
– Tenho tentado muito, mas a vida é dura, e sou uma inútil. Não posso
nem me considerar uma pessoa independente. Não passo de um parafuso ou
dente de uma engrenagem daquela grande máquina que eu chamava de
vida, e quando fui expulsa dela descobri que não era útil em nenhum outro
lugar. O que fazer quando se descobre que nos encaixamos em um papel
apenas? Devemos voltar para isso ou ficar no monte lixo para onde fomos
atirados… você não imagina como é a vida no monte de lixo!
Seus lábios ondularam num sorriso – ela se lembrou das confidências
que tinha feito para ele, dois anos antes, naquela mesma sala. Na época ela
planejava se casar com Percy Gryce – o que ela planejava agora?
O sangue tinha subido sob a pele morena de Selden, mas suas
emoções transpareceram o suficiente para adicionar ainda mais sobriedade
aos seus modos.
– Você tem algo para me contar, tem planos de se casar? – perguntou
ele, sem rodeios.
Os olhos de Lily não hesitaram, mas um espanto, dúvida consigo
mesma, formou-se lentamente lá fundo deles. À luz da pergunta dele, ela
parou para perguntar a si mesma se sua decisão já tinha sido tomada quando
ela entrou naquela sala.
– Você sempre me disse que mais cedo ou mais tarde eu teria que
tomar uma decisão! – respondeu com um leve sorriso.
– E você tomou uma agora?
– Chegarei lá; logo. Mas antes preciso fazer uma coisa.
Ela parou novamente, tentando transparecer na voz a firmeza do seu
sorriso recuperado. – Preciso me despedir de mais uma pessoa. Oh, não é de
você, certamente vamos nos ver novamente… é da Lily Bart que você
conheceu. Eu a mantive comigo este tempo todo, mas agora vamos nos
separar, e eu a trouxe de volta para você… vou deixá-la aqui. Quando eu
sair ela não estará mais comigo. Ficarei feliz em saber que ela ficou com
você; mas prometo que ela não vai incomodar e nem ocupar espaço.
Ela se aproximou dele, e estendeu a mão, ainda sorrindo.
– Você vai permitir que ela fique? – perguntou.
Ele segurou a mão dela, e ela sentiu a vibração do sentimento que não
tinha sido expresso nos lábios dele.
– Lily, posso te ajudar? – ele indagou.
Ela olhou para ele com carinho.
– Você se lembra do que disse para mim uma vez? Que só poderia me
ajudar me amando? Bem, você me amou por um tempo. E isto me ajudou.
Isto sempre me ajudou. Mas o momento passou, e eu deixei escapar. E
agora precisamos seguir em frente. Adeus.
Ela pousou a outra mão sobre a dele, e eles se entreolharam com uma
solenidade carinhosa, como se estivessem na presença da morte. Havia algo
verdadeiro entre eles – o amor que ela tinha matado nele e que não poderia
mais ressuscitar. Mas algo mais sobrevivera entre eles, e vibrou dentro dela
como uma chama intermitente: era o amor que o amor dele tinha
despertado, a paixão da alma dela pela dele.
Diante disso tudo pareceu pequeno e distante para ela. Agora ela
compreendia que não poderia seguir adiante e deixar a sua velha persona
com ele: que está persona na verdade só existia na presença dele, mas que
ela deveria continuar sendo sua.
Selden segurou a mão dela, examinando-a com um estranho
pressentimento. O aspecto externo da situação tinha desparecido para ele
quase tanto quanto para ela: ele sentia que este era um daqueles momentos
raros quando o véu dos rostos é erguido quando as pessoas estão passando.
– Lily – disse ele num sussurro –, não fale assim. Não posso permitir
que saia antes que me dizer o que pretende fazer. As coisas podem mudar,
mas elas não passam. Você nunca sairá da minha vida.
Ela olhou nos olhos dele de um modo iluminado.
– Não – disse. – Estou vendo isso agora. Vamos continuar amigos.
Assim me sentirei segura, aconteça o que acontecer.
– Aconteça o que acontecer? O que você quer dizer com isso? O que
vai acontecer?
Ela virou rapidamente e caminhava na direção da lareira.
– Agora nada, exceto que estou com muito frio, e que antes de ir
embora você poderia acender o fogo para mim.
Ela se ajoelhou no tapete diante da lareira, esticando as mãos sobre as
brasas. Surpreso pela súbita mudança de tom, mecanicamente ele pegou
algumas toras da cesta e jogou no fogo. Quando o fez, notou quão finas as
mãos dela pareciam contra a luz das chamas que se erguiam. Viu também,
sob os tecidos sobrando do vestido, o quanto as curvas do corpo tinham
diminuído; e muito depois ele se lembrou de como o jogo vermelho das
chamas destacou os buracos das narinas, e intensificou a sombras escuras
entre os ossos pronunciados das faces e os olhos. Ela ficou ajoelhada ali
durante alguns minutos em silêncio; um silêncio que ele não ousou romper.
Quando ela se levantou ele percebeu que ela tinha tirado algo de dentro do
vestido e jogado no fogo; mas naquele momento ele não notou o gesto. Sua
mente parecia estar em transe, e ele ainda procurava uma palavra para
quebrar o feitiço. Ela se aproximou dele e pousou as mãos em seus ombros.
– Adeus – disse ela, e quando ele se inclinou para frente ela tocou a
testa dele com os lábios.
Capítulo 13
Os postes já estavam acesos, mas a chuva tinha parado, e a luz tinha
surgido no céu ao alto outra vez. Lily andava sem prestar atenção por onde
passava. Ainda caminhava sob o efeito entorpecente que surge nos
momentos decisivos da vida. Mas gradualmente a leveza foi se dissipando e
ela começou a sentir a dureza do calçamento sob os pés. O cansaço voltou
com força redobrada, e por um momento ela achou que não conseguiria dar
mais um passo. Ela estava na esquina da Rua Quarenta com a Quinta
Avenida quando se lembrou de que o Parque Bryant tinha bancos onde
poderia descansar.
O lugar melancolicamente agradável estava praticamente deserto
quando ela entrou, e sentou em um banco vazio, iluminado por um poste. O
calor do fogo tinha dissipado de suas veias, e ela disse a si mesma que não
poderia ficar sentada por muito tempo naquela umidade penetrante que
subia do asfalto molhado. Mas suas forças pareciam ter se esgotado num
último grande esforço, e ela estava entregue ao vazio que se segue após um
desperdício indesejado de energia. Além do mais, o que mais a esperava em
casa? Nada além do silêncio do seu quarto triste – aquele silêncio da noite
capaz de irritar mais os nervos do que os barulhos mais estridentes: isso, e o
frasco de cloral ao lado da sua cama. A lembrança do cloral foi a única luz
na perspectiva sombria: ela já podia sentir a sedutora sensação roubando
seus sentidos. Mas estava preocupada com a noção de que ele estava
perdendo o efeito – não ousaria recorrer a ele tão cedo. Ultimamente o sono
por ele proporcionado vinha sendo mais quebrado e menos profundo; havia
noites em que tinha a sensação de que flutuava consciente. E se o efeito da
droga começasse a falhar gradualmente, como diziam que acontecia com
todos os narcóticos? Ela lembrou que o farmacêutico alertara contra o
aumento da dose; e ela já tinha ouvido falar sobre os efeitos colaterais
inconstantes e imprevisíveis da droga. Seu medo de passar uma noite sem
dormir era tão grande que ela resolveu ficar mais um pouco, na esperança
de que o cansaço pudesse ajudar a reforçar o efeito cada vez mais restrito
do cloral.
A noite tinha chegado, e o ronronar do trânsito na rua Quarenta e dois
cessado. À medida que a escuridão pousava sobre a praça os poucos
ocupantes dos bancos levantaram e se foram; mas vez ou outra uma figura
errante, passava correndo indo para casa, cruzando o caminho onde Lily
estava sentada, agigantando-se escura por um momento sob o círculo
branco da luz do poste. Um ou dois destes transeuntes diminuiu o passo
para olhar curioso para a figura solitária; mas ela nem percebeu que estava
sendo observada.
De repente, ela notou que um desses transeuntes sem rosto ficou
parado entre sua linha de visão e o asfalto reluzente; e ao erguer os olhos
ela viu uma moça inclinando sobre ela.
– Com licença, você não está bem? Minha nossa, é Miss Bart! –
exclamou uma voz que soou familiar.
Lily olhou para cima. A falante era uma jovem humildemente vestida
com uma trouxa embaixo do braço. Seu rosto tinha o ar distinto de
insalubridade que a saúde precária e o excesso de trabalho são capazes de
produzir, mas sua beleza comum se salvava por conta das curvas fortes e
generosas dos lábios.
– Você não se lembra de mim – ela continuou, radiante por ter
reconhecido, – mas eu a reconheceria em qualquer lugar, tenho pensado
tanto em você. Acho que todas as minhas companheiras sabem seu nome de
cor. Eu era uma das moças do clube da Miss Farish; você me ajudou a ir
para o campo quando tive uma doença pulmonar. Meu nome é Nettie
Struther. Naquela época eu me chamava Nettie Crane, mas acho que
também não vai se lembrar.
Sim: Lily estava começando se lembrar. O episódio do oportuno
salvamento de Nettie Crane de uma doença foi o incidente mais
recompensador da ligação que ela tivera com o trabalho de caridade de
Gerty. Ela tinha conseguido meios para enviar a moça para uma clínica nas
montanhas: neste momento ela lembrou com ironia que o dinheiro que
usara para bancar o tratamento tinha sido o de Gus Trenor.
Ela tentou responder, assegurar a outra que ela não tinha se esquecido;
mas sua voz falhou no esforço, e ela foi tomada por uma grande onda de
cansaço físico. Nettie Struther, com uma exclamação de surpresa, sentou e
passou um braço malvestido por trás das costas dela.
– Você não parece bem, Miss Bart. Recoste em mim um pouco até que
se sinta melhor.
Lily sentiu suas forças voltando aos poucos, vindo da pressão do
braço que a amparava.
– Só estou cansada, não é nada – ela arrumou voz para dizer, mas em
seguida, quando fitou os olhos da companheira que emitam o apelo tímido,
adicionou quase involuntariamente: – Tenho andado muito infeliz, passando
por muita dificuldade.
– Você em dificuldade? Sempre a imaginei numa situação muito
superior, onde tudo era grandioso. Às vezes, quando me sentia muito mal, e
ficava pensando porque as coisas foram feitas assim neste mundo, eu
costumava imaginar que você estava se divertindo, de alguma maneira, e
isto parecia mostrar que havia alguma justiça. Mas não fique sentada aqui
por muito mais tempo; está muito úmido. Não está se sentindo melhor para
poder andar?
– Sim, sim; preciso ir para casa – murmurou Lily, levantando-se.
Seus olhos pousaram admirados na figura humilde ao seu lado. Ela
conhecera Nettie Crane como uma das vítimas desalentadas do excesso de
trabalho e da anemia; um dos fragmentos supérfluos da vida destinado a ser
varrido prematuramente para aquela pilha de lixo social do qual Lily tanto
temia. Mas o afago frágil de Nettie Struther agora parecia emitir esperança
e energia: seja lá qual fosse o destino que o futuro reservava, ela não iria ser
jogada na pilha de refugo sem lutar.
– Estou muito feliz em vê-la – continuou Lily, pondo um sorriso nos
lábios trêmulos. – Agora será a minha vez de imaginar que você está feliz, e
assim o mundo vai parecer um lugar menos injusto.
– Oh, mas não posso deixá-la nesta situação. Você não está bem para
ir para casa sozinha. E também não posso acompanhá-la! – lamentou Nettie
Struther ao se lembrar. – Sabe, meu marido trabalha no turno da noite, ele é
motorista, e a amiga que está cuidando do meu bebê precisa ir para casa
para preparar o jantar do marido dela, as sete. Não contei que eu tive um
bebê, contei? Ela vai completar quatro meses depois de amanhã, e olhando
para ela ninguém diz que já fui doente. Eu queria muito que você a visse,
Miss Bart; moramos nesta rua mesmo, são apenas três quarteirões de
distância – ela ergueu os olhos tentadores para o rosto de Lily, e então
adicionou num rompante de coragem: – O que acha de ir para casa comigo
e me esperar enquanto dou jantar para o bebê? A nossa cozinha é bem
quentinha, e você pode descansar lá, e assim que ela dormir eu a levarei
para casa.
De fato, estava quente na cozinha, onde, quando o fósforo de Nettie
Struther fez uma chama saltar do bico de gás sobre a mesa, revelando-se
para Lily extraordinariamente pequena e quase que miraculosamente limpa.
O fogo brilhava entre os flancos polidos do fogão de ferro, e próximo a ele
ficava um berço onde um bebê estava sentadinho, lutando impaciente contra
o sono.
Depois de comemorar apaixonadamente o reencontro com a filhinha,
e se desculpar numa linguagem balbuciada pela demora, Nettie colocou o
bebê de volta no berço e convidou timidamente Miss Bart para se sentar na
cadeira de balanço próximo ao fogão.
– Temos uma sala também – explicou ela com um orgulho perdoável
–, mas acho que aqui está mais quente, e não quero deixá-la sozinha
enquanto dou a mamadeira ao bebê.
Ao receber a resposta de Lily de que ela preferia o aconchego do calor
da cozinha, Mrs. Struther começou a preparar a mamadeira, que pousou
delicadamente nos lábios impacientes do bebê; e enquanto o alimento era
ingerido com avidez, ela sentou com um semblante satisfeito ao lado da
visitante.
– Tem certeza de que não quer que eu esquente um pouco de café para
você, Miss Bart? Sobrou um pouco de leite fresco do bebê. Bem, talvez,
prefira ficar sentadinha aí e descansar um pouco. É muito bom receber sua
visita. Pensei tanto nisso que mal consigo acreditar que está acontecendo.
Falei para George várias vezes: ‘Queria tanto que Miss Bart me visse agora’
e eu costumava ver seu nome nos jornais, e ficávamos falando sobre o que
você estava fazendo, e líamos as descrições dos vestidos que você usava.
Mas faz tempo que não vejo seu nome, e achei que você pudesse estar
doente, e fiquei tão preocupada que George disse que eu também acabaria
ficando doente, de tanta preocupação.
Seus lábios se partiram num sorriso reminiscente. – Bem, não posso
ficar doente outra vez, essa é a verdade: a última crise quase acabou
comigo. Quando me mandou para a clínica daquela vez pensei que não
voltaria viva, e não estava muito preocupada com isso. Mas eu nem
imaginava que teria George e o bebê.
Ela parou para ajeitar a mamadeira na boca da criança.
– Meu amor, deixe de ser afoita! Está brava porque a mamãe atrasou o
seu jantar? Marry Anto’nette; esse foi o nome que escolhi para ela: por
causa da rainha francesa daquela peça que encenaram no parque. Falei para
George que a atriz me lembrava de você, e que o nome é chique. Nunca
imaginei que fosse me casar, sabe, e não conseguiria continuar trabalhando
para me sustentar sozinha.
Ela retomou, e ao ver encorajamento nos olhos de Lily, continuou,
com um rubor surgindo sob a pele anêmica:
– Sabe, eu não estava apenas doente daquela vez que me mandou para
longe; eu estava muito infeliz também. Conheci um cavalheiro no lugar
onde eu trabalhava, não sei se lembra de que eu era datilógrafa em uma
firma muito importante, e então, achei que fôssemos nos casar. Já
estávamos namorando firme há seis meses e ele me deu o anel de
casamento da mãe dele. Mas presumo que ele era muito para mim; ele
viajava para a firma, e conhecia muita gente da sociedade. Garotas da classe
trabalhadora não são protegidas do modo como você fez por mim, e elas
nem sempre sabem se cuidar sozinhas. Eu não sabia de nada, e quase morri
quando ele me abandonou e deixou um bilhete apenas…
– Foi nisso que fiquei doente; pensei que era o fim. Acho que teria
sido se você não tivesse me mandando para longe. Mas quando percebi que
estava melhorando comecei a criar coragem, apesar de tudo. E então,
quando voltei para casa, George apareceu e me pediu em casamento. No
começo achei que não poderia, pois fomos criados juntos, e eu sabia que ele
sabia sobre o que tinha acontecido comigo. Mas depois de um tempo
comecei a ver que aquilo facilitava as coisas. Eu não teria conseguido
contar para outro homem, e nunca me casaria sem contar; mas se George
quisesse muito ficar comigo tanto quanto eu queria ficar com ele, não vi por
que não deveria recomeçar novamente, e foi o que fiz.
A força da vitória reluziu quando ela ergueu o rosto radiante da
criança estava no seu colo.
– Mas, me perdoe, eu não pretendia ficar falando assim sobre mim,
com você sentada aí, parecendo tão cansada. É que é tão bom tê-la aqui,
vendo o quanto me ajudou – o bebê tinha se acomodado satisfeito, e Mrs.
Struther levantou com cuidado para colocar a mamadeira de lado. Então
parou diante de Miss Bart.
– Eu gostaria de poder ajudá-la, mas suponho que não tem nada que
eu possa fazer – murmurou melancólica.
Lily, em vez de responder, levantou com um sorriso e estendeu os
braços, e a mãe, compreendendo o gesto, depositou a criança sobre eles.
O bebê, sentindo que estava sendo afastada do seu porto seguro, fez
um movimento instintivo de resistência; mas as influências calmantes da
digestão prevaleceram, e Lily sentiu o peso delicado se aconchegando em
seu seio. A confiança da criança de que estava em um lugar seguro
despertou nela uma sensação boa de calor e de retorno à vida, e ela se
inclinou sobre o bebê, encantada com o tom rosado das bochechinhas, a
limpidez dos olhos, os movimentos involuntários dos dedinhos abrindo e
fechando. A princípio o fardo em seus braços parecia tão leve quando uma
nuvem cor-de-rosa ou uma trouxinha largada, mas à medida que continuou
segurando o peso foi aumentando, afundando, e causando uma estranha
sensação de fraqueza, como se a criança estivesse penetrando nela e se
fundindo ao seu corpo.
Ela olhou para cima e viu os olhos de Nettie sobre ela com ternura e
exultação.
– Não seria maravilhoso se ela crescesse e se transformasse em uma
mulher igual a você? Claro que ela nunca será, mas as mães sempre sonham
alto para seus filhos.
Lily segurou a criança mais perto por um momento e a devolveu para
os braços da mãe.
– Oh, é melhor não. É melhor eu não a visitar com muita frequência!
– disse com um sorriso; e então, resistindo a oferta insistente de Mrs.
Struther para acompanhá-la até em casa, e reiterando a promessa de que
voltaria logo para conhecer George e rever o bebê, ela saiu pela porta da
cozinha e desceu sozinha a escada.
Quando chegou à rua percebeu que se sentia mais forte e mais feliz: o
pequeno acontecimento tinha feito bem. Era a primeira vez que constatava
um resultado concreto do seu raro momento de caridade, e a sensação de
surpresa diante da camaradagem humana acabou com o frio mortal do seu
coração.
Só depois que entrou pela sua porta que sentiu uma solidão profunda.
Já passava das sete, e a luz e os odores vindos do subsolo deixavam claro
que o jantar estava sendo servido. Ela subiu apressada para seu quarto,
ascendeu o lampião a gás, e começou se trocar. Bastava de frescuras, ela
não ia mais ficar sem comer porque o ambiente tornava a comida
intragável. Uma vez que estava destinada a viver numa pensão, ela
precisava aprender a se adaptar as condições da vida. Mesmo assim, ficou
feliz quando, ao descer para o refeitório iluminado e quentinho, o jantar já
estava quase acabando.
Em seu quarto novamente, foi acometida por uma necessidade
repentina de fazer algo. Ela passara semanas mergulhada num estado de
apatia e indiferença tal que não tinha coragem nem mesmo para arrumar
suas coisas, mas agora examinava minuciosamente o que tinha dentro das
gavetas e armários. Ainda restavam alguns vestidos bonitos –
remanescentes da sua fase de esplendor, da época do Sabrina e de Londres,
mas quando se viu obrigada a dispensar a criada ela deu à mulher boa parte
do seu guarda-roupa. Os vestidos que restavam, apesar de terem perdido o
ar de novidade, ainda guardavam as longas linhas exatas, a leveza e o
volume conferido pelo toque de um grande artista, e enquanto os espalhava
por cima da cama as cenas em que cada um tinha sido usado surgiam
vívidas diante dela. Cada prega escondia uma associação: cada movimento
de renda ou vislumbre de um bordado era como um registro do passado. Ela
ficou surpresa em descobrir o quanto a atmosfera da sua antiga vida a
envolvia. Mas, afinal, era a vida para a qual ela tinha sido feita: desde seu
caráter tinha sido cuidadosamente direcionado para este fim, todos seus
interesses e atividades tinham sido moldados para girar em torno disso. Ela
era como uma roseira rara cultivada para ser exposta, uma planta da qual
cada botão tinha sido extirpado, exceto a flor principal da sua beleza.
Por último, ela tirou do fundo do baú um amontoado de pregas
brancas que penderam disformes sobre seu braço. Era o vestido de
Reynolds que ela tinha usado no Tableaux realizado na casa dos Bry. Foi
impossível para ela se desfazer deste, mas ela nunca mais olhara para ele
desde aquela noite, e enquanto sacudia as longas pregas delgadas elas
exalavam um perfume de lírios que foi como um sopro vindo da fonte
cercada de flores onde ela ficara com Lawrence Selden e renunciara ao seu
destino. Ela guardou de volta um a um, cada um levava junto um raio de
luz, uma risada, um pouco das margens risadas do prazer. Ainda estava
muito emocionada, e cada fagulha do passado despertara um tremor que se
espalhara por todo seu corpo.
Ela tinha acabado de fechar o baú sobre as pregas brancas do vestido
de Reynolds quando ouviu uma batida à porta, e a mão vermelha da criada
irlandesa entregou uma carta. Aproximando-a da luz, Lily leu com surpresa
o remetente no envelope. Era uma carta comercial do escritório dos
testamenteiros da sua tia, e ela se perguntou o que fizera com que
rompessem o silêncio antes da data marcada. Ela abriu o envelope e um
cheque caiu no chão. Enquanto se abaixava para apanhá-lo, o sangue subiu
para seu rosto. No cheque constava a quantia exata da sua parte da herança
de Mrs. Peniston, e a carta que o acompanhava explicava que os executores,
por terem conseguido acertar tudo mais rápido do que o imaginado, tinham
decidido antecipar a data fixada para o pagamento da herança.
Lily sentou ao lado da escrivaninha aos pés da sua cama, e abrindo o
cheque, leu e releu os DEZ MIL DÓLARES escritos por extenso com uma
caligrafia firme. Dez meses antes o montante representava a mais pura
penúria; mas neste intervalo de tempo seus valores tinham mudado, e agora
vislumbres de riqueza saltavam de cada floreio da caneta. Enquanto olhava
para o cheque, sua imaginação foi invadida por uma série de visões, e um
tempo depois ela levantou a tampa da escrivaninha e guardou a fórmula
mágica. Era mais fácil pensar sem ter de olhar para aqueles números
dançando diante de seus olhos; e ela pensou muito antes de dormir.
Ela abriu seu talão de cheques, e se pôs a calculara ansiosamente
assim como fizera naquela noite em Bellomont quando decidiu se casar
com Percy Gryce. A pobreza simplifica os cálculos, e agora foi muito mais
fácil verificar a sua situação financeira; mas ela ainda não tinha aprendido a
controlar o dinheiro, e durante sua fase de transição do luxo no Emporium
ela ainda se deixou levar por hábitos extravagantes que comprometeram sua
situação instável. Após uma análise cuidadosa do seu saldo, e das contas a
pagar, foi constatado que, depois de tudo pago, só restaria uma quantia que
mal daria para viver por três ou quatro meses; e depois disso, se continuasse
vivendo como agora, sem que entrasse mais dinheiro, todos os gastos extras
teriam de ser reduzidos ao máximo. Ela cobriu os olhos com um tremor, e
se imaginou à beira de uma vida de privações como aquela que a figura
infeliz de Miss Silverton estava levando.
Entretanto, não era mais a pobreza material que mais a atemorizava.
Ela tinha uma sensação de empobrecimento profundo – de uma miséria
interior que crescia à medida que os bens matérias iam se tornando
insignificantes. Realmente era muito ruim ser pobre – com uma perspectiva
de chegar à meia-idade ansiosa, levada aos poucos pela economia e
sacrifícios a uma absorção gradual da existência nula e coletiva de uma
pensão. Mas havia algo mais miserável do que isto – era o aperto da solidão
em seu coração, a sensação de ter sido deslocada como um organismo cujas
raízes foram arrancadas do lugar pela correnteza desvairada dos anos. Esta
era a sensação que ela sentia, neste momento – a sensação de que era um
ser sem raízes e efêmero, uma gotinha sobre a superfície agitada da
existência, sem nada onde seus pobres tentáculos pudessem se agarrar antes
de ser engolida pela maré assustadora. E ao olhar para trás, ela se deu conta
de que nunca tivera um relacionamento verdadeiro na vida. Seus pais
também não tinham raízes, seguiam de acordo com a direção que os ventos
da moda sopravam, sem uma existência pessoal para protegê-los das
mudanças dos ventos. Ela crescera sem se apegar a nenhum lugar: não
havia um centro de devoção, lembranças afetivas, onde seu coração pudesse
recorrer e de lá tirar forças para si mesma e carinho pelos outros. De um
jeito ou de outro, as lembranças aos poucos acumuladas seguem correndo
nas veias – seja na imagem concreta de uma casa antiga repleta de
lembranças visuais, ou na concepção de uma casa que não foi construída
pelas mãos do homem, mas feita de paixões e lealdades herdadas – elas têm
o mesmo poder de ampliar e aprofundar a existência individual, de conectá-
la através de elos misteriosos de igualdade à luta humana pela
sobrevivência.
Tal visão de vida solidária nunca tinha ocorrido para Lily. Ela tinha
uma vaga noção por meio dos impulsos cegos do instinto de acasalamento;
mas esta tinha sido colocada em cheque pelas influências desagregadoras
do meio social ao qual estava inserida. Todos os homens e mulheres que ela
conhecia pareciam moléculas de átomos girando uma para cada lado em
uma espécie de dança com uma força centrípeta violenta: seus primeiros
lampejos de continuidade da vida tinham ocorrido naquela noite na cozinha
de Nettie Struther.
A pobre trabalhadora que tinha encontrado forças para juntar os
pedaços da sua vida, e construído um abrigo com eles, pareceu para Lily ter
encontrado o sentido da vida. Era uma vida miserável, no limite sombrio da
pobreza, com poucas margens para a doença ou infortúnios, e tinha a
permanência audaciosa e frágil de um ninho de passarinho construído na
beira de um penhasco – um mero feixe de folhas e gravetos, mas tão bem
consolidados que as vidas a eles confiadas podem oscilar em segurança
sobre o abismo.
Sim, mas era preciso dois para construir o ninho; a fé do homem
assim como a coragem da mulher. Lily se lembrou das palavras de Nettie:
Eu sabia que ele sabia sobre o que tinha acontecido comigo. A fé que o
marido dela tinha nela possibilitou a sua renovação – é tão fácil para uma
mulher se transformar naquilo que o homem que ela ama acredita que ela
seja! Por duas vezes Selden esteve pronto para depositar sua fé em Lily
Bart; mas a terceira provação foi muito difícil para ele conseguir transpor.
Foi a qualidade do amor dele que impossibilitou seu renascimento. Se
tivesse sido apenas uma questão de compatibilidade sanguínea, o poder da
beleza dela teria reavivado este amor. Mas o fato de ser algo profundo, de
ser algo inextricavelmente ligado a hábitos herdados de ideias e
sentimentos, fez com que se tornasse impossível fazer com que voltasse a
crescer assim como o é para uma planta que foi arrancada pela raiz do seu
canteiro. Selden tinha dado o melhor de si para ela; mas ele, assim como
ela, era incapaz de fazer um retorno acrítico a estados anteriores de
sentimentos.
Ainda restava, como ela confessara a ele, a lembrança edificante da fé
que ele tinha nela; mas ela ainda não tinha atingido aquela idade em que
uma mulher é capaz de viver das lembranças apenas. Quando tomou em
seus braços a filha de Nettie Struther as correntes congeladas da juventude
derreteram e correram quentes pelas suas veias: a velha fome de vida se
apoderou dela, e todo seu ser clamou pela sua parcela de satisfação pessoal.
Sim – ela ainda sonhava com a felicidade, e o vislumbre desta fez com que
tudo o mais parecesse insignificante. Ela tinha deixado escapar cada uma
das pequenas possibilidades que surgiram, e agora percebeu não lhe restava
nada além do vazio da renúncia.
Estava ficando tarde, e mais uma vez ela foi acometida por um vazio
imenso. Não era a sensação de privação do sono, mas um verdadeiro
cansaço de ficar acordada, uma lucidez da mente contra a qual todas as
possibilidades de um futuro eram ofuscadas por uma sombra gigante. Ela
ficou apavorada com a clareza da visão; tinha a sensação de que rompera o
bendito véu que separa a intenção da ação. Havia o cheque na sua
escrivaninha, por exemplo, que ela pretendia usar para quitar sua dívida
com Trenor; mas ela previa que pela manhã acabaria desistindo disso, e aos
poucos iria acabar aceitando a ideia de continuar devendo. A ideia a
apavorava – ela temia despencar do auge do seu último momento com
Lawrence Selden. Mas como poderia confiar em si mesma para se manter
firme? Conhecia a força dos impulsos opostos, sentia as mãos do hábito
arrastando-a de volta para o seu destino novamente. Ela sentiu uma vontade
imensa de prolongar, de eternizar, a elevação momentânea do seu espírito.
Se ao menos a vida pudesse acabar agora – acabar com esta visão trágica,
mas ao mesmo tempo doce das possibilidades perdidas, que despertou nela
uma sensação de carinho por tudo que ela tinha amado e aberto mão neste
mundo!
Ela estendeu a mão de repente, e tirando o cheque de dentro da
escrivaninha, colocou-o dentro de um envelope que endereçou ao seu
banco. Em seguida, fez outro cheque para Trenor, colocou dentro de outro
envelope endereçado a ele, sem nenhuma palavra acompanhando, e
depositou os dois envelopes, um ao lado do outro em cima da mesa. Depois
disso, continuou sentada à mesa, separando alguns papéis e escrevendo, até
o silêncio intenso da casa lembrá-la de que já era tarde. O barulho de rodas
já tinha cessado na rua, e o estrondo do “elevado” vinha apenas a longos
intervalos através do profundo silêncio anormal. Na misteriosa separação
noturna de todos os sinais externos da vida, ela se sentiu estranhamente
conformada com seu destino. A sensação colocou seu cérebro para
funcionar, e ela tentou deter a consciência pressionando as mãos sobre os
olhos. Mas o silêncio terrível e o vazio pareciam simbolizar seu futuro – era
como se a casa, a rua, o mundo estivessem todos vazios, e ela era a única
pessoa consciente um universo sem vida.
Mas ela estava à beira do delírio… nunca tinha chegado tão perto do
limite vertiginoso do irreal. Tudo que queria era dormir – ela lembrou que
já fazia duas noites que não fechava os olhos. O frasco estava ao lado da
cama, esperando para derramar seu encanto. Ela levantou e se trocou
apressada, ansiando pelo conforto do travesseiro. Estava tão cansada que
achou que fosse pegar no sono num segundo; mas assim que deitou, mais
uma vez, cada nervo despertou atento. Era como se uma luz intensa
estivesse acesa dentro da sua cabeça, e seu pobre ser angustiado se encolhia
e se cobria, sem saber onde se esconder.
Não imaginara que a insônia pudesse se prolongar tanto: todo seu
passado se reencenava em milhares de pontos distintos de consciência.
Onde estava a droga capaz de aplacar esta legião de nervosos insurgentes?
A sensação de cansaço era doce comparada a esta tormenta de atividades
incessantes; mas o cansaço a abandonara como se um estimulante cruel
tivesse sido injetado em suas veias.
Ela podia suportar – sim, ela podia suportar isso; mas que forças
restariam para o dia seguinte? A perspectiva tinha desaparecido – o dia
seguinte pressionava, e no encalço dele os dias que viriam depois – eles
rondavam igual a uma multidão enfurecida. Ela precisava fazer com que
eles se calassem por algumas horas; ela precisava tomar um chá de sumiço.
Ela estendeu o braço, e pingou as gotas calmantes em um copo; mas
enquanto o fazia, ela sabia que elas seriam inúteis contra a lucidez
sobrenatural do seu cérebro. Fazia tempo que já tinha aumentado a dose no
limite máximo, mas nesta noite ela sentiu que teria de aumentar ainda mais.
Sabia que estaria correndo um grande risco ao fazer isso – não tinha se
esquecido do aviso do farmacêutico. Se o sono viesse, seria um sono sem
despertar. Mas as chances de isso acontecer eram de uma em cem: o efeito
da droga era imprevisível, e a adição de algumas gotas à dose normal não
iria fazer nada além de lhe dar aquilo que ela buscava desesperadamente…
Na verdade, ela não pensou muito a respeito – a necessidade física do
sono era sua única sensação verdadeira. Sua mente fugia dos pensamentos
assim como os olhos fogem instintivamente do brilho da luz – a escuridão,
a escuridão era o que ela queria a qualquer custo. Ela se ergueu na cama e
engoliu o conteúdo do copo; então soprou a vela e deitou.
Ficou bem quietinha, esperando com um prazer sensual os primeiros
efeitos soporíferos. Sabia de antemão como eles viriam: a cessação gradual
do tumulto interior, a aproximação suave da placidez, como se uma mão
invisível executasse passes de mágica sobre ela na escuridão. A própria
lentidão e a hesitação dos efeitos aumentavam o fascínio: era delicioso se
debruçar e penetrar no abismo escuro da inconsciência. Nesta noite a droga
parecia estar funcionando mais lentamente do que de costume: cada pulsar
apaixonado precisava ser aplacado um a um, e demorou até que ela sentisse
que eles tinham acalmado, como se fossem sentinelas adormecendo em seus
pontos. Mas aos poucos a sensação e entrega total tomou conta, e ela se
perguntou languida o que mesmo a deixara tão agitada e inquieta. Neste
momento não havia motivos para agitação – ela tinha retomado sua visão
normal da vida. Não haveria nenhuma dificuldade no dia seguinte: ela
estava certa de que teria forças para encarar. Quase não se lembrava mais
do que estava com medo de encarar, mas a incerteza não a perturbava mais.
Ela estivera infeliz, mas agora estava feliz – tinha se sentido sozinha, mas
agora a sensação de solidão tinha desaparecido.
Ela se espreguiçou e virou de lado, e enquanto o fez, de repente ela
compreendeu porque não se sentia mais só. Era estranho – mas a criança de
Nettie Struther estava em seus braços: ela sentia a pressão da cabecinha
contra o seu ombro. Ela não fazia ideia de como a criança tinha vindo parar
ali, mas não ficou muito surpresa com o fato, sentia apenas o tremor
penetrante de calor e prazer. Ela se ajeitou melhor, dobrando o braço para
acomodar a cabecinha redonda, e respirando baixinho para não perturbar o
sono do bebê.
Enquanto estava deitada ali ela disse a si mesma que tinha uma coisa
que ela precisava contar para Selden, alguma palavra que ela tinha
encontrado que poderia esclarecer as coisas entre eles. Ela tentou repetir a
palavra, que vagava nas profundezas dos seus pensamentos – estava com
medo de não se lembrar quando acordasse; e se ao menos conseguisse se
lembrar disso e dizer para ele, ela tinha certeza de que tudo ficaria bem.
Lentamente a ideia da palavra desapareceu, e o sono começou a
envolvê-la. Ela lutou contra ele, sentindo que precisava ficar acordada por
causa do bebê; mas até mesmo esta sensação foi aos poucos se perdendo em
uma sensação indistinta de paz sonolenta, que, de repente, foi interrompida
bruscamente por um lampejo sombrio de solidão e terror.
Ela acordou novamente, com frio e tremendo de medo: por um
momento parecia que tinha perdido a criança que estava segurando. Mas
não – ela tinha se enganado – a pressão suave do corpinho ainda estava
aconchegada contra o seu: a recuperação do calor fluiu por todo seu corpo
mais uma vez, e ela cedeu, se entregou a sensação e dormiu.
Capítulo 14
O dia amanheceu ameno e ensolarado, com uma promessa de verão
no ar. A luz do sol banhava alegremente a rua de Lily, suavizando a fachada
cheia de bolhas, reluzindo nos corrimões sem pintura dos degraus da
entrada, e atingindo as glórias prismáticas das vidraças da sua janela escura.
Quando o dia coincide com o nosso humor é de perder o fôlego; e
Selden, que andava apressado pela rua alheio a esqualidez das suas
confidências matinais, de repente foi acometido por uma nova sensação de
aventura. Ele tinha saído da sua zona de conforto e se aventurado nos mares
inexplorados da emoção; todas as antigas cautelas e medidas preventivas
tinham sido deixadas para trás, e seu curso agora seria moldado por novos
recomeços.
Esse curso, por enquanto, o levara somente para a pensão de Miss
Bart, mas a fachada humilde de repente se transformou no limiar nunca
antes transposto. À medida que se aproximava ele olhava para a fileira
tripla de janelas ao alto, pensando infantilmente qual seria a dela. Eram
nove horas, e a casa, sendo ocupadas por trabalhadoras, já dava sinais de
movimento da rua. Ele se lembrou depois de que apenas uma cortina estava
fechada. Notou também que havia um vasinho de amor-perfeito em um dos
peitoris, e na hora achou que aquela janela só podia ser a dela: foi inevitável
para ele ligá-la ao único toque de beleza naquele cenário miserável.
Nove horas eram cedo para uma visita, mas Selden tinha deixado de
lado as convenções. Ele só sabia que precisava ver Lily Bart – tinha
encontrado a palavra que pretendia dizer para ela, e mal podia esperar para
dizer. Era estranho que ela não tivesse vindo em seus lábios antes – que ele
a tivesse deixado escapar na tarde anterior antes que ele tivesse conseguido
falar. Mas o que importava, agora que um novo dia tinha chegado? Aquela
não era uma palavra para o crepúsculo, mas para a manhã.
Selden subiu os degraus ansioso e tocou a sineta; e apesar de estar tão
concentrado em si mesmo, ficou surpreso quando a porta foi aberta de
imediato. Ficou ainda mais surpreso em ver, quando entrou, que ela tinha
sido aberta por Gerty Farish – e que atrás dela, num borrão indistinto
agitavam-se outras figuras.
– Lawrence! – exclamou Gery, num tom de voz estranho, – como
você conseguiu chegar tão rápido? – e a mão trêmula que ela estendeu
causou um aperto no seu coração.
Uma voz ao fundo disse que o médico desceria dentro de um minuto –
e que ninguém deveria subir. Mais alguém exclamou: – Foi a misericórdia
divina… – então Selden sentiu que Gerty segurava gentilmente a sua mão, e
que os dois teriam de suportar juntos a subida.
Eles subiram os três lances de escada em silêncio, e caminharam pelo
corredor até a porta mais próxima. Gerty abriu a porta, e Selden entrou
depois dela. Apesar de a veneziana estar fechada, a irresistível luz do sol
banhava o quarto de dourado, e sob esta luz Selden viu uma cama estreita
colada a parede, e sobre a cama, com as mãos imóveis e o rosto
irreconhecivelmente calmo, o semblante de Lily Bart.
Cada batida do seu coração negava ardentemente que aquela fosse a
verdadeira Lily. A verdadeira Lily recostara quente em seu peito poucas
horas antes – o que ele tinha a ver com aquele rosto estranho e sereno que,
pela primeira vez, não empalidecera e nem se alegrara com sua chegada?
Gerty, que também estava estranhamente tranquila, com o
autocontrole consciente de alguém que já tinha atenuado muitas dores,
estava ao lado da cama, falando calmamente, como se estivesse
transmitindo uma mensagem final.
– O médico encontrou um frasco de cloral. Ela vinha dormindo mal
há muito tempo, e deve ter tomado mais do que o indicado, sem querer…
Não há dúvida quanto a isso, não há dúvida, ele foi muito gentil. Falei para
que você e eu gostaríamos de ficar sozinhos com ela, para ajeitar as coisas
dela antes que mais alguém chegasse. Sei que é isto que ela gostaria.
Selden mal ouviu o que ela tinha dito. Ele ficou olhando para o rosto
adormecido que parecia jazer como uma delicada máscara impalpável sobre
os traços de vida que ele conhecia. Ele sentia que a verdadeira Lily ainda
estava ali, bem perto dele, apesar de estar invisível e inacessível; e a
fragilidade da barreira entre eles o enganava com uma sensação de
impotência. Nunca existira nada além de uma barreira impalpável entre eles
– e mesmo assim ele lutara para se manter afastado dela! E agora, embora
ela parecesse mais frágil e tênue do que nunca, de repente, ela tinha
enrijecido a ponto de se tornar intransponível, e mesmo que ele apostasse
sua vida seria em vão.
Ele caiu de joelhos ao lado da cama, mas um toque de Gerty o
despertou. Ele olhou para cima, e quando seus olhos se encontraram ele
ficou encantado com a luz extraordinária que o rosto da sua prima emanava.
– Você sabe o que o médico foi fazer? Ele prometeu que não haverá
problemas, mas claro que é necessário tomar as devidas providências. E
pedi para ele que nos desse um tempo para ajeitarmos as coisas dela
primeiro…
Ele assentiu, e ela olhou ao redor do quartinho vazio.
– Não vai demorar muito – ela concluiu.
– Não. Não vai demorar muito – ele concordou.
Ela segurou a mão dele mais um tempo, e então, após uma última
olhada para a cama, saiu andando silenciosamente em direção à porta. No
limiar ela parou e adicionou:
– Estarei lá embaixo, caso precise de mim.
Selden se levantou para detê-la.
– Mas por que você está saindo? Ela teria desejado…
Gerty meneou a cabeça com um sorriso.
– Não; isto é o que ela teria desejado…
E enquanto ela falava uma luz rompeu a tristeza petrificante de
Selden, e ele enxergou com clareza as entrelinhas ocultas do amor.
A porta fechou atrás de Gerty, e ele ficou sozinho com a adormecida
imóvel na cama. Seu primeiro impulso foi de voltar para o lado dela, cair de
joelhos, e recostar a cabeça agitada contra a face serena sobre o travesseiro.
Eles nunca tinham ficado em paz juntos, só os dois; e agora ele se sentia
atraído pelas misteriosas profundezas estranhas da tranquilidade dela.
Mas ele se lembrou do aviso de Gerty – sabia que, apesar de o tempo
ter parado dentro daquele quarto, seus pés corriam implacáveis em direção
à porta. Gerty tinha lhe dado aquela meia hora divina, e ele precisa usá-la
de acordo com a vontade dela.
Ele virou e olhou ao redor, obrigando-se a recuperar a consciência das
outras coisas. Havia poucos móveis no quarto. A penteadeira ordinária
estava coberta por uma tolha de renda, e em cima desta, algumas caixas de
tampa dourada e frascos, uma almofada cor-de-rosa de alfinetes, uma
bandeja de espelho com algumas presilhas de tartaruga – ele recuou diante
da intimidade pungente destas bugigangas, e da superfície vazia do espelho
acima delas.
Aqueles eram os únicos traços de luxo, de apego aos mínimos
detalhes do cuidado pessoal, que mostrava o quanto devia ter custado a ela
as outras renúncias. Não havia outro sinal pessoal dela no quarto, tirando,
talvez, a disposição criteriosa dos poucos móveis: um lavatório, duas
cadeiras, uma pequena escrivaninha e um criado-mudo ao lado da cama.
Sobre o criado-mudo estava o frasco vazio e um copo, e ele desviou os
olhos destes também.
A escrivaninha estava fechada, mas sobre o tampo inclinado havia
duas cartas, aos quais ele pegou. Uma estava endereçada a um banco, e
como estava lacrada e selada, Selden, após um momento de hesitação,
deixou de lado. A outra estava endereçada a Gus Trenor; e a tampa do
envelope ainda estava aberta.
A tentação o apunhalou como uma faca. Ele cambaleou, firmando-se
na mesa. Por que ela tinha escrito para Trenor – escrito, supostamente, logo
depois que eles tinham se despedido na tarde do dia anterior? O pensamento
apagou a lembrança daquela última hora, zombou da palavra que ele tinha
vindo falar, e contaminou até mesmo o silêncio conciliador em que ela caiu.
Ele se viu retomando todas as incertezas horrendas das quais imaginara que
tinha conseguido se livrar para sempre. Afinal, o que ele sabia sobre a vida
dela? Apenas o que ela tinha escolhido mostrar para ele, e de acordo com a
noção de mundo, isso era muito pouco! Que direito – a carta em sua mão
parecia perguntar – que direito ele tinha de invadir a privacidade dela pelo
portão que a morte tinha deixado aberto? Seu coração respondeu que era
com o direito da última hora que eles tinham passado juntos, a hora quando
ela mesma tinha colocado a chave na não dele. Sim, mas e se a carta tivesse
sido escrita para Trenor depois disso?
Ele a soltou com repugnância, e cerrando os lábios, retomou com
afinco o que precisava fazer. Afinal, isto ia ser fácil de fazer, agora que a
seu envolvimento pessoal tinha sido anulado.
Ele levantou a tampa da escrivaninha, e dentro viu um talão de
cheques e alguns maços de notas e cartas, organizados com uma precisão
que caracterizava todos os hábitos pessoais dela. Ele deu uma olhada nas
cartas primeiro, pois esta era a parte mais difícil do trabalho. Eram poucas e
sem muita importância, mas entre elas ele encontrou, com um estranho
aperto no coração, o bilhete que ele tinha escrito para ela um dia depois da
festa na casa dos Bry.
– Quando posso lhe fazer uma visita? – suas próprias palavras o
sobrepujaram ao perceber o modo covarde como ele fugira dela no
momento crucial. Sim, ele sempre teve medo do seu destino, mas era muito
honesto para negar sua covardia agora, afinal todas as suas antigas dúvidas
não tinham voltado à tona novamente com a simples visão do nome de
Trenor?
Ele colocou cuidadosamente o bilhete no seu porta-cartões, e guardou
como se fosse algo precioso pelo simples fato de ela ter tocado nele; então,
ciente do tempo que se esgotava, ele continuou examinando os papéis.
Para sua surpresa, descobriu que todas as notas tinham sido pagas;
não havia uma conta sem pagar entre elas. Abriu então o talão de cheques, e
viu que, na noite anterior, tinha sido anotada a entrada de um cheque de dez
mil dólares dos executares de Mrs. Peniston. A herança tinha sido paga
antes do que Gerty o fizera imaginar que seria. Mas, ao virar uma ou duas
páginas, ele descobriu surpreso que, apesar da entrada recente, restavam
apenas alguns dólares de saldo. Uma passada de olhos nos canhotos dos
últimos cheques, todos com a data do dia anterior, mostrou que em torno de
quatro ou cinco mil dólares da herança tinham sido usados para pagar as
contas, enquanto o restante tinha sido destinado a um cheque apenas, feito,
junto com os outros, para Charles Augustus Trenor.
Selden colocou o talão sobre a escrivaninha, e sentou sobre a cadeira
ao lado. Apoiou os cotovelos sobre ela, e escondeu o rosto entre as mãos.
As águas amargas da vida o envolveram, e o gosto estéril ficou em seus
lábios. Será que o cheque para Trenor explicava ou aumentava ainda mais o
mistério? A princípio sua mente se recusava a funcionar – ele só conseguia
pensar na sujeira que poderia significar uma transação deste tipo entre um
homem como Trenor e uma moça como Lily Bart. Então, aos poucos, sua
visão conturbada foi clareando, pistas antigas e rumores foram voltando, e
apesar das insinuações que ele mesmo temia constatar, surgiu uma
explicação para o mistério. Era verdade, então, que ela tinha pegado
dinheiro emprestado de Trenor; assim como também era verdade, de acordo
como conteúdo da escrivaninha, que a dívida tinha sido intolerável para ela,
e que na primeira oportunidade ela tratou de se livrar, apesar de o ato a ter
deixado cara a cara com a mais pura pobreza.
Isso era tudo que ele sabia – tudo que podia esperar para desvendar a
história. Os lábios emudecidos no travesseiro se recusavam a confirmar isso
– a menos que tivessem insinuado muito mais no beijo que ela tinha dado
na sua testa. Sim, agora ele era capaz de enxergar naquela despedida tudo
que seu coração almejava encontrar lá; ele conseguiu até mesmo tirar
coragem disso para não se culpar por não ter aproveitado a oportunidade
que tivera.
Ele percebeu que todas as condições da vida tinham conspirado para
afastá-los; uma vez que seu próprio distanciamento das influências externas
que nela oscilavam tinham servido para elevar o nível da sua exigência
espiritual, e tornado mais difícil para ele viver e amar sem ressalvas. Mas ao
menos ele a amara – esteve disposto a arriscar seu futuro em nome da fé
que tinha nela – e se o momento estava destinado a passar diante deles antes
que eles conseguissem agarrá-los, agora ele via que isto os salvara de
arruinarem suas vidas.
Foi esse momento de amor, esta vitória fugaz sobre eles mesmos, que
os livrara da atrofia e da extinção; que, a partir dela, tinha atingindo-o em
cada luta contra a influência do meio em que ela estava inserida, e nele,
mantivera viva a fé que agora o atraía penitente e reconciliador para perto
dela.
Ele se ajoelhou ao lado da cama e se inclinou sobre ela, aproveitando
ao máximo este último momento; e no silêncio que se passou entre eles, a
palavra que esclareceu tudo.
FIM
FICHA CATALOGRÁFICA
1. Literatura americana.
2. Ficção.
3. Romantismo
I. Título.
II. M. C. Rezende, Silvia.
CDD – 813
PEDRAZUL EDITORA
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[1]
- A Viagem da Vida é uma série de pinturas feitas pelo americano Thomas Cole, em 1842,
representando simbolicamente as quatro estações da vida humana: infância, juventude, idade
adulta e velhice. Após a morte do pintor, James Smillie reproduziu os quatros em gravuras, que
caíram no gosto popular.
[2]
- Expressão francesa que significa pintura viva. Trata-se de uma representação feita por
modelos ou atores de uma obra pictórica já existente ou inédita.