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Sumário

Capítulo I
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
LIVRO DOIS
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo I
Selden parou surpreso. Na correria de fim de tarde na Grand Central
Station seus olhos tiveram um refresco diante da visão de Miss Lily Bart.
Era uma segunda-feira no início de setembro e ele estava retornando
para seu trabalho após uma breve estada no interior; mas o que Miss Bart
estava fazendo na cidade naquela época do ano? Se parecesse que estava
pegando um trem, ele poderia deduzir que a apanhara na transição entre
uma casa de campo e outra das muitas que disputavam a sua presença após
o final da temporada de Newport; mas seu olhar perdido o surpreendeu.
Estava a parte da multidão que passava por ela a caminho da plataforma ou
da rua e tinha um quê de indecisão que poderia, como o supôs, muito bem
ser a máscara de um firme propósito. Passou pela sua cabeça que ela
poderia estar esperando alguém, mas ele não sabia ao certo por que lhe
ocorrera tal ideia. Havia algo diferente em Lily Bart, pois ele nunca a viu
parada com ares de desinteresse: era característica sua sempre despertar
especulações, que até mesmo seus atos mais corriqueiros pareciam
carregados de segundas intenções.
A curiosidade o fez desviar da linha reta até a porta e passar por ela.
Ele sabia que caso não quisesse ser vista ela daria um jeito de fugir; e foi
divertido testar as habilidades dela.
– Mr. Selde, que sorte!
Ela avançou sorrindo, praticamente ansiosa, no seu propósito de
interceptá-lo. Uma ou duas pessoas que passavam por eles deram uma
olhada, pois Miss Bart era do tipo capaz de chamar a atenção até mesmo de
um passageiro que corria apressado para pegar o último trem para o
subúrbio.
Selden nunca a vira tão radiante. Seu rosto vívido, suavizado pelos
tons opacos da multidão, destacava-se mais do que se estivesse em um salão
de baile, e sob o chapéu e véu escuros ela recuperara a delicadeza da
adolescência, o tom da pureza, que estava começando se dissipar após onze
anos dormindo tarde e dançando incansavelmente. Seria mesmo onze anos,
Selden se perguntou, e será mesmo que ela tinha completado os vinte e
nove que suas rivais lhe davam?
– Que sorte! – repetiu ela. – Quanta gentileza sua vir me salvar!
Ele reagiu com entusiasmo, pois esta era a sua missão de vida e
perguntou que tipo de ajuda poderia lhe oferecer.
– Oh, qualquer tipo, até mesmo sentar em um banco e conversar
comigo. Se alguém é capaz de perder uma dança, por que não perder um
trem? Aqui não está mais quente do que no jardim de inverno de Mrs. Van
Osburgh e algumas mulheres até que não são feias? – ela se interrompeu,
rindo, para explicar que estava de passagem pela cidade, vindo de Tuxedo, e
que estava indo para a casa de Gus Trenor, em Bellomont, mas tinha
perdido o trem das quinze e quinze para Rhinebeck. – E não tem outro até
as dezessete e trinta – ela deu uma olhadinha no relógio de pulso entre as
rendas da manga. – Duas horinhas de espera. E não sei o que fazer. Minha
criada veio hoje cedo para fazer umas comprinhas para mim. Era para eu ter
pegado o trem das treze horas para Bellomont e a casa da minha tia está
fechada, e não conheço ninguém na cidade – deu outra olhada desanimada
ao redor. – Está mesmo muito mais quente do que no jardim de inverno de
Mrs. Van Osburgh. Se pudesse tirar um tempinho para levar-me para um
algum lugar mais fresco.
Ele declarou que estava à disposição dela, pois a aventura lhe pareceu
divertida. Como espectador, ele sempre gostara de Lily Bart; e seu curso
corria tão distante da orbita dela que ele ficou surpreso por ter sido atraído
momentaneamente para a inesperada intimidade implícita no convite.
– O que acha de irmos ao Sherry’s para uma xícara de chá?
Ela sorriu de acordo e em seguida franziu levemente o cenho.
– A cidade fica tão cheia às segundas que é certeza encontrarmos
muitos chatos. Mas tudo bem, sou mais velha que as montanhas, e isto não
vai fazer diferença. Sei que eu tenho idade suficiente, já você não – ela
argumentou brincalhona. – Estou morrendo de vontade de tomar um chá,
mas será que não existe um lugar mais sossegado?
Ele retribuiu o sorriso, que permaneceu vívido em seu rosto. As
reservas dela o interessavam quase tanto quanto as suas imprudências; ele
estava certo que ambos faziam parte do mesmo plano cuidadosamente
elaborado. Ao julgar Miss Bart, ele sempre costumava usar o “argumento
da criação divina”.
– As opções em Nova York são um tanto escassas – disse ele –, mas
vou chamar uma carruagem primeiro e depois pensamos em algo.
Ele a conduziu em meio à multidão de turistas retornando de férias,
passando por meninas pálidas em chapéus exagerados e mulheres de seios
exprimidos lutando com embrulhos e leques de folha de palmeira. Seria
mesmo possível que ela pertencesse a mesma raça? O desânimo, a crueza
desta amostra do sexo feminino mediano fez com que ele percebesse o quão
especial ela era.
Uma chuvinha rápida refrescou o ar e as nuvens ainda pairavam sobre
as ruas molhadas.
– Que delícia! Vamos caminhar um pouco – disse ela enquanto eles
saiam da estação.
Eles viraram na Avenida Madison e seguiram rumo ao norte. À
medida que ela se movia ao seu lado, a passos longos e leves, Selden tinha
consciência do prazer da proximidade: o formato da orelhinha, a ondulação
dos cachos – será que seus cabelos sempre brilhavam assim naturalmente? –
e os cílios pretos volumosos e retos. Tudo nela era ao mesmo tempo
vigoroso e requintado, ao mesmo tempo forte e fino. Ele tinha a estranha
sensação de que a sua produção tivera um alto custo, que uma porção de
pessoas feias e chatas muito provavelmente, de algum modo misterioso,
tinha sido sacrificada para produzi-la. Ele tinha consciência de que as
qualidades que a distinguiam da grande maioria do seu gênero eram
primordialmente externas: como se uma fina camada de verniz da beleza e
da perfeição tivesse sido aplicada sobre um barro qualquer. Mas a analogia
não foi satisfatória, pois uma textura tão grosseira não teria um acabamento
tão fino. Contudo, será que não seria possível que o material fosse fino e
que as circunstâncias o tivessem moldado num formato mais fútil?
Nesse ponto de suas conjecturas o sol apareceu e a sobrinha erguida
por ela interrompeu seu divertimento. Um ou dois minutos depois ela parou
com um suspiro.
– Oh, minha nossa, estou morrendo de calor e sede. Como Nova York
é horrível! – ela olhou desesperada de um lado para o outro na rua sem
graça.
– Outras cidades vestem as suas melhores roupas no verão, mas Nova
York parece vestir camisa sem manga – seus olhos percorreram umas das
ruas adjacentes. – Alguém teve a humanidade de plantar algumas árvores,
lá. Vamos para a sombra?
– Fico feliz que a minha rua esteja a seu gosto – disse Selden
enquanto eles dobravam a esquina.
– A sua rua? Você mora aqui?
Ela olhou interessada para as fachadas novas de tijolos e pedra
calcária, fantasticamente variadas em obediência ao anseio americano por
novidade, mas frescas e acolhedoras com suas floreiras e toldos.
– Ah, sim, claro: O BENEDTICK. Belo prédio! Acho que nunca o vi
antes. Ela deu uma olhada para o prédio com pórtico de mármore e fachada
pseudo-georgiana. – Quais sãos as suas janelas? Aquelas com toldos?
– As do andar de cima.
– E aquela sacada simpática é sua? Como deve ser fresquinho lá em
cima!
Ele parou por um momento
– Suba e veja – ele sugeriu. – Posso lhe oferecer uma xícara de chá
rapidinho e você não vai encontrar ninguém chato.
Ela enrubesceu ainda mais, pois ainda dominava a arte de ruborizar no
momento certo e aceitou ao convite com a mesma naturalidade com que foi
feito.
– Por que não? É muito tentador. Vou correr o risco – declarou.
– Oh, não sou perigoso – disse ele no mesmo tom. Na verdade, nunca
gostara tanto dela quanto naquele momento. Ele sabia que ela aceitara sem
pensar, pois tinha consciência de que nunca fora um fator nos cálculos dela,
e havia uma surpresa, quase um frescor, no modo espontâneo como ela
aceitara o convite.
À soleira da porta ele parou por um segundo, encaixando a chave no
trinco.
– Não tem ninguém aqui, mas tenho uma criada que costuma vir na
parte da manhã e é possível que ela tenha deixado as coisas prontas para o
chá e providenciado um bolo.
Ele a conduziu por um corredorzinho estreito cheio de fotos antigas
penduradas nas paredes. Ela viu algumas cartas e notas empilhadas sobre
uma mesa ao lado de luvas e bengalas; em seguida se vislumbrou uma
pequena biblioteca, escura, mas convidativa, com paredes cobertas de
livros, um tapete turco desbotado no ponto certo, uma escrivaninha
bagunçada, e, conforme ele tinha prometido, uma bandeja com chá em cima
de uma mesinha perto da janela. Uma brisa suave soprou balançando as
cortinas de musselina e trazendo junto um perfume fresco de resedá e
petúnias da floreira da sacada.
Lily afundou com um suspiro em uma das poltronas de couro
surradas.
– Que delícia ter um lugar como este só para a gente! Como é horrível
ser mulher – recostou-se num luxo de descontentamento.
Selden revirava um armário à procura do bolo.
– Até mesmo as mulheres – disse ele – têm usufruído dos confortos de
um apartamento.
– Oh, preceptoras ou viúvas. Mas não moças… não moças pobres,
miseráveis e solteiras!
– Conheço uma que mora em um apartamento.
Ela se endireitou surpresa.
– Você conhece?
– Conheço – ele assegurou, saindo do armário com o bolo.
– Oh, já sei! Você está falando da Gerty Farish – ela soltou um
sorrisinho maldoso. – Mas me referia às CASADOURAS. Além do mais,
ela mora num lugarzinho horrível, não tem criada e come mal. A cozinheira
dela lava a roupa e a comida tem gosto de sabão. Eu odiaria isso, sabe.
– Você não deveria jantar com ela nos dias de lavar roupa – disse
Selden, cortando o bolo.
Os dois riram e ele se ajoelhou ao lado da mesa para ascender o
fogareiro sob a chaleira e ela retirou uma medida de chá de um potinho
verde esmaltado. Enquanto observava a mão dela, delicada como uma
antiga estatueta de marfim, com suas unhas compridas e rosadas e a pulseira
de safiras pendendo no pulso, ele se deu conta da ironia de ter sugerido uma
vida como a que a sua prima Gertrude Farish tinha escolhido. Ela era tão
vítima da civilização que a criara, que os elos da sua pulseira pareciam
algemas que a prendiam ao seu destino.
Ela pareceu ler seus pensamentos.
– Que horrível eu ter falado aquilo da Gerty – disse com uma
compaixão encantadora. – Esqueci que ela era sua prima. Mas somos tão
diferentes, sabe: ela gosta de ser boa e eu de ser feliz. Além do mais, ela é
livre e eu não. Se eu fosse, acho que seria feliz até mesmo no apartamento
dela. Deve ser uma delícia poder arrumar os móveis do jeito que a gente
quer, e não ter de dar a mínima para os homens. Se eu pudesse redecorar a
sala de estar da minha tia, ao menos, tenho certeza de que seria uma mulher
melhor.
– Está tão ruim assim? – perguntou ele, solidário.
Ela sorriu por cima do bule de chá que segurava para ser enchido.
– Isto mostra o quão pouco você tem ido me visitar. Por que não
aparece mais vezes?
– Quando vou, não fico olhando para os móveis de Mrs. Peniston.
– Bobagem – disse ela. – Você nunca aparece, apesar de termos nos
dado tão bem quando nos conhecemos.
– Talvez seja por isso – respondeu ele de bate e pronto. – Acho que
não tenho creme… você gostaria de uma fatia de limão em vez de creme?
– Prefiro – esperou enquanto ele cortava o limão e colocava a
rodelinha na xícara. – Mas isso não é motivo – insistiu.
– Motivo para o quê?
– Para você nunca ir – ela inclinou-se para frente com uma pontinha
de surpresa nos olhos encantadores. – Eu gostaria de entender você. Claro
que sei que têm homens que não gostam de mim; dá para perceber só de
olhar. E tem alguns que têm medo de mim: eles acham que quero casar-me
com eles – soltou um sorriso sincero. – Mas não acho que você não goste de
mim e não é possível que pense que quero me casar com você.
– Não, não se preocupe com isso – ele concordou.
– Então…?
Ele aproximou-se da lareira, levando junto a xícara de chá, e parou
recostado à cornija com os olhos voltados para ela com ares de quem estava
se divertindo. A provocação nos olhos dela o divertiu ainda mais, nunca
imaginara que ela pudesse gastar sua munição em um joguinho tão
insignificante; mas, talvez, só estivesse trinando; ou, talvez, uma moça
como ela não tivesse outro tipo de assunto senão o pessoal. De qualquer
maneira, ela estava maravilhosa, e ele a convidara para um chá e agora
precisava cumprir seu papel.
– Então… – disse ele subitamente – talvez seja esse o motivo.
– Qual?
– O fato de que você não querer se casar comigo. Talvez eu não veja
isso como um incentivo para ir visitá-la – ele sentiu um arrepiozinho na
espinha ao entrar naquele campo, mas a risada dela o tranquilizou.
– Meu querido, Mr. Selden, isto não lhe cai bem. Seria burrice sua se
apaixonar por mim e não é do seu feitio fazer papel de bobo – ela recostou-
se de volta tomando um gole de chá de um jeito tão encantadoramente
imparcial que, se eles estivessem na sala de estar da tia dela, ele teria
tentado contradizer a dedução.
– Não percebe – continuou ela – que já existem muitos homens para
paparicar-me o que eu quero é um amigo que não tenha medo de falar
coisas desagradáveis quando preciso ouvi-las? Às vezes imagino que você
poderia ser esse amigo… não sei por que, só sei que não é pedante, nem
puritano e que eu não teria de fingir nada na sua frente e nem ficar alerta –
sua voz assumira um tom sério e ela ficou olhando para ele como se fosse
uma criança em apuros.
– Você não imagina o quanto preciso de um amigo – disse. – Minha
tia tem vários livros de etiqueta, mas todos se aplicam à conduta do início
dos anos 1850. Sempre senti que para viver de acordo com eles seria
preciso usar vestidos de musselina bege e mangas longas. Quanto às outras
mulheres, as minhas melhores amigas, bem, elas usam e abusam de mim;
mas não dão a mínima para o que acontece comigo. Já estou avulsa há
muito tempo e as pessoas estão se cansando de mim. Elas estão começando
a falar que eu preciso me casar.
Uma pausa se seguiu durante a qual Selden pensou em uma ou duas
respostas para alegrar um pouco o clima, mas acabou rejeitando a favor da
simples pergunta:
– E por que não se casa?
Ela ruborizou e riu.
– Ah, vejo que é um amigo de verdade e um com as qualidades
desagradáveis que eu tanto procurava.
– Não tive intenção de ser desagradável – disse ele, retomando o tom
amistoso. – Casamento não é a sua vocação? Não é para isso que todas
vocês são criadas?
Ela suspirou.
– Acho que sim. O que há mais para fazer?
– Exatamente. Então por que não cria coragem e faz logo isso?
Ela encolheu os ombros.
– Você fala como se eu devesse me casar com o primeiro homem que
aparecer.
– Eu não quis dizer que está tão encalhada assim. Mas deve ter
alguém com os requisitos necessários.
Ela meneou a cabeça como se estivesse cansada.
– Desperdicei uma ou duas boas oportunidades quando fui
apresentada à sociedade… acho que todas as garotas fazem isso; e você
sabe que sou muito pobre, e que gasto muito. Preciso de um bom dinheiro
para manter-me.
Selden tinha se virado para pegar uma cigarreira de cima da cornija.
– O que aconteceu com Dillworth? – perguntou.
– Oh, a mãe dele assustou. Ela ficou com medo que eu ficasse com
todas as joias da família. E ela queria que eu prometesse que não iria
redecorar a sala de estar.
– O único motivo pelo qual você se casaria!
– Exatamente. Por isso ela o mandou para Índia.
– Que azar! Mas você vai conseguiu arrumar alguém melhor do que
Dillworth.
Ele ofereceu a caixinha e ela pegou três dos quatro cigarros,
colocando um nos lábios e guardando os outros em uma caixinha dourada
presa ao seu longo colar de pérolas.
– Será que ainda tenho tempo? Só uma tragada, então – ela inclinou-
se para frente, encostando a ponta do cigarro ao dele. Quanto o fez, ele
notou, com um deleite impessoal, o quanto os cílios dela pareciam ainda
mais pretos presos às pálpebras brancas e lisas, e como as olheiras
arroxeadas se misturavam ao tom pálido das faces.
Ela saiu andando pela sala, examinando as estantes de livros entre
uma tragada e outra. Alguns dos volumes tinham um tom maduro do
manuseio e de couro marroquino antigo, e seus olhos passearem por eles
displicentes, não com a apreciação de um especialista, mas com o prazer de
ver os tons e as texturas que mais lhe agradavam. Subitamente, sua
expressão mudou do puro prazer para conjectura ativa e ela se voltou para
Selden com uma pergunta:
– Você coleciona, não é mesmo… sabe tudo sobre primeiras edições e
coisas assim?
– Tanto quanto um homem que não tem muito dinheiro para gastar.
De vez em quando encontro alguma coisa em uma montanha de lixo; e
estou sempre atrás de boas liquidações.
Novamente voltou-se para as estantes, mas seus olhos agora
passeavam displicentes e ele notou que ela estava preocupada com alguma
coisa nova.
– E antiguidades americanas… você coleciona antiguidades
americanas?
Selden encarou-a e riu.
– Não, isso está acima das minhas posses. Não sou um colecionador
de verdade, sabe; apenas gosto de ter boas edições dos meus livros
preferidos.
Ela soltou um sorrisinho.
– E antiguidades americanas são muito maçantes, suponho?
– Eu diria que sim, exceto para os historiadores. Mas os
colecionadores de verdade dão valor a um objeto pela sua raridade. Não
acho que os compradores de antiguidades americanas passem a noite
lendo… o velho Jefferson Gryce certamente não o fazia.
Ela ouvia atenta.
– E mesmo assim elas alcançam preços fabulosos, não é mesmo? É
esquisito querer pagar uma fortuna por um livro velho e caindo aos pedaços
que ninguém jamais lerá! E suponho que a maioria dos colecionadores de
antiguidades americanas nem seja historiadores.
– Não. São poucos os historiadores que podem se dar ao luxo. Eles só
têm acesso aos exemplares disponíveis nas bibliotecas públicas ou de
coleções particulares. Tenho a impressão de que o simples fato de ser raro é
o que atrai a maioria dos colecionadores.
Ele se encontrava sentado agora na poltrona perto de onde ela estava
em pé, e ela seguiu fazendo perguntas, indagando quais eram os volumes
mais raros, se a coleção de Jefferson Gryce era mesmo considerada a
melhor do mundo, e qual era o preço mais alto já pago por um volume.
Era tão prazeroso ficar sentado ali observando, enquanto ela pegava
um livro e depois outro das prateleiras, folheando as páginas entres os
dedos, com o perfil se destacando das antigas encadernações ao fundo, que
ele seguiu falando sem parar para pensar o porquê daquele súbito interesse
em um tema tão pouco sugestivo. Mas foi impossível conseguir permanecer
por muito tempo sem tentar descobrir a razão daquilo tudo, e, enquanto ela
guardava de volta na estante a primeira edição de La Bruyere e dava as
costas à estante, ele começou a imaginar o que ela estaria tramando. A
próxima pergunta não foi nada esclarecedora. Ela parou diante dele com um
sorriso, que ao mesmo tempo em que pareceu projetado para dar liberdade,
serviu também para lembrá-lo das restrições impostas.
– Você não se importa – perguntou ela de repente – de não ser rico o
bastante para comprar todos os livros que deseja?
Ele acompanhou o olhar dela ao redor da sala de móveis velhos e
paredes desbotadas.
– Você acha que não ligo? Pensa que sou um santo em um pedestal?
– E ter de trabalhar… você não se importar?
– Oh, o trabalho em si não é tão ruim… mas gosto mais do Direito.
– Não, mas de ficar preso: a rotina… você nunca sentiu vontade de
ficar livre disso, de conhecer novos lugares e pessoas?
– Muito, especialmente quando vejo todos meus amigos entrando em
um navio.
Ela soltou um suspiro solidário.
– Mas você não se incomoda tanto ao ponto de se casar para se livrar
disso?
Selden caiu na risada.
– Deus me livre! – declarou.
Ela se levantou soltando uma baforada e jogando o cigarro na lareira.
– Ah, tem uma diferença… uma garota é obrigada a se casar, já um
homem pode escolher – e o encarou com um olhar crítico. – Se o seu paletó
estiver um pouco velhinho, quem se importará? Isto não impedirá as
pessoas de convidá-lo para jantar. Já se eu andasse malvestida ninguém iria
me convidar para nada: uma mulher é convidada mais pelas suas roupas do
que por ela mesma. As roupas são o cenário, a moldura, se assim preferir.
Elas não garantem o sucesso, mas fazem parte. Quem quer ver uma mulher
maltrapilha? É esperado que sejamos bonitas e bem-vestidas até o fim, e se
não conseguimos manter tudo isso sozinha, precisamos sair em busca de um
parceiro.
Seldon olhou-a surpreso. Era impossível, até mesmo com aqueles
olhos encantadores implorando, solidarizar com a situação dela.
– Ah, bem, tem muito capital por aí para tal investimento. Talvez você
encontre seu destino na casa dos Trenors, nesta noite.
Ela respondeu com uma expressão interrogativa.
– Pensei que fosse lá… oh, não para isso! Mas vários amigos seus
estarão lá: Gwen Van Osburgh, os Wetheralss, Lady Vressida Raith e os
Dorset.
Ela hesitou antes do último nome e piscou como se indagando, mas
ele se manteve firme.
– Mrs. Trenor me convidou, mas estarei ocupado até o final de
semana. E estes grandes encontros me cansam.
– Ah, a mim também! – exclamou ela.
– Então, por que vai?
– Faz parte. Você se esqueceu? Além do mais, se eu não for, terei de
ficar jogando bezique com a minha tia em Richfield Springs.
– Isso é quase tão ruim quanto se casar com Dillworth – concordou
ele, e os dois riram pelo puro prazer da intimidade inesperada.
Ela deu uma olhada no relógio.
– Minha nossa! Preciso ir. Já passa das cinco.
Antes deu uma paradinha diante da lareira, verificando a aparência no
espelho enquanto ajeitava o véu. O gesto revelou a longa inclinação dos
seus contornos laterais delicados, o que conferiu um tipo de beleza
selvagem ao seu perfil, como se ela fosse uma dríade cativa submetida às
convenções sociais. Seldon concluiu que era aquela fagulha de liberdade
selvagem era que dava um toque especial à sua artificialidade.
Ele a acompanhou pela sala até o vestíbulo, mas na soleira da porta
ela ergueu a mão num aceno.
– Adorei a estada, mas agora preciso pegar o trem.
– Não quer que eu acompanhe até a estação?
– Não. Vamos nos despedir aqui mesmo, por favor.
Com um sorriso encantador no rosto, ela deixou a mão sobre a dele
um pouco mais.
– Adeus, então. E boa sorte em Bellomont! – disse, abrindo a porta
para ela.
No primeiro andar ela parou para olhar ao redor. As chances de
encontrar alguém eram de uma em mil, mas nunca se sabe, e ela sempre
pagou por seus raros deslizes com violenta reprovação. Não havia ninguém
à vista além da faxineira que esfregava os degraus. Seu corpo robusto e os
materiais de limpeza ocupavam tanto espaço que Lily, para poder passar,
teve de erguer a saia e se espremer contra a parede. Quando o fez, a mulher
interrompeu o trabalho e olhou para cima curiosa, segurando firme o pano
molhado que tinha acabado de tirar do balde. Seu rosto era redondo e
pálido, com algumas marcas de varíola, e os finos fios de cabelo cor de
palha mal cobriam o couro cabeludo que brilhava desagradavelmente.
– Queira me desculpar – disse Lily educadamente para ocultar uma
crítica aos modos da outra.
A mulher, sem dizer nada, empurrou o balde para o lado, e continuou
encarando-a enquanto Miss Bart passava com o farfalhar das anáguas de
seda. Lily sentiu-se ruborizando sob o olhar. O que será que a criatura
estava pensando? Será que não era possível fazer a coisa mais simples e
inofensiva sem despertar as conjecturas mais odiosas nos outros? Na
metade do lance de escada, ela sorriu ao pensar que o fato de a faxineira a
ter encarado não era motivo para preocupação. A pobre criatura
provavelmente tinha ficado incomodada com a aparição indesejada. Mas
será que tais aparições eram indesejadas na escada de Selden? Miss Bart
não conhecia o código moral dos prédios ocupados por solteiros, e seu rosto
corou novamente quando lhe ocorreu que o olhar fixo da mulher, talvez,
estivesse ligado a uma série de associações passadas. Mas ela esqueceu-se
daquela ideia, rindo dos próprios temores, e seguiu em frente apressada,
pensando se conseguiria encontrar uma carruagem de aluguel na Quinta
Avenida.
Sob a marquise georgiana ela parou novamente olhando para a rua de
um lado para o outro em busca de uma carruagem. Não havia ninguém a
vista, mas ao pisar na calçada topou com um homem elegante, com uma
gardênia na lapela, que tirou o chapéu com uma exclamação de surpresa.
– Miss Bart? Que surpresa vê-la! Que sorte – declarou ele; e ela
percebeu uma pontinha de curiosidade em seus lábios contraídos.
– Oh, Mr. Rosedale! Como tem passado? – o saldou, ciente de que a
irritação incontrolável em seu rosto se refletia no sorrisinho de súbita
intimidade dele.
Mr. Rosedale ficou olhando para ela com interesse e aprovação. Ele
fazia o tipo judeu loiro, rechonchudo e rosado, com seus trajes londrinos
elegantes que o deixavam ainda mais gorducho, e olhinhos esbugalhados
que lhe davam um ar de que estava sempre avaliando as pessoas como se
elas fossem uma peça de antiguidade. Ele lançou um olhar questionador
para a entrada do Benedick.
– Está na cidade para fazer umas comprinhas, suponho? – indagou
num tom que tinha um toque de intimidade.
Miss Bart ficou um pouco acanhada e saiu dando explicações
precipitadas.
– Sim. Vim para dar uma passadinha na minha modista. Estou indo
pegar o trem para a casa dos Trenors.
– Ah, a sua modista, claro – disse ele, de modo brando. – Eu não sabia
que tinha uma costureira no Benedick.
– No Benedick? – ela pareceu um pouco confusa. – Este é o nome
deste prédio?
– Sim, este é o nome. Acredito que era assim que costumavam se
referir a rapazes solteiros antigamente, não é? Por acaso sou proprietário do
prédio, por isso que sei – seu sorriso alargou enquanto ele adicionava ainda
mais seguro: – Mas permita que eu a acompanhe até a estação. Os Trenor
estão em Bellmont, não é mesmo? Está em cima da hora para pegar o trem
da dezessete e quarenta. A sua costureira a fez esperar, suponho.
Lily enrijeceu por conta da brincadeirinha.
– Oh, obrigada – soltou; e naquele momento viu uma carruagem
descendo à Avenida Madison e começou a gesticular desesperada.
– É muita gentileza sua, mas não quero incomodá-lo – disse ela e
estendeu a mão para Mr. Rosedale. Sem dar atenção aos protestos dele ela
entrou apressada no veículo e deu as instruções ao chofer, esbaforida.
Capítulo 2
Na carruagem, ela recostou com um suspiro. Por que uma garota tinha
de pagar tão caro por uma escapadinha da rotina? Por que alguém nunca
podia fazer algo natural sem ter de ocultar isso por trás de uma estrutura
artificial? Ela tinha cedido ao impulso de ir ao apartamento de Lawrence
Selden. Este, de qualquer maneira, iria custar muito mais do que ela podia
pagar. Ficou irritada ao perceber que, apesar dos anos de muito cuidado,
tinha cometido dois deslizes no espaço de tempo de cinco minutos. Aquela
história sobre a modista fora péssima; teria sido bem mais simples dizer a
Rosedale que ela tomara um chá com Selden! A simples constatação do fato
o teria tornado inócuo. Mas depois ter sido apanhada em uma mentira, foi
estupidez em dobro ter esnobado a companhia da testemunha. Se tivesse
tido a presença de espírito de permitir que Rosedale a acompanhasse até a
estação, a concessão poderia ter comprado o silêncio dele. Ele possuía a
capacidade nata da sua raça de avaliar as coisas e ser visto na plataforma
em meio à multidão do final de tarde na companhia de Miss Lily Bart
poderia significar dinheiro para o seu bolso, como ele mesmo teria dito. Ele
sabia, é claro, que iria acontecer uma grande festa em Bellomont e a
possibilidade de ele ser aceito como um dos convidados de Mrs. Trenor
estava sem dúvida incluída em seus cálculos. Mr. Rosedale ainda se
encontrava em um estágio de ascendência social em que era importante
causar tais impressões.
A pior parte era que Lily sabia de tudo isso, sabia o quanto teria sido
fácil silenciá-lo na hora, e o quanto seria difícil conseguir isso agora. Mr.
Simon Rosedale era um homem que gostava de saber da vida de todo
mundo, e, que para provar que estava à vontade nas rodas sociais
costumava mostrar uma inconveniente familiaridade com os hábitos
daqueles os quais ele desejava se fazer de íntimo. Lily tinha certeza de que
dentro de vinte quatro horas a história da sua visita à modista no Benedick
já estaria circulando entre os conhecidos de Mr. Rosedale. O pior de tudo
era que ela sempre o esnobara e ignorara. Na sua primeira aparição, quando
seu primo imprudente, Jack Stepney, conseguiu (em troca de favores
concedidos) um convite para ele em um daqueles imensos “aglomerados”
impessoais promovidos por Van Osburgh, Rosedale, com aquela mistura
artística de sensibilidade e astúcia para os negócios, próprio da sua raça,
instantaneamente foi ao encontro de Miss Bart. Ela entendia os motivos,
pois seu rumo era guiado por cálculos precisos. Treino e experiência tinham
lhe ensinado a ser receptiva com os recém-chegados, uma vez que, até
mesmo o menos promissor poderia se mostrar útil algum dia, e havia uma
porção de masmorras disponíveis para guardá-los, caso eles não se
mostrassem úteis.
Mas uma repugnância intuitiva, adquirida ao longo de vários anos de
vida em sociedade, levou-a a jogar Mr. Rosedale na masmorra sem
julgamento prévio. Ele deixou para trás apenas a onda de divertimento
causada entre os amigos dela pelo modo como foi despachado; e, apesar de
depois (para seguir na metáfora) ele ter reaparecido mais em baixa do que a
maré; foram apenas algumas aparições fugazes, com longos intervalos entre
um mergulho e outro.
Até então Lily seguiu sem se preocupar com escrúpulos. No seu
pequeno grupinho Mr. Rosedale tinha sido declarado “proibido”, e Jack
Stepney foi categoricamente esnobado por conta das suas tentativas de
pagar as dívidas com convites para jantar. Até mesmo Mrs. Trenor, cujo
gosto pela novidade levou-a a experiências perigosas, resistiu às investidas
de Jack de tentar apresentar Mr. Rodesale como uma novidade e declarou
que se recordava de que ele era o mesmo judeuzinho que tinha sido servido
e rejeitado na sociedade uma dúzia de vezes. Enquanto Judy Trenor
seguisse firme em seu intuito, as chances de Mr. Rosadale sair do limbo dos
aglomerados de Van Osburgh eram mínimas. Jack desistiu da empreitada
com um “vocês vão ver”, e, usando as armas que tinha, desfilou ao lado de
Rosedale nos restaurantes da moda, na companhia de damas vividas,
socialmente obscuras, disponíveis para tais propósitos. Mas a tentativa foi
em vão, e enquanto Rosedale sem dúvida bancava os jantares, o motivo de
piada sobrou para o devedor.
Mr. Rosadale, como veremos, não era até então um fator a ser temido,
a menos que alguém se colocasse nas mãos dele. E foi exatamente isso que
Miss Bart tinha feito. Sua mentirinha mal feita permitiu que ele percebesse
que ela estava escondendo algo; e ela sabia que ele tinha contas a acertar
com ela. Algo no sorriso dele insinuou que ele não tinha esquecido.
Ela despertou das divagações com um leve calafrio, que a
acompanhou até a estação, e desceu junto até a plataforma com a mesma
persistência de Mr. Rosadale.
Só teve tempo de sentar antes de o trem partir. Contudo, tendo se
acomodado em um cantinho com aquela sensação que por conta do impacto
nunca a abandonou, ela olhou ao redor, esperando encontrar outro
convidado dos Trenor. Sua vontade era livrar-se de si mesma e conversar
era o único meio de escapar que ela conhecia.
Sua busca foi recompensada com a descoberta de um jovem muito
loiro com uma barba levemente ruiva, que, no outro extremo do vagão,
parecia tentar se esconder atrás de um jornal aberto. Os olhos de Lily
brilharam e um sorrisinho relaxou as linhas ao redor da boca. Ela sabia que
Mr. Percy Gryce estaria em Bellmont, mas não contava com a sorte de
encontrá-lo no trem; e o fato apagou todas as preocupações com Mr.
Rosedeale. Afinal, quem sabe, o dia não fosse terminar mais favorável do
que tinha começado.
Ela se pôs a separar as páginas de um romance, analisando
tranquilamente sua presa sob os cílios baixos enquanto tramava um método
de ataque. Algo na aparente concentração indicou que ele estava ciente da
sua presença: ninguém nunca mostrara tanto interesse por um jornal da
tarde! Ela imaginou que ele fosse muito tímido para se aproximar, e que por
isso teria que arrumar uma desculpa para se aproximar sem parecer
oferecida. Foi engraçado imaginar que alguém tão rico como Mr. Percy
Gryce fosse tímido; mas ela tinha o dom de saber lidar com tais
idiossincrasias, e, além do mais, a timidez dele poderia ser muito mais útil
aos seus propósitos do que o excesso de segurança. Ela tinha o dom de
oferecer autoconfiança ao inseguro, mas não tinha a mesma certeza se
conseguiria disfarçar a sua autoconfiança.
Esperou até que o trem saísse do túnel e estivesse percorrendo a
periferia norte. Então, quando o trem diminuiu a velocidade perto de
Yonkers, ela se levantou e saiu andando devagar pelo vagão. Quando
passava por Mr. Gryce, o trem deu um solavanco, e ele notou uma mão
delicada se apoiando no encosto da sua poltrona. Ele levantou-se de
repente, seu rosto ingênuo parecia ter mergulhado em tinta vermelha: até
mesmo o tom ruivo da barba parecia mais intenso. O trem deu outro
solavanco, quase atirando Miss Bart nos braços dele.
Ela se firmou com uma risada e recuou, mas ele estava inebriado com
o perfume do vestido dela e seu ombro sentia o toque suave dela.
– Oh, Mr. Gryce, é o senhor? Mil perdões, eu estava indo atrás do
garçom para pedir um chá.
Ela tirou a mão quando a velocidade do trem estabilizou e os dois
trocaram algumas palavras no corredor. Sim, ele estava indo para
Bellomont. Tinha ouvido falar que ela estaria na festa. Mais uma vez ele
corou ao admitir isso. Ele ia passar a semana toda lá? Que maravilha!
Mas nisso um ou dois passageiros que tinham entrado na última
estação pediram passagem e Lily teve que retomar ao seu assento.
– O lugar ao meu lado está vazio… sente-se aqui – disse ela sobre o
ombro e Mr. Gryce, consideravelmente sem jeito, conseguiu efetuar uma
troca que possibilitou a mudança dele e da sua bagagem para perto dela.
– Ah, lá vem o garçom, talvez consigamos um chá.
Ela fez sinal para que o funcionário e pouco tempo depois, com a
mesma facilidade com a qual parecia ter todos seus desejos concedidos,
uma mesinha foi posta entre os assentos e ela ajudou Mr. Gryce a acomodar
seus membros atrapalhados embaixo.
Quando o chá chegou ele observou fascinado enquanto as mãos dela
se moviam sobre a bandeja, aparentando miraculosamente finas e delicadas
em contraste com a louça grosseira e o pão cascudo. Parecia fascinante que
alguém pudesse desempenhar com tanta desenvoltura o desafio de preparar
chá em público em um trem em movimento. Ele jamais ousaria pedir o chá,
muito menos chamar atenção dos seus companheiros de viagem. Mas,
seguro sob a proteção da segurança dela, ele bebeu a bebida escura com
uma deliciosa sensação de euforia.
Lily, que ainda tinha nos lábios o sabor do caravan servido por
Selden, não estava com muita vontade de saborear a mistura servida pela
companhia ferroviária que parecia um néctar para seu companheiro.
Entretanto, como um dos encantos do chá é bebê-lo acompanhado, ela deu
o último toque ao divertimento de Mr. Gryce, sorrindo por trás da xícara
erguida.
– Até que ficou bom… não está muito forte? – perguntou ela, solicita;
e ele respondeu convicto de que nunca tinha provado chá melhor.
– Eu diria que sim – refletiu ela e sua imaginação foi invadida pela
ideia de que Mr. Gryce, que provavelmente mergulhara nas profundezas
complexa dos pequenos prazeres, estivesse talvez fazendo a sua primeira
viagem acompanhado de uma mulher bonita.
Pareceu-lhe providencial que ela fosse o instrumento da iniciação
dele. Algumas garotas não saberiam como lidar. Elas poderiam valorizar
demasiadamente a novidade da aventura, na tentativa de fazer com que ele
sentisse o gostinho do desatino. Mas os métodos de Lily eram mais sutis.
Ela se lembrava que uma vez seu primo Jack Stepney definiu Mr. Gryce
como um menino que prometeu à mãe que nunca sairia na chuva sem
galochas; e agindo de acordo com a dica, ela resolveu dar um toque
levemente doméstico à cena na esperança de que seu companheiro, em vez
de achar que estava fazendo algo ousado e incomum, fosse levado a
apreciar a vantagem de sempre ter uma companheira para preparar o chá no
trem.
Mas apesar dos seus esforços, o assunto esgotou depois que a bandeja
foi levada, e ela foi obrigada a tomar novas medidas contra as limitações de
Mr. Gryce. Afinal não era oportunidade que lhe faltava, mas sim falta de
imaginação: ele tinha um paladar mental que nunca iria aprender a
distinguir um chá de trem de um néctar. No entanto, havia um tópico
confiável: uma molinha que bastava ser acionada para colocar a máquina
para funcionar. Ela vinha se abstendo de acioná-la porque seria um último
recurso e ela optou por outros artifícios para estimular outras sensações.
Mas quando o tédio começou a transparecer no rosto cândido dele, ela
percebeu que seria necessário tomar atitudes extremas.
– Como – disse ela, inclinando-se para frente – vai a sua coleção de
antiguidade americana?
Seus olhos se tornaram um pouco menos opacos: foi como se uma
película incipiente tivesse sido removida, e ela sentiu o orgulho de um
operador habilidoso.
– Comprei algumas coisas novas – respondeu ele, satisfeito, mas
abaixando o tom da voz como se temesse que seus companheiros de viagem
estivessem tramando roubar-lhe.
Ela seguiu fazendo-lhe perguntas de modo simpático e aos poucos ele
entrou na conversa, contanto sobre as suas últimas aquisições. Este era um
dos assuntos capaz de fazer com que ele se esquecesse de si mesmo, ou
melhor, que permitia lembrar-se de si mesmo sem constrangimentos, pois
ele se sentia à vontade com isso, e era capaz de demonstrar certa
superioridade que poucos seriam capazes de tentar desbancar. Quase
nenhum dos seus conhecidos dava importância para antiguidades
americanas, ou sabiam algo a respeito; e a consciência de tal ignorância era
para Mr. Gryce de grande alívio. A única dificuldade era como introduzir o
tópico e seguir adiante com o tema. A maioria das pessoas não gostava de
ter sua ignorância exposta e Mr. Gryce parecia um comerciante cujos
depósitos estavam abarrotados de mercadorias não comercializáveis.
Mas Miss Bart, pelo visto, realmente parecia interessada em saber
sobre as raridades americanas; e, além disso, estava suficientemente
informada para tornar o desafio da aquisição de mais conhecimento muito
mais fácil e agradável. Assim, fez perguntas inteligentes, escutou de modo
submisso; e, preparada para o olhar de lassitude que normalmente pairava
nos rostos de seus ouvintes, ele se tornou ainda mais eloquente diante do
olhar receptivo dela. Os “pontos” que ela teve a presença de espírito de
buscar com Selden, ao se preparar para tal situação, serviram tão bem aos
propósitos que ela começou a achar que a visita tinha sido o melhor
incidente do dia. Mais uma vez ela mostrou seu talento em lidar com o
inesperado e as perigosas teorias sobre ceder a um impulso germinavam sob
o semblante sorridente e atento que ela mostrava para seu companheiro.
As sensações de Mr. Gryce, embora menos definidas, eram
igualmente agradáveis. Ele sentiu a vibração confusa que as partes baixas
do corpo sentem nos momentos de satisfação e todos seus sentidos estavam
alerta num vago bem-estar, ao qual Miss Barty percebeu com certa
satisfação.
O interesse de Mr. Gryce pelas antiguidades americanas não nascera
com ele. Era impossível pensar nele como alguém capaz de adquirir o gosto
por algo sozinho. Um tio deixou de herança uma coleção que já era
respeitada pelos bibliófilos; a existência de tal coleção era a única coisa que
dava algum destaque ao sobrenome Gryce e o sobrinho cuidava da herança
como se fosse fruto do seu trabalho. Na verdade, aos poucos ele começou a
considerá-la como tal, e sentia uma sensação de complacência pessoal
quando alterava qualquer referência da Coleção Americana Gryce. Ansioso
como era para não chamar atenção, ele sentia, quando via a menção
impressa do seu nome, um prazer tão grande e especial que parecia ser uma
compensação para seu medo de publicidade.
Para usufruir da sensação o máximo possível, ele assinava todas as
revistas especializadas em coleções de livros e de história americana em
particular, e, à medida que a alusões ao seu nome começaram abundar nas
páginas daqueles periódicos, que era sua única fonte de leitura, ele passou a
se ver como uma figura de destaque e a apreciar a ideia do interesse que,
eventualmente, pudesse despertar nas pessoas com as quais viesse cruzar na
rua, ou dentro de um trem, quando ficassem sabendo que ele era o dono da
Coleção Americana Gryce.
Os mais tímidos têm esse tipo de compensações secretas e Miss Bart
era esperta o suficiente para saber que a vaidade interior geralmente é
proporcional ao autodesprezo pela aparência externa. Com uma pessoa mais
confiante ela não teria ousado se estender sobre o mesmo tema por tanto
tempo, ou de mostrar um interesse tão exagerado, mas ela adivinhou
acertadamente que o egocentrismo de Mr. Gryce era um solo sedento, que
requeria cuidados constantes de fora. Miss Bart tinha o dom de acompanhar
os pensamentos profundos enquanto aparentava navegar na superfície da
conversa; e neste caso sua excursão mental assumiu a forma de uma rápida
visão do futuro de Mr. Gryce associado ao seu.
Os Gryce eram da Albânia, e tinham vindo para a metrópole há pouco
tempo; para onde mãe e filho se mudaram depois da morte do velho
Jefferson Gryce, para tomarem posse da casa que ele tinha na Avenida
Madson: uma casa horrorosa, toda de pedra marrom por fora e nogueira
escura por dentro, com a biblioteca Gryce em um anexo à prova de fogo
que parecia mais um mausoléu. Lily, no entanto, sabia tudo sobre eles: a
chegada de Mr. Gryce agitou os seios maternos de Nova York e quando
uma moça não tem uma mãe para palpitar por sua causa ela é obrigada a
ficar alerta por si mesma. Lily não só deu um jeito de se colocar no
caminho do jovem, como também conheceu Mrs. Gryce, uma mulher
monumental com voz de orador e uma mente preocupada com as
iniquidades dos seus criados, e que costumava visitar Mrs. Peniston para
aprender com a outra os métodos de impedir que as criadas da cozinha
conseguissem sair da casa levando comida.
Mrs. Gryce tinha um tipo de benevolência impessoal: casos de
necessidades pessoais ela via com desconfiança, mas se comprometeu a
colaborar com algumas instituições quando seus balanços anuais mostraram
um excedente impressionante. Várias eram suas obrigações domésticas,
pois elas abrangiam desde inspeções furtivas aos quartos de seus criados a
visitas surpresa à adega. Mas ela nunca se permitia muitos prazeres. Uma
vez, porém, ela conseguiu uma edição especial do Rito Sarum escrito em
latim litúrgico e o mostrou para todos os clérigos da diocese. O álbum
dourado com todas as cartas de agradecimentos deles foi colocado como
ornamento principal sobre a mesa da sua sala de estar.
Percy, portanto, foi criado de acordo com os princípios de que uma
mulher perfeita era algo inimaginável. Todas as formas de prudência e
desconfiança tinham sido enxertadas em uma natureza originalmente
relutante e cautelosa, tornando totalmente desnecessário para Mrs. Gryce
arrancar dele a promessa sobre as galochas, pois era bem pouco provável
que ele ousasse sair na chuva. Depois que atingiu a maioridade, e de se
tornar o herdeiro da fortuna conquistada pelo falecido Mr. Gryce por causa
da patente de um aparelho de tirar o ar fresco dos hotéis, o jovem continuou
morando com a mãe na Albânia. Com a morte de Jeferson Gryce, contudo,
quando uma imensa fortuna passou para as mãos do seu filho, Mrs. Gryce
achou que aquilo que ela chamava de “interesses” dele exigia a sua
presença em Nova York. E assim, ela se instalou na mansão da Avenida
Madson, e Percy, cujo senso de dever não era inferior ao da mãe, passava os
dias úteis no elegante escritório da rua Broad onde um bando de homens
pálidos, recebendo baixos salários, tinha envelhecido cuidando do
patrimônio Gryce e onde ele foi iniciado com reverência a cada detalhe da
arte da acumulação.
Até onde Lily conseguira descobrir, aquela era, portanto, a única
ocupação de Mr. Gryce, e ela deveria ser perdoada por pensar que não seria
muito difícil prender o interesse de um jovem que tinha sido mantido em
uma dieta tão pobre. De qualquer maneira, ela se sentiu tão no comando da
situação que sucumbiu a uma sensação de segurança, na qual todo o medo
da indiscrição de Mr. Rosedale e das dificuldades relacionadas ao medo,
escaparam dos limites dos seus pensamentos.
A parada do trem em Garrison não a teria desviado desses
pensamentos, não fosse pelo súbito desinteresse nos olhos de seu
companheiro. O assento dele ficava de frente para a porta, e ela achou que
ele tivesse se distraído por conta da chegada de um conhecido; um fato que
se confirmou pelas cabeças que se viraram e a comoção geral que a sua
própria entrada em um vagão de trem era capaz de produzir.
Ela reconheceu os sintomas na hora e não se surpreendeu quando
sentiu as notas do perfume de uma mulher bonita, que entrou no trem
acompanhada de uma criada, um bull-terrier, e um lacaio tentando se
equilibrar com as malas e caixas de vestidos.
– Oh, Lily, você está indo para Bellomont? Então não vai poder ceder
o seu lugar, suponho? Mas preciso sentar neste vagão. Cobrador, você
precisar arrumar um lugar para mim imediatamente. Será que alguém não
poderia trocar de lugar? Quero ficar com meus amigos. Oh, como vai, Mr.
Gryce? Por favor, faça-o entender que preciso de um lugar perto de você e
da Lily.
Mrs. George Dorset, apesar da gentileza de um viajante com uma
mala de lona, que estava fazendo o favor de ceder seu lugar para ela
trocando de vagão, ficou parada no meio do corredor espalhando aquela
sensação comum de exasperação que uma mulher bonita em viagem
costuma criar.
Ela era mais baixa e mais magra do que Lily Bart, tinha um jeito
agitado, como se fosse capaz de se encolher e passar correndo por dentro de
um aro, igual as pregas sinuosas de seu vestido. Seu rostinho pálido parecia
servir de mero cenário para um par de olhos castanhos-escuros exagerados,
cujo olhar visionário contrastava com seu tom de voz e gestos arrogantes;
tanto que, como observou um de seus amigos, ela parecia um espírito
desencarnado que ocupava muito espaço.
Depois de finalmente descobrir que o assento ao lado de Miss Bart
estava à sua disposição, ela se apoderou do lugar causando uma última
comoção ao redor, explicando enquanto o fazia que tinha vindo do Monte
Kisco de carro naquela manhã, e que ficara esperando uma hora na estação
de Garrions, sem contar com nem mesmo o alívio de um cigarro, pois o
bruto do seu marido se esquecera de reabastecer a sua cigarreira antes de
partirem naquela manhã.
– E a esta hora do dia não creio que você ainda tenha um restando,
tem, Lily? – concluiu em tom de lamento.
Miss Bart percebeu o olhar surpreso de Mr. Percy Gryce, cujos lábios
nunca tinham sido corrompidos pelo tabaco.
– Que pergunta absurda, Bertha! – exclamou ela, ruborizando ao se
lembrar do estoque que fizera na casa de Lawrence Selden.
– Por que, você não fuma? Desde quando largou? Como assim… você
nunca… e você também não, Mr. Gyrce? Ah, claro! Que bobagem a minha.
Entendi.
E com isso Mrs. Dorset recostou nas suas almofadas de viagem com
um sorriso que fez Lily desejar que nunca tivesse surgido um lugar vago ao
lado do seu.
Capítulo 3
O jogo de bridge em Bellomont costumava varar a madrugada e
quando Lilly foi para a cama na noite anterior ela tinha jogado
demasiadamente muito para seu próprio bem.
Sem um pingo de vontade de participar da conversinha consigo
mesma que a esperava em seu quarto, ela ficou enrolando na ampla
escadaria, olhando para o saguão abaixo, onde os últimos jogadores
estavam reunidos ao redor da bandeja com taças altas e decanteres com
gargalo de prata que o mordomo tinha acabado de colocar sobre uma
mesinha próxima à lareira.
O saguão era em formato de arcada, com uma galeria apoiada por
colunas de mármore amarelo clarinho. Arranjos altos de plantas floridas
tinham sido dispostos sob um fundo de folhagens escuras nos nichos. Um
lebréu escocês e dois ou três spenials cochilavam preguiçosos diante da
lareira, e a luz do imenso lustre central iluminava os cabelos das mulheres e
refletia de suas joias quando elas se moviam.
Houve momentos em que tais cenas encantaram Lily, satisfazendo a
sua noção de beleza e ânsia pelo verniz da vida; e outros que
proporcionaram uma noção dura da sua falta de opções. Este foi um dos
momentos em que a noção de contraste se destacou ainda mais, e ela deu as
costas impaciente enquanto Mrs. George Dorset, brilhando em uma
serpentina de lantejoulas, puxou Percy Gryce para um cantinho reservado
embaixo da galeria.
Não que Miss Bart estivesse com medo de perder sua recente posse
sobre Mr. Gryce. Mrs. Dorset podia até ter surpreendido ou encantado, mas
ela não possuía nem o talento e nem a paciência para capturá-lo
definitivamente. Era muito preocupada consigo mesma para conseguir
transpor a timidez dele, e além do mais, por que ela iria se dar ao trabalho?
Quando muito poderia ser divertido brincar com a simplicidade dele por
uma noite, mas depois disso ele acabaria se tornando um fardo, e, sabendo
disso, ela era muito experiente para encorajá-lo. Mas a simples ideia de que
outra mulher, que poderia seduzir um homem e depois abandoná-lo quando
quisesse, sem ter de vê-lo como um possível fator nos seus planos, encheu
Lily de inveja. A tarde que tinha passado ao lado de Percy Gryce tinha sido
de puro tédio, a simples lembrança despertou o eco da voz chata dele, mas
ela não poderia ignorá-lo no dia seguinte, deveria continuar perseguindo seu
sucesso, teria de se submeter a mais tédio, ficar preparada para concordar e
se adequar, e tudo pela chance de que ele finalmente decidisse lhe conceder
a honra de entediar a sua vida para sempre.
Era um destino detestável, mas como escapar? Que opções ela tinha?
Ser ela mesma, ou uma Gerty Farish. Quando entrou em seu quarto,
suavemente iluminado, e viu a sua camisola de renda sobre a colcha de
seda, os chinelinhos bordados na frente da lareira, um vaso de cravos
perfumando o ambiente, e os últimos romances e revistas intocados sobre
uma mesa ao lado de um abajur, ela se lembrou do apartamentinho de Miss
Farish, com seus móveis baratos e papel de parede horroroso. Não; ela não
tinha sido feita para viver em ambientes simples e baratos, para as
condições degradantes da pobreza. Todo seu ser expandia em uma
atmosfera de luxo; era o cenário que ela precisava, o único clima onde era
capaz de respirar. Mas não era o luxo dos outros que ela queria. Poucos
anos antes isto lhe bastava: ela assumira uma rotina de prazer sem se
importar com quem proporcionasse. Agora ela estava começando a se
cansar das obrigações que isto lhe impunha, a se sentir uma prisioneira no
esplendor do qual parecia ser seu. Houve momentos em que chegou a ter
consciência de que teria de pagar pelo caminho escolhido.
Por muito tempo ela se recusou a jogar bridge, pois sabia que não
podia bancar, e tinha medo de adquirir um vício tão caro. Tinha visto o
perigo exemplificado em mais do que um dos seus amigos: no jovem Ned
Silverton, por exemplo, o rapaz belo e encantador que agora andava
totalmente a mercê de Mrs. Fisher, uma divorciada atraente com olhos e
vestidos tão marcantes quanto às manchetes sobre o seu “caso”. Lily se
lembrava de quando o jovem Silverton surgiu, com um ar de acadiano
perdido que tinha publicado sonetos encantadores no jornal do colégio.
Desde aquela época ele pegou gosto por Mrs. Fisher e pelo bridge, e o
último o envolveu em dívidas das quais mais de uma vez ele teve de ser
socorrido por mocinhas casadouras, que apreciavam seus sonetos, e
estavam sem açúcar para pôr no chá para segurarem seus queridinhos. Lily
acompanhou o caso de Ned: viu seus olhos encantadores – que, por sinal,
tinha mais poeticidade do que seus sonetos – mudando da surpresa para o
divertimento, e da diversão para a ansiedade, à medida que era possuído
pelo feitiço do terrível deus da mudança; e ela temia identificar os mesmos
sintomas no seu próprio caso.
Pois, no último ano ela descobrira que as suas anfitriãs esperavam que
ela ocupasse um lugar à mesa de jogo. Era uma das taxas a serem pagas
pela prolongada hospitalidade oferecida, e pelos vestidos e acessórios que
ocasionalmente reabasteciam seu guarda-roupa insuficiente. E a partir do
momento que começou a jogar regularmente, a paixão cresceu dentro dela.
Uma ou duas vezes ganhou uma imensa quantia, mas em vez de guardar
para perdas futuras, gastou com vestidos ou joias; e a vontade de reparar a
imprudência, combinado com a euforia crescente do jogo, levou-a a apostar
quantias cada vez altas a cada partida. Ela tentou se justificar com a
desculpa de que, na casa dos Trenor, ou se jogava alto ou era taxado de
pedante ou sovina; mas ela sabia que já estava viciada no jogo, e que no
meio em que se encontrava as chances de resistir eram mínimas.
Nesta noite a sorte foi persistentemente ruim, e a pequena bolsinha
dourada que pendia entre seus acessórios estava quase vazia quando ela
retornou para seu quarto. Ela abriu o guarda-roupa, pegou o porta-joias e
deu uma olhada no maço de notas embaixo da bandeja de onde tinha
reabastecido a bolsa antes de descer para o jantar. Restavam apenas vinte
dólares: a descoberta foi tão assustadora que por um momento ela achou
que tivesse sido roubada. Pegou então papel e lápis, sentou-se à
escrivaninha e tentou lembrar o quanto tinha gastado durante o dia. Sua
cabeça latejava de cansaço, e, por conta disso, teve de refazer os cálculos
várias vezes. Mas no fim ficou claro que tinha perdido uma fortuna de
trezentos dólares nas cartas. Ela pegou o talão de cheques para verificar se o
saldo era maior do que imaginava que fosse, mas descobriu que tinha errado
para menos. Então retomou os cálculos, mas descobriu enquanto o fazia que
não iria conseguir recuperar os trezentos dólares perdidos. Era a quantia que
tinha sido reservada para acalmar os ânimos da sua modista – a menos que
decidisse usar o dinheiro para adoçar o joalheiro. De qualquer maneira,
tinha tantos destinos para aquele dinheiro que a insuficiência para cobrir
tudo a levara a apostar alto na esperança de dobrar o montante. Mas claro
que acabou perdendo – ela que precisava de cada centavo, enquanto Bertha
Dorset, cujo marido derramava dinheiro, muito provavelmente embolsara
uns quinhentos dólares, e Judy Trenor, que poderia se dar ao luxo de perder
mil por noite, deixara a mesa segurando um monte de notas tão grande que
nem pôde trocar apertos de mãos com seus convidados quando lhe
desejaram boa noite.
Um mundo onde tais coisas o tornavam um lugar miserável do ponto
de vista de Lily Bart; mas ela nunca foi muito boa mesmo em entender as
leis de um universo que insistia em colocá-la de escanteio.
Começou se despir sem tocar a sineta da criada, pois dissera a esta
que não era preciso esperar. Já fazia tanto tempo que era obrigada a
satisfazer o prazer de outros que aprendera a ter consideração por aqueles
que dependiam dela, e, quando ficava de mau humor às vezes tinha a
impressão de que ela e sua criada ocupavam a mesma posição, com a
diferença de que a última recebia os salários mais regularmente.
Sentou diante do espelho escovando os cabelos, seu rosto parecia
cansado e pálido, e ela se assustou ao notar duas ruguinhas perto da boca,
pequenas falhas nas curvas suave das suas bochechas.
– Preciso parar de me preocupar! – exclamou. – Talvez seja a luz
elétrica… – refletiu, levantando com um pulo para ascender as velas sobre a
penteadeira.
Apagou então as luzes e olhou-se no espelho iluminado pelas velas. O
contorno oval do seu rosto oscilava sobre o fundo escuro, a fraca
iluminação embaçava igual uma neblina, mas as duas linhas sobre a boca
ainda estavam lá.
Lily levantou e se despiu apressada.
– É só porque estou cansada e preocupada com tantas coisas
desagradáveis – ficou repetindo; e lhe pareceu injusto que as preocupações
pudessem deixar um rastro na sua beleza que era a sua única arma contra
elas.
Mas as coisas odiosas estavam lá e não foram embora. Cansada,
voltou a pensar em Percy Gryce, como se fosse um andarilho que pegasse
uma carga pesada para retomar a sua jornada, após um breve descanso.
Estava quase certa de que tinha conseguido “derrubá-lo”: mais alguns dias
de trabalho e conquistaria a sua recompensa. Mas a recompensa não parecia
nada aprazível naquele momento. Ela não conseguia se animar com a ideia
da vitória. A vitória seria um refresco para as preocupações, nada mais; e
quão insignificante teria sido alguns anos antes! Suas ambições foram aos
poucos diminuindo diante da perspectiva sufocante do fracasso. Mas por
que ela tinha falhado? Tinha sido por culpa sua ou do destino?
Recordou-se então do modo como sua mãe falava com uma fúria
vingativa, depois que eles perderam todo dinheiro que tinham: – Você vai
recuperar tudo de volta… vai recuperar tudo de volta, com essa sua carinha.
A lembrança despertou uma série de associações e ela ficou deitada
no escuro rememorando o passado que a colocara na atual situação.
Uma casa onde ninguém jantava a menos que tivessem “convidados”;
uma sineta que não parava de tocar; uma mesa no vestíbulo cheia de
envelopes quadrados que eram abertos às presas, e envelopes retangulares
que ficavam acumulando poeira no fundo de um jarro de bronze; uma
porção de criadas francesas e inglesas falando em meio à confusão de
roupas e closets; uma dinastia igualmente variada de babás e lacaios; brigas
na despensa, na cozinha e na sala de estar; viagens de última hora para
Europa e retornos com baús lotados e dias intermináveis desfazendo as
malas; discussões anuais sobre onde passar o verão, insinuações sobre
economia e reações estupendas de gastos – este era o cenário das primeiras
lembranças de Lily.
Quem administrava esse elemento turbulento chamado de lar era a
figura vigorosa e determinada de uma mãe ainda jovem o suficiente para se
acabar de dançar nos bailes, enquanto o vulto sem cor de um pai ocupava o
espaço indeterminado entre o mordomo e o homem que vinha acertar os
relógios. Até mesmo aos olhos da infância, Mrs. Hudson Bart parecia
jovem, mas Lily não conseguia se lembrar do seu pai com mais cabelo e
menos encurvado, ou sem os poucos cabelos grisalhos que ainda lhe
restaram e um caminhar menos cansado. Foi um choque quando descobriu
que ele era apenas dois anos mais velho do que sua mãe.
Lily quase nunca via o pai à luz do dia. Ele passava o dia no “centro”;
e no inverno só muito tempo depois de a noite ter caído que ela ouvia seus
passos cansados subindo a escada e a mão abrindo a porta da sala de
estudos. Ele a beijava calado, fazia uma ou duas perguntas a babá ou a
preceptora; então a criada de Mrs. Bart aparecia para lembrá-lo de que eles
iam jantar fora, e ele saía apressado após um menear de cabeça para Lily.
No verão, quando vinha passar o domingo com elas em Newport ou
Sothampton, ele parecia ainda mais apagado e calado do que no inverno. O
descanso parecia cansá-lo, e ele passava horas sentado em um canto
sossegado da varanda, olhando para a linha do horizonte no mar, enquanto a
esposa falava sem parar a poucos metros de distância sem ser ouvida.
Geralmente, Mrs. Bart e Lily costumavam ir para a Europa no verão, e
antes que o vapor estivesse na metade do caminho, Mr. Bart já tinha
afundando além do horizonte. Às vezes sua filha ouvia-o sendo acusado de
ter se esquecido de pagar os impostos de importação de Mrs. Bart; mas na
maioria das vezes ele não era mencionado ou lembrado até a sua figura
paciente e encurvada se apresentar no porto de Nova York como se fosse
um escudo protetor entre a montanha de bagagem da esposa e as restrições
da alfândega americana.
E foi neste estilo de vida incoerente e ao mesmo tempo agitado que
Lily viveu até a adolescência: uma corredeira ziguezagueada que a
embarcação da família percorreu numa corrente rápida e divertida, puxados
para baixo por uma necessidade constante – a necessidade de mais dinheiro.
Lily não conseguia se lembrar da época que havia dinheiro suficiente, e
indiretamente a culpa pela falta sempre parecia recair sobre seu pai. A culpa
certamente não era de Mrs. Bart, que era tida pelos amigos como uma
“excelente administradora”. Mrs. Bart era famosa pelo efeito ilimitado que
era capaz de produzir com um recurso limitado; e para a dama e seus
conhecidos havia algo de heroico em viver como se fosse mais rico do que
o seu saldo bancário.
Lily naturalmente se orgulhava do talento da mãe neste quesito. Tinha
sido criada acreditando que, custasse o quanto custasse, era preciso ter uma
boa cozinheira e ser considerada “decentemente vestida”, como costumava
dizer Mrs. Bart. A maior crítica que Mrs. Bart costumava dirigir ao marido
era quando lhe perguntava se ele esperava que ela “vivesse como uma
porca”; e a resposta negativa era sempre usada como justificativa para
enviar um telegrama para Paris, encomendando um ou dois vestidos novos,
e um telefonema para o joalheiro para que este, finalmente, mandasse
entregar em casa a pulseira de turquesa que ela tinha visto naquela manhã.
Lily conhecia pessoas que “viviam como porcos”, e a aparência deles
e o meio em que estavam inseridos justificava a repugnância da sua mãe por
aquela forma de existência. Elas eram em sua maioria primos, que viviam
em casas sujas como gravuras de A Viagem da Vida de Cole nas paredes
[1]

da sala de estar, e criadas desleixadas que diziam: “Vou ver” aos visitantes
num horário em que todas as pessoas de bom senso costumam não estar em
casa. A pior parte disso é que muitos desses primos eram ricos, e por conta
disso Lily imbuiu a ideia de que se as pessoas viviam como porcos era por
opção ou por falta de um modelo melhor de conduta. Isto acabou lhe dando
um senso refletido de superioridade, e ela nem precisou dos comentários de
Mrs. Bart sobre as mazelas e avarezas para adotar seu gosto nato pelo
esplendor.
Lily tinha dezenove anos quando as circunstâncias a obrigaram a
rever a sua visão de mundo.
No ano anterior ela havia debutado com glamour à custa de uma
montanha de notas por pagar. O brilho do baile ainda era lembrando, mas a
montanha cresceu, e, de repente veio abaixo. A surpresa se somou ao horror
e, às vezes, Lily revivia com dolorosa nitidez cada detalhe do dia em que
tudo desmoronou. Ela e a mãe estavam sentadas à mesa de almoço,
comendo um chaufroix e salmão frio que tinham sobrado do jantar da noite
anterior, uma das poucas encomias de Mrs. Bart era consumir o que sobrava
dos seus caros jantares oferecidos. Lily sentia a agradável languidez que era
a penalidade cobrada dos jovens por dançarem até o dia amanhecer; mas
sua mãe, apesar de algumas ruguinhas ao redor da boca, e embaixo dos
cachos dourados nas têmporas, estava alerta, determinada e corada como se
tivesse acordado de uma noite tranquila de sono.
No centro da mesa, entre o Marron Glacê derretendo e as cerejas
cristalizadas, um arranjo de rosas vermelhas com seus talos vigorosos; elas
mantinham a cabeça tão erguida quanto Mrs. Bart, mas o vermelho já tinha
desbotado para um tom arroxeado opaco, e o apurado senso estético de Lily
estava incomodado com o retorno delas para a mesa de almoço.
– Sabe, mamãe, acho que deveríamos comprar flores frescas para o
almoço – disse em tom de reprovação. – Alguns narcisos ou lírios-do-
vale…
Mrs. Bart ficou olhando apenas. Seu perfeccionismo tinha os olhos
voltando para o mundo, e ela nunca se preocupou com a decoração da mesa
de almoço quando não estava presente ninguém além da família. Mas
mesmo assim sorriu para a inocência da filha.
– Lírios-do-vale – disse ela calmamente – custam dois dólares a dúzia
nesta época do ano.
Lily não se impressionou, pois desconhecia o valor do dinheiro.
– Acho que uma meia-dúzia seria o suficiente para encher este vaso –
argumentou.
– Meia dúzia do quê? – perguntou seu pai, da entrada.
As duas ergueram os olhos surpresas; apesar de ser sábado, a visão de
Mr. Bart na sala de almoço era algo inusitado. Mas nem a esposa ou a filha
estavam suficientemente interessadas para perguntar o motivo.
Mr. Bart sentou pesado em uma cadeira e ficou olhando distraído para
o salmão que o mordomo tinha colocado à sua frente.
– Eu só estava dizendo – iniciou Lily – que detesto ver flores
desbotadas à mesa de almoço e mamãe disse que um arranjo de lírios-do-
vale pode custar mais do que doze dólares. Posso dizer para o florista enviar
algumas todos os dias?
Ela se inclinou confiante na direção do pai, pois raramente ele lhe
negava alguma coisa, e Mrs. Bart a ensinara a implorar para ele quando
suas próprias súplicas falhavam.
Mr. Bart permaneceu imóvel, o olhar ainda fixo no salmão, e de
queixo caído; ele parecia mais pálido do que o normal e os fios ralos de
cabelo caíam bagunçados sobre a teta. De repente, ele olhou para a filha e
riu. A risada soou tão esquisita que Lily ruborizou. Ela não gostava de ser
ridicularizada e seu pai pareceu ter visto algo de ridículo no seu pedido.
Talvez ele tivesse achado que era bobagem da parte dela incomodá-lo com
algo tão trivial.
– Doze dólares… doze dólares por dia em flores? Oh, claro, minha
querida, encomende duzentos – ele continuou rindo.
Mrs. Bart olhou de relance para ele.
– Pode se retirar, Poleworth. Tocarei a sineta se precisar – disse ela ao
mordomo.
O mordomo se retirou com cara de reprovação, deixando os retos do
caufroix no aparador.
– O que aconteceu, Hudson? Você está doente? – perguntou Mrs. Bart
num tom severo.
Ela não tinha um pingo de paciência para cenas que não fossem suas e
odiava a ideia do marido fazendo isso na frente dos criados.
– Você está doente? – repetiu.
– Doente?… Não, estou falido – respondeu ele.
Lily deixou escapar um gemido assustado e Mrs. Bart se levantou.
– Falido…? – berrou ela. Recuperando o controle logo em seguida,
ela virou o rosto calmo para Lily e disse: – Feche a porta da copa.
Lily obedeceu e quando voltou para a sala seu pai estava sentado com
os cotovelos sobre a mesa, o prato de salmão entre eles, e a cabeça apoiada
sobre as mãos.
Mrs. Bart estava em pé atrás dele tão pálida que conferiu aos seus
cabelos um tom loiro artificial. Ela olhou para Lily enquanto essa se
aproximava: sua feição era horrenda, mas a voz tinha um tom de alegria
assustadora.
– Seu pai não está bem. Ele não sabe o que está dizendo. Não é nada,
mas é melhor você subir; e não comente nada com os criados – adicionou.
Lily obedeceu; sempre obedecia quando sua mãe falava naquele tom.
Mas as palavras de Mrs. Bart não enganaram: ela soube na hora que eles
estavam falidos. Nos momentos sombrios que vieram aquele acontecimento
terrível ofuscou até mesmo a morte lenta e difícil de seu pai. Para sua
esposa ele não contava mais. Deixou de existir para ela depois que parou de
cumprir com seu propósito e ela ficou ao lado dele com uma cara de
viajante que espera o trem atrasado partir. Os sentimentos de Lily foram
mais brandos: ela sentiu pena dele de um modo inutilmente assustador. Mas
o fato de ele ter permanecido distante a maior parte do tempo, e que a sua
atenção quando ela irrompeu na sala ter se desaviado dela logo em seguida,
o transformou numa pessoa ainda mais estranha do que no tempo da salinha
de estudo quando ele nunca chegava à casa antes de anoitecer. Ela tinha a
impressão de que sempre o vira encoberto por uma névoa – primeiro de
sono, depois de distância e indiferença – e agora o nevoeiro tinha
aumentado e ele estava praticamente indistinguível. Se pudesse ter feito
alguma coisa por ele, ou dito a ele algumas daquelas palavras afetuosas
adquiridas ao longo das horas de leitura de romances, o instinto filial
poderia ter aflorado dentro dela; mas como seu sentimento de pena não teve
nenhum tipo de retorno, este permaneceu num estado de espectador,
ofuscado pelo ressentimento sombrio e implacável da sua mãe. Cada olhar e
atitude de Mrs. Bart parecia dizer: – Você está com pena dele agora, mas vai
mudar de ideia quando perceber o que ele fez conosco.
Foi um alívio para Lily quando seu pai morreu.
Em seguida veio um longo inverno. Restara pouco dinheiro, mas para
Mrs. Bart parecia ser pior do que se não tivesse restado nada; era uma
amostra da vida que teria pela frente. De que adiantava continuar vivendo
se fosse para viver como um porco? Ela mergulhou um tipo de apatia
nervosa, um estado inerte de raiva contra o destino. Sua habilidade de
“administrar” a abandonou, ou ela não tinha mais orgulho de exercê-la. Era
bom “administrar” quando ao fazê-lo ainda dava para manter a própria
carruagem; mas quando mesmo economizando não era mais possível
esconder o fato de ser obrigada a andar a pé, o esforço deixou de valer a
pena.
Lily e sua mãe mudaram de um lugar para outro, passando longas
temporadas com parentes cujas casas Mrs. Bart costumava criticar, e que
reprovavam o fato de que ela permitia que Lily tomasse o desjejum na cama
sendo que a garota não tinha nenhuma perspectiva pela frente, e agora
vegetava com refeições matinais parcas, enquanto Mrs. Bart se mantinha
afastada das mesas de chá modestas das suas companheiras de infortúnio.
Ela tomava ainda mais cuidado para evitar os antigos amigos e os locais
onde costumava ostentar seu sucesso. Estar pobre parecia ser para ela
assumir o fracasso de um modo tal que beirava a desgraça e ela detectou
uma pontinha de pena naqueles que tentaram se aproximar.
Apenas um pensamento a consolava, e era a contemplação da beleza
de Lily. Ela a observava com um tipo de paixão, como se fosse uma arma
que ela tinha moldado lentamente para sua vingança. Este era o único
recurso que restava para elas, o núcleo ao redor do qual a vida delas seria
reconstruída. Ela via isso com ciúme, como se fosse propriedade sua e Lily
fosse apenas uma portadora; e ela tentou incutir na menina a
responsabilidade que fardo envolvia. Ela tomou como modelo a carreira de
outras beldades, apontando para a filha o que poderia ser conquistado com
um dom como este, e advertiu várias vezes sobre aquelas que, apesar disso,
tinham falhado em conseguir o que queriam. Para Mrs. Bart, apenas a
burrice podia explicar o lamentável desenlace de alguns dos seus exemplos.
Ela não estava acima da inconsistência de culpar o destino, em vez de a si
mesma, por seus infortúnios; mas falava com tanto amargor contra os pares
perfeitos que Lily chegou a imaginar que o casamento dela tinha se dado
nestas circunstâncias, não fosse por Mrs. Bart assegurar com frequência que
ela tinha sido “induzida aquilo”; por quem, ela nunca deixou claro.
Lily ficou encantada com seu leque de oportunidades. O desalento da
situação em que se encontrava ganhou um alívio com a perspectiva de vida
ao qual estava destinada. Para uma inteligência menos iluminada os
conselhos de Mrs. Bart teriam sido perigosos; mas Lily entendeu que a
beleza era apenas o material bruto para a conquista, e que para converter
isto em sucesso era preciso recorrer a outros artifícios. Ela sabia que trair
qualquer senso de superioridade era uma forma sutil de burrice que a sua
mãe denunciava, e não demorou muito para aprender que a beleza requer
mais tato para o portador do que para a maioria comum.
Suas ambições não eram tão rudes quanto às de Mrs. Bart. Foi entre
os agravos desta mulher que seu marido – no começo, antes de ficar muito
cansado – passou suas noites no que ela descrevia vagamente como “lendo
poesia”; e entre os bens que restaram dos leiloes após a sua morte havia um
ou dois volumes surrados que ainda lutavam pela própria existência entre as
botas e os frascos de remédios nas prateleiras do closet dele. Lily tinha uma
veia do sentimento, talvez transmitida por esta fonte, que contribuiu para
um leve toque idealista aos seus propósitos mais prosaicos. Ela gostava de
imaginar que a sua beleza era um poder que poderia ser canalizado para o
bem, que lhe daria a oportunidade de atingir uma posição na qual ela
poderia usar da sua influência para difundir o refinamento e o bom gosto.
Ela gostava de quadros e flores, e romances, e achava que o fato de possuir
tais preferências lhe dava o direito de ambicionar por vantagens mundanas.
Na verdade não queria se casar com um homem que fosse rico apenas; no
fundo ela tinha vergonha da paixão da sua mãe pelo dinheiro. Lily gostaria
de se casar com um nobre inglês com ambições políticas e vastas
propriedades; ou, como segunda opção, um príncipe italiano com um
castelo nos montes Apeninos e um posto hereditário no Vaticano. Causas
perdidas tinham um charme romântico e ela gostava de se imaginar alheia à
imprensa vulgar do Quirinal, sacrificando seus prazeres em nome de uma
tradição de longa data…
Há quanto tempo e quão distante parecia tudo aquilo! Tais ambições
não eram mais fúteis e infantis do que uma das primeiras que girou em
torno da posse de uma boneca articulada francês com cabelos de verdade.
Fazia apenas dez anos apenas desde que a sua imaginação oscilara entre o
conde inglês e o príncipe italiano? De modo implacável sua memória
retomou o triste intervalo…
Após dois anos passando fome, Mrs. Bart morreu; morreu de
profundo desgosto. Ela odiava a pobreza e o seu destino a transformara em
uma pessoa pobre. Suas ambições de um casamento brilhante para Lily se
desfizeram depois do primeiro ano.
– As pessoas não podem se casar com você se não a virem e como
poderão vê-la nestes buracos onde estamos enterradas? – esse era o peso do
seu lamento; e o último conselho que deu para a filha foi fugir da pobreza
se conseguisse.
– Não deixe isso tomar conta de você e derrubá-la. Lute para sair
disso; você é jovem, consegue – insistiu.
Ela morreu durante uma das suas breves estadas em Nova York e
então Lily se tornou o centro de uma reunião de família composta pelos
parentes ricos que ela tinha sido ensinada a desprezar por viverem como
porcos. Talvez eles desconfiassem dos sentimentos que lhe tinham sido
incutidos, pois nenhum deles manifestou entusiasmo pela sua companhia.
Na verdade, a questão correu o risco de ficar sem solução até Mrs. Peniston
anunciar com um suspiro:
– Vou experimentar ficar com ela por um ano.
Todos ficaram surpresos, mas esconderam a surpresa, do contrário
Mrs. Peniston poderia se assustar e reconsiderar a decisão.
Mrs. Peniston era a irmã viúva de Mr. Bart, que apesar de não ser a
mais rica da família, era vista pelos outros membros, por vários motivos,
como a pessoa enviada pela providência divina para assumir a
responsabilidade de assumir Lily. Em primeiro lugar, ela era sozinha, e seria
bom ter uma companhia jovem. Em segundo, ela costumava viajar, e a
familiaridade de Lily com os costumes de outros países – visto pelos seus
parentes mais conservadores como algo ruim – poderia ao menos permitir
que ela atuasse como um tipo de guia para a tia. Mas na verdade tais opções
não passaram pela cabeça de Mrs. Peniston. Ela resolveu ficar com a garota
simplesmente porque ninguém queria, e porque tinha um tipo de timidez
que dificultava a demonstração de egoísmo em público, apesar disso, não
interferir na licença para exercê-la na vida privada. Seria impossível para
Mrs. Peniston ser uma heroína em uma ilha deserta, mas com os olhos do
seu mundinho voltados para sua pessoa ela sentiu certa satisfação com o
ato.
Ela colheu a recompensa ao qual o desinteresse tem direito, mas
acabou descobrindo uma agradável companheira na sobrinha. Ela esperava
que Lily fosse teimosa, crítica e “de hábitos estrangeiros”, pois apesar de
Mrs. Peniston já ter viajado algumas vezes para fora do país, a família tinha
horror a estrangeiros. Contudo, a menina se mostrou dócil, o que, para uma
mente mais astuta do que a da sua tia, poderia ter sido menos confiável do
que o egoísmo explícito da juventude. O infortúnio transformara Lily numa
pessoa flexível em vez de endurecê-la, e uma substância maleável é mais
fácil de quebrar do que uma dura.
Mrs. Peniston, no entanto, não tinha a mesma capacidade de
adaptação da sobrinha. Lily não tinha intenção de se aproveitar da boa
natureza da tia. Na verdade, ficou grata pelo refúgio que lhe fora oferecido:
o opulento interior de Mrs. Peniston pelo menos não parecia ser pobre por
fora. Mas a pobreza é uma qualidade capaz de se disfarçar de várias
maneiras e logo Lily descobriu que esta era tão latente no estilo de vida
caro da sua tia quanto na estada provisória em uma pensão.
Mrs. Peniston era uma dessas pessoas episódicas que fazem parte das
massas. Era impossível imaginá-la como o centro das atenções. O fato mais
interessante sobre ela era que a sua avó tinha sido uma Van Alstyne. Este
parentesco com a casta abastada e bem alimentada família do início de
Nova York revelava-se na pureza glacial da sala de estar de Mrs. Peniston e
na excelência da sua cozinha. Ela pertencia às famílias tradicionais de nova-
iorquinos que sempre viveram bem, se vestiam bem e não faziam muito
mais do que isso; e Mrs. Peniston cumpria estas obrigações herdadas
fielmente. Ela sempre foi uma espectadora da vida, e sua mente lembrava
aqueles espelhos que seus antepassados holandeses costumavam afixar nas
janelas superiores, para que assim pudessem ver o que estava acontecendo
na rua das profundezas de uma domesticidade impenetrável.
Mrs. Peniston possuía uma casa de campo em Nova Jersey, mas ela
nunca mais voltara para lá desde a morte do marido; um acontecimento
remoto, mas que parecia habitar em sua memória como um divisor de águas
nas reminiscências pessoais que formavam o tópico principal das suas
conversas. Ela era uma mulher que se recordava de datas com precisão, e
era capaz de dizer sem hesitar se as cortinas da sala de estar tinham sido
trocadas antes ou depois da última doença de Mr. Peniston.
Mrs. Peniston considerava a vida no campo solitária, com suas
árvores úmidas e nutria um vago receio de topar com um touro. Para se
proteger de tais contingências ela costumava frequentar locais mais
movimentados, onde se instalava em uma casa alugada de onde via a vida
passar através da tela de proteção da sua varanda. Sob os cuidados de tal
guardiã, Lily logo percebeu que só iria poder aproveitar as vantagens da boa
comida e roupas caras; e, embora estivesse longe de desprezá-los, ela os
trocaria de bom grado pelo que Mrs. Bart a ensinara a ver como
oportunidades. Ela adorava imaginar tudo que ela e a mãe teriam feito se
tivessem sido contempladas com os recursos de Mrs. Peniston. Lily tinha
energia de sobra, mas se viu obrigada a refreá-la pela necessidade de se
adaptar aos hábitos da tia, pois percebera que deveria a todo custo se manter
de bem com Mrs. Peniston até, como diria Mrs. Bart, que ela pudesse andar
com as próprias pernas. Lily não se importava com a vida errante da tia, e
para se adaptar à Mrs. Peniston ela até chegara a assumir, até certo ponto, a
atitude passiva da senhora. No começo ela achou que ia ser fácil atrair a tia
para o turbilhão da sua vida agitada, mas havia uma força estática em Mrs.
Peniston contra a qual os esforços da sobrinha foram gastos em vão. Tentar
engajá-la em uma relação de atividade com a vida foi o mesmo que tentar
arrastar um móvel parafusado ao chão. Na verdade, ela não esperava que
Lily permanecesse igualmente imóvel: ela tinha toda a indulgência dos
guardiões americanos para a volatilidade da juventude.
Assim como também era indulgente para com outros hábitos da
sobrinha. Parecia natural para ela que Lily gastasse todo seu dinheiro com
vestidos, e, ocasionalmente, ela complementava a parca renda da moça com
“agradinhos” para serem aplicados com o mesmo propósito. Lily, que era
muito prática, preferia uma mesada fixa; mas Mrs. Peniston gostava de
mostrar sua gratidão periodicamente através de cheques inesperados, e,
talvez, fosse astuta o bastante para perceber que tal método mantinha vivo o
salutar senso de dependência da sobrinha.
Além disso, Mrs. Peniston não se sentiu no dever de fazer mais nada
pela sua protegida, e, assim, simplesmente permaneceu à parte e deixou que
esta fosse à luta. Lily foi, primeiro com a confiança de posse garantida,
depois as exigências foram diminuindo, até que por último ela se viu
lutando para se firmar no amplo campo que antes parecia todo seu. Como as
coisas tinham chegado a esse ponto, ela não sabia. Às vezes achava que
Mrs. Peniston tinha sido muito passiva, mas depois desconfiava que ela é
que não tinha sido passiva o suficiente. Será que não mostrara
indevidamente uma ânsia muito grande de vencer? Será que lhe faltara
paciência, flexibilidade e dissimulação? No fim das contas não fazia a
menor diferença se culpasse a si mesma ou se absolvesse das falhas que a
levaram ao fracasso. Dúzias de meninas bonitas e jovens tinham se casado e
ela com vinte e nove anos ainda era Miss Bart.
Ela estava começando a se revoltar com o destino, quando pensou em
abandonar a corrida e conquistar uma vida independente. Mas que tipo de
vida seria? Ela mal tinha dinheiro para pagar a conta da modista e suas
dívidas de jogo e nenhum dos interesses aleatórios que ela classificava
como “preferências” parecia promissor o bastante para ela viver bem na
obscuridade. Ela sabia que odiava a pobreza tanto quanto sua mãe, e por
conta disso pretendia lutar até o seu último suspiro contra isso, emergindo
repetidas vezes acima desta maré até alcançar o ápice do sucesso que se
apresentava na forma de uma superfície difícil de ser alcançada.
Capítulo 4
Na manhã seguinte, Miss Bart encontrou um bilhete da sua anfitriã na
bandeja do desjejum.
– Querida Lily – estava escrito – se não for muito incômodo, você
poderia descer por volta das dez até a sala de estar para me ajudar com uns
assuntos chatinhos?
Lily jogou para o lado o bilhete e afundou sobre os travesseiros com
um suspiro. Era um incômodo descer por volta das dez – a hora em
Bellmonte era vagamente sincronizada com o nascer do sol – e ela sabia
muito bem qual era a natureza desses assuntos chatos. Miss Pragg, a
secretária, tinha sido solicitada na cidade, e havia convites e cartões de
agradecimento de jantares para escrever, uma porção de endereços a serem
procurados e outras obrigações sociais a serem cumpridas. Estava implícito
que Miss Bart preenchesse tal lacuna em tais emergências, e, normalmente,
ela cumpria suas obrigações sem reclamar.
Mas hoje, no entanto, o sentimento de servidão se renovou com a
lembrança da consulta ao talão de cheques realizada na noite anterior. Tudo
ao seu redor despertava um sentimento de calma e amenidade. As janelas
estavam abertas para o frescor reluzente das manhãs de setembro, e entre os
ramos amarelos ela avistou sebes e canteiros dando certa formalidade às
variações livres do parque. Sua criada tinha deixado um fogo agradável na
lareira, que competia com os raios de sol que incidiam sobre o tapete verde
e nos contornos laterais torneados da antiga escrivaninha em marchetaria.
Próxima à cama havia uma mesinha que servia de apoio para a sua bandeja
de café da manhã, com peças de porcelana e prata combinando, um
arranjinho de violetas em um vasinho delicado, e o jornal da manhã
dobrado embaixo da correspondência. Não havia nada de novo para Lily
nestes símbolos de luxo estudado; contudo, apesar de fazerem parte da sua
atmosfera, eles nunca perderam o encanto para ela. A simples exibição
despertou nela uma sensação de distinção superior; pois ela tinha uma
afinidade para todas as manifestações sutis da riqueza.
A convocação de Mrs. Trenor, no entanto, fez com que se lembrasse
da sua situação de dependência, e ela levantou e se vestiu com uma
irritabilidade que normalmente era muito prudente para se deixar afetar.
Sabia que tais sentimentos deixavam marcas no rosto assim como no caráter
e ela estava disposta a tomar cuidado com as ruguinhas que sua pesquisa da
meia-noite revelara.
O tom natural da saudação de Mrs. Trenor irritou-a ainda mais. Se
alguém é tirado da cama a uma hora daquelas e desce linda e radiante para a
monotonia de escrever convites, esta pessoa merece algum reconhecimento
especial pelo seu sacrifício. Mas o tom de Mrs. Trenor não demonstrou
nenhum tipo de consciência do fato.
– Oh, Lily, que bondade a sua – ela mal sussurrou entre o caos de
cartas, notas e outros documentos domésticos que davam um toque
comercial que não combinava com a elegância da escrivaninha.
– Tenho tantas coisas chatas para fazer hoje – adicionou, abrindo um
espaço no meio da confusão e levantando para ceder seu lugar à Miss Bart.
Mrs. Trenor era uma mulher alta e bonita, cuja altura a salvava da
redundância. Seu loiro-avermelhado sobrevivera a quarenta anos de
atividades inúteis sem mostrar muito traços de desgaste, exceto por uma
suave mudança nas feições. Era difícil defini-la sem dizer que ela tinha
nascido para ser uma anfitriã, não porque fosse dotada de instinto
exagerado de hospitalidade, mas porque ela não suportaria a vida se não
estivesse cercada de gente. A natureza coletiva dos seus interesses a
dispensavam das rivalidades comuns ao seu sexo, e ela não conhecia maior
emoção pessoal do que o ódio pela mulher que supostamente tinha
oferecido um jantar maior ou uma festa mais divertida do que a sua. Seus
talentos sociais, patrocinados pela conta bancária de Mr. Trenor, quase
sempre lhe assegurava a posição de triunfo absoluto em tais competições, e
o sucesso acabou desenvolvendo nela uma natureza inescrupulosamente
boa com relação ao restante do seu sexo, e, de acordo com o ranque
utilitário das amigas de Miss Bart, Mrs. Trenor ocupava a posição da
mulher menos provável de lhe “dar as costas”.
– Foi simplesmente desumano Pragg ter ido embora agora – declarou
Mrs. Trenor, enquanto a amiga se sentava à escrivaninha. – Ela disse que a
irmã vai ter um bebê; como se isso se comparasse ao planejamento para
receber pessoas em casa! Estou certa de que vou fazer a maior confusão e
um péssimo arranjo de lugares. Quando eu estava em Tuxedo convidei um
monte de gente para a semana que vem, mas perdi a lista e não consigo me
lembrar de quem vem. E esta semana também vai ser um fracasso e depois
Gwen Van Osburgh vai voltar e dizer para a mãe o quanto as pessoas
estavam entediadas aqui. Pensei em convidar os Wetherall, mas isso foi um
erro do Gus. Eles não gostam de Carry Fisher, sabe. Como se alguém
pudesse deixar de convidar Carry Fisher! Foi tolice dela se divorciar pela
segunda vez, Carry sempre exagera; mas ela disse que o único jeito de tirar
um centavo de Fisher foi se divorciando dele e fazendo-o pagar uma pensão
alimentícia. A pobre Carry é obrigada a cortar cada dólar. É um absurdo
Alice Wetherall fazer tanto barulho por causa disso, quando todos sabem
que a sociedade caminha para isto. Outro dia alguém disse que haverá um
divórcio e um caso de apendicite em todas as famílias. Além do mais, Carry
é a única pessoa que consegue deixar Gus de bom-humor quando estamos
recebendo pessoas chatas. Você já percebeu que todos os maridos gostam
dela? Todos, menos o dela. Ela foi muito esperta em se especializar em
divertir pessoas aborrecidas, o campo de atuação é amplo, e é praticamente
só dela. Sem dúvida ela tem suas compensações. Sei que ela pegou dinheiro
emprestado do Gus, mas eu seria capaz de pagar para ela para mantê-lo de
bom- humor, sendo assim não tenho do que reclamar.
Mrs. Trenor fez uma pausa para assistir ao espetáculo de Miss Bart
tentando desvendar a confusão da sua correspondência.
– Mas é apenas os Wetherall e Carry – ela recomeçou, com um novo
tom de lamento. – A verdade é que estou muito desapontada com lady
Cressida Raith.
– Desapontada? Você já a conhecia?
– Céus, não! Nunca a vi até ontem. Lady Skiddaw a recomendou aos
Van Osburgh, e ouvi dizer que Maria Van Osburgh pretendia dar uma festa
nesta semana para conhecê-la, por isso achei que seria divertido roubá-la, e
Jack Stpeney, que a conheceu na Índia, cuidou disso para mim. Maria ficou
furiosa e teve a imprudência de fazer Gwen se convidar para vir aqui, para
que assim eles não ficassem de fora, mas se eu soubesse como lady
Cressida era, teria deixado ela todinha para eles! Mas imaginei que
qualquer pessoa amiga dos Skiddaw certamente seria divertida. Você se
lembra do quão divertida era lady Skiddaw? Chegou um momento que
simplesmente tive de mandar as meninas para o quarto. Além do mais, lady
Cressida é irmã da duquesa de Beltshire, e, naturalmente, achei que ela seria
parecida. Mas nunca se pode ter certeza de nada em se tratando daquelas
famílias inglesas. Elas são tão grandes que têm espaço para todos os tipos.
Portanto, acabei descobrindo que lady Cressida é a moralista, casada com
um clérigo e que faz trabalho voluntário em East End. Imagine todo o
trabalho que tive por causa da mulher de um clérigo que usa joias indianas e
gosta de botânica! Ela fez Gus levá-la até a estufa ontem e quase o matou
de tédio perguntando os nomes das plantas. Tratou Gus como se ele fosse o
jardineiro!
Mrs. Trenor contou isso num crescendo de indignação.
– Bem, talvez lady Cressida consiga fazer com que os Wetherall se
reconciliem com Carry Fisher – disse Miss Bart pacificamente.
– Espero que sim! Mas ela vai cansar todos os homens, e se começar a
distribuir panfletos, o que ouvi dizer que ela costuma fazer, vai ser o fim. O
pior é que ela seria tão útil no momento certo. Você sabe que costumamos
receber o bispo uma vez por ano e ela daria o tom certo à ocasião. Sempre
dou azar com as visitas do bispo – adicionou Mrs. Trenor, cujo desgosto
estava sendo alimentado por uma enxurrada de lembranças. – No ano
passado, quando ele veio, Gus se esqueceu totalmente que ele viria e trouxe
para casa os Ned Winton e os Farley: cinco divórcios e seis pares de
crianças entre eles!
– Quando lady Cressida chega? – inqueriu Lily.
Mrs. Trenor lançou um olhar desesperado.
– Minha querida, seu ao menos eu soubesse! Eu estava com tanta
pressa de me livrar de Maria que acabei me esquecendo de marcar o dia e
Gus disse que ela falou para alguém que pretendia passar o inverno todo
aqui.
– Aqui? Nesta casa?
– Não, na América. Mas se ninguém mais a convidar… você sabe que
eles nunca ficam em hotéis.
– Talvez Gus só tenha dito isso para assustá-la.
– Não. Eu a ouvi dizendo para Bertha Dorset que ela tem seis meses
de folga enquanto seu marido estiver fazendo um tratamento em Engadine.
Você precisava ver a cara de desentendida da Bertha! Mas sem brincadeira,
se ela resolver passar o outono inteiro aqui ela vai estragar tudo, e Maria
Van Osburgh simplesmente vai adorar.
Só de pensar nisso a voz de Mrs. Trenor estremeceu de dó de si
mesma.
– Oh, Judy, como se alguém ficasse entediado em Bellmomont! –
Miss Bart protestou com jeitinho. – Você sabe muito bem que, se Mrs. Van
Osbrugh pegasse todas as pessoas certas e deixasse para você as erradas,
você iria dar um jeito de fazer as coisas funcionarem e ela não.
Tal garantia normalmente teria restaurado a complacência de Mrs.
Trenor, mas dessa vez não conseguiu espantar a ruguinha de preocupação
da sua testa.
– O problema não é apenas lady Cressida – ela lamentou. – Tudo deu
errado nesta semana. Sei que Bertha Dorset está furiosa comigo.
– Furiosa com você? Por quê?
– Porque falei para ela que Lawrence Selden viria, mas ele não virá e
ela é insensata o suficiente para achar que a culpa é minha.
Miss Bart baixou a caneta e ficou olhando distraída para o convite que
tinha começado a escrever.
– Achei que estivesse tudo acabado – comentou.
– Acabou da parte dele. E claro que Bertha está ociosa desde então.
Mas acho que ela está sem ter o que fazer no momento, e alguém me deu
uma dica de que seria melhor convidar Lawrence. Bem, eu o convidei, mas
não consegui convencê-lo a vir; e agora creio que ela vai se vingar de mim,
sendo desagradável com todos os outros.
– Oh, ela pode se vingar dele sendo encantadora… com outra pessoa.
Mrs. Trenor balançou a cabeça desanimada.
– Ela sabe que ele não iria se importar. E quem mais estará aqui?
Alice Wetherall está sempre de olho em Lucius. Ned Silverton não tira os
olhos de Carry Fisher… coitado! Gus se cansa de Bertha, Jack Stepney a
conhece muito bem, e, bem, tem Percy Gryce!
Ela sorriu com a ideia.
O semblante de Miss Bart não refletiu o sorriso.
– Oh, é pouco provável que ela e Mr. Gryce combinem.
– Você quer dizer que ela o chocaria e ele a deixaria entediada? Bem,
até que não é um mau começo, sabe. Mas espero que ela não resolva ser
simpática com ele, pois o convidei por sua causa.
Lily riu.
– Obrigada pelo elogio! Certamente eu não teria chances contra
Bertha.
– Você acha que não estou sendo lisonjeira? Na verdade, estou. Todo
mundo sabe que você é mil vezes mais bonita e mais inteligente do que
Bertha, mas só que você não é malvada. E por sempre acabar conseguindo o
que quer, eu a vejo como uma mulher perversa.
Miss Bart fitou com um olhar de reprovação.
– Achei que você gostasse da Bertha.
– Ah, eu gosto. É mais seguro ser amiga de pessoas perigosas. Mas
ela é perigosa e estou certa de que ela está tramando alguma coisa. Posso
perceber pelo jeito do pobre George. Aquele homem é um verdadeiro
barômetro. Ele sempre sabe quando Bertha vai…
– Aprontar? – sugeriu Miss Bart.
– Não faça essa cara! Você sabe que ele ainda acredita nela. E claro
que não vou dizer que exista algum mal verdadeiro em Bertha, mas ela
adora magoar as pessoas, principalmente o pobre George.
– Bom, ele parece perfeito para esse papel. Não é de admirar que ela
procure por companhias mais divertidas.
– Ah, George não é tão chato quanto você imagina. Se Bertha não o
aborrecesse ele poderia ser uma pessoa diferente. Ou se ela o deixasse em
paz, e o deixasse seguir a vida como bem entendesse. Mas ela não o
abandona por causa do dinheiro, e por isso quando ele não está com ciúme,
mas ela finge estar.
Miss Bart continuou escrevendo em silêncio e a anfitriã seguiu dando
vazão a sua linha de raciocínio com o cenho franzido.
– Sabe! – exclamou ela após uma longa pausa. – Acho que vou
telefonar para Lawrence e pedir para ele vir?
– Ah, não faça isso – disse Lily com um rubor que a surpreendeu
tanto quanto à sua anfitriã, que, apesar de não ser uma boa observadora das
mudanças faciais, ficou olhando confusa.
– Minha nossa, Lily, como você é bonita! Mas, por quê? Você não
gosta dele tanto assim?
– De forma alguma; gosto dele. Mas se estiver fazendo isso para me
proteger da Bertha, não creio que eu precise da sua proteção.
Mrs. Trenor se endireitou no assento com uma exclamação.
– Lily!… Percy? Você está insinuando que fez isso?
Miss Bart sorriu.
– Só quero dizer que Mr. Gryce e eu estamos nos tornando bons
amigos.
– Hum, sei – Mrs. Trenor fitou-a de modo arrebatador. – Dizem que
ele tem uma retirada de oitocentos mil por ano e que não gasta nada, exceto
com alguns livros velhos. E a mãe tem uma doença no coração e vai deixar
muito mais para ele. Oh, Lilly, vá devagar – sua amiga a aconselhou.
Miss Bart continuou sorrindo imperturbável.
– Eu jamais iria, por exemplo – apontou ela – me precipitar e dizer
que ele tem um monte de livros velhos.
– Oh, eu não quis dizer isso. Além do mais, ele nem levaria a sério –
disse Mrs. Trenor com astúcia. – Mas você sabe que, às vezes, as coisas
aqui ficam um tanto animadas. Vou dar uma dica para o Jack e o Gus, caso
ele pense que você é o que a mãe dele chamaria de avançadinha… Ah, bem,
você sabe o que quero dizer. Não use aquele seu vestido de crepe de seda
vermelho no jantar e não fume se conseguir se segurar, Lily querida!
Lily empurrou para o lado o trabalho concluído com um sorrisinho
sem graça.
– É muita gentiliza sua, Judy. Vou guardar meus cigarros e usar aquele
vestido que você mandou para mim nesta manhã. Se estiver realmente
interessada no meu futuro, talvez, faça a bondade de não me convidar para
jogar bridge outra vez nesta noite.
– Bridge? Ele também não gosta de bridge? Oh, Lily, que vida chata
você terá! Mas é claro que não a convidarei. Por que não me avisou na noite
passada? Não tem nada que eu não faria para vê-la feliz, bobinha!
E Mrs. Trenor, esbanjando o desejo característico ao seu sexo de
facilitar o caminho do amor verdadeiro, envolveu Lily em um longo abraço.
– Você tem certeza – adicionou solícita, enquanto a última se
desvencilhava – que não quer que eu telefone para Lawrence Selden?
– Absoluta – respondeu Lily.

***

Os três dias que se seguiram demonstraram para sua própria satisfação


a habilidade de Miss Bart de cuidar da sua vida sem a ajuda de outros.
Na tarde de sábado, enquanto estava sentada na varanda em
Bellomont, ela riu do receio de Mrs. Tenor de que ela pudesse ser muito
avançadinha. Se tal conselho fora antes necessário, os anos tinham lhe
ensinado uma lição salutar e agora ela se vangloriava de saber como se
adaptar ao ritmo do seu objeto de perseguição. No caso de Mr. Gryce ela
achou não havia problema vibrar por antecipação, soltando-se aos poucos e
atraindo-o cada vez mais para uma intimidade inconsciente. O clima ao
redor era propício a este esquema de corte. Mrs. Trenor, fiel a sua promessa,
não demonstrou esperanças de que Lily se sentasse à mesa de bridge, e
chegou até dizer para os outros jogadores procurarem não demonstrar
nenhum sinal de surpresa pela inusitada deserção. Por causa da sugestão,
Lily se viu no centro daquela solicitude feminina que cerca uma jovem na
temporada de casamento. Uma solidão foi tacitamente criada para ela em
meio ao grande grupo que se encontrava em Bellmont e seus amigos não
poderiam ter demonstrado maior disposição de aceitação, como se a sua
corte estivesse sendo adornada por todos os atributos do romance. No meio
social de Lily tal conduta mostrava que seus amigos compreendiam e
aceitavam seus motivos, e a sua estima por Mr. Gryce cresceu quando ela
viu a consideração que ele inspirava.
A varanda de Bellomont numa tarde de setembro era o local propício
para reflexões sentimentais, e, enquanto Miss Bart se encontrava recostada
à balaustrada acima do jardim, a poucos metros de distância do grupo
animado ao redor da mesa de chá, ela poderia ter se perdido nos labirintos
da felicidade inarticulada. Na verdade, seus pensamentos encontravam uma
expressão definitiva na recapitulação tranquila das bênçãos guardadas para
ela. De onde estava ela podia vê-las encarnadas na forma de Mr. Gryce,
que, de sobretudo leve e cachecol, sentava nervoso na ponta da sua cadeira
enquanto Carry Fisher, com toda a energia de olhos e gestos dos quais a
natureza resolveu dotá-la, o pressionava sobre a obrigação de fazer parte da
reforma municipal.
O último passatempo de Mrs. Fisher era a reforma municipal,
precedido com semelhante empenho pelo socialismo, que substituíra a
defesa enérgica da Ciência Cristã. Mrs. Fisher era miúda, ardente e
dramática, e suas mãos e olhos eram instrumentos admiráveis a serviço da
causa com o qual estivessem envolvidos. Ela tinha, no entanto, o defeito
comum aos entusiastas de ignorar quaisquer sinais de desinteresse de seus
ouvintes, e Lily ficou impressionada com a sua falta de tato para notar a
resistência demonstrada, em todos os ângulos, pela atitude de Mr. Gryce.
Lily sabia que a mente dele se dividia entre o pavor de pegar uma gripe se
ficasse por muito tempo ao ar livre àquela hora e o medo de que, se voltasse
para dentro, Mrs. Fisher pudesse ir atrás com um abaixo assinado. Mr.
Gryce tinha uma aversão constitucional do que ele chamava de
“comprometer-se”, e apesar de zelar pela sua saúde, pelo jeito ele concluíra
que era mais seguro se manter fora do alcance da caneta e da tinta até que o
acaso o livrasse da insistência de Mrs. Fisher. Enquanto isso, ele lançava
olhares aflitos na direção de Miss Bart, cuja única reação foi afundar em
uma atitude de abstração ainda mais graciosa. Ela tinha aprendido o valor
do contraste de jogar seu charme, e tinha total consciência do quanto à
insistência de Mrs. Fisher valorizava ainda mais a sua atitude passiva.
Ela foi despertada das divagações pela aproximação do seu primo,
Jack Stepney, que, acompanhado de Gwen Van Osburgh, cruzava o jardim
voltando da quadra de tênis.
O casal em questão estava envolvido no mesmo tipo de romance do
qual Lily figurava, e a última ficou um pouco irritada ao contemplar o que
lhe pareceu uma caricatura da sua própria situação. Miss Van Osbrugh era
uma moça grande e sem brilho: Jack Stpeney disse uma vez que ela era tão
confiável quanto um carneiro assado. Ele preferia uma dieta menos sólida e
temperada; mas a fome torna qualquer prato comestível, e houve um tempo
em que Mr. Stepney passara a migalhas.
Lily olhou com interesse a expressão nos rostos deles: a moça voltou-
se para seu companheiro como se fosse um prato vazio pronto para ser
abastecido, enquanto o homem ao seu lado deixava transparecer o tédio que
trincaria a qualquer momento o fino verniz do seu sorriso.
“Como os homens são impacientes!”, pensou Lily. “Tudo que Jack
precisa fazer para conseguir o que quer é ficar calado e esperar que a moça
se case com ele; enquanto eu tenho de calcular e me conter, recuar e
avançar, como se estivesse executando uma coreografia complicada onde
um passo errado pode me fazer perder o ritmo”.
À medida que eles se aproximavam ela ficou assombrada com a
semelhança entre Miss Van Osburgh e Percy Gryce. A semelhança não era
física. Percy Gryce era bonito de uma forma didática – parecia o desenho de
um busto de gesso feito por um bom aluno de curso de arte – enquanto o
rosto de Gwen estava mais para uma cara pintada em um balão de criança.
Mas a profunda semelhança era inconfundível: ambos compartilhavam dos
mesmos preconceitos e ideias, e a mesma capacidade de tornar outros
padrões inexistentes ignorando-os. Estes atributos eram comuns à maioria
das pessoas que cercavam Lily: elas tinham uma força de negação capaz de
eliminar tudo que estava além da compreensão delas. Gryce e Miss Van
Osburgh eram, em suma, feitos um para o outro em todos os aspectos
legais, morais e físicos. “Mesmo assim eles nunca vão olhar um para o
outro”, refletiu Lily, “nunca. Cada um anseia por uma criatura de uma raça
diferente, da minha raça e da de Jack, com todos os tipos de intuições,
sensações e percepções que eles nem sequer imaginam que exista. E eles
sempre conseguem ter o que querem”.
Ela ficou conversando com o primo e Miss Van Osburgh até uma
ruguinha na testa da última alertá-la de que até mesmo as amenidades entre
primos eram motivo de desconfiança, e Miss Bart, ciente da necessidade de
não criar inimizades neste ponto da sua vida, se afastou enquanto o casal
feliz seguia na direção da mesa de chá.
Ao se sentar no primeiro degrau da varanda, Lily inclinou o rosto na
direção das madressilvas que cobriam a balaustrada. O perfume das flores
tardias parecia uma emanação da cena tranquila, uma paisagem talhada até
o último grau da elegância rural. Além do gramado, com seus bordos
dourados piramidais e pinheiros aveludados, as colinas salpicadas de gado
pastando; e depois de uma longa clareira o rio alargava igual um lago sob o
brilho prateado de setembro. Lily não estava com a menor vontade de se
juntar ao grupo ao redor da mesa de chã. Eles representavam o futuro que
ela tinha escolhido e ela estava feliz com isso, mas sem pressa de antecipar
suas alegrias. A certeza de que iria se casar com Percy Gryce quando
quisesse tirara um peso da sua consciência, e seus problemas com dinheiro
ainda eram muitos recentes para serem esquecidos sem deixar uma
sensação de alívio, que uma inteligência menos apurada poderia tomar
como felicidade. Suas preocupações vulgares tinham chegado ao fim. Ela
poderia ajeitar a sua vida como bem entendesse, alcançar aquela esfera
celestial de segurança onde os credores não conseguem entrar. Teria
vestidos mais bonitos do que os de Judy Trenor, e mais, muito mais joias do
que Bertha Dorset. Ficaria livre para sempre das mudanças, dos
expedientes, das humilhações dos seus parentes pobres. Em vez de
paparicar, ela seria paparicada; em vez de agradecer, os outros é que
agradeceriam a ela. Dívidas antigas seriam pagas, assim como favores
antigos poderiam ser retribuídos. E ela não tinha dúvidas quanto à extensão
do seu poder. Sabia que Mr. Gryce era cauteloso e menos sucessível a
impulsos e emoções, e que tinha o tipo de caráter em que a prudência é um
vício e os bons conselhos o alimento mais perigoso. Mas Lily já conhecia
muito bem o tipo: sabia que uma natureza tão reservada precisava encontrar
uma maneira de extravasar o egocentrismo e ela estava determinada a ser
para ele o que a sua coleção de antiguidades americana tinha sido até então:
a única coisa com o qual ele tinha orgulho de gastar seu dinheiro. Ela sabia
que esta generosidade para com o próprio ego é uma forma de mesquinhez,
e por isso estava determinada a se identificar com a vaidade do marido de
modo que conceder seus desejos se tornasse para ele a maior realização de
todas. No começo talvez fosse necessário algumas mudanças e adaptação
do arranjo ao que ela pretendia recorrer para se libertar; mas ela tinha
certeza de que num curto espaço de tempo estaria apta a jogar o jogo do seu
jeito. Como ela pôde desconfiar dos seus poderes? A sua própria beleza não
era uma posse efêmera que seria em mãos inexperientes: a sua habilidade
de aprimorá-la, cuidar dela, o modo como a usou, parecia lhe dar um tipo de
permanência. Ela sentia que poderia confinar nela até atingir seus objetivos.
E os objetivos, de um modo geral, valiam a pena. A vida não era a
brincadeira de mau gosto que ela imaginara que fosse três dias antes.
Afinal, havia espaço para ela neste mundo egoísta de prazeres onde, pouco
tempo antes, a sua pobreza parecia tentar excluí-la. Estas mesmas pessoas
que ela tinha ridicularizado e ao mesmo tempo invejado teriam o maior
prazer em arrumar um lugar no círculo charmoso do qual ela tanto desejava
fazer parte. Eles não eram tão egoístas e cruéis quanto ela tinha imaginado,
ou melhor, uma vez que não seria mais preciso bajular e agradá-los, aquele
lado da sua natureza deles se tornaria menos evidente. A sociedade é um
corpo em movimento que pode ser julgada de acordo com o lugar onde se
encontra o paraíso de cada um; e naquele momento ela estava virando a sua
face iluminada para Lily.
Sob a luz rosada que se espalhava, seus amigos pareciam cheios de
qualidades adoráveis. Ela apreciou a elegância deles, a leveza, a falta de
afetação: até mesmo a autoconfiança que às vezes soava tão estúpida agora
parecia um sinal natural de ascensão social. Eles eram os senhores do único
mundo que a interessava e estavam prontos para admiti-la no meio deles e
deixar que ela o governasse junto. Ela já sentia dentro de si uma lealdade
aos padrões deles, uma aceitação de seus limites, uma descrença nas coisas
que eles não acreditavam, uma piedade desdenhosa por aqueles que não
podiam viver como eles viviam.
O sol se punha mais cedo sobre o parque. Em meio aos ramos da
longa alameda, além dos além dos jardins, ela avistou o brilho de rodas e
adivinhou que mais visitantes estavam chegando. Havia uma movimentação
às suas costas, um farfalhar e vozes: evidentemente era o grupo ao redor da
mesa de chá que estava dispersando. Em seguida ela ouviu passos se
aproximando e supôs que Mr. Gryce finalmente tinha conseguido escapar
da situação embaraçosa e então sorriu pelo significado dele vindo se juntar
a ela em vez de entrar correndo em busca do calor da lareira.
Ela virou para lhe dar as boas-vindas devidas ao galanteio, mas a sua
saudação hesitou com um rubor, pois o homem que se aproximava era
Lawrence Selden.
– Vejo que acabou vindo – disse ele, mas antes que ela tivesse tempo
de responder, Mrs. Dorset, depois de cortar uma conversa sem graça com a
anfitriã, se colocou entre eles num gesto de apropriação.
Capítulo 5
O ritual de domingo em Bellomont era marcado pela chegada pontual
de uma carruagem destinada a levar todos até os portões da igrejinha. Se
alguém entrava ou não na carruagem era uma questão de importância
secundaria, uma vez que o simples fato de estar lá não era apenas um
testemunho das intenções ortodoxas da família, mas fazia Mrs. Trenor
sentir, quando ela finalmente ouvia o veículo partindo, que o utilizara
mesmo que indiretamente.
Mrs. Trenor dizia que suas filhas costumavam ir à igreja todos os
domingos, mas com as crenças da preceptora francesa convidando-as para o
santuário rival, e os cansaços da semana que retinham a mãe delas no
quarto até a hora do almoço, era raro que alguém estivesse presente para
verificar o fato. Vez ou outra, num raro rompante de virtude, quando a festa
da noite anterior tinha sido muito animada, Gus Trenor forçava seu
corpanzil em um fraque apertado e tirava as filhas da cama; mas
normalmente, como explicara Lily para Mr. Gryce, a obrigação paterna era
esquecida até que os sinos da igreja já estivessem ressoando pelo parque e a
carruagem já tivesse partido vazia.
Lily contou para Mr. Gryce que essa negligência às práticas religiosas
ia contra seus princípios e que durante as suas estadas em Bellomont ela
costumava acompanhar Muriel e Hilda à igreja. Isto foi contado junto com a
garantia, também em termos confidenciais, de que, nunca tendo jogado
bridge antes, ela tinha sido “arrastada” na noite da sua chegada e que tinha
perdido uma grande quantia de dinheiro por desconhecer o jogo e as regras
de aposta. Mr. Gryce sem dúvida estava adorando Bellomont. Gostou da
tranquilidade e do glamour da vida e do brilho a ele conferido por ser um
membro deste grupo de pessoas ricas e notórias. Mas achou que se tratava
de uma sociedade muito materialista. Em determinados momentos ele se
assustava com a conversa dos homens e os olhares das mulheres e ficou
feliz em saber que Miss Bart, apesar de toda a sua desenvoltura e
autoconfiança, não se sentia confortável em uma atmosfera tão ambígua. E
ficou ainda mais satisfeito ao descobrir que ela iria, como de costume,
acompanhar às jovens Trenor à igreja no domingo; e enquanto caminhava
sobre o cascalho rastelado diante da porta, com o sobretudo leve dobrado
sobre o braço e segurando o livro de orações em uma mão cuidadosamente
enluvada, ele pensava satisfeito sobre a força de caráter que a mantinha fiel
à sua criação num ambiente tão negligente aos princípios religiosos.
Por um bom tempo Mr. Gryce e a carruagem tiveram o cascalho
rastelado só para eles, mas, longe de ficar indignado com esta deplorável
indiferença por parte dos outros hóspedes, ele se pegou alimentando a
esperança de que Miss Bart viesse desacompanhada. Os preciosos minutos
voavam, no entanto; os cavalos enormes pisoteavam impacientes e
bufavam; o cocheiro parecia petrificado dentro do veículo, assim como o
mordomo no degrau da entrada; e mesmo assim a dama não vinha. De
repente, o som de vozes e o farfalhar de saia à porta, e Mr. Gryce,
guardando o relógio de volta no bolso, virou-se nervoso, mas foi apenas
para ajudar Mrs. Wetheral entrar na carruagem.
Os Wetherall sempre iam à igreja. Eles pertenciam ao vasto grupo de
humanos autômatos que passam pela vida sem se negar a executar nem um
dos gestos executados por todos os outros fantoches ao redor. É bem
verdade que os fantoches de Bellomont não iam à igreja, mas outros de
igual importância iam – e o círculo de Mr. e Mrs. Wetheral era tão amplo
que Deus estava incluído na lista de visitas deles. Eles apareceram,
portanto, pontualmente e resignados, com ares de quem estavam prontos
para aturar um “conhecido” ritual maçante. Depois deles vieram Hilda e
Muriel, bocejando e prendendo o véu e as fitas uma da outra. As duas
contaram que tinham prometido a Lily que iriam à igreja com ela e Lily era
tão querida que elas não se importaram em fazer isso somente para agradá-
la, apesar de não imaginarem por que tal ideia tinha passado pela cabeça
dela, apesar de particularmente preferirem ter ido jogar tênis com Jack e
Gwen, se ela não tivesse dito que viria. Em seguida chegou lady Cressida
Raith, uma pessoa abatida pelo clima, trajando seda fina e badulaques
étnicas, e que, ao ver a carruagem, expressou surpresa por eles não irem
andando pelo parque. Mas diante do protesto horrorizados de Mrs. Wetheral
de que a igreja ficava a quase dois quilômetros de distância, Vossa
Senhoria, após verificar a altura dos saltos das outras, concordou com a
necessidade de irem de carruagem e o pobre Mr. Gryce se viu espremido
entre quatro damas por cujo bem-estar espiritual ele pouco se importava.
Poderia ter servido de consolo se ele tivesse ficado sabendo que Miss
Bart realmente pretendia ir à igreja. Tinha até acordado mais cedo do que o
costume com aquele propósito. E imaginado que a visão dela em um
vestido cinza recatado, com seus famosos cílios voltados para um livro de
orações, daria o toque final a rendição de Mr. Gryce, e que renderia o
inevitável incidente que ela planejava provocar quando os dois estivessem
caminhando sozinhos, depois do almoço. Suas intenções, em suma, nunca
foram tão definidas; mas a pobre Lily, apesar da sua fachada rígida, por
dentro era maleável como cera. Sua habilidade de adaptação, para sondar os
sentimentos de outras pessoas, se às vezes a ajudava nas pequenas
contingências, a abandonava nos momentos decisivos da vida. Ela parecia
com uma planta aquática que segue de acordo com o fluxo das marés e
neste dia o fluxo do seu humor a levava na direção de Lawrence Selden. Por
que ele tinha vindo? Será que tinha sido para ver Bertha Dorset? Esta era a
última dúvida que, naquele momento, deveria ter passado pela sua cabeça.
Ela deveria ter se contentado em imaginar que ele simplesmente tinha
respondido ao chamado desesperado da sua anfitriã, ansioso por colocá-lo
entre ela e o mau humor de Mrs. Dorset. Mas Lily não sossegou enquanto
não ficou sabendo por Mrs. Trenor que Seldon tinha vindo porque quis.
– Ele nem me ligou; só descobriu a armadilha na estação. Talvez as
coisas com Bertha não tenham terminado – concluiu Mrs. Trenor
resmungando; e retomou o arranjo dos lugares à mesa de jantar.
Talvez não, refletiu Lily, mas logo iria terminar, a menos que ela
tivesse perdido a malícia das coisas. Se Selden tinha vindo para atender ao
chamado de Mrs. Dorset seria com ela que ele deveria ter ficado. E foi o
que aconteceu na noite anterior. Mrs. Trenor, fiel aos seus princípios de
fazer feliz seus amigos casados, colocou Selden e Mrs. Dorset um ao lado
do outro à mesa de jantar; mas, em obediência às tradições consagradas da
corte, colocou Lily e Mr. Gryce separados, deixando ao lado da primeira
George Dorset, enquanto Mr. Gryce fez par com Gwen Van Osburgh.
A conversa de George Dorset não interferiu nos pensamentos de seus
vizinhos. Ele era um dispéptico resmungão, determinado a descobrir os
ingredientes deletérios de cada prato e só se desviava desta função quando
ouvia a voz da esposa. Nesta ocasião, no entanto, Mrs. Dorset não
participava da conversa em geral. Ela estava conversando aos sussurros
com Selden, e dando um ombro desnudo e desdenhoso para seu anfitrião,
que longe de se ressentir com a exclusão, mergulhou nos excessos do
cardápio com a irresponsabilidade de um homem livre. Para Mr. Dorset,
entretanto, a atitude da esposa foi motivo de uma preocupação tão clara
que, enquanto não estava escarafunchando no molho do peixe, ou tirando o
miolo do pão, ele ficava esticando o pescoço para tentar ver alguma coisa
entre as velas.
Como Mrs. Trenor tinha colocado marido e mulher em lados opostos
da mesa, Lily também podia ver Mrs. Dorset, e olhando um pouco mais
adiante, comparou ligeiramente Lawrence Selden com Mr. Gryce. Essa
comparação foi a sua ruína. Por que, de repente, ela tinha se interessado por
Selden? Ela o conhecia há oito anos ou mais: desde que ela voltara para
América que ele fazia parte do seu meio. Ela sempre gostara de sentar perto
dele nos jantares, o considerava mais agradável do que a maioria dos
homens, e tinha um vago desejo de que ele tivesse as outras qualidades
necessárias para prender a sua atenção. Mas até então estivera muito
ocupada com seus próprios assuntos para pensar nele como se fosse algo
mais do que os agradáveis acessórios da vida. Miss Bart conhecia seu
próprio coração e percebeu que seu súbito interesse por Selden era devido
ao fato de que a sua presença trouxera uma nova luz ao ambiente. Não que
ele fosse notavelmente brilhante ou fora do comum; no desempenho do seu
papel ele tinha sido superado por mais de um homem que tinha entediado
Lily entre os muitos jantares cansativos. Era mais porque ele tinha
conseguido preservar certo distanciamento social, um ar de felicidade de
quem assiste ao show friamente, de quem tem pontos de contato fora da
imensa jaula dourada onde todos eles estavam amontados para serem
observados pelo povo. Como o mundo fora da gaiola pareceu sedutor para
Lily, quando ouviu a porta se fechando para ela! Na verdade, ela sabia que a
porta nunca tinha se fechado: estivera sempre aberta, mas a maioria dos
cativos parece moscas dentro de uma garrafa, que uma vez lá dentro, nunca
mais conseguem se libertar. A diferença é que Selden nunca se esqueceu de
onde ficava a saída.
Esse era o segredo do modo como ele alterava a visão dela. Lily,
depois de desviar os olhos dele, percebeu que olhava para o seu mundinho
através da retina dele: era como se as luzes rosadas tivessem sido apagadas
e substituídas pela luminosidade opaca da luz do dia. Ela fitou a longa
mesa, analisando seus ocupantes a um a um, desde Gus Trenor, com a sua
pesada cabeça carnívora enterrada entre os ombros, devorando uma
tarambola gelatinosa, até a sua esposa, na ponta oposta do longo tampo
enfeitado com orquídeas, atraente, brilhando igual a uma vitrine de
joalheria iluminada. E entre os dois, um imenso vácuo! Como essas pessoas
eram deprimentes e triviais! Lily examinou cada um com um com desdém
impaciente: Carry Fisher, com seus ombros, seus olhos, seus divórcios, a
sua cara de alguém capaz de protagonizar um “parágrafo picante”; o jovem
Silverton, que pretendia viver como revisor e escrever um épico, mas que
agora vivia à custa dos amigos e acabara virando crítico de trufas; Alice
Wetherall, com uma lista animada de convidados, cuja maior ocupação era
escrever convites e cartões de marcar lugares à mesa de jantar; Wetherall,
com seu eterno tique nervoso, como se estivesse sempre concordando com
as pessoas antes mesmo de saber o que elas iam dizer; Jack Stepney, com
seu sorriso confiante e olhos ansiosos; Gwen Van Osburgh, com toda a
confiança de uma moça que sempre ouviu que não existia ninguém mais
rico do que seu pai.
Lily riu do modo como classificara seus amigos. Como eles pareciam
tão diferentes poucas horas atrás! Antes eles simbolizavam o que ela estava
conquistando, agora o que ela estava abrindo mão. Na tarde daquele dia eles
apareciam repletos de qualidades magnificas; agora ela percebia que eles
eram gritantemente maçantes. Sob o brilho das oportunidades que eles
ofereciam ela enxergou a pobreza das realizações deles. Não que quisesse
que eles fossem mais desinteressados; mas ela teria apreciado se eles
fossem mais pitorescos. E ela se lembrou com um pouco de vergonha do
modo como, poucas horas antes, ela sentira atraída pelos seus padrões. Ela
fechou os olhos por um instante e vislumbrou a rotina vazia da vida que
tinha escolhido como se fosse uma longa estrada branca sem descidas ou
curvas: era bem verdade que iria percorrer esta estrada de carruagem e não
a pé, mas às vezes os pedestres se divertem com o desvio de um atalho, o
que é negado àqueles que estão sobre as rodas.
Ela foi despertada com uma risada que Mr. Dorset pareceu emitir das
profundezas do seu pescoço fino.
– Olhe para ela! – exclamou ele, voltando-se para Miss Bart com uma
alegria lúgubre. – Desculpe-me, mas olhe para minha esposa fazendo
aquele pobre diabo de bobo! Alguém poderia pensar que ela está
apaixonada por ele, mas eu lhe asseguro que é o contrário.
De acordo com a solicitação, Lily voltou os olhos para o espetáculo
que tanto divertia Mr. Dorset. Certamente parecia, conforme tinha dito ele,
que Mrs. Dorset era a participante mais ativa da cena: seu vizinho parecia
receber os avanços dela com interesse tão morno que nem chegava a distraí-
lo do jantar. A cena trouxe de volta o bom humor de Lily, e, ciente dos
temores matrimoniais que Mr. Dorset tentava disfarçar de maneira tão
peculiar, ela perguntou animada:
– Você não morre de ciúme dela?
Dorset adorou a deixa.
– Oh, morro! Você acertou em cheio. Não consigo nem dormir à noite.
Os médicos disseram que foi isto que acabou com a minha digestão. O
ciúme que tenho dela. Não posso comer nada disso, sabe – adicionou,
subitamente, empurrando o prato com um semblante acabrunhado; e Lily,
sempre adaptável, voltou suas atenções para suas reclamações infindáveis
sobre os cozinheiros de outras pessoas e ainda ofereceu mais um gancho
sobre a toxidade da manteiga derretida.
Não era sempre que ele encontrava alguém tão disposto a ouvir; e,
sendo um homem e, além disso, dispéptico, muito possivelmente derramou
suas queixas ciente dos próprios exageros. De qualquer maneira ele prendeu
Lily por tanto tempo que os doces estavam sendo servidos quando ela
escutou uma frase ao seu lado, na qual Miss Corby, a engraçadinha do
grupo, provocava Jack Stepney por conta do noivado eminente. O papel de
Miss Corby era fazer graça: ela sempre entrava na conversa com um
gracejo.
– É claro que Sim Rosedale será o padrinho! – Lily ouviu ela se
lançando o prognóstico; e Stepney respondeu, como se tivesse ficado
surpreso:
– É uma ideia! Imagine o presentão que eu não iria ganhar dele!
Sim Rosedale! O nome, que ficou ainda mais detestável no
diminutivo, invadiu os pensamentos de Lily igual um olhar malicioso. Ele
representava uma das muitas possibilidades odiosas que rodavam nas
esquinas da vida. Se não se cassasse com Percy Gryce, logo chegaria o dia
em que ela teria de ser cordial com homens como Rosedale. Isso se
acabasse não se casando com ele. Mas ela não se casaria com ele – estava
segura por ela e por ele. Ela recuou com um arrepio dos caminhos sedutores
para onde seus pensamentos a estavam levando e pisou firme mais uma vez
na longa estrada branca… Quando subiu naquela noite, ela descobriu que o
carteiro da tarde havia trazido um envelope com dinheiro. Mrs. Peniston,
que era uma mulher consciente, mandara dinheiro para Bellomont.
Assim, Miss Bart acordou na manhã seguinte convicta de que era seu
dever ir à igreja. Obrigou-se a deixar a delícia de apreciar com calma sua
badeja de café da manhã, tocou a sineta para que a criada pegasse seu
vestido cinza e depois pediu que esta fosse pegar emprestado um livro de
orações de Mrs. Trenor.
Mas sua linha de raciocínio era muito racional para não conter os
germes da rebeldia. Antes mesmo de finalizar seus preparativos já tinha
surgido uma sensação de resistência. Uma pequena fagulha foi suficiente
para despertar a imaginação de Lily e a visão do vestido cinza, do livro de
orações emprestado lançou uma luz sobre os anos que estavam por vir. Ela
iria à igreja com Percy Gryce todos os domingos. Eles teriam um banco na
frente, na igreja mais chique de Nova York, e o nome dele iria figurar em
destaque na lista de doadores da paróquia. Dentro de poucos anos, quando
já estivesse mais encorpado, ele acabaria sendo nomeado ministro da
eucaristia. No inverno, o pároco viria jantar e seu marido iria lhe pedir para
verificar se não haviam divorciados na lista, exceto àqueles que mostraram
algum sinal de arrependimento casando outra vez com alguém muito rico.
Não havia nada tão difícil assim no quesito das obrigações religiosas; mas
representava uma fração do fardo que ela seria obrigada a carregar. E quem
iria querer se chatear numa manhã como aquela? Lily tinha dormido bem e
o banho tinha lhe dado um brilho suave que refletia na curva da sua
bochecha. Não havia nenhuma ruga visível naquela manhã, ou talvez fosse
o espelho que estivesse num ângulo melhor.
E o dia era cúmplice do seu humor: era um dia para impulsos e os
desatinos. O ar fresco parecia carregado de ouro em pó; além dos campos
floridos cobertos de orvalho, os bosques brilhavam reluzentes e as colinas
do outro lado do rio refletiam sobre o azul claro. Cada gota de sangue que
corria nas veias de Lily convidava ao divertimento.
O barulho de rodas a despertou das divagações e por trás da cortina
ela viu a carruagem partindo. Era tarde demais, mas a constatação não a
perturbou. Um rápido vislumbre do rosto cabisbaixo de Mr. Gryce sugeriu
que ela fizera bem em não ir, uma vez que o desapontamento que ele
mostrava de forma tão evidente certamente iria aumentar o apetite dele para
a caminhada depois do almoço. O passeio ela não pretendia perder; bastou
dar uma olhada para as notas sobre a escrivaninha para lembrar-se da
necessidade. Mas por enquanto a manhã era só sua, e assim ela poderia
desfrutar das horas que tinha pela frente. Ela conhecia os hábitos em
Bellomont o suficiente para saber que o campo estaria livre para ela até a
hora do almoço. Tinha visto os Wetherall, as meninas Trenor e lady
Cressilda entrando na carruagem; Judy Trenor certamente estava lavando os
cabelos; Carry Fisher sem dúvida tinha saído para dar um passeio com o
anfitrião; Ned Silverton provavelmente estava fumando no quarto; e Kate
Corby jogando tênis com Jack Stepney e Miss Van Osburgh. Contando
todas as mulheres, só faltava Mrs. Dorset, e Mrs. Dorset nunca descia antes
do almoço: seus médicos, ela costumava dizer, a proibiram de se expor ao
ar agressivo da manhã.
Quanto aos outros integrantes do grupo Lily nem se preocupou; onde
quer que estivessem, era bem pouco provável que tentassem interferir nos
seus planos. Estes, naquele momento, se materializaram na forma de um
vestido mais simples e mais propício ao verão do que o que ela tinha
separado antes, e no farfalhar escada abaixo, a sombrinha em mão, e no
jeito despreocupado de uma dama em busca de um pouco de exercício. Não
havia ninguém no salão principal, exceto pelos cães que descansavam perto
da lareira, e que, ao verem os trajes de passeio de Miss Bart, logo se
aproximaram oferecendo companhia. Ela empurrou as patinhas que se
ofereciam, e, assegurando aos seus voluntários animados que logo faria uso
da companhia deles, passou pela sala de estar vazia em direção à biblioteca
que ficava no outro extremo da casa. A biblioteca era praticamente a única
parte que restava da antiga mansão Bellomont: um cômodo comprido e
espaçoso, revelando as tradições da metrópole com suas portas em estilo
clássico, os azulejos holandeses da chaminé, e a ferragem elaborada e
polida da lareira. Alguns retratos de família de cavalheiros de queixo
proeminente e peruca branca, e damas com penteados imensos e corpo
pequeno, pendurados entre as estantes repletas de livros antigos; livros em
sua maioria que pertenceram aos antigos proprietários e aos quais os Trenos
não pareciam ter feito nenhuma adição que se pudesse notar. A biblioteca
de Bellomont na verdade nunca era usada para leitura, embora fosse muito
procurada pelos fumantes ou como um lugar sossegado para flertar. Ocorreu
a Lily, no entanto, que desta vez o local poderia ter sido procurado pelo
único membro do grupo com a maior probabilidade de fazer uso dela de
acordo com seu propósito original. Ela avançou sem fazer barulho sobre o
antigo tapete cheio de poltronas confortáveis espalhadas sobre ele, e antes
de chegar ao meio da sala ela viu que não tinha se enganado. Lawrence
Selden estava sentado no canto extremo; mas apesar de ter um livro sobre
os joelhos, sua atenção não estava voltada para este, mas sim diretamente
para uma dama cuja figura em renda, recostada em uma poltrona ao lado, se
destacava pela magreza exagerada contra o encosto de couro escuro.
Lily parou ao ver o casal; por um momento pareceu estar prestes a se
retirar, mas pensando melhor, anunciou a sua aproximação com um suave
farfalhar da saia que fez a dupla levantar a cabeça. Mrs. Dorset com uma
cara de descontentamento explícito e Selden com seu sorrisinho de sempre.
A visão da frieza dele teve um efeito perturbador em Lily; mas para ficar
perturbada, no caso dela, era preciso muito mais que aquilo para abalar a
sua autoconfiança.
– Minha nossa, estou atrasada? – ela perguntou, pousando a mão
sobre a dele, que avançava para cumprimentá-la.
– Atrasada para o quê? – inqueriu Mrs. Dorset sarcasticamente. – Não
para o almoço, certamente. Só se você tivesse um compromisso mais cedo?
– Sim, eu tinha – respondeu Lily, em tom de confidência.
– É mesmo? Talvez eu esteja atrapalhando, então? Mas Mr. Selden é
todo seu – Mrs. Dorset estava branca de raiva e sua antagonista sentiu certo
prazer em prolongar a sua aflição.
– Oh, não, pode ficar – disse bem-humorada. – Não quero mandá-la
embora.
– É muita gentileza sua, minha querida, mas nunca interfiro nos
assuntos de Mr. Selden.
O comentário foi feito com um arzinho de posse que não passou
despercebido pelo objeto desta, que disfarçou o suave rubor de
aborrecimento abaixando-se para pegar o livro que tinha deixado cair com a
chegada de Lily. Que, por sua vez, arregalou os olhos de modo encantador e
soltou uma risadinha.
– Não tenho nenhum compromisso com Mr. Selden! Meu
compromisso era ir à igreja; mas desconfio que a carruagem partiu sem
mim. Você sabe se ela já foi?
Ela voltou-se para Selden, que respondeu que tinha escutado um
barulho na frente da casa há algum tempo.
– Ah, então terei de ir andando. Prometi para Hilda e Muriel que iria à
igreja com elas. Será que já é muito tarde para ir andando? Bom, pelo
menos terei o crédito por ter tentado e a vantagem de perder metade da
missa. Não estou com tanta pena assim de mim!
E com um aceno ao casal ao qual ela tinha atrapalhado, Miss Bart saiu
andando pelas portas de vidro e levando junto sua graça farfalhante pelo
jardim afora.
Ela estava indo para a igreja, mas não a passos rápidos; um fato que
não passou despercebido por um dos seus observadores, que ficou parado à
porta olhando para ela intrigado. A verdade era que ela estava desapontada
pela surpresa. Todos seus planos para o dia tinham sido traçados com base
na hipótese de que Selden tinha vindo para Bellomont para vê-la. Ela
esperava, quando desceu, encontrá-lo à sua espera, mas em vez disso, o
encontrou em uma situação que dava a entender que ele estivera à espera de
outra dama. Será que ele tinha vindo por causa de Bertha Dorset? A última
tinha agido de acordo com a suposição e aparecido num horário ao qual ela
nunca costumava se mostrar aos mortais, e Lily, por conta disso, não via
como estar errada. Não lhe ocorreu que Selden talvez tivesse simplesmente
sentido vontade passar um domingo fora da cidade: as mulheres nunca
aprendem julgar os homens sem se deixar levar pelo sentimento. Mas Lily
não era de se deixar abalar facilmente, a competição lhe dava ânimo, e ela
concluiu que a vinda de Selden, se não provava que ele ainda estava
envolvido com Mrs. Dorset, mostrava que ele estava completamente livre a
ponto de não temer a proximidade dela.
Esses pensamentos a envolveram de um modo tal que ela seguiu
andando tão devagar que era bem pouco provável que conseguisse chegar à
igreja antes do sermão, tanto que depois de ter percorrido o jardim e parte
da trilha do bosque, já totalmente esquecida da sua intenção, ela se sentou
em um banco rústico no caminho. O lugar era encantador e Lily não ficou
insensível ao encanto, ou ao fato de que a sua presença dava ainda mais
charme; mas ela não estava acostumada a desfrutar das alegrias da solidão
desacompanhada e a combinação de uma moça bonita em uma cena
romântica lhe pareceu muito boa para ser desperdiçada. Entretanto,
ninguém apareceu para aproveitar a oportunidade; e depois de esperar meia
hora inutilmente ela se levantou e continuou andando. Teve uma sensação
furtiva de fadiga enquanto andava; a chama tinha se apagado dentro dela e o
gosto da vida tinha um sabor amargo em seus lábios. Ela não sabia direito o
que estivera buscando, ou por que o fracasso de encontrar tinha apagado a
luz do seu céu: ela só sabia que sentia uma vaga sensação de fracasso, de
um isolamento interior mais profundo do que a solidão ao seu redor.
Seu passo falhou e ela ficou olhando para frente indiferente,
cutucando os brotos das samambaias com a ponta da sombrinha. Enquanto
fazia isso um barulho de passos ecoou as suas costas, e em seguida Selden
estava ao seu lado.
– Como você anda rápido! – apontou ele. – Achei que nunca iria
conseguir alcançá-la.
Ao que ela respondeu brincalhona:
– Você deve estar sem fôlego! Fiquei sentada embaixo daquela árvore
há quase uma hora.
– Esperando por mi, espero? – ele se aproximou e ela disse com uma
risadinha:
– Bem, esperando para ver se você viria.
– Entendei a diferença, mas não tem importância, uma vez que uma
coisa envolve a outra. Mas você não tinha certeza de que eu viria?
– Se eu pudesse esperar o suficiente, mas acontece que meu tempo é
limitado para o teste.
– Limitado, por quê? Por causa do horário do almoço?
– Não, por causa de outro compromisso.
– Seu compromisso de ir à igreja com Muriel e Hilda?
– Não, mas de voltar da igreja para casa com outra pessoa.
– Ah, entendi. Eu deveria ter imaginado que estaria cheia de opções.
E esta outra pessoa vai passar por aqui?
Lily riu novamente.
– Isso eu não sei. Mas para descobrir, tenho que ir até a igreja antes
que a missa termine.
– Exatamente. Então estou aqui para tentar impedi-la de fazer isso, e,
neste caso a outra pessoa, irritada com a sua ausência, acabará por tomar a
decisão desesperada de voltar de carruagem.
Lily recebeu isso com novo apreço. As bobagens dele se
assemelhavam ao burburinho fervilhante do que ela sentia por dentro.
– É isto que você faria diante de tal emergência?
Selden olhou solenemente para ela.
– Estou aqui para provar – disse ele – o que sou capaz de fazer em
uma emergência!
– Andando um quilometro e meio em uma hora. Você deve saber que
de carruagem teria sido bem mais rápida!
– Ah, mas será que ele vai conseguir encontrá-la? Este é o único teste
de sucesso.
Eles se entreolharam, divertindo-se do mesmo modo que se divertiram
falando bobagem à mesa de chá dele, mas subitamente o rosto de Lily
mudou, e ela disse:
– Bem, se for assim, ele conseguiu.
Selden, seguindo o olhar dela, notou um grupo que se aproximava.
Pelo jeito lady Cressida tinha insistindo em voltarem andando e os outros se
viram na obrigação de acompanhá-la. O companheiro de Lily deu uma
passada de olhos nos dois homens do grupo; Wetherall caminhava
respeitosamente ao lado de lady Cressilda olhando de soslaio de um jeito
nervoso e Percy Gryce vinha um pouco mais atrás com Mrs. Wetheral e as
meninas Trenor.
– Ah, agora percebi por que você estava tão interessada em raridades
americanas! – exclamou Selden num leve tom de admiração, mas o rubor
com que o lance foi recebido confirmou quaisquer insinuações que ele
pudesse ter feito.
Que Lily não quisesse falar sobre seus pretendentes, ou até mesmo
sobre seus meios de atraí-los, foi tão inusitado para Selden que ele chegou a
ficar surpreso por um momento, o que despertou várias possibilidades; mas
ela contra-atacou elegantemente, dizendo, enquanto o objeto da conversa se
aproximava:
– É exatamente por isso que eu estava esperando por você… para lhe
agradecer por ter me dado tantas dicas!
– Ah, você não pode ter aprendido muita coisa sobre o tema em tão
pouco tempo – disse Selden, quando as meninas Trenor avistaram Miss
Bart; e enquanto ela acenava de volta para a saudação barulhenta, ele tratou
de adicionar: – Por que não dedica à tarde a isto? Você sabe muito bem que
terei de ir embora amanhã de manhã. Vamos fazer uma caminhada e você
poderá me agradecer durante o passeio.
Capítulo 6
A tarde estava perfeita. Um silêncio profundo tomava conta do ar, e o
brilho do outono americano era atenuado por uma névoa que difundia a luz
sem torná-la opaca.
No bosque já corria um ventinho mais fresco e subindo os longos
declives além da estrada principal, Lily e seu companheiro chegaram a uma
zona onde o clima de verão ainda imperava. O trajeto se estendeu por uma
campina com árvores esparsas; depois afunilou numa trilha repleta de flores
selvagens e moitas de amoras-silvestres, de onde, além das folhas
tremulantes dos freios, o campo se estendia em amplas pastagens.
Mais ao alto, a trilha era ladeada por moitas espessas de samambaias e
a relva verde brilhante das encostas encobertas pelas sombras: árvores
começaram a surgir e a sombra se tornou tão intensa que parecia crepúsculo
no bosque de faias. Os troncos das árvores ficavam distantes uns dos outros,
a luz mal tocava o solo; o caminho que ladeava o bosque, vez ou outra dava
para uma pastagem ensolarada ou para um pomar carregado de frutas.
Lily não tinha muita intimidade com a natureza, mas nutria uma
paixão pelo oportuno e era capaz de se sensibilizar com um cenário que
combinasse com as suas próprias sensações. A paisagem que se estendia
aos seus pés parecia uma extensão do seu humor, e ela encontrou algo de si
mesma na tranquilidade, na amplitude, na imensidão. Nas encostas mais
próximas os bordos balançavam como se fossem piras acessas; mais
embaixo havia uma concentração de pomares acinzentados, e aqui e acolá o
verde intenso dos bosques de carvalhos. Duas ou três dúzias de casinhas
jaziam à sombra de macieiras e a torre de madeira branca de uma igreja de
vila despontava além da colina; enquanto mais ao longe, sob a nuvem de
poeira, a estrada principal corria entre os campos.
– Vamos sentar aqui – sugeriu Selden, quando eles chegaram a uma
elevação rochosa acima das faias que se erguiam pontiagudas entre os
rochedos coberto de musgos.
Lily largou-se sobre a pedra, corada por conta da longa subida. E ali
permaneceu calada, os lábios entreabertos para recuperar o fôlego, os olhos
passeando sobre os intervalos irregulares na vasta paisagem. Selden se
esticou na grama aos pés dela, puxando o chapéu sobre o rosto para se
proteger do sol, e cruzando as mãos atrás da cabeça, que recostou na lateral
da pedra. Ele não queria fazê-la falar; sua respiração acelerada parecia fazer
parte do silêncio ao redor e da harmonia das coisas. Na sua mente havia
apenas uma sensação preguiçosa de prazer, encobrindo as sensações mais
fortes assim como a névoa de setembro que encobria a cena aos seus pés.
Mas Lily, apesar de parecer tão serena quanto ele, fervilhava por dentro
com um fluxo acelerado de pensamentos. Naquele momento, havia dois
seres dentro dela, inalando e soltando o ar da liberdade, o outro sufocando
em uma pequena prisão de medos. Mas gradualmente os suspiros do cativo
foram se tornando mais esparsos, ou talvez o outro tivesse deixado de
prestar atenção: o horizonte se expandiu, o ar ficou menos rarefeito e o
espírito de liberdade ansiava por alçar voo.
Ela não conseguiria explicar a sensação de leveza que parecia mantê-
la suspensa acima da imensidão ensolarada aos seus pés. Seria amor, ela
imaginou, ou uma mera combinação de pensamentos alegres e sensações?
Quanto disso tudo não era devido ao encanto da tarde perfeita, o perfume
suave das árvores, o tédio do qual ela fugira? Lily não tinha um parâmetro
para qualificar seus sentimentos. Ela se apaixonara várias vezes por
fortunas ou carreiras, mas uma vez apenas por um homem. Isso tinha
acontecido anos atrás, no seu baile de debutante, e tinha sido movida por
uma paixão romântica por um jovem cavalheiro chamado Herbert Melson,
que tinha olhos azuis e uma ondinha no cabelo. Mr. Melson, que não
contava com outros atributos, tratou de fazer uso dos que tinha para
capturar a filha mais velha dos Van Osburgh: depois disso ele se
transformou em um homem gordo e arfante e dado a fazer piadas sobre seus
filhos. Se Lily se lembrou dessas primeiras emoções não foi para compará-
las com o que estava sentindo neste momento, pois o único ponto de
comparação era a sensação de leveza, de emancipação que ela lembrava que
sentira, no giro de uma valsa ou a reclusão de um jardim de inverno,
durante seu breve romance de juventude. Até então ela nunca mais sentira
aquela leveza, aquela sensação de liberdade, mas agora era algo mais do
que uma busca cega de sangue.
O charme peculiar do seu sentimento por Selden era que ela entendia
isso, era capaz de tocar cada elo da corrente que os unia. Apesar de ter fama
entre os amigos de ser do tipo mais calado, mais sensível do que ativo, ela
nunca confundiu a discrição dele por obscuridade. Sua fama costumava ser
vista como um leve obstáculo para a interação, mas Lily, que se orgulhava
da sua cultura literária e sempre carregava um exemplar de Omar Khayam
na sua bagagem de mão, se sentiu atraída por esta qualidade, que para ela
tinha o louvor de uma sociedade mais antiga. Esta era, demais a mais, uma
das qualidades que faziam parte do seu estilo; além da alta estatura que o
deixava uma cabeça acima da maioria, e os traços misteriosos que, em uma
terra de tipos amorfos, lhe davam um ar de pertencer a uma raça mais
apurada, de carregar a impressão de um passado mais centrado. Pessoas
expansivas o consideravam um pouco seco, e as mocinhas o consideravam
muito sarcástico; mas este ar de distanciamento amistoso, o mais distante
possível de quaisquer interesses de tirar vantagens pessoais, foi a qualidade
que chamou a atenção de Lily. Tudo nele combinava com o que ela
considerava mais atrativo, até mesmo a leve ironia com que ele olhava para
o que parecia ser mais sagrado para ela. E, talvez, ela o admirasse
exatamente por ser capaz de mostrar um sentimento de superioridade tão
distinto quanto o do homem mais rico que ela já conhecera.
Foi o prolongamento inconsciente dessa reflexão que a levou a dizer o
seguinte, com uma risada:
– Faltei a dois compromissos hoje. Quantos você deixou de
comparecer por mim?
– Nenhum – respondeu Selden calmamente. – Meu único
compromisso em Bellomont era com você.
Ela baixou os olhos para ele, com um leve sorriso.
– Você realmente veio a Bellomont para me ver?
– Claro que sim.
Seu semblante se tornou meditativo.
– Por quê? – indagou num murmúrio, num tom que baniu todo
coquetismo da pergunta.
– Porque você é um espetáculo maravilhoso: adoro ver o que você
está fazendo.
– Como você sabe o que eu estaria fazendo se não estivesse aqui?
Selden sorriu.
– Não me gabo imaginando que a minha presença a desviou do seu
plano de ação.
– Isso é um absurdo, pois se não tivesse vindo, obviamente eu não
estaria aqui conversando com você.
– Não, mas o fato de ter optado por caminhar comigo é apenas outro
modo de manipular. Você é uma artista e por acaso sou a cor que você
resolveu usar hoje. Faz parte da sua inteligência saber produzir efeitos
premeditadamente espontâneos.
Lily também sorriu: as palavras tinham sido muito apuradas para não
atingir seu senso de humor. Era mesmo verdade que ela pretendia usar o
incidente da presença dele como parte de um efeito premeditado; ou que,
pelo menos, este foi o pretexto secreto que ela encontrou para quebrar a
própria promessa de passear com Mr. Gryce. Ela já tinha sido acusada de
ser muito avançada – até mesmo Judy Trenor a aconselhara a ir mais
devagar. Bem, ela não poderia ir muito rápido desta vez; iria dar ao seu
pretendente o gostinho do suspense. Quando o dever e a tendência
disputavam, não era da natureza de Lily contê-los. Ela tinha desistido do
passeio com a desculpa de que estava com dor de cabeça: uma terrível dor
de cabeça que, na parte da manhã, a impedira de ir à igreja. Sua aparição no
almoço foi para dar a desculpa. Ela parecia languida, tomada por um leve
sofrimento, e trazia uma garrafinha de água aromatizada. Mr. Gryce ficou
surpreso com tal manifestação e conjecturou um tanto nervoso se ela não
seria muito frágil, temendo o futuro da sua progenitura. Mas a simpatia
ganhou o dia e ele achou por bem ela não se expor, pois sempre ligava o ar
livre a ideias de exposição.
Lily recebeu a demonstração de solidariedade com gratidão,
incentivando-o, uma vez que ela não seria uma boa companhia, a se juntar
aos outros que, depois do almoço, iam sair de carro para visitarem os Van
Osburgh em Peekskill. Mr. Gryce ficou comovido com o desprendimento, e,
para escapar da ameaça de vazio durante a tarde, aceitou o conselho e partiu
acabrunhado, com um capacete de couro e óculos de piloto para se proteger
da poeira da estrada. Enquanto o carro descia a alameda ela sorriu, achando
que ele estava parecendo um besouro desajeitado. Selden observou as
manobras dela achando muito divertido. Ela não respondeu nada quando ele
sugeriu que passassem a tarde juntos, mas enquanto o plano dela se
desenrolava ele sentiu que estava incluído. A casa estava vazia quando
finalmente ele ouviu os passos dela na escada e saiu apressado da sala de
jogos para se juntar a ela.
Ela estava de chapéu e vestido de passeio e os cães estavam ao seu
redor.
– Acho que o ar pode me fazer bem – explicou ela; e ele concordou,
dizendo que valia a pena tentar um remédio tão simples.
Os outros ficariam fora por quatro horas, no mínimo; Lily e Selden
tinham a tarde toda pela frente e a perspectiva de divertimento e segurança
deu o último toque de leveza ao espírito dela. Com tanto tempo para
conversar e nenhum objetivo definido a ser alcançado, ela poderia
experimentar o raro prazer da vadiagem mental.
Ela se sentia tão livre de segundas intenções que se ressentiu com a
insinuação dele.
– Não sei – disse – porque sempre me acusa de estar premeditando
algo.
– Achei que tivesse me confessado isso: naquele dia me contou que
tinha de seguir uma certa linha, e que se alguém se propõe a fazer algo é um
mérito fazer direito.
– Se quis dizer que uma moça que não tem ninguém por ela é
obrigada a se garantir sozinha, então posso até aceitar a acusação. Mas acho
que me considera uma pessoa sem graça se pensa que nunca me deixo levar
por um impulso.
– Ah, mas não penso isso: não lhe falei que a sua inteligência está
justamente na habilidade de converter impulsos em intenções?
– A minha inteligência? – ela ecoou com um cansaço repentino. –
Existe algum teste mais definitivo para a inteligência do que o sucesso?
Certamente não obtive sucesso.
Selden empurrou o chapéu para trás e olhou de soslaio para ela.
– Sucesso, o que é o sucesso? Estou interessado na sua definição.
– Sucesso? – ela hesitou. – Suponho que seja conseguir o máximo que
se pode conseguir na vida. Mas isto é relativo. Não é isso que você pensa?
– O que penso disso? Deus me livre! – ele sentou com uma súbita
energia, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, com os olhos perdidos nos
campos amarelados. – Minha ideia de sucesso – disse ele – é ter liberdade
pessoal.
– Liberdade? Ser livre de preocupações?
– De tudo: de dinheiro, da pobreza, das facilidades e ansiedade, de
todas as preocupações materiais. Para manter um tipo de república do
espírito; é isto que considero sucesso.
Ela se inclinou para frente num lampejo.
– Eu sei… eu sei… é estranho, mas é exatamente isso que estou
sentindo hoje.
Ele olhou nos olhos dela com aquela sua doçura latente.
– Esta sensação é tão rara em você?
Ela ruborizou um pouco sob o olhar fixo.
– Acho que me considera uma pessoa terrivelmente sórdida, não é
mesmo? Mas talvez tenha sido porque nunca tive escolha. Nunca tive
ninguém para me falar sobre essa república do espírito.
– Nunca há, isto é algo que se tem de encontrar o caminho sozinho.
– Mas eu nunca teria encontrado o caminho se você não tivesse me
contado.
– Ah, existem algumas placas de indicação, mas é preciso saber ler.
– Bom, eu aprendi, eu aprendi! – ela exclamou ansiosa. – Sempre que
o vejo, acabo descobrindo uma letra da placa, e durante o jantar de ontem,
de repente enxerguei o caminho para a sua república.
Selden ainda olhava para ela, mas com uma mudança no olhar. Até
então, ele tinha encontrado na sua presença, e na sua conversa, apenas a
diversão estética que um homem reflexivo pode esperar dos
relacionamentos passageiros com mulheres bonitas. Sua postura era a de um
espectador, e ele lamentaria caso detectasse nela uma fraqueza emocional
que pudesse interferir no alcance dos seus objetivos. Mas agora este
pequeno sinal de fraqueza tinha se tornado a coisa mais interessante nela.
Ele a encontrara naquela manhã num momento confuso; seu semblante
estava pálido e transtornado e a redução da sua beleza acabou por conferir a
ela um charme pungente. Era assim que ela parecia quando estava sozinha!
Foi a primeira coisa que lhe ocorreu; e a segunda foi notar nela a mudança
que sua chegada causou. Foi neste perigoso momento do encontro deles que
ele não teve como duvidar da espontaneidade do que ela sentia. De qualquer
ângulo que olhasse para a atração que crescia entre eles, ele não conseguia
ver isto como parte do plano de vida dela; e ser visto como um elemento
inesperado em uma carreira meticulosamente planejada era algo estimulante
até mesmo para um homem que tinha renunciado as experiências
sentimentais.
– Bem – disse ele – isto não lhe dá vontade de me querer conhecer
mais? Você vai se tornar um de nós?
Enquanto falava, ele tinha pegado seu maço de cigarros e ela estendeu
a mão na direção do maço.
– Oh, me dê um. Há dias que não fumo!
– Por que a abstinência forçada? Todos fumam em Bellomont.
– Sim, mas não é considerado adequado para uma moça casadoira; e
no momento sou uma moça casadoira.
– Ah, então acho que não podemos lhe dar permissão para entrar na
nossa república.
– Por que não? Trata-se de uma ordem celibatária?
– De jeito nenhum, apesar de não ter muitos casados. Mas você vai se
casar com alguém muito rico, e é difícil para uma pessoa rica conseguir
entrar o reino do céu…
– Acho isso injusto, pois, de acordo com o meu entendimento, uma
das condições para a cidadania é não pensar muito em dinheiro, e o único
modo de não pensar muito em dinheiro é ter uma boa quantidade.
– Deste modo podemos dizer também que o único modo de não
pensar muito no ar é tendo o bastante para respirar. O que de certo modo é
verdadeiro; mas seus pulmões estão pensando no ar, mesmo que você não
esteja. O mesmo acontece com os ricos: eles podem até não estarem
pensando nisso, mas estão consumindo o dinheiro o tempo todo; leve-os
para outro habitat e veja como eles vão tentar dar um jeito de conseguir
arrumar algum!
Lily ficou olhando distraída através dos anéis azuis da fumaça do seu
cigarro.
– Tenho a impressão – disse ela finalmente – de que você passa um
bom tempo no habitat que tanto desaprova.
Selden aceitou a verdade sem perder a compostura.
– Sim, mas tenho tentado me manter como um anfíbio; o que tem
dado certo, contanto que os pulmões consigam funcionar de outra maneira.
A verdadeira alquimia consiste em saber transformar ouro em outra coisa
novamente; e este é o segredo que a maioria dos seus amigos perdeu.
Lily refletiu.
– Você não acha – ela retomou um momento depois – que as pessoas
que encontram defeitos na sociedade não estão muito propensas a vê-la
como um fim e não um meio, assim como as pessoas que desprezam o
dinheiro falam como se ele servisse apenas para ficar guardado em sacos e
para se gabar? Não é mais justo ver ambos como oportunidades, que podem
ser usados tanto com estupidez ou inteligência, de acordo com a capacidade
do usuário?
– Certamente trata-se de uma visão sensata, mas a pior coisa sobre a
sociedade é que as pessoas que a veem como um fim são aquelas que estão
inseridas nela, e não os críticos que estão em cima do muro. É como
acontece na maioria dos espetáculos: o público pode até se iludir, mas os
atores sabem que a vida real está além das luzes da ribalta. As pessoas que
recorrem à sociedade como meio de fugir do trabalho fazendo o uso correto
dela; mas quando isto se torna o objetivo pelo qual lutar isto distorce todas
as relações da vida.
Selden se apoiou sobre o cotovelo. – Céus! – continuou –, não
desprezo o lado decorativo da vida. Para mim a noção de esplendor
justifica-se pelo efeito que produz. O pior de tudo é que muito da natureza
humana é consumida no processo. Se fôssemos todos a matéria bruta dos
efeitos cósmicos, alguém poderia preferir ser o fogo que forja uma espada
em vez de o peixe de onde é extraído o pigmento para tingir o manto de
púrpura. E uma sociedade como a nossa desperdiça matéria-prima de
primeira na produção de um pequeno curativo para púrpura! Veja um garoto
como Ned Silverton: ele é muito bom para ser usado para renovação da
miséria social de qualquer um. Trata-se de um garoto que está começando a
descobrir o mundo. Não é uma pena que ele acabe descobrindo isso na sala
de estar de Mrs. Fisher?
– Ned é um bom garoto e espero que ele mantenha suas ilusões por
tempo o suficiente para escrever um lindo poema sobre elas, mas você acha
que é apenas na sociedade que ele poderá perdê-las?
Selden respondeu com um encolher de ombros.
– Por que não chamamos as nossas ideias generosas de ilusões, e as
más de verdades? Não acha que se trata de uma condenação suficiente da
sociedade que alguém aceite tal fraseologia? Estou a par dos jargões usados
pela geração de Silverton, e sei que os nomes podem alterar a cor das
crenças.
Ela nunca o vira falando de modo tão enfático. Seu tom costumava ser
mais eclético, do tipo que muda sutilmente e comparava; e ela estava
fascinada com essa oportunidade de poder dar espiada no laboratório onde
as crenças dele eram formadas.
– Ah, você é tão ruim quanto os outros sectários! –, exclamou ela, –,
por que você chama a sua república de república? Parece mais uma
corporação fechada e você cria objeções arbitrárias para não deixar outros
entrarem.
– A república não é minha, se fosse, eu daria um golpe de estado e a
colocaria no trono.
– Mesmo que, na verdade, você ache que eu nunca consiga cruzar a
fronteira? Ah, entendi o que quis dizer. Você despreza as minhas ambições;
as consideram indignas da minha pessoa!
Selden sorriu, mas não foi um sorriso irônico.
– E isso não é um elogio? Acho que elas são dignas para a maioria das
pessoas que vive de acordo com elas.
Ela o fitou séria.
– Mas talvez não seja possível que, se eu tivesse a oportunidade que
estas pessoas tiveram, eu poderia fazer um uso melhor delas? O dinheiro
pode ser usado para todos os tipos de coisas: seu poder de compra não se
limita a diamantes ou carros.
– De forma alguma. Você pode atenuar a sua culpa pelo prazer de
desfrutá-lo fundando um hospital.
– Mas se pensa que eu poderia realmente me divertir com isso, então
deve achar que as minhas ambições são dignas da minha pessoa.
Selden ouviu isso com uma risada.
– Ah, minha querida Miss Bart, não tenho o poder de Deus para
garantir que você será feliz com as coisas que está tentando conseguir!
– Então o melhor que pode dizer para mim é que depois de tanto lutar
para consegui-las posso acabar não apreciando? – ela respirou fundo. – Que
futuro triste você prevê para mim!
– Bem, você nunca imaginou isso? – lentamente um rubor tomou
conta do seu rosto, não foi um rubor de excitação, mas sim extraído das
profundezas de um sentimento; como se o esforço do seu espírito o tivesse
produzido.
– Às vezes – disse ela. – Mas parece muito mais sombrio quando você
mostra para mim!
Ele não comentou, e por um tempo permaneceu em silêncio, enquanto
algo pulsava entre eles naquela imensa quietude.
Mas, de repente, ela voltou-se para ele com uma pontinha de
veemência.
– Por que faz isso comigo? – soltou. – Por que faz com que as coisas
que escolhi parecerem tão odiosas para mim, se não tem nada para me
oferecer em troca?
As palavras arrancaram Selden da sua zona de conforto. Ele não sabia
ao certo por que eles tinham permitido que a conversa tomasse esse rumo;
esta era a última maneira que ele teria se imaginado aproveitando o prazer
de uma tarde a sós com Miss Bart. Mas este foi um daqueles momentos
quando nenhum dos dois pareceu falar deliberadamente, quando uma voz
interior dentro de cada um chama pelo outro das profundezas silenciosas do
sentimento.
– Não, eu não tenho nada para lhe oferecer – disse ele, sentando e
virando-se para olhar para ela. – Se tivesse, seria seu, você sabe.
Ela recebeu a súbita declaração de um modo muito mais estranho do
que tinha sido feita: ela escondeu o rosto entre as mãos e ele viu que ela
chorou por um tempo.
Foi por um tempinho curto apenas, pois quando ele se aproximou e
puxou as mãos dela com um gesto menos apaixonado do que grave, ela
voltou-se para ele com uma fisionomia suave, mas não desfigurada pela
emoção, e ele disse a si mesmo, de um modo um tanto cruel, que até mesmo
o choro dela era interpretativo.
A conclusão acalmou a sua voz quando ele perguntou, num tom
impregnado de piedade e ironia:
– Não é natural que eu despreze todas as coisas que não posso lhe
oferecer?
O rosto dela se iluminou, mas ela puxou a mão, de um jeito afetado,
mas como se renunciasse a algo que não tinha pedido.
– Mas você me despreza, não é? – retomou ela, docemente –, por ter
tanta certeza de que só me importo com aquilo tudo?
Selden sentiu um impulso por dentro, mas foi apenas o último tremor
do seu egoísmo. Em seguida, respondeu com a maior naturalidade:
– Mas você gosta disso tudo, não é mesmo? E nem o que sente por
mim pode alterar isso.
Ele já não se preocupava mais até onde aquela conversa poderia levá-
lo, e que ficou desapontado quando ela voltou-se para fitá-lo exalando
escárnio.
– Ah! – exclamou ela. – Apesar das palavras bonitas você é tão
covarde quanto eu, pois não teria dito nenhuma se não tivesse tanta certeza
de qual seria a minha resposta.
O choque da réplica teve o feito de cristalizar nas intenções oscilantes
de Selden.
– Não tenho tanto certeza da sua resposta – disse ele baixinho. – E
acredito que você também não tenha.
Foi a vez de ela olhar surpresa para ele; e após um momento:
– Você quer se casar comigo? – ela perguntou.
Ele caiu na risada.
– Não, eu não quero, mas talvez eu devesse se você quisesse!
– Foi exatamente isso que falei, você tem tanta certeza do que vou
dizer que se diverte comigo testando – ela retirou a mão que ele tinha
reconquistado, e ficou olhando tristonha para ele.
– Não estou testando nada – argumentou ele. – Se estiver, não é com
você, mas comigo mesmo. Não sei quais efeitos isto terá mim, mas se casar
com você for um deles, vou arriscar.
Ela deu um sorrisinho.
– Isso certamente seria um grande risco. Nunca escondi de você o
quão arriscado é.
– Ah, você que é a covarde! – ele exclamou.
Ela se inclinou sobre ele por um momento, como se para relaxar as
asas cansadas: ele teve a impressão de que o coração dela batia acelerado
mais pelo cansaço de um longo voou do que pela emoção das novas
distâncias. Então ela recuou com um sorrisinho de alerta:
– Vou ficar horrenda em roupas pobres, mas posso enfeitar meus
chapéus.
Depois disso, eles ficaram quietos por um tempo, sorrindo um para o
outro como se fossem crianças aventureiras que tinham subido a uma altura
proibida de onde tinham descoberto um novo mundo. O mundo real aos pés
deles se ocultava na penumbra, e além do vale uma lua clara se erguia no
azul intenso.
De repente, eles escutaram um barulho ao longe, como se fosse o
zumbido de um inseto gigante, e seguindo a estrada que serpenteava
destacada sob a luz do crepúsculo, um objeto preto atravessou o campo de
visão deles.
Lily despertou do seu torpor; seu sorriso se desfez e ela começou se
mover na direção da trilha.
– Não percebi que era tão tarde! Não podemos voltar depois que
estiver escurecido – disse ela, quase impaciente.
Selden olhava para ela surpreso: levou um tempo para voltar a vê-la
como antes; então ele disse, com um tom incontrolavelmente seco:
– Aquele não é um dos carros dos seus amigos, estava indo para outra
direção.
– Eu sei, eu sei… – ela parou e ele notou seu rubor sob o lusco-fusco.
– Mas falei para eles que eu não estava passando bem; que era melhor não
sair. Vamos descer!
Selden continuou olhando para ela; então tirou o maço de cigarros do
bolso e ascendeu com toda calma um cigarro. Pareceu-lhe necessário,
naquele momento, proclamar, através de um gesto rotineiro como este, que
ele tinha voltado ao normal: ele tinha um desejo quase infantil de mostrar a
sua companheira que, depois do voo que tinham feito, ele tinha pousado de
pé.
Ela esperou enquanto a faísca cintilava embaixo a palma curvada da
mão dele; então ele estendeu a cigarreira para ela.
Ela pegou com cigarro uma mão trêmula, e, colocando entre os lábios,
se inclinou para frente para ascender. Na penumbra de fim de tarde o brilho
avermelhado da chama iluminou a parte inferior do rosto dela, e ele viu sua
boca tremendo num sorriso.
– Você estava falando sério? – perguntou ela com uma empolgação
esquisita que, na pressa, e sem tempo para escolher uma melhor, ela deve
ter pegado de um estoque de inflexões. A voz de Selden soou mais
controlada.
– Por que não? – ele devolveu. – Como pode perceber não corri
nenhum risco com isso.
E enquanto ela permanecia parada diante dele, um pouco pálida por
conta da réplica, ele tratou de adicionar: – Vamos descer.
Capítulo 7
O tom de voz de Mrs. Trenor, ao advertir Miss Bart, mostrava o
profundo sentimento de amizade que ela nutria pela outra, e era tão
desesperado como se ela estivesse lamentando o fracasso de uma de suas
festas.
– Só posso dizer, Lily, que não consigo entendê-la! – ela recostou-se,
suspirando, no abandono matinal de rendas e musselina, dando às costas
com indiferença para pilha importuna sobre sua escrivaninha, enquanto
observava, com olhos de um médico que tinha desistido do caso, a postura
ereta do paciente que o confrontava.
– Se não tivesse me dito que estava levando-o a sério, mas tenho
certeza de que esse era o seu intuito! Por que mais teria me pedido para
deixá-la fora do bridge e manter Carry e Kate Corby afastadas? Não
imagino que tenha feito isso por que ele é divertido. Nenhum de nós achou
que você fosse capaz de aguentá-lo nem por um segundo, a menos que não
tivesse intenção de se casar com ele. E tenho certeza de que todos
colaboraram! Todos quiseram ajudar. Até mesmo Bertha não se intrometeu,
isto é, até Lawrence aparecer e você roubá-lo dela. Depois disso ela tinha o
direito de se vingar. Por que você foi se meter com ela? Você conhece
Lawrence Selden há anos. Por que se comportou como se tivesse acabado
de conhecê-lo? Se tinha alguma coisa contra Bertha este foi o pior momento
para demonstrar isso. Você poderia ter se vingado dela depois que já
estivesse casada! Eu avisei que Bertha era perigosa. Ela estava de péssimo
humor quando chegou, mas a aparição de Lawrence a deixou de bom humor
e se você a tivesse deixado pensar que ele tinha vindo só por causa dela, ela
jamais teria feito o que fez. Oh, Lily, você nunca vai conseguir nada se não
levar as coisas a sério!
Miss Bart aceitou a admoestação com um espírito de pura
imparcialidade. Por que deveria ficar brava? Era a voz da sua própria
consciência que falava através do tom enfático de censura de Mrs. Trenor.
Mas mesmo para sua própria consciência ela assumiu uma postura
defensiva.
– Só tirei o dia de folga. Achei que ele fosse passar a semana toda e
eu sabia que Mr. Selden partiria hoje cedo.
Mrs. Trenor desconsiderou a desculpa com um gesto que apontava a
fraqueza do argumento.
– Ele tinha intenção de ficar; isso é o pior de tudo. Mostra que ele saiu
correndo de você. Que Bertha fez o seu trabalho e o envenenou direitinho.
Lily soltou uma risadinha.
– Oh, se ele está correndo vou atrás dele!
Sua amiga fez um gesto como se suas mãos estivessem atadas.
– O que quer que faça, Lily, não vai adiantar nada!
Miss Bart recebeu o aviso com um sorriso.
– Não quis dizer, literalmente, que vou pegar o próximo trem. Existem
meios… Mas esses não foram especificados.
Mrs. Trenor corrigiu a frase de um modo ríspido:
– Havia meios; vários! Não acho que eu precise apontá-los. Mas não
se engane, ele está muito assustado. Foi direito para a casa da mamãe. E ela
vai protegê-lo!
– Oh, até a morte – Lily concordou, arrepiando só de imaginar a cena.
– Como você pode rir… – a amiga lhe passou uma descompostura e
ela recuou para uma análise mais sóbria dos fatos em questão:
– O que Bertha falou para ele?
– Nem me pergunte. Coisas horríveis! Pelo jeito ela inventou tudo.
Oh, você sabe o que quero dizer. Claro que não foi nada muito, sério; mas
acho que ela citou o príncipe Varigliano, e lorde Hubert, e parece que havia
outra história sobre você ter pegado dinheiro emprestado do velho Ned Van
Alstyne. Você pegou mesmo?
– Ele é primo do meu pai – Miss Bart interpôs.
– Bem, claro que ela não contou este detalhe. Perece que Ned contou
para Carry Fisher; que contou para Bertha, naturalmente. Elas são
iguaizinhas, sabe: guardam um segredo por anos e você pensa que está
seguro, mas quando surge uma oportunidade elas se lembram de tudo.
Lily empalideceu: sua voz ganhou um tom áspero.
– Foi por causa de um dinheiro que perdi no bridge na casa dos Van
Osbrugh. Claro que paguei o empréstimo.
– Ah, bem, eles não se lembrariam disso; além do mais, foi a ideia do
jogo que assustou Percy. Oh, Bertha conhece o homem, sabia exatamente o
que dizer para ele!
Mrs. Trenor ainda seguiu advertindo a amiga por quase uma hora.
Miss Bart ouviu admiravelmente contida. Seu temperamento naturalmente
bom tinha sido moldado por anos de obediência forçada, uma vez que quase
sempre era obrigada a conseguir aquilo que desejava através dos caminhos
sinuosos de outras pessoas; e, como tinha um dom natural de encarar os
acontecimentos desagradáveis assim que eles se apresentavam, ela não teve
problemas para ouvir com imparcialidade o quanto iria lhe custar a sua
travessura, tanto que seus pensamentos ainda insistiam no outro lado do
caso.
Apresentado sob a luz dos vigorosos comentários de Mrs. Trenor, o
inventário certamente foi formidável e Lily, à medida que ouvia,
gradualmente foi cedendo ao ponto de vista de sua amiga sobre a situação.
As palavras de Mrs. Trenor foram ganhando ênfase para a ouvinte e
causando uma ansiedade que ela nem sabia ao certo de onde vinha. A
riqueza, a menos que estimulada por uma imaginação mais aguçada,
oferece apenas uma vaga ideia da tensão prática gerada pela pobreza. Judy
sabia o quanto seria “horrível” para a pobre Lily ter de parar para pensar se
colocaria ou não renda de verdade nos seus saiotes, e não ter um carro ou
um iate à sua disposição; mas a agonia diária das contas a pagar, a tentação
de gastar com bobagens, eram desafios tão distantes para ela quando os
problemas domésticos de uma faxineira. A falta de noção de Mrs. Trenor da
gravidade da situação deixou Lily ainda mais irritada. Quanto mais sua
amiga a reprovava por ter perdido a oportunidade de ofuscar suas rivais,
mais ela pensava na montanha de dívidas a qual quase escapara. Que ventos
loucos foram aqueles que a levaram de volta para os mares sombrios?
Se ainda faltava alguma coisa para completar a humilhação essa foi a
sensação de que a sua antiga vida estava de braços abertos esperando para
recebê-la de volta. No dia anterior, sua imaginação voara livremente acima
de um leque de opções; agora ela foi obrigada a voltar para a antiga rotina,
na qual momentos de aparente brilho e liberdade alternavam-se com longas
horas de servidão.
Ela pousou a mão sobre a da amiga.
– Querida, Judy! Desculpe-me pelos aborrecimentos. Você é tão boa
para mim. Mas você tem algumas cartas que eu deva responder, portanto,
permita que seja útil, ao menos.
Acomodou-se então à escrivaninha e Mrs. Trenor permitiu que ela
reassumisse as obrigações matinais com um suspiro que indicava que,
afinal, ela tinha se provado inadequada para outras finalidades superiores.
A mesa de almoço contou com um grupo desfalcado. Todos os
homens, com exceção de Jack Stepney e Dorset, tinham retornado para a
cidade (a ironia de que Selden e Percy Gryce tivessem voltado no mesmo
trem não passou desapercebida para Lily), e lady Cressida e os Whatherall
tinham saído de carro para almoçarem em uma casa de campo distante. Em
momentos poucos interessantes como esses, era comum Mrs. Dorset ficar
em seu quarto até tarde; mas dessa vez ela apareceu quase no final da
refeição, com olheiras profundas, mas com uma pontinha de malícia na
pose de indiferença.
Ela ergueu as sobrancelhas ao dar uma olhada ao redor da mesa.
– Estamos em poucos agora! Gosto de sossego. Você não gosta, Lily?
Eu gostaria que os homens sempre fossem embora, pois é muito melhor
sem eles. Oh, você não conta, George: a esposa não precisa conversar com
o marido. Mas pensei que Mr. Gryce fosse passar semana toda? – indagou,
curiosa. – Ele não ia, Judy? Ele é um bom garoto. Gostaria de saber o que o
espantou? Ele é muito tímido e receio que tenhamos assustado: ele foi
criado aos moldes antigos. Sabe, Lily, ele me contou que nunca tinha visto
uma garota jogando baralho a dinheiro até ver você fazendo isso naquela
noite? E que ele vive dos juros da sua fortuna e sempre sobra um tanto para
investir!
Mrs. Ficher inclinou-se para frente curiosa.
– Creio que é dever de alguém ensinar algumas coisas para aquele
jovem. É surpreendente que ele nunca tenha sido conscientizado sobre os
seus deveremos como cidadão. Todos os homens ricos deveriam ser
obrigados a estudar as leis deste país.
Mrs. Dorset deu uma olhada.
– Acho que ele estudou sobre as leis do divórcio. Ele me contou que
prometeu ao bispo que iria assinar um abaixo assinado contra o divórcio.
Mrs. Fisher enrubesceu sob a camada de pó de arroz e Stepney disse
com um olhar zombeteiro para Miss Bart:
– Acho que ele está pensando em se casar e quer reformar o velho
navio antes de embarcar.
Sua noiva ficou chocada com a metáfora e George Dorset exclamou
com um grunhido sarcástico:
– Coitado! O problema não é o navio e sim a tripulação.
– Ou os passageiros clandestinos – apontou Miss Corby. – Se fosse
para eu planejar uma viagem com ele, começaria com um amigo no porão.
O despeito de Miss Van Osburgh só estava esperando pelo momento
oportuno de extravasar:
– Não entendo por que estão zombando dele; eu o considero uma
ótima pessoa! – exclamou ela –, e, de qualquer maneira, a garota que se
casar com ele terá muito conforto.
Ela ficou confusa com o acesso de riso causado pelas suas palavras,
mas talvez lhe servisse de consolo se ela soubesse o quão profundamente
tinham tocado no fundo em um dos ouvintes.
Conforto! Naquele momento a palavra soou mais eloquente para Lily
Bart do que qualquer outra. Ela não conseguiu nem mesmo rir da visão da
herdeira que encarava uma fortuna colossal como se fosse uma mera
proteção contra a carência: ela sabia muito bem o que aquela proteção
significaria para ela. As alfinetadas de Mrs. Dorset não feriram, pois a sua
própria ironia foi muito mais profunda: ninguém seria capaz de feri-la mais
do que ela já estava se ferindo, pois ninguém fazia a menor ideia – nem
mesmo Judy Trenor – das consequências do seu desatino.
Ela foi despertada dessas considerações por um pedido sussurrado da
anfitriã, que a puxou de lado enquanto elas deixavam a mesa do almoço.
– Lily, querida, se não tiver nada de especial para fazer hoje, posso
dizer para Carry Fisher que você pretende ir até a estação para buscar o
Gus? Ele chegará as quatro e sei que ela está planejando ir se encontrar com
ele. Claro que ficarei satisfeita em vê-lo feliz, mas descobri que ela tem
tirado um bocado de dinheiro dele desde que chegou e ela está tão ansiosa
para ir buscá-lo que desconfio que deve ter recebido mais contas nesta
manhã. Tenho a impressão – hesitou Mrs. Trenor – de que a maior parte da
pensão alimentícia dela é paga pelos maridos de outras mulheres!
Miss Bart, quando estava a caminho da estação, teve tempo de sobra
para refletir sobre as palavras da amiga e como elas se aplicavam a ela
mesma. Por que ela deveria sofrer as consequências por ter pegado dinheiro
emprestado uma vez, e por algumas horas, de um primo mais velho,
enquanto uma mulher como Carry Fisher levava a vida à custa de seus
amigos e da tolerância de suas esposas? Tudo girava em torno do que uma
mulher casada podia fazer e uma moça solteira não. Claro que não era de
bom tom uma mulher casada pedir dinheiro emprestado – e Lily sabia
muito bem das consequências disso – mas mesmo assim, era o mero Malum
Prohibitum que o mundo incentivava e tolerava, e a qual, embora fosse
passível de punição privada, não provocava a reprovação coletiva da
sociedade. Resumindo, para Miss Bart tais oportunidades eram impossíveis.
Claro que ela poderia pedir dinheiro emprestado de uma amiga – cem aqui e
ali, no máximo – mas elas se mostravam mais dispostas a dar um vestido ou
uma bugiganga e ficavam muito desconfiadas quando ela insinuava a
preferência por um cheque. As mulheres não são generosas quando o
assunto é emprestar dinheiro e a maioria daquelas que a cercavam ou
estavam na mesma situação ou não faziam a menor ideia das necessidades
que ela passava. O resultado destas reflexões foi a decisão de se juntar à sua
tia em Richfield. Ela não poderia continuar em Bellomont sem jogar bridge,
pois acabaria se endividando ainda mais. Dar seguimento à sua série de
visitas de outono só iria piorar ainda mais as coisas. Ela tinha chegado a um
ponto em que era preciso recuar e o modo mais econômico de levar a vida
era adotando uma vidinha pacata. Estilo este que ela iria adotar na manhã
seguinte quando partisse para Richfield.
Na estação ela teve a impressão de que Gus Terno pareceu surpreso e
não aliviado ao vê-la. Ela afrouxou as rédeas da carruagem aberta de dois
lugares que conduzia e, enquanto ela sentava pesado ao seu lado, apertando-
a em um terço do assento, ele disse:
– Olá! Não é sempre que me dá a honra. Você deve estar sem ter o que
fazer.
A tarde estava quente e a proximidade a fez prestar mais atenção nele
do que normalmente teria feito. Notou o quanto ele era vermelho e
rechonchudo e, quando ele virou para ela, ela viu que nas gotículas de suor
havia uma camada de fuligem do trem aderida desagradavelmente às suas
bochechas redondas e ao pescoço; mas ela notou também, pelo modo como
aqueles olhinhos opacos a fintaram, que o contato com seu corpo esbelto e
fresco agradou tanto quanto se ele tivesse visto uma bebida gelada.
A percepção desse detalhe a ajudou a responder animada:
– Não é sempre que tenho a oportunidade. São tantas as mulheres que
disputam o privilégio comigo…
– O privilégio de me levar para casa? Bem, estou feliz que tenha
ganhado a competição. Mas sei o que aconteceu de verdade: foi a minha
esposa que mandou você vir me buscar. Não foi?
Ele acabara de ter um daqueles inesperados lampejos de astúcia que
acometem os homens e Lily não conseguiu evitar e riu também quando ele
disse a verdade.
– Viu, Judy, pensa que sou a pessoa mais confiável do mundo para lhe
fazer companhia; e ela tem razão – disse ela.
– Oh, ela tem? Se for isso, é porque você não iria perder seu tempo
com um velhote como eu. Nós, homens casados, temos de nos contentar
com o que aparece: os melhores prêmios são para os espertalhões que não
se amarraram. Posso ascender um cigarro? Tive um dia terrível.
Ele entrou em uma ruazinha fresca da vila e passou as rédeas
enquanto ascendia o cigarro. A pequena chama sob a sua mão deixou seu
rosto inflado ainda mais vermelho, e Lily desviou os olhos enojada. Apesar
disso algumas mulheres o consideravam bonito!
Enquanto devolvia as rédeas, ela disse simpática:
– Teve uma porção de coisas chatas para fazer?
– Eu diria que bastante! – Trenor, que quase nunca era ouvido, nem
pela esposa ou pelas amigas dela, aproveitou o raro momento de prazer de
um bate papo. – Você não imagina o quanto um sujeito precisa batalhar para
manter tudo isso – apontou o chicote na direção dos acres de Bellomont,
que se estendiam diante deles em ondulações opulentas. – Judy não faz
ideia do quanto ela gasta. Não que eu não tenha o bastante para manter tudo
isso – ele se interrompeu –, mas um homem precisa ficar de olhos abertos e
pegar todas as dicas que conseguir. Meu pai e minha mãe tiveram uma vida
de luxo com a renda que tinham e deixaram uma boa herança, sorte minha;
mas do jeito que as coisas vão agora, não sei aonde vou parar se não der
meus pulinhos. As mulheres pensam, quer dizer Judy pensa, que não faço
nada além de ir à cidade uma vez por mês para recolher os juros das minhas
ações, mas a verdade é que dá muito trabalho manter a máquina
funcionando. Não que eu esteja reclamando – continuou após uma pausa –,
pois fiz um bom negócio hoje, graças a Rosedale, amigo de Stepney: a
propósito, Lily, eu gostaria que tentasse convencer Judy a ser gentil com
aquele sujeito. Logo ele será rico o bastante para comprar todos nós e se ela
pudesse convidá-lo para jantar de vez em quando eu poderia conseguir
muito com ele. O homem é louco para conhecer as pessoas que não querem
conhecê-lo. E quando um sujeito se encontra nesta situação não há nada que
ele não faça pela primeira mulher que aceitar recebê-lo.
Lily hesitou por um momento. A primeira parte do discurso do seu
acompanhante tinha despertado uma interessante linha de raciocínio, que
foi rudemente interrompida pela menção do nome de Mr. Rosedale. Ela
expressou um leve protesto:
– Mas você sabe que Jack tentou recebê-lo e que ele fez feio.
– Oh, espere ai! Só porque ele é gordo, ensebado, e não tem bons
modos! Bem, tudo que posso dizer é que se as pessoas que forem espertas o
bastante para serem gentis com ele agora terão muitas vantagens. Daqui a
alguns anos ele terá entrado para a sociedade queiramos ou não, e então ele
não vai querer dar uma dica de como ganhar meio milhão em troca de um
jantar.
A mente de Lily se distanciava da personalidade intrusa de Mr.
Rosedale para retomar a linha de raciocínio desencadeada pelas primeiras
palavras de Trenor. Este grande mundo misterioso de Wall Street cheio de
“dicas” e “negócios” – será que ela não conseguiria encontrar ali um modo
de escapar da sua situação desesperadora? Tinha ouvido falar de mulheres
que ganhavam dinheiro deste modo com a ajuda de amigos: ela, assim
como a maioria das outras mulheres, não fazia a menor ideia de como
funcionava tais transações e a falta de noção pareceu atenuar a indelicadeza.
Na verdade, ela não se imaginava em hipótese alguma tentando conseguir
uma “dica” com Mr. Rosedale, mas ao seu lado estava um homem em posse
desta preciosa mercadoria, e quem, como marido da sua querida amiga,
tinha para com ela uma relação quase fraternal de intimidade.
No fundo Lily sabia que não seria apelando para o instinto fraternal
que ela iria conseguir convencer Gus Trenor a ajudá-la; mas este modo de
justificar a situação ajudou a camuflar a dura realidade, e ela sempre tomou
muito cuidado para manter as aparências. Seu melindre pessoal tinha um
equivalente moral, e, ao fazer um tour de inspeção na própria mente
certamente restaram algumas portas fechadas que não foram abertas.
Quando estavam chegando aos portões de Bellomont ela virou-se para
Trenor com um sorriso:
– A tarde está tão perfeita. O que acha de passearmos um pouco mais?
Estou um pouco triste hoje e é tão bom ficar um pouco longe das pessoas,
com alguém que não se importe se eu estiver um pouco tristonha.
Ela pareceu tão encantadoramente tristinha quando fez o pedido, tão
segura de que poderia contar com a simpatia e a compreensão dele, que
Trenor desejou que a sua esposa pudesse ver como as outras mulheres o
tratavam – não uma manipuladora como Mrs. Fisher, mas uma moça que a
maioria dos homens seria capaz de tudo só para receber um olhar daquele.
– Triste? Por que você ficaria triste? Sua caixa de vestidos da Doucet
não chegou, ou Judy ganhou de você no bridge ontem à noite?
Lily balançou a cabeça com um suspiro.
– Tive de desistir dos vestidos da Doucet; e do bridge. Não tenho
condições de bancar essas coisas. Na verdade, não tenho condições de
bancar nada das coisas que minhas amigas têm e receio que Judy esteja
achando que sou chata porque não jogo mais, e porque não ando tão bem-
vestida como as outras. Mas você vai achar que sou chata se eu lhe contar
sobre as minhas preocupações e só estou tocando neste assunto porque
quero lhe pedir um favor… um grande favor.
Seus olhos buscaram pelos dele mais uma vez e ela riu por dentro pela
pontinha de apreensão que encontrou neles.
– É claro, se houver algo que possa fazer… – ele parou e ela imaginou
que talvez seu divertimento tivesse sido interrompido pela semelhança com
os métodos de Mrs. Fisher.
– Um grande favor – ela repetiu delicadamente. – O fato é que Judy
está brava comigo e quero fazer as pazes com ela.
– Brava com você? Que bobagem! – o alívio desencadeou numa
risada. –Ela adora você.
– Ela é minha melhor amiga e é posso isso que não gosto de aborrecê-
la. Mas acho que você sabe o que ela quer que eu faça. Ela colocou na
cabeça, pobrezinha, que eu devo me casar e que eu devo me casar com um
homem muito rico.
Ela fez uma pausa, como se estivessem sem jeito, e Trenor, virando
abruptamente, encarou-a como se estivesse entendendo tudo.
– Casar com um homem muito rico? Minha nossa, você está não
querendo dizer Gryce, está? Oh, não, claro que não vou comentar nada
sobre isso. Pode ter certeza de que vou não vou abrir a boca. Mas Gryce!
Minha nossa, Gryce! Judy realmente acha que você seria capaz de se casar
com aquele sujeito enfadonho? Mas você não pode, não é? Por isso você o
dispensou e este é o motivo pelo qual ele pegou o primeiro trem de hoje
cedo? – ele recostou, esparramando-se sobre o assento, como se tivesse
inflado de tão satisfeito que ficou com a própria conclusão. – Como a Judy
pôde imaginar que você faria tal coisa? Eu poderia ter dito para ela que
você nunca iria se envolver com um filhinho da mamãe feito ele!
Lily soltou um suspiro ainda longo.
– Às vezes acho – murmurou –, que os homens entendem melhor os
motivos de uma mulher do que as mulheres.
– Alguns homens, tenho certeza! Eu poderia ter dito para Judy –
repetiu ele, exultando uma superioridade implícita sobre a esposa.
– Achei mesmo que iria entender, por isso que quis falar com você –
retomou Miss Bart. – Não posso fazer este tipo de casamento, é impossível.
Mas também não posso continuar levando o mesmo estilo de vida das
mulheres do meu meio. Dependo da minha tia para quase tudo, e, apesar de
ela ser muito boa para mim, não me dá uma mesada regularmente. Também
perdi um bom dinheiro em jogo e não ouso contar para ela sobre isso.
Paguei as dívidas de jogo, é claro, mas não sobrou quase nada para as
despesas. Se eu continuar vivendo assim ficarei em sérias dificuldades.
Tenho um dinheirinho guardado, mas acho que está mal investido, pois
parece render cada vez menos a cada ano que passa, e entendo tão pouco de
dinheiro que não sei se o agente da minha tia, que cuida disso, é de fato um
bom conselheiro.
Ela fez uma pausa e adicionou num tom mais brando. – Não é minha
intenção incomodá-lo com isso, mas gostaria de saber se poderia me ajudar,
fazendo Judy entender que não posso, no momento, continuar vivendo com
vocês. Vou embora amanhã para me juntar à minha tia em Richfield e devo
ficar lá até o final do outono. Vou demitir minha criada e aprender cuidar
das minhas próprias roupas.
Diante do retrato encantador de beleza em sofrimento, cujo páthos foi
enaltecido com o leve toque com o qual foi traçado, Trenor deixou escapar
um murmúrio indignado de compaixão. Vinte e quatro horas antes, se sua
esposa o tivesse consultado sobre o futuro de Miss Bart, ele teria dito que
uma moça com gostos extravagantes e sem dinheiro deveria se casar com o
primeiro homem rico que conseguisse agarrar. Mas com o tema do assunto
em discussão ao seu lado, buscando a sua compaixão, fazendo-o imaginar
que ele a entendia melhor do que as suas queridas amigas, e confirmando
isto com o apelo da sua maravilhosa companhia, ele seria capaz de jurar que
tal casamento era uma profanação, e que, como homem honrando que era,
estava disposto a fazer tudo que estivesse ao seu alcance para protegê-la de
tal destino. Este impulso foi reforçado pela reflexão de que se ela tivesse
concordado em se casar com Gryce agora estaria sendo bajulada e elogiada,
mas, por ter recusado a se sacrificar, tinha sido abandonada para suportar o
peso da própria resistência. Se podia ajudar uma esponja profissional como
Carry Fisher, que não passava de um vício correspondente às satisfações
físicas proporcionadas pelo cigarro ou uma dose de bebida, certamente ele
podia fazer o mesmo por uma moça que apelou à sua compaixão e que
revelou seus problemas com a sinceridade de uma criança.
Trenor e Miss Bart estenderam o passeio até o final da tarde; e antes
do término ele tentou, com algum sucesso, provar que, se ela pudesse
confiar nele, ele poderia ganhar uma boa quantia de dinheiro para ela sem
colocar em risco a sua pequena fortuna. Ela de fato não entendia nada sobre
as transações da bolsa para compreender as explicações técnicas dele, ou
nem mesmo para notar que algumas não passavam de enrolação, e toda
aquela nebulosidade que envolvia a transação serviu como um véu para
ocultar a sua vergonha; e em meio àquela confusão generalizada suas
esperanças se iluminaram como faróis em um nevoeiro. A noção de que seu
pequeno investimento iria multiplicar misteriosamente e sem risco, e a
garantia de que este milagre se daria num curto espaço de tempo, e que não
haveria um intervalo cansativo para suspense e surpresas, aliviou-a dos
escrúpulos que ainda pairavam.
Mais uma vez ela sentiu o fardo mais leve e com isso a liberação das
atividades reprimidas. Com as preocupações solucionadas, foi fácil
prometer que nunca mais iria se deixar chegar a tal ponto. Com a
necessidade de fazer economia e abnegação fora do foco principal, ela se
sentiu pronta para encarar quaisquer desafios que a vida pudesse oferecer.
Até mesmo o imediato de permitir que Trenor, enquanto eles voltavam para
casa, se aproximasse e pousasse uma mão tranquilizadora sobre a sua,
custou-lhe apenas um leve tremor de relutância. Fazia parte do jogo fazer
com que ele pensasse que seu apelo tinha sido um impulso impensado,
provocado pela confiança que ele inspirava; e a renovada sensação de poder
de manipular os homens, ao mesmo tempo em que serviu de consolo para
sua vaidade, ajudou também a obscurecer a ideia de reivindicação implícita
no gesto dele. Ele era um homem grosseiro que, por trás daquela fachada
autoritária, não passava de um mero figurante no espetáculo bancado pelo
seu dinheiro: com certeza, para uma garota esperta, seria fácil prendê-lo
pela vaidade e assim manter a obrigação do lado dele.
Capítulo 8
O primeiro cheque de mil dólares que Lily recebeu com a assinatura
rabiscada de Gus Trenor fortaleceu sua autoconfiança com a mesma rapidez
que liquidou suas dívidas.
A transação se justiçou pelos próprios resultados: ela reconheceu o
quanto teria sido absurdo permitir que quaisquer escrúpulos primitivos a
privassem deste meio fácil de apaziguar seus credores. Lily se sentiu
realmente virtuosa enquanto distribuía a soma a conta-gotas entre seus
credores e o fato de que uma nova remessa acompanhava cada pagamento
não atenuou a sua indiferença. Quantas mulheres, no seu lugar, não teriam
continuado comprando sem pagar!
Era fácil manter Trenor de bom humor. Ouvir suas histórias
cansativas, guardar seus segredos e rir de suas piadas, aparentemente era
tudo que ela precisava fazer, e a complacência com que sua amiga via estas
atenções livrou-os de quaisquer suspeitas. Mrs. Trenor evidentemente
assumiu que a crescente intimidade de Lily com seu marido era
simplesmente um meio indireto de retribuir a sua amizade.
– Estou tão feliz que você e Gus tenham se tornado tão amigos – disse
ela em tom de aprovação. – É muita gentiliza sua, ser tão agradável com ele
e aguentar todas as suas histórias cansativas que conta. Sei que são, pois
tive de ouvi-las quando estávamos noivos e estou certa de que ele ainda
conta as mesmas. E agora não terei mais de pedir para Carry Fisher mantê-
lo de bom humor. Ela é um verdadeiro abutre, sabe; e não tem nenhum
senso de moral. Vive pedindo para Gus especular para ela e tenho certeza
de que ela nunca paga quando perde.
Miss Bart foi capaz de se horrorizar com aquilo sem o embraçado de
uma implicação pessoal. A sua situação era completamente diferente.
Certamente ela pagaria se perdesse, apesar de Trenor ter assegurado que ela
nunca iria perder dinheiro. Quando enviou o cheque ele explicou que tinha
lucrado cinco mil para ela com uma “dica” dada por Rosedale e que tinha
aplicado quatro mil na mesma aplicação outra vez, pois havia uma grande
expectativa de “alta”. Ela entendeu com isso que ele agora estava
especulando com o dinheiro dela e que consequentemente ela não devia
nada mais além da devida gratidão por um favorzinho tão insignificante.
Chegou a supor que, para levantar o primeiro montante, ele tinha lhe
emprestado uma parte, mas este era um detalhe sobre o qual a sua
curiosidade não se demorou muito. Esta se concentrou mais, por enquanto,
na data provável da próxima “alta”.
A notícia da nova alta foi recebida poucas semanas depois, no
casamento de Jack Stepney com Miss Van Osburgh. Como prima do noivo,
Miss Bart foi convidada para ser madrinha, contudo, recusou o convite com
a desculpa de que como era muito mais alta do que as outras moças isto iria
prejudicar a simetria do grupo. A verdade era que, ela já tinha sido
madrinha várias vezes: e da próxima vez que pisasse em um altar ela
pretendia ser a figura principal da cerimônia. Ela conhecia todas as
piadinhas feitas à custa das solteironas e estava determinada a evitar
quaisquer especulações sobre a sua idade que pudessem levar as pessoas a
pensarem que ela era mais velha do que de fato era.
O casamento Van Osburgh foi celebrado na igreja de uma vila
próxima à propriedade do pai da noiva, em Hudson. Foi um “simples
casamento no campo” para onde os convidados foram levados em vagões
de trem reservados e onde os passageiros que não tinham sido convidados
foram proibidos de entrar por meio de intervenção policial. Enquanto os
ritos campestres eram celebrados em uma igreja lotada e decorada com
orquídeas, cheia de pessoas importantes, os representantes da imprensa
tentavam arrumar um lugarzinho no antro, com bloco em mãos, em meio ao
labirinto de presentes de casamento, e um representante de um estúdio
cinematográfico instalava seus aparatos na porta da igreja. Era o tipo de
cena que Lily sempre imaginara para ela mesma como personagem
principal, e nessa ocasião, o fato de que não passava de uma mera
coadjuvante, em vez de a figura mítica oculta por um véu ocupando o
centro das atenções, fortaleceu a sua determinação de assumir o papel antes
do final do ano. O fato de que suas preocupações tivessem sido atenuadas
não a deixou cega para a possibilidade de voltarem; isto mal lhe deu forças
suficientes para ficar acima das suas inseguranças e renovar a fé na sua
beleza, no seu poder, e no seu potencial de atrair um destino brilhante. Não
podia ser possível que uma pessoa ciente de seus talentos de manipulação e
de divertir, estivesse condenada ao eterno fracasso. Mas seus erros pareciam
ser fáceis de serem corrigidos à luz da sua autoconfiança renovada.
Suas reflexões ganharam força com a descoberta, em um banco
vizinho desocupado, do perfil sério e com uma barba bem aparada de Mrs.
Percy Gryce. Havia algo quase casadouro no seu aspecto: a gardênia branca
da lapela tinha um ar simbólico que foi vista por Lily como um bom
presságio. Afinal, visto em meio aos outros da sua mesma espécie ele não
parecia tão ridículo: um crítico bonzinho teria dito que estava um pouco
acima do peso. Ela imaginou que ele era do tipo de homem cujas
associações sentimentais eram despertadas diante das imagens
convencionais de um casamento, e se viu, na privacidade do jardim de
inverno dos Van Osburgh, manipulando habilidosamente os sentimentos
previamente preparados para o seu toque. Na verdade, quando avaliou as
outras mulheres ao redor, e lembrou-se da sua imagem no espelho, não
pareceu que fosse necessário ter nenhum talento especial para reparar seu
erro e colocá-lo de volta aos seus pés novamente.
A visão da cabeça escura de Selden, num banco quase de frente para o
seu, perturbou momentaneamente o equilíbrio da sua complacência. O
fervilhar de seu sangue quando seus olhos se encontraram foi sucedido por
um movimento contrário, uma onda de resistência e ela recuou. Ela não
queria vê-lo novamente, não por que temesse a sua influência, mas porque a
presença dele sempre tinha o efeito de diminuir as suas aspirações, de
desfocar todo o seu mundo. Além do mais, ele era uma lembrança viva do
pior erro da sua carreira e o fato de que ele tinha sido o motivo não
atenuava o que sentia por ele. Ela ainda imaginava um estado ideal de
existência em que tudo tinha sido superado e a relação com Selden seria o
último toque de luxo. Mas neste mundo que se apresentava, tal privilégio
iria custar muito mais do que valia.
– Lily, querida, nunca a vi tão encantadora! Parece até que algo
maravilhoso acabou de lhe acontecer!
A jovem que acabara de expressar sua admiração pela amiga não
sugeria, na sua pessoa, tais possibilidades de alegria. Miss Gertrude Farish
era, na verdade, a personificação da mediocridade e ausência de talento para
causar impacto. Se por um lado havia qualidades que compensavam em seu
olhar sincero e no frescor do seu sorriso, havia outras que só eram
percebidas por um observador empático, antes de notar que seus olhos eram
de um cinza sem graça e os lábios sem curvas provocadoras. A visão que
Lily tinha dela oscilava entre a piedade pelas limitações e a impaciência
diante da aceitação complacente de todas elas. Para Miss Bart, assim como
para sua mãe, o conformismo era sinal de burrice; e havia momentos em
que, ciente do seu poder de enxergar e se portar exatamente de acordo com
as exigências das circunstâncias, ela chegava a considerar as outras garotas
muito sem graça e inferiores para serem escolhidas. Certamente, ninguém
confessava tanto conformismo em seu meio, como o explicitado na cor
“comum” do vestido e nas linhas suaves do chapéu, quanto Gerty Farish:
isto era quase tão estupido quanto permitir que suas roupas revelem que
você sabe que é feia, quanto proclamar através delas que você sabe que é
bonita.
Naturalmente, sendo muito pobre e sem graça, era inteligente da parte
de Gerty frequentar eventos de caridade e concertos sinfônicos; mas havia
algo irritante na sua suposição de que a vida não poderia oferecer um pouco
mais de prazer e que alguém podia ser feliz tanto em um apartamentinho
apertado quanto no esplendor em que vivam os Van Osburgh. Nesta
ocasião, no entanto, suas baixas expectativas não irritaram Lily. Elas
serviram apenas para causar uma sensação de alívio pela sua própria
excepcionalidade e oferecer um panorama geral do seu plano de vida.
– Vamos dar uma olhada nos presentes antes que todos saiam da sala
de jantar! – sugeriu Miss Farish, cruzando o braço ao da amiga. Era
característico dela mostrar um interesse sentimental e inócuo a todos os
detalhes de um casamento: ela era o tipo de pessoa que sempre tinha à mão
um lencinho durante a cerimônia e ia embora levando um pedaço do bolo
de casamento.
– Está tudo tão lindo, não acha? – prosseguiu ela, enquanto entravam
na distante sala de estar reservada para exibição dos presentes de casamento
de Miss Van Osburgh. – Sempre digo que ninguém faz as coisas melhor do
que a prima Grace! Você já experimentou algo mais delicioso do que aquela
mousse de lagosta com molho de champanhe? Há semanas decidi que não
perderia este casamento por nada e fiquei só imaginando como seria
gostoso. Quando Lawrence Selden ficou sabendo que eu viria, ele insistiu
em ir me buscar e me acompanhar até a estação de trem, e à noite
combinamos de ir jantar no Sherry’s. Estou tão contente como se o
casamento fosse meu!
Lily sorriu: sabia que Selden sempre fora gentil para com sua prima
sem graça e, às vezes, ela se perguntava por que ele perdia tanto tempo com
uma atividade pouco lucrativa; mas agora o pensamento lhe deu um vago
prazer.
– Você costuma se encontrar muito com ele? – perguntou.
– Sim, ele costuma aparecer aos domingos. E vez ou outra jogamos,
mas ultimamente não o tenho visto muito. Ele parece não estar muito bem,
anda um pouco nervoso e agitado. Coitado! Eu gostaria que ele se casasse
com uma moça boa. Falei isso para ele hoje, mas ele disse que não gosta
muito das boazinhas e que as outras não gostam muito dele. Mas isto não
passou de uma brincadeira, é claro. Ele nunca iria se casar com uma moça
que não fosse boa. Oh, minha querida, você já viu pérolas tão lindas?
Elas estavam paradas diante da mesa onde estavam expostas as joias
da noiva e o coração de Lily disparou de inveja ao ver a luz refletindo sobre
as pérolas – o brilho leitoso das pérolas perfeitas, a resplandecência dos
rubis atenuada pelo contraste com o veludo, os intensos raios azuis das
safiras realçados pelo brilho dos diamantes ao redor: todas aquelas nuances
preciosas realçadas e intensificadas pelo talento artístico com que tinham
sido confeccionadas. O brilho das pedras aqueceu as veias de Lily igual
vinho. Mais do que qualquer outra expressão de riqueza, elas simbolizavam
a vida que ela sonhava ter, a vida de requinte e refinamento na qual cada
detalhe deve contar com o toque final de uma joia, e, no geral, um arranjo
harmonioso para realçar seu jeito de joia rara.
– Oh, Lily, veja este pendente de diamante! Ele é tão grande quanto
um prato de jantar! Quem será que deu? – Miss Farish inclinou sobre o
cartão. – Mr. Simon Rosedale. O que, aquele homem horroroso? Ah, claro!
Lembrei-me que ele é amigo do Jack e suponho que a prima Grace teve de
convidá-lo para a festa. Mas ela deve ter odiado ter sido obrigada a dar
permissão para Gwen aceitar um presente vindo dele.
Lily sorriu. Duvidou da relutância de Mrs. Van Osburgh, mas sabia da
mania que Miss Farash tinha de atribuir seus pudores às pessoas bem menos
suscetíveis de serem afetadas por eles.
– Bem, se Gwen não quiser ser vista usando isso ela pode trocar por
outra coisa – apontou.
– Ah, eis algo muito mais bonito – continuou Miss Farish. – Veja esta
linda safira branca. Estou certa de que a pessoa que escolheu deve ter tido
muito trabalho. Que nome é esse? Percy Gryce? Ah, não estou surpresa! –
ela sorriu satisfeita enquanto recolocava o cartão de volta no lugar. – Claro
que você deve ter ouvido falar que ele está apaixonado por Evie Van
Osburgh? Prima Grace está tão satisfeita com isso; é tão romântico! Ele a
conheceu na casa de George Dorset, em torno de cinco semanas atrás, é o
melhor casamento que a querida Evie poderia fazer. Oh, não estou falando
de dinheiro, claro que ela já tem o suficiente, mas ela é uma garota tão
caseira e parece que eles gostam das mesmas coisas; por isso são perfeitos
um para o outro.
Lily ficou olhando para safira branca sobre o berço de veludo. Evie
Van Osburgh e Percy Gryce? Os nomes soaram estranhos na sua cabeça.
Evie Van Osburgh? A caçula atarracada e mais sem graça das quatro filhas
sem graça e atarracadas de Mrs. Van Osburgh que, com uma astúcia
inigualável, conseguiu “colocar” uma a uma em um ninho invejável de
existência! Ah, meninas de sorte que cresceram sob a proteção do amor
materno – de uma mãe que sabe como aproveitar as oportunidades sem ter
que fazer favores, sabe como tirar vantagem da proximidade sem deixar que
o apetite seja saciado pelo hábito! Mesmo a garota mais esperta é passível
de calcular errado o alvo certo pode avançar muito num momento e recuar
demasiado em outro: é preciso a vigilância constante e a visão de uma mãe
para ajudar a filha a pousar em segurança nos braços da riqueza.
O jeito despreocupado de Lily foi sobrepujado por uma nova sensação
de fracasso. A vida era muito chata, muito boba! Por que os milhões de
Percy Gryce deveriam se juntar a outra grande fortuna? Por que essa garota
desengonçada deveria se apoderar dos poderes que jamais saberia como
usar?
Ela foi despertada das especulações por um toque conhecido no seu
braço. Virando-se viu Gus Trenor ao seu lado. Sentiu um tremor de raiva:
que direito ele tinha de tocá-la? Por sorte Gerty Farish caminhava na
direção da próxima mesa e eles estavam sozinhos.
Trenor, parecendo ainda mais rechonchudo do que nunca numa casaca
apertada, e desagradavelmente vermelho por conta do brinde aos noivos,
olhou-a com indisfarçada aprovação.
– Minha nossa, Lily, você está deslumbrante! – ele vinha se dirigindo
a ela pelo primeiro nome e ela ainda não tinha encontrado o momento certo
para corrigi-lo. Além do mais, no seu meio todos os homens e mulheres se
tratavam pelo primeiro nome; era apenas nos lábios de Trenor que a
familiaridade do tratamento ganhava um significado desagradável.
– Bom – continuou ele, ainda cheio de intimidade para o
aborrecimento dela – já escolheu qual dessas bugigangas vai querer
comprar igual na Tiffany’s amanhã? Estou com um cheque no bolso que
pode ajudar!
Lily olhou surpresa: seu tom de voz estava mais alto do que o normal
e a sala estava começando a encher de gente. Mas depois de verificar que
eles ainda não podiam ser ouvidos, uma sensação de prazer substituiu a
apreensão.
– Outro dividendo? – perguntou, sorrindo, e aproximando-se dele para
que ninguém pudesse escutar.
– Bem, não exatamente: vendi na alta e lucrei quatro mil para você.
Nada mal para uma principiante, hein? Suponho que vai começar pensar
que é uma ótima especuladora. E, talvez, passe achar que o velho Gus não é
tão idiota quanto os outros pensam.
– Considero você o mais gentil dos amigos, mas não posso lhe
agradecer devidamente agora.
Seus olhos cintilaram de um modo tal que compensou o aperto de
mão que ele teria reivindicado caso estivessem sozinhos – e como ela não
ficou feliz por eles não estarem! A euforia despertada pela novidade cessou
subitamente uma dor física. Afinal, o mundo não era um lugar tão ruim e
chato: de vez em quando o menos afortunado era atingido por um golpe de
sorte. A noção disso começou a elevar seu espírito. Era característico dela
que uma tacada de sorte desse asas às suas esperanças. Na hora lhe ocorreu
que Percy Gryce não estava totalmente perdido; ela sorriu só imaginar
como ia ser divertido roubá-lo de Evie Van Osburgh. Que chance teria a
tontinha se ela resolvesse se esmerar? Ela olhou ao redor na esperança de
localizar Gryce, mas em vez disso seus olhos pousaram na cara sebosa de
Mr. Rosedale que circulava entre as pessoas meio que pedindo licença,
meio que se intrometendo, como se, no momento que a sua presença fosse
reconhecida, ela pudesse preencher toda a sala.
Longe de querer ser o veículo para tal enaltecimento, Lily tratou de
olhar para Trenor, para quem a sua expressão de gratidão parecia não ter
sido suficiente.
– Poupe os agradecimentos. Não quero agradecimentos, mas gostaria
de ter a chance de batermos um papo de vez em quando – murmurou ele. –
Pensei que você fosse passar o outono inteiro conosco, mas quase não a vi
no último mês. Por que não volta para Bellomont hoje à tarde? Estamos
sozinhos e Judy está de péssimo humor. Vá animar a sua amiga. Se
concordar eu a levo de carro e você pode telefonar para a sua criada e pedir
que ela leve suas coisas no próximo trem.
Lily recusou com um ar de arrependimento encantador.
– Eu gostaria muito, mas não vai dar. Minha tia voltou para cidade e
terei que passar os próximos dias com ela.
– Bem, tenho visto menos você desde que ficamos mais amigos do
que quando você era amiga da Judy – continuou ele sem perceber o quanto
estava sendo invasivo.
– Quando eu era amiga da Judy? Não sou mais amiga dela, então?
Sério, você diz cada absurdo! Se eu não saísse de Bellomont você já teria se
cansado de mim muito antes da Judy, mas venha me visitar na casa da
minha tia da próxima vez que estiver na cidade; então podemos bater um
papo e você poderá me dizer como posso investir melhor a minha fortuna.
Isso era verdade, ao longo das últimas três ou quatro semanas, ela se
manteve longe de Bellomont com a desculpa de estar devendo algumas
visitas, mas agora ela estava começando a achar que a sua ausência estava
começando a despertar especulações.
A perspectiva de um bate papo agradável e calmo não pareceu
satisfazer as expectativas de Trenor tanto quanto ela esperava, pois suas
sobrancelhas ainda estavam cerradas quando ele retomou:
– Oh, não sei se posso prometer uma dica nova todos os dias. Mas tem
uma coisa que você pode fazer para mim; que é ser um pouquinho gentil
para com Resedale. Judy prometeu convidá-lo para jantar quando
estivermos na cidade, mas não consigo convencê-la a convidá-lo para
Bellomont e se você permitisse que eu o chamasse aqui faria toda diferença.
Acho que nem duas mulheres falaram com ele hoje e posso lhe garantir que
ele é um sujeito com que vale a pena ser amistoso.
Miss Bart fez um gesto impaciente, mas segurou as palavras que
estavam prestes a acompanhar. Afinal, este era um modo inesperadamente
fácil de quitar a sua dívida; e ela por acaso ela não tinha motivos para ser
gentil com Mr. Rosedale?
– Oh, traga-o logo – disse sorrindo –, talvez eu consiga obter uma
dica com ele.
Trenor parou abruptamente e a encarou de um modo que a fez
ruborizar.
– Bem, você sabe, não se esqueça de que ele é um tremendo salafrário
– disse ele; e com uma risadinha ela virou na direção da porta francesa
aberta perto de onde eles estavam.
Havia mais pessoas na sala agora, ela sentiu uma necessidade de mais
espaço e ar fresco. E encontrou os dois no terraço onde alguns homens
fumavam e bebiam, enquanto casais passeavam pelo do jardim em meios
aos canteiros de flores tingidos com as cores do outono.
Quando ela surgiu, um homem que estava no grupo de fumantes veio
em sua direção e ela se viu cara a cara com Selden. A aceleração da
pulsação que a presença dele sempre causava somou-se a um ligeiro
constrangimento. Eles não tinham se encontrado desde aquela tarde de
domingo em Bellomont e o episódio ainda estava tão vívido nela que ela
não conseguia acreditar ele não sentisse o mesmo. Mas a sua saudação não
expressou mais do que a satisfação que qualquer mulher espera ver nos
olhos de um homem; e a descoberta, apesar de ter desagradado a sua
vaidade, serviu para acalmar os nervos. Entre o alívio de escapar de Trenor
e a vaga apreensão de encontrar com Rosadale, foi agradável poder relaxar
um pouco diante da sensação de complacência que Lawrence Selden
sempre transmitia.
– Que sorte! – exclamou ele sorrindo. – Eu estava pensando se ia
conseguir falar com você antes da festa acabar. Vim com Gerty Farish e
prometi que não vou deixá-la perder o trem, mas estou certo de que ela
ainda está se divertindo com os presentes de casamento. Ela parece ver a
quantidade e o valor deles como uma prova de afeição desinteressada de
quem dá e de quem recebe.
Não havia nem um traço de embaraço em sua voz e, enquanto falava,
recostado ao batente da porta olhando com jeito de quem estava se
divertindo, ela sentiu uma pontinha de arrependimento por ele ter recuado
tão facilmente do patamar que tinham alcançado da última vez que
conversaram. Aquele sorriso descontraído feriu a sua vaidade. Ela esperava
ser para ele mais do que uma beldade, uma diversão passageira para seus
olhos e mente, e o anseio escapou na sua resposta:
– Ah! – exclamou ela. – Invejo o poder que Gerty tem de romantizar
acordos feios e prosaicos! Nunca mais me recuperei desde que você me
mostrou o quão pobres e insignificantes eram as minhas ambições.
As palavras foram praticamente sussurradas quando ela se deu conta
do quão triste era o que estava dizendo. Parecia ser seu destino expor a sua
pior faceta para Selden.
– Pensei o contrário – retornou ele com leveza. – Pensei que tivesse
provado o quanto elas são mais importantes do que qualquer outra coisa
para você.
Foi como se a essência ansiosa do seu ser tivesse sido impelida por
um súbito obstáculo e mandada de volta para dentro de si mesma. Ela fitou-
o desanimada, parecendo uma criança magoada ou assustada: este seu
verdadeiro eu, que ele conseguira delinear com exatidão, não estava
acostumado a caminhar sozinho!
A exposição da fragilidade dela o afetou como sempre afetava, uma
tendência latente. Não teria significado nada para ele descobrir que a sua
proximidade a enaltecia, mas este vislumbre de um humor crepuscular, do
qual ele só fazia uma vaga ideia, mais uma vez pareceu colocá-lo em um
mundo separado com ela.
– Pelo menos você não pensa coisas piores de mim do que diz! –
exclamou ela com uma risada trêmula, mas antes que ele pudesse responder
a onda de empatia que pairava entre eles, foi abruptamente interrompida
pela volta de Gus Trenor que se aproximava acompanhado de Mr. Rosedale.
– Finalmente, Lily, pensei que tivesse fugido de mim: Rosedale e eu
procuramos você por toda parte!
Sua voz tinha algo de intimidade conjugal. Miss Bart notou um brilho
malicioso nos olhos de Rosedale e a ideia transformou a antipatia que sentia
por ele em aversão.
Ela retribuiu o inclinar acentuado de cabeça dele com um leve
menear, executado com ainda mais desdém por conta da expressão de
surpresa de Selden ao ver que Rosedale pudesse figurar entre seus
conhecidos. Trenor tinha virado de costas e seu acompanhante continuava
parado diante de Miss Bart com os lábios entreabertos num sorriso alerta e
esperando por qualquer coisa que ela pudesse dizer, ciente do privilégio de
ser visto ao lado dela.
Era um momento que requeria tato para transpor rapidamente as
lacunas. Mas Selden ainda estava recostado à porta, um observador da cena,
e sob o peso da sua vigilância Lily se sentiu fraca para exercer as suas
habilidades de sempre. Sentiu um enorme medo de que Selden pudesse
desconfiar que ela tivesse algum motivo para propiciar a um homem como
Rosedale frases educadas.
Rosedale ainda estava parado no mesmo lugar, esperando, e ela
continuou encarando-o sem dizer nada, mas seu olhar pairava um pouco
acima da sua careca brilhante. A atitude completou o que seu silêncio
insinuava.
Ele foi ficando ruborizado, mudando o peso do corpo de uma perna
para outra, tocou na pérola preta sobre a gravata e torceu nervoso a ponta do
bigode; então, olhou além, recuou e disse, olhando de soslaio para Selden:
– Minha nossa, nunca vi nada mais espetacular. Esta é última criação
da modista que você foi visitar no Benedick? Se for, creio que as outras
mulheres também vão querer visitá-la!
As palavras cortaram abruptamente o silêncio de Lily e ela percebeu
na hora que a sua atitude tinha ajudado a enfatizá-las. Numa conversa
normal elas teriam passado despercebidas; mas após a sua prolongada pausa
elas ganharam um significado especial. Ela sentiu, sem precisar olhar, que
Selden percebeu e inevitavelmente iria ligar a alusão à visita que ela fizera a
ele. A noção disso aumentou ainda mais a sua irritação contra Rosedale,
mas levou-a a perceber também que agora, mais do que nunca, era o
momento de ser gentil para com ele, por mais detestável que fosse ter de
fazê-lo na presença de Selden.
– Como sabe que as outras mulheres também não frequentam a minha
modista? – devolveu. – Sabe, não tenho medo de dar o endereço dela para
as minhas amigas!
Seu olhar e tom incluíram Rosedale com tanta naturalidade neste
círculo privilegiado que seus olhinhos pequenos reluziram de satisfação e
um sorriso ergueu o bigode.
– Minha nossa, nem assim adiantaria! – declarou ele. – Você poderia
dar o traje inteiro e mesmo assim ainda ganharia em primeiro lugar!
– Ah, é muita gentileza sua e seria ainda mais se pudesse me levar
para um cantinho mais sossegado e ir buscar para mim uma limonada ou
alguma bebida inocente antes de sairmos correndo para pegar o trem.
Ela foi se afastando enquanto falava, permitindo que ele a
acompanhasse entre os grupos reunidos no terraço, enquanto cada nervo
pulsava dela imaginando o que Selden deveria estar pensando da cena.
Mas apesar da revolta pela perversidade das coisas e a
superficialidade da sua conversa com Rosedale, uma terceira ideia persistia:
ela não iria embora sem antes tentar descobrir a verdade sobre Percy Gryce.
O acaso, ou talvez por decisão dele, vinha mantendo-os distantes desde que
ele deixara Bellomont as pressas; mas Miss Bart era uma especialista em
tirar proveito dos incidentes inesperados e mais desagradáveis e a revelação
da sua vida para Selden, precisamente da parte que ela mais desejava que
ele não soubesse, aumentou ainda mais a sua necessidade de se esconder e
fugir de contingências tão humilhantes. Qualquer situação definitiva seria
mais tolerável do que essa sucessão de acasos que a mantinha em uma
situação de alerta inquietante diante de cada possibilidade da vida.
Dentro da casa pairava um clima geral de dispersão, como se o
público estivesse se preparando para partir depois que os atores principais
deixaram o palco. Entre os remanescentes, contudo, Lily não viu Gryce e
nem a filha mais nova dos Van Osburgh. A ausência dos dois a atingiu com
um pressentimento e ela propôs a Mr. Rosedale, com todo jeitinho, de irem
para o jardim de inverno que ficava no outro extremo da casa. Ainda
restava um número suficiente de convidados ao longo da sequência de
cômodos para ver com malícia o avanço deles e Lily percebeu que estava
sendo seguida por caras de divertimento e espanto que eram retribuídos
com a sua indiferença e com satisfação do seu acompanhante. Naquele
momento, ela estava pouco se importando de estar sendo vista na
companhia de Rosedale. Todos seus pensamentos estavam concentrados no
objeto da sua busca. O último, no entanto, não foi encontrado no jardim de
inverno e Lilly, oprimida pela súbita convicção de fracasso, estava
pensando em um jeito de se livrar do seu acompanhante, quando eles deram
de cara com Mrs. Van Osburgh, ruborizada e exausta, mas radiante com a
consciência do dever cumprido.
Ela olhou para eles de relance, com um olhar agradável, mas distante,
de uma anfitriã cansada, para quem os convidados tinham se transformado
num mero pontinho girando em um caleidoscópio de fadiga. Então sua
atenção fixou subitamente e ela segurou Miss Bart com um gesto
confidencial.
– Minha querida Lily, não tive tempo de trocar nem uma palavra com
você, e suponho que já deve estar indo embora. Você viu a Evie? Ela
procurou você por toda parte: ela quer lhe contar um segredinho, mas acho
que você já deve ter adivinhado. O noivado não será anunciado até a
semana que vem, mas como você é tão amiga de Mr. Gryce os dois querem
que você seja a primeira a saber da felicidade deles.
Capítulo 9
Na época que Mrs. Peniston era jovem, a moda era voltar para cidade
em outubro, e assim no vigésimo dia do mês as cortinas da sua na casa na
Quinta Avenida foram abertas e os olhos do Gladiador Moribundo em
bronze que ficava de frente para a janela da sala de estar puderam
vislumbrar novamente a rua deserta.
As primeiras duas semanas após o retorno representavam para Mrs.
Peniston o equivalente doméstico de um retiro religioso. Ela “se entregava”
a tarefa de verificar os lençóis e as cobertas com o mesmo espírito de um
penitente explorando as profundezas da consciência. Procurava traças como
a alma abatida procura por deslizes. A prateleira mais alta de cada armário
entregava seus segredos, a adega e o depósito de carvão eram sondados até
as suas profundezas mais escuras e, como resultado final dos rituais de
limpeza, a casa toda se via envolta em uma brancura penitencial, exalando o
perfume expiratório.
Foi nessa fase dos procedimentos que Miss Bart chegou, no final de
tarde, ao retornar do casamento Van Osburgh. A viagem de volta para
cidade não conseguiu acalmar seus nervos. Apesar de o noivado de Evie
Van Osburgh ainda ser oficialmente um segredo, tratava-se de um
acontecimento que um grande número de amigos íntimos da família
possivelmente já sabia e o murmurinho dos convidados que voltaram de
trem ecoava alusões e curiosidade. Lilly sabia muito bem qual era o seu
papel neste drama especulativo: sabia o tipo de divertimento que a situação
evocava. Os modos cruéis como seus amigos se divertiram com isso
incluíram risadas sonoras das complicações: era o destino pregando uma
peça. Ela vivenciou, num piscar de olhos, o sabor da vitória e da derrota.
Insinuações foram feitas apesar do seu esforço de se mostrar indiferente.
Mas ela estava começando a sentir o reflexo da sua atitude; a reação foi
mais rápida e ela caiu num desgosto profundo.
Como sempre lhe acontecia, esta repulsa moral encontrou uma saída
física na forma de um desdém pelo seu meio social. Ela se revoltou com a
feiura complacente da nogueira escura da casa de Mrs. Peniston, com o
brilho escorregadio do piso de cerâmica do vestíbulo cheio de sapólio e
com o cheiro do polidor de móveis que sentiu ao abrir a porta.
As escadas ainda estavam sem tapetes e no caminho para seu quarto
ela ficou detida no térreo por uma maré de água com sabão. Erguendo a
saia, ela saiu para o lado com um gesto impaciente; e enquanto o fazia teve
a estranha sensação de já ter estado naquela mesma situação, mas em outro
lugar. Percebeu que estava descendo outra vez a escada do prédio de
Selden; e ao baixar os olhos para protestar com o culpado pelo dilúvio
espumoso, ela foi confrontada pelo mesmo olhar fixo que a desafiara em
circunstâncias muito parecidas. Era a faxineira do Benedick que, apoiada
sobre os cotovelos vermelhos, a encarava com a mesma curiosidade
implacável, a mesma aparente relutância em deixá-la passar. Desta vez, no
entanto, Miss Bart estava no seu território.
– Não vê que quero passar? Por favor, tire o balde daí – disse com
rispidez.
A princípio a mulher pareceu não ter escutado; então, sem pedir
desculpa, puxou o balde, estendeu um pano de chão encharcado sobre o
piso e continuou olhando fixamente para Lily enquanto essa passava. Era
insuportável a noção de que Mrs. Peniston pudesse manter tal criatura
circulando pela casa e Lily entrou em seu quarto determinada a tomar
providências para que a mulher fosse demitida naquele mesmo dia.
Mrs. Peniston, no entanto, não se encontrava acessível ao protesto:
desde cedo estava trancada com a criada, mexendo nas suas peles, um
processo que culminou no drama da renovação da criadagem. À noite, Lily
também se viu sozinha, pois sua tia, que raramente jantava fora, aceitou o
convite de uma prima Van Alstyne que estava de passagem pela cidade. A
casa, no seu estado artificial de ordem imaculada, parecia tão assustadora
quanto um mausoléu e após uma rápida refeição em meio aos aparadores
ainda cobertos, Lily entrou na sala de estar recém-arejada e teve a sensação
de que tinha sido enterrado viva nos limites sufocantes da existência de
Mrs. Peniston.
Normalmente, ela costumava evitar ficar em casa durante a temporada
de faxina. Na presente ocasião, no entanto, vários foram os motivos que a
trouxeram de volta para a cidade; e o mais importante entre eles foi o fato
de que recebera menos convites do que costumava receber no outono. Há
tanto tempo estava acostumada a passar de uma casa de campo para outra,
até que a proximidade das festas de final de ano trouxesse seus amigos de
volta para a cidade, que as lacunas de tempo não preenchidas produziram
uma forte sensação de que a sua popularidade estava em baixa. Era como
ela tinha dito a Selden – as pessoas tinham se cansado dela. Estas mesmas
pessoas teriam o maior prazer em recebê-la na forma de um novo
personagem, mas como Miss Bart eles já a conheciam de cor. Ela também
se conhecia de cor e estava cansada da mesmice. Houve momentos em que
ansiou cegamente por algo diferente, qualquer coisa que nunca tivesse sido
experimentada, mas sua imaginação não conseguia imaginá-la em outro
cenário que não fosse ao que já estava habituada. Ela nunca conseguiu se
ver em outro lugar senão em uma sala de estar, esbanjando elegância assim
como uma flor exala seus perfumes.
Enquanto isso, conforme outubro avançava ela teve de encarar a
alternativa de retornar para a casa dos Trenor ou ficar com a tia na cidade.
Até mesmo a monotonia desoladora de Nova York em outubro e os
desconfortos da faxina geral de Mrs. Peniston, pareceram preferíveis ao que
pudesse esperar por ela em Bellomont; e com um ar de devoção heroica ela
anunciou sua intenção de ficar com a tia até as festas de final de ano.
Sacrifícios desta natureza às vezes são recebidos com sentimentos tão
contraditórios quanto aos que os levam a fazê-los; e Mrs. Peniston
confidenciou para a criada que, se fosse para algum membro da sua família
estar ao seu lado em um momento como aquele – apesar de que, por
quarenta anos ela ter cuidado com competência das suas próprias cortinas –,
ela certamente preferia que fosse Miss Grace em vez de Miss Lily. Grace
Stepney era uma prima distante, de temperamento adaptável e abnegada,
que “exercia seu papel” fazendo companhia para Mrs. Peniston enquanto
Lily saía para jantar todas as noites; que jogava besigue, pegava pontos
soltos, lia os obituários do Times e admirava com sinceridade as cortinas
roxas de cetim da sala de estar, o Gladiador Moribundo da janela e o
quadro de dois e meio por um e meio das Cataratas do Niágara que
representava um dos excessos artísticos da modesta carreira de Mr.
Peniston.
Mrs. Peniston, em situações normais, ficava tão entediada com a boa
prima quanto os recebedores de tais favores costumam ficar com as pessoas
que os executam. Ela preferia de longe a brilhante e nada confiável Lily,
que não sabia diferenciar uma ponta da outra de uma agulha de crochê, e
que várias vezes feriu suas suscetibilidades sugerindo que a sala deveria ser
“redecorada”. Mas em se tratando da caça a um guardanapo desaparecido,
ou para ajudar a decidir se as escadas dos fundos precisavam de reparos, o
julgamento de Grace sempre soava melhor do que o de Lily: isso sem
mencionar o fato de que a última não gostava do cheiro de cera e sabão e se
comportava como se pensasse que a casa se limpava sozinha, sem ajuda de
ninguém.
Sentada sob a luz lúgubre do candelabro da sala de estar – Mrs.
Peniston só ascendia as lâmpadas se estivesse recebendo uma “visita” –
Lily imaginou sua própria figura se transformando em uma mulher de meia-
idade monótona como Grace Stpeney. Quando deixasse de divertir Judy
Trenor e seus amigos ela teria de voltar a divertir Mrs. Peniston; de um jeito
ou de outro ela só via um futuro de servidão, nunca a possibilidade de
impor a sua própria individualidade.
A sineta da porta tocou reverberando enfática pela casa vazia,
despertando-a subitamente do seu tédio. Foi como se todas as preocupações
dos últimos meses tivessem culminado no vazio daquela noite interminável.
Se ao mesmo a sineta pudesse ser um chamado do outro mundo – um sinal
de que ela ainda era querida e lembrada!
Após um tempo uma criada apareceu anunciando que havia uma
pessoa que querendo falar com Miss Bart; e quando Lily pediu mais
detalhes, ela adicionou:
– É Mrs. Haffen, Miss. Ela não quis dizer o que deseja.
Lily, para quem o nome não disse nada, abriu a porta para uma mulher
com uma touca surrada, que estava plantada sob a luz do corredor. A luz da
lâmpada a gás iluminava a sua cara bexiguenta e o couro cabeludo
vermelho visível sob os fios de cabelo cor de palha. Lily olhou surpresa
para a faxineira.
– A senhora quer falar comigo? – perguntou.
– Eu gostaria de trocar uma palavra com a senhorita – o tom não foi
nem amigável e nem agressivo: não deu nenhuma pista do propósito da
visitante. Mesmo assim, um instinto de precaução disse para Lily se retirar
para um local onde a criada da casa não pudesse escutar a conversa.
Ela fez sinal para Mrs. Haffen acompanhá-la até a sala de estar e
fechou a porta depois de entrarem.
– O que a senhora deseja? – perguntou.
A faxineira, assim como as outras do seu tipo, estava de braços
cruzados sobre o xale. Ao desvencilhar-se deste ela estendeu um maço de
papel embrulhado numa folha de jornal encardida.
– Tenho algo aqui que pode lhe interessar, Miss Bart – ela pronunciou
o nome com uma ênfase desagradável, como se o fato de sabê-lo fizesse
parte do motivo que a trouxera ali. Para Lily a entonação soou como uma
ameaça.
– A senhora encontrou algo que me pertence? – perguntou estendendo
a mão.
Mrs. Haffen recuou.
– Bem, neste acaso, acho que é tão meu quanto de qualquer outra
pessoa – devolveu.
Lily a olhou surpresa. Estava certa agora de que os modos da sua
visitante representavam uma ameaça; mas, apesar de toda a sua sagacidade,
não havia nada em suas experiências pregressas que a preparassem para as
implicações exatas da cena presente. Tudo que sabia, no entanto, era que
aquilo precisava terminar o mais rápido possível.
– Não estou entendendo. Se esse pacote não é meu, por que pediu
para falar comigo?
A mulher não se abalou com a pergunta. Evidentemente estava
preparada para respondê-la, mas assim como as pessoas da sua classe ela
teve de voltar ao começo para iniciar novamente e somente após uma longa
pausa respondeu:
– Meu marido era zelador do Benedick até o dia primeiro deste mês;
desde então ele não consegue arrumar outro emprego.
Lily permaneceu calada e a mulher prosseguiu:
– Não foi culpa nossa: o gerente tinha outro homem para colocar no
lugar e fomos postos para fora, de mala e cuia. Fiquei muito doente no
último inverno e passei por uma cirurgia que consumiu todas as nossas
economias; e está difícil para mim e para as crianças, com Hafen sem
trabalho há tanto tempo.
Então ela tinha vindo apenas para pedir para Miss Bart arrumar um
emprego para seu marido; ou, mais provavelmente, ver se a moça poderia
falar com Mrs. Peniston. Lily tinha um jeito tal de quem sempre conseguia
aquilo que queria e estava acostumada com pessoas lhe pedindo para servir
de intermediária, e, aliviada, buscou refúgio na fórmula convencional.
– Sinto muito que esteja em dificuldades – disse ela.
– Estamos mesmo, senhorita, e isto é só o começo. Se ao menos
tivéssemos conseguido outra colocação, mas o gerente não quer nem ouvir
falar de nós. Não foi culpa nossa, mas…
Nisso a impaciência de Lily já tinha chegado ao limite.
– Se tem algo para me dizer… – interpôs.
O ressentimento da mulher pela rejeição pareceu estimular seu
raciocínio lento.
– Sim, Senhora, estou chegando lá – disse. Então fez outra pausa, com
os olhos fixos em Lily, e em seguida continuou, num tom de narrativa
difusa: – Quando estávamos no Benedick eu era encarregada de cuidar da
limpeza de alguns apartamentos; dava uma boa varrida, aos sábados, pelo
menos. Alguns cavalheiros recebiam uma grande quantidade de cartas:
nunca vi igual. O cesto de lixo deles vivia abarrotado e os papeis acabavam
caindo no chão. Talvez por receberam tanta coisa eles acabavam se
descuidando. Alguns eram piores do que os outros. Mr. Selden, Mr.
Lawrence Selden, era sempre o mais cuidadoso: queimava as suas cartas no
inverno e rasgava em pedacinhos no verão. Mas as vezes ele recebia tantas
que acumulava tudo, assim como os outros e rasgava tudo de uma vez…
assim.
Enquanto falava ela desamarrou o barbante do pacote que estava em
suas mãos e então colocou uma carta sobre a mesa entre Miss Bart e ela.
Conforme tida dito, a carta estava rasgada em dois, mas com um gesto
rápido ela juntou as duas partes e alisou a folha.
Uma onda de indignação perpassou Lily. Ela se sentiu na presença de
algo perverso, mas vagamente insinuado – o tipo de maldade que as pessoas
sussurram, mas da qual ela nunca imaginara que fosse afetar a sua vida. Ela
recuou com um movimento de desgosto, mas seu recuou revelou uma súbita
descoberta: sob a luz do candelabro de Mrs. Peniston ela reconheceu a letra
da carta. Era uma caligrafia desconjuntada, com algo de masculino que
disfarçava um pouco a sua falta de linearidade, e as palavras, rabiscadas
com uma grossa camada de tinta sobre a folha clara, aguçou os ouvidos de
Lily para o que viria em seguida.
A princípio ela não percebeu a importância da situação. Tinha
entendido apenas que tinha diante de si uma carta escrita por Bertha Dorset
e supostamente endereçada a Lawrence Selden. Não estava datada, mas a
cor forte da tinta indicava que tinha sido escrita recentemente. O maço em
poder de Mrs. Haffen sem dúvida continha mais cartas do mesmo tipo –
uma dúzia, Lily conjecturou. A carta à sua frente era curta, mas as poucas
palavras que chamaram sua atenção numa primeira passada de olhos
contaram uma longa história – uma história sobre o qual, ao longo dos
últimos quatro anos, os amigos da missivista riram e se cutucaram, vendo-a
como uma entre as incontáveis, “acontecimentos” da comédia mundana.
Agora o outro lado se apresentava a Lily, o lado vulcânico inferior da
superfície sobre o qual conjecturas e insinuações deslizavam suavemente
até a primeira fissura transformar os sussurros em gritos. Lily sabia que não
havia nada que a sociedade se ressentisse mais do que o fato de ter dado
proteção àqueles que não souberam aproveitá-la: é por ter traído a
conivência que o corpo social pune aqueles que são descobertos. E neste
caso não restava dúvida quanto à questão. O código do mundo de Lily
decretava que o marido de uma mulher deveria ser o único juiz da conduta
dela: tecnicamente ela estava cima de suspeitas enquanto contasse com a
proteção da aprovação dele, ou até mesmo com a indiferença. Mas em se
tratando de um homem com o temperamento de George Dorset, condenação
não era uma hipótese – aquele que tivesse nas mãos as cartas de Bertha
Dorset, poderia destruir com um toque toda a estrutura da sua existência. E
justo nas mãos de quem o segredo de Bertha Dorset fora cair! Por um
momento a ironia da coincidência obliterou o desgosto de Lily com uma
confusa sensação de triunfo. Mas o desgosto prevaleceu – todas as suas
resistências instintivas, de gosto, de treino, de escrúpulos cegos herdados,
se rebelaram contra outros sentimentos. Seu sentimento mais forte era o de
contaminação pessoal.
Ela se afastou, como se quisesse impor o máximo de distância
possível entre ela e a visitante.
– Não sei nada sobre estas cartas – disse. – Não faço a menor ideia do
por que as trouxe aqui.
Mrs. Haffen a encarou com firmeza.
– Vou lhe dizer, senhorita. Eu as trouxe aqui para vendê-las, pois não
tenho outro jeito de conseguir arrumar dinheiro e se não pagarmos o nosso
aluguel até amanhã à noite seremos despejados. Nunca fiz isso antes e se
pudesse falar com Mr. Selden ou Mr. Rosedale para pegarem o Haffen de
volta no Benedick; vi você conversando com Mr. Rosedale na entrada,
naquele dia que esteve no aparamento de Mr. Selden…
O sangue subiu para a testa de Lily. Agora ela compreendera – Mrs.
Haffen estava pensando que ela era a autora das cartas. Seu primeiro ímpeto
foi de tocar a sineta e mandar a mulher embora, mas um impulso obscuro a
conteve. A menção do nome de Selden disparou uma nova linha de
pensamentos. As cartas de Bertha Dorset não significavam nada para ela –
elas podiam ser levadas de acordo com as ondas! Mas Selden estava
inextricavelmente ligado ao destino delas. Na pior das hipóteses, os homens
não costumam sofrer muito com este tipo de exposição; e neste caso a
rápida passada de olhos indicou que as cartas eram apelos – repetidos e
provavelmente não respondidos – para a retomada de um laço que o tempo
evidentemente tinha afrouxado. Mesmo assim, o fato de a correspondência
ter caído em mãos de estranhos poderia condenar Selden por negligência
numa das questões mais imperdoáveis para o mundo; e havia riscos graves
a serem considerados em se tratando de um homem de equilíbrio instável
como Dorset.
Se levou em consideração todas essas coisas foi inconscientemente,
pois ela só sabia que Selden iria querer resgatar essas cartas, e isto ela
poderia fazer. Sua mente não foi além. O que passou pela sua cabeça, na
verdade, foi uma ideia de devolver as cartas para Bertha Dorset e o que
ganharia em troca pelo favor prestado; mas o pensamento iluminou um
precipício do qual ela recuou envergonhada.
Enquanto isso Mrs. Haffen, ao perceber a hesitação, e já tinha aberto o
pacote e espalhado o conteúdo sobre a mesa. Todas as cartas tinham sido
coladas com tirinhas de papel fino. Algumas estavam em pedacinhos, outras
rasgadas ao meio apenas. Apesar de não serem muitas, despois de
espalhadas elas cobriram a mesa. Os olhos de Lily pousaram sobre uma
palavra aqui e outra ali – então ela falou baixinho:
– Quanto você quer?
O rosto de Mrs. Haffen corou de satisfação. Estava claro que a moça
estava assustada e Mrs. Haffen era a causadora de tais temores.
Antecipando uma vitória mais fácil do que imaginara, ela impôs uma soma
exorbitante.
Mas Miss Bart mostrou ser uma presa menos fácil do que o esperado.
Recusou o valor, e após um momento de hesitação, fez uma contraproposta
de metade da quantia.
Mrs. Haffen se endireitou. As mãos avançaram na direção das cartas
abertas, e dobrando-as lentamente, ela fez como se estivesse pensando em
guardá-las.
– Acho que elas valem mais para você do que para mim, senhorita,
mas os pobres precisam viver assim como os ricos – observou
sentenciosamente.
Lily tremia de medo, mas a insinuação fortaleceu a sua resistência.
– A senhora está enganada – disse com indiferença. – Ofereci o que
estou disposta a pagar por estas cartas, mas podem haver outros meios de
consegui-las.
Mrs. Haffen olhou desconfiada: era muito experiente para não saber
que a transação que estava envolvida oferecia riscos tão grandes quantos os
rendimentos e ela imaginou a elaborada máquina de vingança que uma
palavra desta moça poderia disparar.
Ela escondeu os olhos com a ponta do xale e murmurou por trás deste
que não prestava tentar se aproveitar de uma pobre mulher, que ela nunca
tinha se envolvido em um negócio com este antes, que jurava como cristã
que ela e Haffen pensaram apenas que as cartas não deveriam ir além.
Lily permaneceu imóvel, mantendo entre ela e a faxineira a máxima
distância possível para continuar falando baixinho. A ideia de barganhar
pelas cartas era intolerável, mas ela sabia que, se mostrasse fraqueza, Mrs.
Haffen iria aumentar a oferta original.
Depois de tudo, ela não conseguia se lembrar de quanto tempo durou
o duelo, ou qual foi a tacada final, após um lapso de tempo marcado em
minutos pelo relógio, em horas pelo ritmo acelerado da pulsação, que a
colocou em posse das cartas; ela só sabia que a porta finalmente tinha sido
fechada e que estava sozinha com um pacote na mão.
Ela nem pensou em ler as cartas; só de abrir o jornal sujo de Mrs.
Haffen já parecia degradante. Mas o que ela pretendia fazer com aquilo? O
destinatário tinha tentado destruí-las e era obrigação sua realizar o desejo
dele. Ela não tinha direito de ficar com elas – fazê-lo apagaria qualquer
mérito por ter assegurado a posse. Mas como destruí-las de um modo tal
que não houvesse um segundo risco de caíram em outras mãos? A grade da
lareira brilhava com seu lustro proibitivo: o fogo, assim como as lâmpadas,
nunca eram acessos a menos que tivessem companhia.
Miss Bart estava virando para levar as cartas para cima quando ouviu
outra porta se abrindo, e, em seguida sua tia entrou na sala de estar. Mrs.
Pensiton era uma mulher pequena e rechonchuda, de pele pálida e poucas
rugas. Os cabelos grisalhos estavam presos com precisão, e suas roupas
pareciam novas e ao mesmo tempo um pouco fora de moda. Eram sempre
pretas e de corte justo com um brilho exagerado: ela era o tipo de mulher
que vestia preto no desjejum. Lily nunca a vira, senão em seus trajes pretos
brilhantes, de botinhas justas, com um ar de quem estava pronta para
começar, mas nunca começava.
Seus olhos percorreram a sala de estar de um jeito minucioso.
– Vi um raio de luz escapando de uma das cortinas quando cheguei: é
incrível como não consigo ensinar aquela mulher a fechá-la direito.
Depois de corrigir a irregularidade, ela se sentou em uma das
poltronas de veludo roxo: Mrs. Peniston sempre se sentava em uma cadeira,
nunca na poltrona.
Então voltou-se para Miss Bart.
– Minha querida, você parece cansada; suponho que tenha sido a
agitação do casamento. Cornelia Van Alstyne estava cheia de novidades.
Molly estava lá e Gerty Farish deu uma passadinha de um minuto para nos
contar tudo. Achei esquisito eles terem servido melões antes do consomé:
um brunch de casamento deve começar pelo consomé. Molly não gostou
muito dos vestidos das madrinhas. Ela soube por Julia Melson que eles
custaram trezentos dólares cada, na Celeste’s, mas ela disse que não
parecia. Estou feliz que você tenha recusado o convite para ser madrinha;
aquele tom de salmão rosado não ia lhe cair bem.
Mrs. Peniston se divertiu falando sobre os mínimos detalhes da festa
que ela não tinha participado. Nada e nem ninguém conseguiu convencê-la
a se expor ao esforço e ao cansaço que seria ir ao casamento de um Van
Osburgh, mas seu interesse era tamanho no evento que, depois de ter ouvido
duas versões, ela agora estava preparada para extrair uma terceira da
sobrinha. Lily, no entanto, não prestou muita atenção aos detalhes do
evento. Não lembrava qual era a cor do vestido de Mrs. Van Osburgh e não
sabia dizer nem mesmo se o antigo aparelho de jantar Sevres dos Van
Osburgh tinha sido usado na mesa da noiva. Mrs. Peniston, em suma,
descobriu que a sobrinha sabia menos do que ela.
– Francamente, Lily, não sei por que se deu ao trabalho de ir ao
casamento se não se lembra do que aconteceu ou quem estava lá. Quando
eu era mocinha costumava guardar o cardápio de todos os jantares que eu ia
e escrevia os nomes das pessoas no verso; e só joguei fora minhas
lembrancinhas dos bailes pouco antes do seu tio morrer, quando me pareceu
inadequado ter tantas coisas coloridas espalhadas pela casa. Lembro-me que
eu tinha um armário cheio e ainda sei dizer em qual baile ganhei cada uma.
Molly Van Alstyne me lembrou de quando eu tinha a mesma idade dela; é
notável o quanto ela é observadora. Ela contou para a mãe exatamente
como era o vestido de noiva e descobrimos pela prega nas costas que o
vestido era da Paquin.
Mrs. Peniston se levantou abruptamente, aproximou-se do relógio
ormolu adornado com uma Minerva de capacete, que ficava majestoso
sobre a cornija da lareira entre dois vasos de malaquite, e passou o lenço de
renda entre o capacete e a viseira.
– Eu sabia. A arrumadeira nunca tira o pó daqui! – exclamou,
exibindo triunfante o pontinho escuro no lenço. Em seguida, sentou-se
novamente e continuou: – Molly achou que Mrs. Dorset era a mulher mais
bem-vestida do casamento. Não tenho dúvida de que o vestido dela custou
mais do que o de qualquer outra, mas não faço ideia de quanto: uma
combinação de zibelina com renda milanesa. Parece que ela está
frequentando a loja de um homem novo, em Paris, que não pega uma
encomenda sem que a sua cliente tenha passado um dia com ele sua vila em
Neuilly. Ela diz que precisa observar as clientes no dia a dia. Muito
esquisito isso! Mas Mrs. Dorset contou para Molly que a vila era linda e
que ela sentiu muito por ter que ir embora. Molly disse que nunca a viu tão
bem; ela estava de ótimo humor e disse que tinha ajeitado o casamento
entre Evie Van Osburgh e Percy Gryce. Pelo jeito ela exerce uma grande
influência sobre aquele jovem. Ouvi dizer que agora ela está interessada
naquele garoto tonto do Siverton, que andou com a cabeça virada pela
Carry Fisher, e que tem jogado assustadoramente. Bem, como eu estava
dizendo, Evie está mesmo noiva. Mrs. Dorset arquitetou para que ela
conhecesse Percy Gryce e Grace Van Osburgh está no céu. Ela estava
praticamente desesperada para casar Evie.
Mrs. Peniston fez outra pausa, mas desta vez sua atenção não se
prendeu nos móveis e sim na sobrinha.
– Cornelia Van Alstyne ficou tão surpresa: ela tinha ouvido falar que
você ia se casar com o jovem Gryce. Ela se encontrou com os Wetherall
logo depois que eles voltaram de Bellomont e Alice Wetherall tinha certeza
de que havia um noivado. Ela disse que quando Mr. Gryce partiu
inesperadamente numa manhã, todos pensaram que ele tinha corrido para a
cidade para comprar o anel.
Lily se levantou e caminhou em direção à porta.
– Estou cansada, acho que vou para cama – disse; e Mrs. Peniston,
distraída pela descoberta de que o cavalete que sustentava o último quadro
de Mr. Peniston não extava corretamente alinhado com o sofá à frente,
respondeu ao beijo da sobrinha com aceno distraído.
Em seu quarto Lily pegou o acendedor a gás e olhou na direção da
grade da lareira. Não estava tão polida quanto a de baixo, mas ali pelo
menos ela poderia queimar alguns papeis sem correr o risco de levar uma
bronca da tia. Mesmo assim não fez nenhum movimento neste sentido;
apenas se largou sobre uma poltrona e olhou cansada ao redor. Seu quarto
era grande e bem decorado – era motivo de inveja e admiração para a pobre
Grace Stepney, que morava em uma pensão; mas, comparando com os tons
claros e os toques de requinte dos quartos de hóspedes nos quais Lily
passara tantas semanas da sua existência, ele parecia tão assustador quanto
uma prisão. O armário monumental e a cama de nogueira escura eram
herança do quarto de Mr. Peniston e o papel de parede magenta “flocado”,
uma estampa que tinha sido moda no início dos anos 1860, contavam com
gravuras grandes de personagens históricos em molduras de latão.
Lily tentara melhorar a decoração sem charme com alguns toques
alegres, colocando uma penteadeira enfeitada com renda e uma mesinha
pintada cheia de fotografias, mas a tentativa em vão chocou-a quando ela
olhou ao redor. Que diferença da elegância sutil do ambiente que ela tinha
imaginado para si mesma – um apartamento que deveria superar o luxo
intrincado dos ambientes dos seus amigos por meio da sua sensibilidade
artística, que fazia com que ela se sentisse tão superior a eles; onde cada
detalhe e linha deveriam combinar entre si para enaltecer a sua beleza e
conferir distinção as suas horas de folga! Mais uma vez a sensação de feiura
física foi intensificada pela sua tristeza mental, tanto que cada peça do
ofensivo mobiliário parecia ostentar seu ângulo mais agressivo.
As palavras da sua tia não tinham trazido nada de novo, mas foram
recebidas com a visualização de Bertha Dorset, sorrindo, gabando-se,
vitoriosa, ridicularizando-a ao fazer insinuações inteligíveis para cada
membro do pequeno círculo deles. A ideia do ridículo tocou-a mais
profundamente do que qualquer outro sentimento. Lily conhecia cada um
dos jargões alusivos que podiam esfolar suas vítimas sem arrancar sangue.
Suas faces arderam só de pensar nisso e ela levantou e pegou as cartas. Não
tinha mais intenção destruí-las: a intenção tinha sido confrontada com o
poder destrutivo das palavras de Mrs. Peniston.
Em vez disso, ela se aproximou da escrivaninha, acendeu uma vela,
embrulhou e fechou pacote; então abriu o armário, pegou uma caixa de
arquivo e guardou as cartas dentro. Enquanto o fazia, se deu conta com um
lampejo de ironia que estava em dívida com Gus Trenor pelos recursos
utilizados para a compra das cartas.
Capítulo 10
O outono se arrastou monótono. Miss Bart recebeu uma ou duas
cartinhas de Judy Trenor, brava por ela não ter retornado para Bellomont,
mas que foram respondidas de modo evasivo, alegando a obrigação de
permanecer com a tia. Na verdade, no entanto, ela já estava mais do que
cansada da existência solitária ao lado de Mrs. Peniston, apenas a
empolgação de gastar o dinheiro recém-adquirido amenizou o tédio dos
dias.
Durante toda a sua vida Lily vira o dinheiro indo embora com a
mesma rapidez que entrara, e quaisquer que fossem as teorias que cultivasse
quanto à prudência de guardar uma parte dos seus ganhos, ela infelizmente
não fazia ideia dos riscos do curso oposto. Foi uma imensa satisfação sentir
que, por alguns meses ao menos, não precisaria contar com a bondade das
amigas, que poderia se exibir sem temer que nenhum olhar mais aguçado
pudesse detectar em seu vestido reformado algum traço do esplendor de
Judy Trenor. O fato de que o dinheiro a libertara temporariamente de todas
as obrigações menores obliterou seu sentimento de prioridade que isto
representava, e como nunca soube o que era ter uma quantia tão grande, ela
se entregou ao prazer de gastá-la.
Foi numa destas ocasiões que, ao sair de uma loja onde tinha passado
uma hora deliberando sobre a elegância enredada de um estojo de toillete,
que ela cruzou com Miss Farish, que entrara no mesmo estabelecimento
com o modesto objetivo de mandar consertar seu relógio. Lily estava se
sentindo extraordinariamente virtuosa. Tinha resolvido adiar a compra do
estojo de toillete até que recebesse a conta do seu novo manto para ir à
ópera e a resolução a fez se sentir muito mais rica do que quando entrara na
loja. Tomada pela sensação de satisfação pessoal a sua visão para com o
próximo tinha se tornando mais branda, e ela ficou impressionada com a
expressão de desespero da amiga.
Miss Farish, ao que parece, tinha acabado de sair de uma reunião de
um comitê de caridade, do qual ela fazia parte. O objetivo do grupo era
oferecer alojamentos confortáveis, com uma sala de leitura e outras
distrações modestas, onde moças que trabalhavam nos escritórios da cidade
pudessem se sentir à vontade nas horas de folga, ou descansar, mas o
balanço das doações recebidas no primeiro ano mostrara-se tão ruim que
Miss Farish, que estava convencida da necessidade deste trabalho, se sentia
proporcionalmente desencorajada pelo pouco interesse que a iniciativa
despertara. O sentimento com relação ao próximo não tinha sido cultivado
em Lily e ela costumava se cansar com os esforços filantrópicos da amiga,
mas neste dia sua imaginação fértil visualizou o contraste entre a sua
situação e a de alguns “casos” descritos por Gerty. As moças eram jovens
como ela; algumas talvez até mais bonitas, outras sem nenhum traço da sua
sensibilidade apurada. Ela se imaginou levando uma vida como a delas –
uma vida a qual as conquistas pareciam tão miseráveis quanto os fracassos
– e a visão a fez estremecer de pena. A quantia para a compra do estojo de
toillete ainda estava em seu bolso; e tirando de dentro da bolsinha dourada
ela depositou uma boa parte do montante na mão de Miss Farish.
A satisfação advinda do ato foi tudo que o mais ardente moralista
poderia ansiar. Lily sentiu um novo interesse por si mesma como uma
pessoa de instintos caridosos: nunca tinha imaginado antes em fazer o bem
com a riqueza com o qual sempre sonhara possuir, mas agora seu horizonte
tinha se expandindo pela visão de uma filantropia pródiga. Além disso, por
meio de alguma lógica obscura, ela sentiu que seu rompante monetário de
generosidade justificou todas as suas extravagâncias anteriores e desculpava
quaisquer ainda que estivessem por vir. A surpresa e a gratidão de Miss
Farish confirmaram o sentimento e Lily se foi com uma sensação de
autoestima que naturalmente confundiu com altruísmo.
Nesta época ela andava muito animada com o convite para passar o
Dia de Ação de Graças em uma casa de campo em Adirondacks. Se o
convite tivesse sido feito um ano antes teria sido recebido com bem menos
entusiasmo, pois a recepção, apesar de ter sido organizada por Mrs. Fisher,
estava sendo oferecida por uma dama de origem obscura e indomáveis
ambições sociais, que até então Lily vinha evitando travar contato. Agora,
no entanto, ela estava disposta a concordar com o ponto de vista de Mrs.
Fisher, de que não importava quem estivesse dando a festa, contanto que
tudo fosse feito de acordo com os conformes. E os preparativos – sob
supervisão competente – eram o ponto forte de Mrs. Wellingont Bry. A
dama, cujo consorte era conhecido como “Welly” Bry na Bolsa de Valores e
nos meios esportivos, já tinha sacrificado um marido e diversas
considerações menores em nome da sua determinação de se dar bem; e, ao
obter o apoio de Carry Fisher, ela foi astuta o suficiente para perceber o
quão sábio seria se entregar inteiramente ao direcionamento da dama em
questão. E tudo foi feito de acordo com os conformes, pois não havia
limites para Mrs. Fisher quando ela não estava gastando seu próprio
dinheiro e, como observou para sua pupila, uma boa cozinha era o melhor
cartão de visitas para a sociedade. Se os convidados não eram tão seletos
quanto a Cozinha, os Welly Bry ao menos tiveram a satisfação de figurar
pela primeira vez nas colunas sociais acompanhados de um ou dois nomes
famosos; e entre estes estava, é claro, o de Miss Bart. A jovem foi tratada
pelos anfitriões com correspondente deferência e ela gostava deste tipo de
atenções, seja lá de quem fosse. A admiração de Mrs. Bry foi um espelho
onde Lily recuperou a satisfação consigo mesma. Nenhum inseto deposita
seus ovos em teias tão frágeis quanto as que sustentam o peso da vaidade
humana e a sensação de ser importante entre os insignificantes foi suficiente
para restaurar a gratificante consciência de poder de Miss Bart. Se essas
pessoas faziam questão de recebê-la isto provava que ela ainda era famosa
no mundo ao qual elas aspiravam; e ela se divertiu ao encantá-las com seu
refinamento, ao fazê-los desenvolver a percepção da sua superioridade.
Talvez a fonte do seu divertimento tenha vindo mais dos estímulos
físicos do passeio, do desafio do exercício frio e duro, da reação do seu
corpo sob as influências das florestas no inverno. Ela retornou para a cidade
com um brilho de rejuvenescimento, ciente de ter ganhado um novo tom
nas faces, uma nova elasticidade dos músculos. O futuro parecia repleto de
promessas vagas e todas as suas apreensões tinham desaparecido com a
melhora do seu humor.
Alguns dias depois da sua volta para a cidade ela teve a desagradável
surpresa de uma visita de Mr. Rosedale. Ele apareceu tarde, num horário
inoportuno, quando a badeja de chá ainda aguardava perto do fogo
amigavelmente; e seus modos indicaram uma disposição para se adaptar a
intimidade da ocasião.
Lily, que desconfiava que de algum modo ele estivesse ligado a sua
sorte especulativa, tentou recebê-lo de acordo com o esperado por ele; mas
havia algo na genialidade dele que lhe causava arrepios, e ela sabia que
cada passo que dava nesta nova amizade significava um novo erro.
Mr. Rosedale – mostrando-se muito à vontade em uma poltrona
adjacente, e bebericando seu chá crítico, fez o seguinte comentário: – Você
deveria procurar o meu fornecedor para conseguir algo de qualidade –
parecia nem notar a repugnância com o qual ela se mantinha imóvel por trás
do samovar. Talvez fosse exatamente a sua maneira de se manter distante
que despertasse a paixão do seu cobrador pelo raro e inatingível. De
qualquer maneira ele não demonstrou nenhum sinal de ressentimento e
parecia preparado para suprir, a seu modo, toda a desenvoltura que faltava
para ela.
O motivo da sua visita era para convidá-la para ir a ópera no seu
camarote na noite de estreia, e ao perceber a hesitação dela ele disse
persuasivo:
– Mrs. Fisher também vai e garanto que também vai um grande
admirador seu, que não vai me perdoar se não aceitar meu convite.
Ao perceber que o silêncio de Lily o deixou com a alusão em mãos,
ele adicionou com um sorriso confidencial:
– Gus Trenor prometeu que virá para a cidade só para isso. Acho que
ele seria capaz de tudo pelo prazer de encontrá-la.
Miss Bart ficou irritada. Já era desagradável o bastante ouvir seu
nome associado ao de Trenor e nos lábios de Rosedale a alusão soou ainda
pior.
– Os Trenor são meus melhores amigos; creio que todos nós faríamos
de tudo para nos encontrarmos – disse ela, ocupando-se com o preparo de
um chá fresco.
O sorriso do visitante se tornou ainda mais íntimo.
– Bem, eu não estava me referindo à Mrs. Trenor. Dizem que Gus
nem sempre, você sabe... – então, ao se dar conta de que tinha passado da
linha, ele adicionou, tentando disfarçar: – Por falar nisso, como está indo a
sua sorte em Wall Sreet? Ouvi dizer que Gus ganhou uma boa quantia para
você no mês passado.
Lily pousou com um gesto abrupto a lata de chá. Sentiu que suas
mãos estavam tremendo e as colocou sobre os joelhos para disfarçar; mas
seus lábios também tremiam, e por um momento ela temeu que o tremor
pudesse transparecer em sua voz. Entretanto, quando falou foi num tom
perfeitamente moderado.
– Ah, sim. Eu tinha uma pequena quantia para investir e Mr. Trenor,
que costuma me ajudar nesses assuntos, me aconselhou a investir em ações
em vez de em uma aplicação, como o agente da minha tia queria que eu
fizesse; e assim tive uma “virada” de sorte; é assim que vocês falam? Pois
creio que o senhor também tenha ganhado uma boa quantia.
Ela estava sorrindo de volta para ele agora, relaxando a tensão da sua
pose e admitindo-o, por meio de imperceptíveis graduações de olhar e
modos, um passo adiante da intimidade. O instinto de proteção sempre a
ajudou a dissimular com sucesso e esta não foi a primeira vez que ela usou
a beleza para desviar a atenção de um tópico inconveniente.
Quando Mr. Rosedale se foi, ele levou junto, não apenas a aceitação
do seu convite, mas um sentimento de ter se comportado de um modo
calculado em prol da sua causa. Ele sempre acreditara que tinha jeito e
sabia lidar com as mulheres e o modo como Miss Bart (como teria dito ele)
tinha “entrado na linha”, reafirmou a confiança no seu poder de lidar com o
sexo oposto. Ele viu a maneira como ela discorreu com certo desdém sobre
a transação com Trenor como um tributo à sua própria perspicácia e uma
confirmação das suas suspeitas. A moça de fato ficou muito nervosa e Mr.
Rosedale, quando percebeu que não tinha outro meio de estreitar seus laços
de amizade com ela, resolveu se aproveitar do nervosismo dela.
Ele deixou Lily com um sentimento de indignação e medo. Parecia
inacreditável que Gus Trenor tivesse falado sobre ela para Rosedale. Apesar
de todos seus defeitos, Trenor respeitava as suas tradições e era pouco
provável que passasse por cima disso, uma vez que era puramente
instintivo. Mas Lily lembrou que Judy uma vez lhe confidenciara que, às
vezes, Gus “falava demais”. Numa dessas ocasiões, sem dúvida, ela deixara
escapar a história. Quanto a Rosedale, após o primeiro choque, ela não
estava muito preocupada com as conclusões que ele pudesse ter tirado.
Apesar de normalmente ser esperta quando o assunto eram seus próprios
interesses, desta vez ela cometeu um erro, algo que não era incomum às
pessoas cujos hábitos sociais são instintivos, de supor que a incapacidade de
contraí-los rapidamente gera uma vaga apatia. Quando uma garrafa azul se
choca irracionalmente contra uma vidraça, o ser natural da sala de estar
pode se esquecer de que em condições menos artificiais é possível medir a
distância e calcular com toda precisão necessária para garantir a sua
segurança; e o fato de o comportamento de Mr. Rosedale numa sala de estar
carecer de perspectiva levou Lily a colocá-lo no mesmo patamar de Trenor
e outros homens apáticos que ela conhecia, e assumir que um charminho, e
a aceitação do seu convite, bastariam para torná-lo inócuo. Entretanto, não
havia como deixar de comparecer ao camarote dele na noite de estreia da
ópera; e como Judy Trenor tinha prometido recebê-lo naquele inverno, esta
poderia ser uma boa oportunidade de ser a primeira no campo.
Durante um ou dois dias após a visita de Rosedale, os pensamentos de
Lily foram assombrados pela reivindicação implícita de Trenor e ela ansiou
saber com clareza qual era a natureza exata da transação que parecia tê-la
colocado nas mãos dele. Mas sua mente sempre fugiu de esforços incomuns
e em se tratado de números ela sempre ficava confusa. De qualquer maneira
ela não via Trenor desde o dia do casamento de Van Osburgh e, por sua
prolongada ausência, os rastros das palavras de Rosedale logo foram
substituídos por outras hipóteses.
Quando chegou o dia da estreia da ópera, suas apreensões tinham
desaparecido tão completamente que a visão do semblante avermelhado de
Trenor no fundo do camarote de Mr. Rosedale causou uma agradável
sensação e segurança. Lily ainda não tinha se conformado muito com a
necessidade de aparecer como convidada de Rosedale em uma ocasião de
tamanho destaque, e foi um alívio poder contar com o apoio do seu meio,
pois os hábitos sociais de Mrs. Fisher eram muito promíscuos para que a
sua presença pudesse justificar a de Miss Bart.
Para Lily, sempre inspirada pela perspectiva de exibir sua beleza em
público, e ciente de que àquela noite contaria ainda com o charme adicional
da sua roupa, o olhar insistente de Trenor se juntou a onda de olhares de
admiração da qual ela se sentia o centro. Ah, como era bom ser jovem,
radiante, brilhar com a sensação de esbelteza, força e elasticidade, de linhas
proporcionais e tons alegres, de se sentir elevada por conta desta graça
indescritível que é a contrapartida corporal da genialidade!
Todos os meios pareciam justificáveis na obtenção deste fim, ou
melhor, com uma rápida mudança de luzes cuja prática ensinara a Miss
Bart, a causa foi reduzida a um pontinho no efeito geral do brilho. Mas
jovens brilhantes, um pouco cegas com a própria efusão, tendem a
esquecer-se que o modesto satélite ofuscado pela luz delas continua girando
e gerando calor no seu próprio ritmo. Se o desfrute do momento poético de
Lily não foi perturbado pelo pensamento básico de que seu vestido e a sua
capa de ópera tinham sido pagos indiretamente por Gus Trenor, este não
possuía poeticidade suficiente na sua composição para perder de vista estes
fatos prosaicos. Ele só sabia que nunca tinha visto Lily tão bela em toda a
sua vida e que não havia nenhuma mulher no local tão bem-vestida quanto
ela, e que ele, a quem ela devia a oportunidade de realizar tal exibição, não
tinha recebido nada em troca além do direito de olhar para ela
acompanhado de centenas de olhos.
Lily foi acometida por isso mais tarde na forma de uma desagradável
surpresa quando, no fundo do camarote, quando ficaram sozinhos durante o
intervalo, Trenor disse, sem preâmbulos, e num tom irritado:
– Escute aqui, Lily, o que um sujeito precisa fazer para se encontrar
com você? Costumo ficar na cidade três ou quatro dias por semana e você
sabe o número do telefone do clube onde pode me encontrar, mas parece
que se esquece de que existo a menos quando quer uma dica.
O fato de o comentário ter sido grosseiro não facilitou a resposta, pois
Lily sabia muito bem que aquele não era o momento para empertigar a sua
figura esquia e erguer as sobrancelhas surpresa, gesto este que costumava
usar para reprovar sinais de exagerada intimidade.
– Fico lisonjeada por querer me ver – devolveu com toda calma –,
mas a menos que tenha se esquecido do meu endereço, seria mais fácil me
encontrar na casa da minha tia qualquer tarde dessas. Na verdade, prefiro
que vá me ver lá.
Se esperava amolecê-lo com esta última concessão a tentativa foi um
fracasso, pois ele respondeu, com seu conhecido levantar de sobrancelhas
que faziam que aparentasse estar ainda mais estúpido quando estava bravo:
– Visitá-la na casa da sua tia e desperdiçar a tarde ouvindo outros
sujeitos conversando com você! Você sabe muito bem que não sou do tipo
que gosta de sentar e ficar de conversinha; sempre preferi me manter longe
desse tipo de rodinhas. Mas por que não podemos ir juntos para algum lugar
mais tranquilo; fazer um passeio agradável como àquele que fizemos em
Bellomont, no dia que você foi me buscar na estação de trem?
Ele se inclinou desagradavelmente perto ao fazer a sugestão e ela
sentiu um odor significante que explicou o rubor da sua face e o brilho
ensebado da sua testa.
A ideia de que qualquer resposta ríspida pudesse resultar num
rompante desagradável moderou seu impulso, e ela respondeu com uma
risada:
– Não sei como fazer um passeio sossegado pela cidade, mas nem
sempre estou cercada de um bando de admiradores, e se me avisar que dia
pretende aparecer posso cuidar para que possamos ter uma conserva
tranquila e agradável.
– Bater papo! Você sempre diz isso – retorquiu Trenor, cujo
vocabulário era um pouco restrito. – Você me dispensou no casamento de
Van Osburgh, mas a verdade é que agora que conseguiu o que queria de
mim, você prefere a companhia de outros sujeitos.
Sua voz se ergueu ríspida nas últimas palavras e Lily ruborizou
irritada, mas manteve o controle da situação e pousou a mão persuasiva
sobre o braço dele.
– Não seja tolo, Gus. Não posso permitir que fale assim comigo. Se
realmente deseja me ver, o que acha de darmos um passeio pelo parque
numa tarde dessas? Também gosto da ideia de passeios sossegados pela
cidade e se quiser, posso encontrá-lo lá, e então podemos caminhar e
alimentar os esquilos, e você pode me levar para dar um passeio de barco
no lago.
Ela sorriu enquanto falava e olhou nos olhos dele de um modo tal que
o fez ceder a sua vontade.
– Certo, vamos fazer isso. Pode ser amanhã? Às três da tarde, no final
da Mall. Estarei lá as três em ponto, lembre-se. Não me deixe esperando,
Lily.
Mas para alívio de Miss Bart a aceitação da sua promessa foi
interrompida pela súbita abertura da porta do camarote para entrada de
George Dorset.
Trenor cedeu seu lugar contrariado e Lily soltou um lindo sorriso para
o recém-chegado. Ela não falara com Dorset desde a estada deles em
Bellomont, mas algo no seu jeito de olhar e trejeitos indicou que ele se
lembrava do agradável passeio que tinham feito juntos da última vez que se
encontraram. Ele não era um homem de expressar admiração tão
facilmente. Seu longo rosto pálido e olhos desconfiados pareciam sempre
travados para as emoções espontâneas. Mas, em se tratado da sua própria
influência, a intuição de Lily nunca falhava, e ao abrir espaço para ele no
sofá estreito ela teve certeza de que ele sentiu um prazer entorpecedor por
estar perto dela. Poucas mulheres se davam ao trabalho de agradar Dorset, e
Lilly tinha sido gentil com ele em Bellomont, e agora, mais uma vez, sorria
para ele.
– Bem, aqui estamos nós para encarar seis meses de gritaria outra vez
– iniciou ele, contemplativo. – Nenhuma sombra de diferença do ano
passado, tirando que as mulheres estão com roupas novas e a voz dos
cantores não mudou. Minha esposa gosta de música, sabe, e me obriga a
passar por isso todo inverno. Até que não é ruim nas noites das óperas
italianas, nesses dias ela chega atrasada, e dá tempo de fazer a digestão
melhor. Mas quando apresentam Wagner temos que jantar correndo e eu
pago caro por isso. E as correntes de ar são nocivas: aperto na frente e
inflamação pleural nas costas. Trenor acabou de sair e não fechou as
cortinas! Se bem que elas não oferecem muita proteção contra as correntes
de ar. Você já viu Trenor comendo? Se já viu, não acha estranho que ainda
esteja vivo; acho que ele é revestido de couro por dentro também… Mas
vim lhe dizer que a minha esposa quer que você nos faça uma visita no
próximo domingo. Por favor, diga sim. Ela vai receber um monte de gente
chata, intelectuais. É a nova mania dela, sabe, não sei se não é pior do que a
música. Alguns usam cabelos compridos e começam uma discussão na
sopa, e não notam quando os pratos são oferecidos. Aquele tonto do
Silverton que os levou para a nossa casa. Ele escreve poesia, sabe, e Bertha
e ele estão ficando muito grudados. Ela seria capaz de escrever melhor do
que qualquer um deles se quisesse e não a culpo por querer viver cercada de
gente inteligente; só digo que: ‘Não queira vê-los comendo!’
A estranheza do aviso divertiu Lily. Numa situação normal, não teria
nada de estranho no convite de Bertha Dorset, mas desde o episódio em
Bellomont uma hostilidade declarada mantinha as duas mulheres distantes.
Agora, apesar de ainda ter uma pontinha de desconfiança, Lily achou que a
sede de vingança dela tinha se esgotado. Se puder perdoe seu inimigo, dizia
o provérbio malaio, mas primeiro faça-o sofrer; e Lily tinha experimentado
a verdade do apotegma. Se tivesse destruído as cartas de Mrs. Dorset teria
continuado odiando-a, mas o fato de ainda estarem em seu poder saciara o
seu ressentimento.
Ela aceitou com um sorriso, vendo na renovação do laço uma
possibilidade de fugir das investidas inoportunas de Trenor.
Capítulo 11
Enquanto isso, as festas de final de ano passaram e a temporada
estava começando. A Quinta Avenida tinha se transformado em um fluxo
noturno de carruagens subindo para os quarteirões elegantes próximos ao
Parque, onde vitrines iluminadas e toldos davam as costumeiras boas-
vindas. Outros fluxos tributários cruzavam a corrente principal, levando
seus passageiros para os teatros, restaurantes ou ópera. Da janela da sua
torre de vigília, Mrs. Peniston era capaz de dizer com exatidão quando o
volume do tráfego aumentava, se o fluxo estava indo para um baile dos Van
Osburgh, ou quando a multiplicação de rodas significava apenas que a
ópera tinha acabado, ou que estava sendo oferecido um banquete no
Sherry’s.
Mrs. Peniston acompanhava a temporada desde o início até o auge
com o mesmo entusiasmo de um participante; e, como observadora, ela se
divertia com a oportunidade de fazer comparações e generalizações que
aqueles que participavam deviam renunciar proverbialmente. Ninguém era
capaz de fazer um relato mais preciso de todos os acontecimentos sociais,
ou apontar com mais detalhes os acontecimentos mais marcantes de cada
temporada: os aborrecimentos, extravagâncias, falta de bailes ou excesso de
divórcios. Ela tinha uma memória especial para as vicissitudes das “novas
pessoas” que surgiam na superfície a cada nova maré, ou os que eram
submersos ou os que sobreviviam triunfantes fora do alcance das
rebentações invejosas. Tinha anda uma capacidade tão notável de discorrer
sobre qual seria o fim deles, que, quando eles cumpriam com seus destinos,
quase sempre ela podia dizer para Grace Stepeney – a recipiente das suas
profecias – que já sabia que aquilo iria acontecer.
Essa temporada em particular Mrs. Peniston poderia ter classificado
como a que todos “empobreceram” menos os Welly Bry e Mr. Simon
Rosedale. Tinha sido ruim um outono na Wall Street, os preços tinham
caído de acordo com aquela lei peculiar que prova que as ações das
ferrovias e os fardos de algodão são mais suscetíveis à atribuição do poder
do executivo do que muitos cidadãos de respeitos treinados para tirar
vantagem de um governo autônomo. Até mesmo as fortunas supostamente
independentes do mercado acabaram mostrando uma dependência secreta
ou acabaram se rendendo: os ricos ficaram amuados em suas casas de
campo, ou vieram incógnitos para a cidade, as grandes festas foram
diminuindo, e a informalidade e os jantares mais intimistas entraram em
alta.
Mas a sociedade, que achou divertida brincar de Cinderela por um
tempo, logo se cansou do papel e recebeu de braços abertos a fada madrinha
na forma de qualquer mágico poderoso o suficiente para transformar a
abóbora enrugada em uma carruagem de ouro novamente. O simples fato de
enriquecer quando os investimentos da maioria estão diminuindo é passível
de atrair olhares invejosos; e de acordo com os boatos que corriam em Wall
Street, Welly Bry e Rosedale tinham descoberto o segredo de fazer este
milagre.
Diziam que Rosedale, por exemplo, tinha dobrado a sua fortuna e
corria um boato de que ele estava comprando a casa recém-construída de
uma das vítimas da quebradeira. Outro boato era que, no curto intervalo de
doze meses, ele tinha a mesma quantia de milhões e que havia construído
outra casa na Quinta Avenida, enchido uma galeria de quadro com os
antigos mestres da pintura, recebido toda Nova York e fugido do país
escondido entre uma enfermeira e um médico, deixando seus credores de
olho nos antigos mestres da pintura e seus convidados dizendo uns para os
outros que só aceitaram jantar com ele porque queriam ver os quadros.
Mas, na verdade, Mr. Rosedale visava ter uma carreira menos
meteórica. Ele sabia que deveria ir devagar e os instintos da sua raça o
capacitaram para suportar rejeições e saber esperar. Ele percebeu, contudo,
que a apatia geral da temporada lhe oferecia uma oportunidade ímpar de
brilhar e se empenhou nisso com uma paciência diligente para formar um
pano de fundo para a sua glória em ascensão. Mrs. Fisher lhe foi muito útil
neste período. Ela tinha lançado tantos rostos novos na sociedade que era
como se ela fosse um daqueles croquis de teatro que explica exatamente o
que vai acontecer para o espectador calejado. Mas Mr. Rosedale queria, em
longo prazo, um ambiente mais exclusivo. Ele percebia as várias maneiras
que miss Bart tinha de se mostrar indiferente à sua presença, pois lhe
faltavam as variações correspondentes de modos; e estava ficando cada vez
mais claro para ele que miss Bart possuía as qualidades complementares
necessárias para dar o toque final a sua alavancada social.
Tais detalhes escapavam do campo de visão de Mrs. Peniston. Como
muitas mentes de visão panorâmica, a sua era capaz de ignorar o que estava
na cara, e era muito provável que ela soubesse dizer onde Carry Fisher tinha
arrumado o chef de cozinha para Welly Bry do que o que estava
acontecendo com a sua própria sobrinha. Já a mente de Grace Stepney
parecia mais um papel mata-moscas moral, para o qual os zumbidos das
fofocas eram atraídos por uma atração fatal e elas ficavam presas por conta
de uma memória inexorável. Lilly teria ficado surpresa em saber quantos
fatos triviais sobre ela estavam guardados na cabeça de miss Stepney. Ela
tinha consciência de que era motivo de interesse para pessoas pobres, mas
sempre achou que só existia uma forma de pobreza e que a admiração pelo
brilho era uma expressão natural do estado de inferioridade. Ela sabia que
Gerty Farish a admirava cegamente e assim supunha que inspirava os
mesmos sentimentos em Grace Stepney, a quem ela classificava como uma
Gerty Farish sem os atrativos da juventude e entusiasmo.
Não obstante, as duas eram tão distintas uma da outra quanto diferiam
os objetos de contemplação de cada uma. O coração de miss Farish era uma
fonte de ilusões ternas, o de miss Stepney era um registro preciso de fatos
que diziam respeito a ela mesma. Ela tinha sensibilidades que, para Lily,
pareciam patéticas para uma pessoa tinha sardas no nariz e pálpebras
avermelhadas, morava em uma pensão e achava linda a sala de estar de
Mrs. Peniston; mas as limitações da pobre Grace lhe proporcionaram uma
vida interior mais centrada, pois assim como os solos pobres mata de fome
determinadas plantas nos mais ricos elas florescerem. Ela, na verdade, não
tinha propensões abstratas para malícia; não gostava de Lily porque ela era
brilhante e exuberante, mas porque achava que Lily não gostava dela. É
menos constrangedor para a pessoa acreditar que ela é impopular em vez de
insignificante e a vaidade prefere assumir que a indiferença é uma forma
latente de inimizade. Até mesmo o modo distante com que Lily tratara Mr.
Rosedale nas poucas ocasiões que se encontraram teriam servido para
fortalecer a sua amizade com miss Stepney para sempre; mas como ela
poderia prever o quanto valeria a pena cultivar tal amizade? Como uma
moça que nunca foi ignorada poderia dimensionar a dor que tais lesões são
capazes de infligir? E, por último, como Lily, acostumada a pressão das
escolhas, poderia adivinhar que tinha ofendido mortalmente miss Stepney
ao excluí-la de um dos raros jantares oferecidos por Mrs. Peniston?
Mrs. Peniston não gostava de oferecer jantares, mas tinha obrigações
para com a sua família, e quando Jack Stepney retornou da lua de mel ela se
sentiu na obrigação de ascender as lâmpadas da sua sala de estar e tirar a
prataria do cofre. As raras festas oferecidas por Mrs. Peniston eram
precedidas por dias de preparos detalhados, que abrangiam desde o lugar
que cada convidado iria ocupar a estampa da toalha de mesa. Ao longo de
uma dessas discussões preliminares ela teve a imprudência de sugerir à
prima Grace que, como se tratava de um jantar apenas para a família, ela
deveria participar. Por uma semana a perspectiva iluminou a existência
opaca de miss Stepney; depois deram a entender que seria melhor que ela
viesse jantar outro dia. Miss Stepney sabia exatamente o que tinha
acontecido. Lily, que considerava encontros de família ocasiões
extremamente maçantes, convenceu a tia de que um jantar de pessoas
“inteligentes” iria agradar mais ao jovem casal, e Mrs. Peniston, que se
apoiava cegamente na desenvoltura social da sobrinha, se viu obrigada a
anunciar o exílio de Grace. Afinal, Grace poderia muito bem vir qualquer
outro dia; por que ela iria se importar em ser deixada de fora?
Foi exatamente porque miss Stepney poderia vir outro dia – e porque
ela sabia que suas aflições aconteciam na reclusão das suas noites
desocupadas – que o incidente ganhou proporções gigantescas no seu
horizonte. Ela sabia que deveria agradecer a Lily por isso e o ressentimento
se transformou em animosidade.
Mrs. Peniston, quem ela foi visitar um ou dois dias depois do jantar,
abaixou o crochê e desviou abruptamente os olhos que observavam
oblíquos a Quinta Avenida.
– Gus Trenor? Lily e Gus Trenor? – disse empalidecendo tão
subitamente que a visitante chegou a assustar.
– Oh, tia Julia… claro que eu não quis dizer…
– Não sei o que você quis dizer – disse Mrs. Pensiton, com um tremor
assustado na voz. – No meu tempo nunca ouvíamos falar de tais coisas. E a
minha própria sobrinha! Não sei se entendi direito. As pessoas estão
dizendo que ele está apaixonado por ela?
O espanto de Mrs. Peniston era sincero. Apesar de viver se gabando
por saber de tudo que acontecia na sociedade, ela tinha a inocência de uma
colegial que achava que a maldade era uma parte da “história”, e para quem
nunca ocorrera que os escândalos sobre os quais lia na sala de aula
poderiam estar se repetindo na rua ao lado. Mrs. Peniston mantinha a
imaginação encoberta, igual fazia com os móveis da sala de estar. Claro que
ela sabia que a sociedade tinha “mudado muito”, e que muitas mulheres que
sua mãe teria considerado “peculiares” agora se encontravam numa posição
passível de críticas por conta das suas listas de visitantes; ela tinha discutido
sobre os perigos do divórcio com o pároco, as vezes agradecia por Lily
ainda estar solteira, mas a ideia de que qualquer escândalo pudesse estar
ligado ao nome de uma moça, acima de tudo, que pudesse estar
ligeiramente relacionado com um homem casado, foi uma surpresa tão
grande que até pareceu que ela tinha acabado de ser acusada de ter deixado
os tapetes expostos no verão, ou violado qualquer outra lei obrigatória dos
cuidados com a casa.
Miss Stepney, passado o primeiro susto, começou a sentir a
superioridade que uma visão mais ampla é capaz de conferir. Era mesmo
lamentável o modo como Mrs. Peniston ignorava tudo que acontecia no
mundo! Ela sorriu para a última pergunta.
– As pessoas sempre falam coisas desagradáveis, mas eles têm sido
vistos juntos com frequência. Uma amiga encontrou com eles uma tarde
dessas no Parque; no final da tarde, as luzes até já estavam acesas. É uma
pena que Lily esteja agindo de modo tão conspícuo.
– Conspícuo! – exclamou Mrs. Peniston. Ela se inclinou para frente,
abaixando a voz para mitigar seu horror. “Que tipo de coisas estão dizendo?
Que ele pretende se divorciar para casar com ela?
Grace Stepney riu com gosto.
– Minha nossa, não! Ele não faria isso. É apenas um flerte, nada mais.
– Um flerte? Entre a minha sobrinha e um homem casado? Você está
insinuando que, com a beleza e as vantagens de Lily, ela não poderia
arrumar um jeito melhor de passar o tempo em vez de perdê-lo com aquele
gordo idiota que praticamente tem idade para ser pai dela? – o argumento
foi tão forte que Mrs. Peniston recuperou a segurança para retomar seu
trabalho de mão, enquanto esperava Grace Stepney recuperar as forças.
Mas miss Stepney não demorou a se recuperar.
– É pior do que isso. Estão dizendo que ela não está perdendo tempo!
Todos sabem, como a senhora diz, que Lily é muito bonita e muito
encantadora para se dedicar a um homem como Gus Trenor a menos que…
– A menos? – ecoou Mrs. Peniston. A visitante respirou fundo,
nervosa. Tudo bem chocar Mrs. Peniston, mas não ao ponto de despertar a
sua ira. Miss Stepney não conhecia suficientemente bem os dramas
clássicos para lembrar como os portadores de más notícias são
proverbialmente recebidos, mas ela teve uma rápida visão dos jantares
perdidos e do seu guarda-roupa reduzido como a possível consequência do
seu desinteresse. Em nome da honra do seu sexo, no entanto, o ódio por
Lily ficou acima de considerações mais pessoais. Mrs. Peniston escolhera o
momento errado para se gabar sobre os encantos da sua sobrinha.
– A menos – disse Grace, aproximando-se para falar num tom de voz
baixo e mais enfático –, a menos que existam vantagens materiais por ser
tão gentil.
Ela sentiu que o momento era crucial e lembrou, de repente, que o
brocado preto de Mrs. Peniston, com franja preta, poderia ser seu no final
da temporada.
Mrs. Peniston abaixou o trabalho novamente, olhando as coisas por
outro ângulo. Sentiu que estava abaixo da sua dignidade ser atormentada
por um parente dependente que usava suas roupas velhas.
– Se sente prazer em me irritar com insinuações misteriosas – disse
friamente –, poderia ao menos ter escolhido um momento mais adequado
do que esse, enquanto ainda estou me recuperando do desgaste de ter
oferecido um banquete.
A menção ao jantar acabou com os escrúpulos que ainda restavam à
miss Stepney.
– Não sei se deveria ser acusada de sentir prazer em lhe contar sobre
Lily. Eu sabia que não iria receber nenhum agradecimento por isso –
retomou com ardor. – Mas ainda me resta alguma consideração pela família
e como a senhora é a única pessoa que tem alguma autoridade sobre Lily,
achei que deveria saber o que estão falando sobre ela.
– Bem – disse Mrs. Peniston – só estou reclamando por ainda não ter
me contado o que estão dizendo.
– Não achei que deveria lhe contar de uma forma tão direta. Estão
dizendo que Gus Trenor paga as contas dela.
– Paga as contas dela… a contas dela? – Mrs. Peniston caiu na risada.
– Não imagino onde você escutou tal bobagem. Lily tem a sua própria
renda e sou muito generosa com ela.
– Oh, todo mundo sabe disso – interpôs miss Stepney de modo seco. –
Mas Lily se veste muito bem…
– Gosto que ela ande bem-vestida; é o certo!
– Claro, mas ela também tem algumas dívidas de jogo.
Miss Stepney, no começo, não esperava chegar a este ponto; mas a
culpa foi da incredibilidade de Mrs. Peniston. Ela parecia um descrente que
teima em não acreditar nas Escrituras, que para se convencer precisa ser
aniquilado.
– Dívidas de jogo? Lily? – a voz de Mrs. Peniston vacilou de raiva e
surpresa. Ela desconfiou que talvez Grace Stepney pudesse estar louca. – O
que você quer dizer com dívidas de jogo?
– Simplesmente que se alguém joga bridge a dinheiro no grupo de
Lilly este alguém corre o risco de perder uma grande quantia; e acho que
Lily nem sempre ganha.
– Quem lhe contou que a minha sobrinha joga baralho a dinheiro?
– Desculpe-me, prima Julia, não me olhe como se eu estivesse
tentando jogá-la contra Lily! Todo mundo sabe que ela é louca por bridge.
Mrs. Gryce me contou que foi o fato de ela jogar que assustou Percy Gryce.
Parece que ele estava gostando dela. Mas, obviamente, entre as amigas de
Lily é normal uma moça jogar a dinheiro. Na verdade, as pessoas a
perdoam por…
– Perdoam do quê?
– Por não ter dinheiro e aceitar as atenções de homens como Gus
Trenor… e George Dorset…
Mrs. Peniston soltou outro grito.
– George Dorset? Tem mais alguém? Prefiro saber de tudo, por favor.
– Não fale assim, prima Julia. Ultimamente Lily tem sido vista com
frequência na companhia dos Dorset, e ele parece gostar dela, mas claro que
isso é natural. Estou certa de que não há nenhum fundo de verdade nestas
coisas horríveis que as pessoas estão dizendo; mas ela gastou uma grande
quantia de dinheiro no inverno passado. Evie Van Osburgh estava na
Celeste’s encomendando seu enxoval, dia desses, sim, o casamento será no
mês que vem, e ela me contou que Celeste lhe mostrou as coisas
maravilhosas que seriam enviadas para casa de Lily. E dizem que Judy
Trenor brigou com ela por causa do Gus; mas estou arrependida por ter
contado, embora só tenha feito com as melhores intenções.
A genuína incredibilidade de Mrs. Peniston fez com que a senhora
dispensasse miss Stepney com um desdém que estragou as intenções da
moça de ganhar o brocado. Contudo, as mentes impenetráveis à razão
geralmente possuem alguma abertura por onde as desconfianças conseguem
penetrar e as insinuações da visitante não deslizaram tão facilmente quanto
ela esperava. Mrs. Peniston não gostava de cenas e sua determinação de
evitá-las sempre a levou a ficar à parte dos detalhes da vida de Lily. Quando
ela era jovem, as mocinhas não necessitavam de supervisão acirrada.
Geralmente esperava-se que elas assumissem as rédeas da corte e do
casamento, e interferências em tais questões por parte de seus guardiões
naturais eram consideradas tão indesejáveis quanto um espectador que
resolve entrar no jogo de repente. Claro que mesmo no tempo de Mrs.
Peniston já existiam garotas mais “avançadinhas”; mas a pressa delas, na
pior das hipóteses, era vista como um mero excesso de instinto animal,
contra isso não havia acusações mais graves do que serem chamadas de
“vulgares”. A rapidez moderna parecia ser sinônimo de imoralidade e a
simples ideia de imoralidade era tão ofensiva para Mrs. Peniston quanto
cheiro de comida na sala de estar: esta era uma das concepções que sua
mente se recusava a admitir.
Ela não tinha intenção de repetir para Lily o que tinha ouvido, nem
mesmo confirmar se era verdade por intermédio de um discreto
interrogatório. Fazer isso poderia provocar uma cena; e uma cena, no estado
de nervos que Mrs. Peniston se encontrava, junto com os efeitos do jantar
que ainda não tinham passado, e a sua mente ainda abalada com as últimas
notícias, era um risco que ela achou por bem evitar. Mas em seus
pensamentos ficaram um fundo de ressentimento contra a sua sobrinha,
mais pesados ainda porque não poderiam ser esclarecidos com uma
explicação ou uma conversa. Era horrível uma moça permitir ser alvo de
comentários, por mais infundadas que fossem as acusações, ela era culpada
por terem sido levantadas. Mrs. Peniston tinha a sensação de que havia uma
doença contagiosa na sua casa e que ela estava condenada a ficar sentada
tremendo entre seus móveis contaminados.
Capítulo 12
Miss Bart, de fato, andara fora da linha e nenhum crítico seu era mais
severo do que ela mesma; mas ela possuía um senso de direção fatalista que
a guiava de um caminho errado para outro, e só via o caminho certo quando
já era demasiado tarde.
Lily, que se considerava acima dos preconceitos, nunca imaginou que
o fato de permitir que Gus Trenor cuidasse da sua pequena fortuna pudesse
lhe tirar o sossego. E mesmo assim o fato em si não parecia nada demais; o
único problema era que se tratava de uma fonte fértil de complicações
perigosas. Quando se cansou de gastar o dinheiro, tais complicações se
tornaram mais evidentes, e Lily, cujo raciocínio lógico era capaz de traçar
os motivos do seu azar para os outros, justificou para si mesma que a causa
de todos os seus problemas era a inimizade de Bertha Dorset. A tal
inimizade, no entanto, aparentemente tinha acabado quando a amizade entre
as duas mulheres foi renovada. A visita que Lily fez aos Dorset resultou,
para as duas, na descoberta de que elas poderiam usar uma a outra; e o
instinto civilizado sente um leve prazer em usar seu antagonista em vez de
confrontá-lo. Mrs. Dorset estava, na verdade, envolvida com uma nova
experiência sentimental, da qual a última propriedade de Mrs. Fisher, Ned
Silverton, era a vítima; e em momentos como estes, como observou uma
vez Judy Trenor, ela sentia uma necessidade peculiar de desviar as atenções
do marido. Dorset era tão difícil de ser distraído quanto um selvagem, mas a
sua resistência não era páreo para os talentos de Lily, ou melhor, estes
tinham a capacidade de se adaptarem para acalmar um temperamento tão
egocêntrico. Sua experiência com Percy a ajudou muito a administrar os
humores de Dorset, e, se o incentivo para agradar não era tudo isso, as
dificuldades da situação em que se encontrava estavam ensinando-a a
aproveitar as pequenas oportunidades.
A proximidade com os Dorset não ajudava a apaziguar as dificuldades
no âmbito financeiro. Mrs. Dorset nunca foi dado aos impulsos
extravagantes de Judy Trenor e a admiração de Dorset não era do tipo que
se expressava na forma de “dicas” financeiras, assim como Lilly também
não se preocupou em renovar suas experiências nessa linha. O que ela
precisava, naquele momento, da amizade dos Dorset, era simplesmente uma
sanção social. Ela sabia que as pessoas estavam começando a falar dela;
mas este fato não a alarmou tanto quanto tinha alarmado Mrs. Peniston. No
seu meio tais fofocas não eram raras, e uma moça bonita que flertava com
um homem casado era vista simplesmente com alguém que tinha
aproveitado as oportunidades. Foi Trenor que a assustou. O passeio deles no
parque não tinha sido um sucesso. Trenor se casara muito jovem, e desde o
casamento seu relacionamento com as mulheres nunca chegara a assumir a
forma de uma conversinha sentimental, que se desdobra igual os caminhos
de um labirinto. No começo ele ficou confuso e irritado ao perceber que
sempre acabava voltando à estaca zero, e Lily sentiu que estava
gradualmente perdendo o controle da situação. Trenor, na verdade, estava
com um humor incontrolável. Apesar do seu acordo com Rosedale ele
vinha perdendo o “toque” com a queda das ações; as despesas domésticas
estavam pensando no seu bolso, e ele parecia encontrar, por todos os lados,
uma oposição sombria aos seus desejos, em vez da sorte fácil que vinha
experimentando até então.
Mrs. Trenor ainda se encontrava em Bellomont, mantendo a casa de
portas abertas, e saindo vez ou outra para ver o mundo, mas preferindo a
excitação recorrentes dos encontros de final de semana às restrições de uma
temporada chata. Desde as festas de final de ano que ela não voltara a
insistir que Lily voltasse a Bellomont, e a primeira vez que se encontraram
na cidade Lily percebeu certa frieza no modo com a tratou. Seria apenas
uma mera expressão de descontentamento pela ausência de Miss Bart, ou
será que os boatos inquietantes tinham chegado aos seus ouvidos? A última
opção parecia improvável, mesmo assim Lily ficou preocupada. Se tinha
um lugar em que as suas afinidades errantes tinham criado raiz era na
amizade com Judy Trenor. Ela acreditava na sinceridade do carinho da
amiga, apesar de às vezes este se mostrar de forma interesseira, e se
recusava acreditar no risco de perdê-lo. Além disso, ela sabia muito bem
como tal afastamento iria refletir nela. O fato de Gus Trenor ser marido de
Judy foi o grande motivo que levou Lily a não gostar dele, e que a levou a
se ressentir da obrigação que ele impôs. Para sanar as dúvidas, logo depois
do Ano Novo, Miss Bart “propôs” a si mesma passar uma semana em
Bellomont. Ela sabia que o grande número de convidados iria protegê-la do
assédio insistente de Trenor, e o telegrama “venha sem falta” que sua
esposa mandara foi interpretado com uma garantia da sua acolhida de
sempre.
Judy a recebeu amigavelmente. Os preparativos para receber um
grupo grande sempre foi prioridade para ela, e Lily não notou nenhuma
mudança na sua anfitriã. Mas logo ela percebeu que sua estada em
Bellomont estava destinada ao fracasso. O grupo era composto pelo que
Mrs. Trenor classificava como “gentinha” – seu nome genérico para
pessoas que não jogavam bridge – e, como tinha o hábito de juntar todos
aqueles que colocam obstáculo em tudo na mesma categoria, normalmente
ela os convidava na mesma ocasião, independente de outras características
que pudessem ter. O resultado era uma combinação irredutível de pessoas
que não tinham nada em comum além do fato de não jogarem bridge, e os
antagonismos crescentes em um grupo de pessoas que não tem nada em
incomum, mas que deveria uni-los, foi agravado pelo mal tempo e pelo
desânimo indisfarçado dos anfitriões. Em situações de emergências como
estas, Judy costumava recorrer a Lilly para fundir os elementos
discordantes; e Miss Bart, assumindo que tal serviço era sua especialidade,
se empenhou com o afinco de sempre. Mas no começo ela sentiu certa
resistência aos seus esforços. Se por um lado os modos de Mrs. Trenor com
relação a ela não tinham mudado, havia certa frieza nos das outras damas.
Uma alusão ácida aos “seus amigos, os Wellington Bry” ou ao “judeuzinho
que comprou a casa de Greiner – alguém disse que você o conhece, Miss
Bart” –mostrou para Lily que ela não era bem-vista por aquela parcela da
sociedade, que não estava se divertindo nada com a sua presença, e assim
resolveu arrumar algo para se divertir.
A indireta foi sutil, e anos antes Lilly teria rido disso e confiado nos
seus encantos para anular quaisquer preconceitos. Mas agora ela estava
mais suscetível às críticas e menos confiante no seu poder de desarmá-las.
Além disso, ela descobriu que se as damas presentes em Bellomont se
permitiam criticar abertamente suas amigas, isto era prova de que não
tinham medo de fazer as mesmas críticas pelas suas costas. O medo de que
algo nos modos de Trenor pudesse confirmar a desaprovação delas levou-a
a inventar inúmeros pretextos para evitá-lo, e assim ela acabou indo embora
de Bellomont ciente de que tinha falhado em cada um dos objetivos que a
levaram para aquele lugar.
Na cidade ela retomou as preocupações que, por hora, tinham
contribuído para espantar os pensamentos indesejados. Os Welly Bry, após
muito discutirem, e se acolherarem com suas novas amigas, resolveram dar
um passo ousado e oferecer uma grande festa. Atacar a sociedade em peso,
quando seus limites de aproximação estavam limitados a alguns poucos
conhecidos, é como avançar em um país estrangeiro com um número
insuficiente de batedores, e os Bry estavam determinados a desafiar o
destino. Mrs. Fisher, a quem eles confiaram a organização da festa, decidiu
que [2]Tableaux Vivants e música de qualidade eram as duas iscas perfeitas
para atrair as presas desejadas, e após longas negociações, e depois de
puxar as cordas certas, ela conseguiu convencer uma dúzia de mulheres
elegantes para pousaram numa série de cenas que, por um milagre do pai da
persuasão, o distinto pintor, Paul Morpeth, concordou em organizar.
Lily sentiu-se no seu habitat. Sob a orientação de Morphet seu
aguçado senso estético, até então estimulado apenas para criar e envergar
belos vestidos, encontrou uma forma de expressão ardente na disposição
das dobras dos tecidos, estudo de poses, mudanças de luzes e sombras. Seu
instinto teatral foi despertado com a escolha das modelos, e as maravilhosas
reproduções de vestidos de época estimulando uma imaginação que
somente as impressões visuais eram capazes de alcançar. Mas o melhor de
tudo foi a exibição da sua própria beleza sob um novo aspecto: de mostrar
que seu encanto não era uma mera questão fixa, mas um elemento capaz de
se moldar a todos as emoções para assumir novas formas.
As medidas de Mrs. Fisher tiveram boa aceitação, e a sociedade,
surpreendida num momento sombrio, sucumbiu à tentação da hospitalidade
de Mrs. Bry. A minoria que protestou foi ignorada pela multidão que
relevou e compareceu; e a plateia era quase tão brilhante quanto o
espetáculo.
Lawrence Selden estava entre os que tinham se rendido aos
divertimentos oferecidos. Se nem sempre agia de acordo com o axioma
social aceito que diz que um homem deve ir onde quiser, era porque há
muito tempo tinha descoberto que só encontrava divertimento num pequeno
grupo de mentalidade semelhante. Mas ele apreciou os efeitos espetaculares
e sabia muito bem qual tinha sido o papel do dinheiro na produção: tudo
que esperava era que os ricos se deixassem envolver pela vocação de
patrocinadores das artes, e não desperdiçassem seu dinheiro com bobagens.
Disso os Bry certamente não poderiam ser acusados de estarem fazendo. A
casa recentemente construída que tinham comprado, apesar de um pouco
impessoal, tinha sido quase tão bem projetada para a exibição de uma
montagem festiva quanto os belos salões arejados que os arquitetos
italianos projetavam para receber os príncipes. O ar de improviso era
assustadoramente latente: tudo parecia tão novo, o cenário da encenação tão
envolvente que era preciso tocar nas colunas de mármore para se certificar
de que não eram de papelão, sentar em uma das cadeiras estofadas de
adamascado dourado para ter certeza de que não tinham sido pintadas na
parede.
Selden, que tinha testado um desses assentos, encontrava-se, em um
canto do salão de baile, observando a cena e se divertindo muito. Os
convidados, em obediência ao instinto decorativo que pedia por roupas
finas em um ambiente fino, tinham se trajado mais para combinar com o
ambiente dos Bry do que para agradarem a eles mesmos. A multidão que
ocupava confortavelmente os assentos formava um aglomerado de tecidos
caros e colos adornados com joias que combinava com as paredes
decoradas com festões e dourado e o esplendor vibrante do teto veneziano.
No outro extremo do salão havia um palco montado atrás de um proscênio
fechado com cortinas adamascadas drapeadas; mas no intervalado antes da
abertura das cortinas ninguém estava preocupado com o que elas iriam
revelar, pois cada mulher que tinha aceitado ao convite de Mrs. Bry tentava
descobrir quantas amigas também tinham feito o mesmo.
Gerty Farish, sentada ao lado de Selden, se encontrava perdida
naquele divertimento indiscriminado e inocente que tanto irritava a
sensibilidade de Miss Bart. Pode ser que a proximidade com Selden tivesse
algo a ver com a qualidade do divertimento da sua prima; mas Miss Farish
era tão pouco acostumada a descrever o prazer proporcionado por tais
situações, que talvez simplesmente não fizesse a menor ideia de como era
uma sensação de profundo prazer.
– Não foi gentileza da querida Lily arrumar um convite para mim?
Claro que nunca teria passado pela cabeça de Carry Fisher incluir meu
nome na lista, e eu teria sentido muito se tivesse perdido a oportunidade de
ver tudo isso; especialmente a Lily. Fiquei sabendo que o teto foi pitado por
Veronese; você deve ter percebido, é claro, Lawrence. Acho muito bonito,
mas as mulheres que ele pinta são tão gordas. São deusas? Bem, só sei que
se fossem mortais elas teriam de usar corpete, e ficariam bem melhor. Acho
que as mulheres de hoje são bem mais bonitas. Este salão está maravilhoso,
todos estão tão elegantes! Você já viu tantas joias? Veja as pérolas de Mrs.
George Dorset, acho que a menorzinha delas daria para pagar o aluguel de
um ano do nosso Clube das Moças. Não que eu esteja reclamando do clube;
todos têm sido muito generosos. Contei que Lily doou trezentos mil dólares
para nós? Não foi lindo da parte dela? E depois ela arrecadou um bom
dinheiro com os amigos dela: Mrs. Bry doou quinhentos, e Mr. Rosedale
mil. Eu preferia que Lily não fosse tão gentil para com Mrs. Rosedale, mas
ela diz que não adianta ser rude, pois ela não percebe a diferença. Ela não
sabe magoar as pessoas; fico muito brava quando dizem que ela é fria e
pretensiosa! As meninas do clube não falam isso dela. E quando ela vai lá,
senta e ri com todas; não por caridade, sabe, mas como se realmente
estivesse se divertindo tanto quanto as outras. Elas vivem perguntando
quando ela vai voltar; e ela me prometeu… oh!
As confidências de Miss Farish foram interrompidas pela abertura da
cortina para o primeiro Tableau: um grupo de ninfas dançando sobre a relva
coberta de flores nas poses rítmicas da Primavera de Botticelli. O efeito de
um Tableau Vivants não depende apenas da disposição exata das luzes e da
interposição ilusória de camadas de véus, mas de um ajuste que
corresponda à lembrança que se tem da obra. Para mentes menos cultas
elas podem parecer, apesar do efeito de encantamento despertado pela arte,
apenas como um tipo de superior de bonecos de cera; mas para as mais
cultas podem proporcionar uma espiadela mágicas nos limites que dividem
o mundo real do imaginário. A mente de Selden era deste tipo: ele se
deixou envolver pelos efeitos da imagem como uma criança que se rende ao
encanto de um conto de fadas. Os Tableaus de Mrs. Bry não requeriam
nenhuma das qualidades necessárias para produzir tais efeitos de ilusão, e
sob a batuta de Morpeth, as pinturas foram apresentadas uma após a outra
com a marcha rítmica de um friso esplendido, onde as curvas figurativas da
carne viva e o brilho intenso dos olhos das jovens foram domados pela
harmonia plástica sem perder o encanto da vida.
As cenas foram tiradas de quadros antigos, e as participantes
escolhidas a dedo para representarem os personagens compatíveis com seus
tipos físicos. Ninguém, por exemplo, poderia ter representado melhor um
Goya do que Carry Fisher, com seu rosto ligeiramente moreno, o brilho
exagerado dos olhos, o sorriso franco provocativo. Uma brilhante Miss
Smedden, do Brooklyn, mostrou a perfeição das curvas suntuosas do
quadro A Filha, pintado por Ticiano, segurando uma baixela dourada cheia
de uvas acima dos cachos douradas que combinando com o rico brocado, e
a jovem Mrs. Van Alstyne, que interpretou uma holandesa frágil, com testa
marcada de veias azuis e olhos e cílios pálidos, representou uma típica
personagem de Vandyck, de cetim preto, com uma cortina drapeada ao
fundo. Em seguida vieram as ninfas de Kauffman ao redor do altar do
Amor; um esplendido Veronese, com todas as suas texturas brilhantes,
cabelos enfeitados com pérolas e arquitetura em mármore; e um grupo de
palhaços tocadores de alaúde de Watteau, descansando a beira de uma fonte
em uma clareira iluminada pelo sol.
Cada quadro evanescente tocou profundamente a capacidade de visão
de Selden, envolvendo-o tão profundamente com o panorama representativo
que nem mesmo os comentários de Gerty Farish de “Oh, como Lulu Melson
está linda!” ou “Aquela deve ser Kate Corby, a da direita, de roxo”
conseguiram quebrar o encanto da ilusão. Na verdade, as atrizes
incorporaram tão bem as cenas que estavam representando que até mesmo a
pessoa menos imaginativa da plateia deve ter sentido um tremor de emoção
diante do contraste quando a cortina se abriu subitamente e mostrou um
quadro que era pura e simplesmente um retrato de Miss Bart.
Não havia dúvidas quanto à predominância de personalidade – os
“oh!” em unanimidade dos presentes foram um tributo, não apenas à
representação do retrato de “Mrs. Lloyd”, pintado por Ryenolds, mas pelo
frescor e pela beleza de Lily Bart. Ela mostrara seus conhecimentos de arte
ao escolher um tipo tão parecido com ela que poderia muito bem incorporar
a pessoa representada sem deixar de ser ela mesma. Era como se ela tivesse
pisado, não para fora, mas para dentro do quadro de Reynolds, substituindo
o espectro da sua beleza morta pela luminosidade da sua graça viva. No afã
de se apresentar em um cenário esplendido – ela pensou em representar
Cleopatra de Tiepolo – acabou cedendo ao instinto de confiar na sua beleza
pura e simples, e assim escolheu de propósito um quando que possuía
acessórios como vestido ou cenário que pudessem desviar a atenção. O
vestido claro, e o cenário de folhagens ao fundo, contribuiu para realçar as
longas curvas parecidas com as de uma dríade que se estendiam desde a
ponta do seu pé apoiado no chão até o braço erguido. A leveza nobre da sua
pose, a sugestão de graciosidade crescente, revelava um toque de
poeticidade na sua beleza que Selden sempre sentia quando estava perto
dela, e a sensação de perda quando não estava com ela. Esta expressão foi
tão intensa que pela primeira vez ele teve a sensação de estar diante da
verdadeira Lily Bart, despojada das trivialidades do seu mundinho,
capturando por um momento a nota de eterna harmonia do qual a sua beleza
fazia parte.
– Que ousadia a dela se apresentar nesse traje; mas, céus, não há um
defeito em lugar algum, e acho que ela queria que soubéssemos disso!
Essas palavras, proferidas pelo profundo conhecedor, Mr. Ned Van
Alstyne, cujo bigode branco perfumado roçava o ombro de Selden sempre
que a cortina se abria para alguma oportunidade excepcional de estudo dos
contornos femininos, afetou seu ouvinte de uma maneira inesperada. Não
era a primeira vez que Selden ouvia um comentário sobre a beleza de Lily,
mas até então o teor destes tinham servido apenas para enaltecer a visão que
ele tinha dela. Mas agora tudo que fez foi despertar um desprezo indignado.
Este era o mundo em que ela vivia, estes eram os padrões pelos quais ela
estava destinada a ser mensurada! Alguém perguntou a Caliban o que ele
achava de Miranda?
Durante o longo período antes do fechamento da cortina, ele teve
tempo de vivenciar toda a tragédia da vida dela. Era como se a sua beleza,
desprendida de tudo que a rebaixava e vulgarizava, tivesse lhe estendido
mãos suplicantes de um mundo onde ele e ela uma vez tinham se
encontrado por um momento, e onde ele ansiava imensamente poder estar
com ela outra vez.
Ele foi despertado pela pressão de dedos extasiados.
– Ela não estava linda, Lawrence? Você não a prefere com aquele
vestido simples? Faz com que ela pareça mais com a verdadeira Lily… A
Lily que eu conheço.
Ele percebeu os olhos marejados de Gerty Farish.
– A Lily que nós conhecemos – a corrigiu; e sua prima, concordando
com a insinuação implícita, exclamou entusiasmada:
– Vou contar isso para ela! Ela sempre diz que você não gosta dela.
A apresentação tinha chegado ao fim, o primeiro impulso de Selden
foi ir atrás de Miss Bart. Durante o interlúdio da música que sucedeu o
Tableaux, as atrizes tinham se misturado a plateia, destacando-se dos outros
por conta dos trajes pitorescos. Lily, no entanto, não estava entre elas, e sua
ausência serviu para prolongar o efeito que ela tinha causado em Selden: o
encanto teria sido quebrado se a tivesse visto logo em seguida no meio do
qual por um incidente feliz ela tinha se distanciado. Eles não tinham se
encontrado desde o dia do casamento de Van Osburgh, e de sua parte o
distanciamento tinha sido intencional. Nesta noite, porém, ele sabia que,
mais cedo ou mais tarde, iria se encontrar com ela; e embora tivesse se
deixado levar pela multidão dispersa, sem fazer nenhum esforço imediato
para alcançá-la, a sua procrastinação não tinha nada a ver com uma
resistência insistente, mas sim com o desejo de saborear a sensação de
completa rendição.
Lily nem por um instante teve dúvidas quanto ao significado do
murmurinho admirado para sua aparição. Nenhum outro tableau tinha sido
recebido com aquele tom de aprovação: obviamente tinha sido causado por
ela e não pelo quadro que personificou. No último segundo ela sentiu medo
de estar se arriscando muito ao dispensar as vantagens de um cenário mais
suntuoso, mas a completude do seu triunfo despertou uma sensação
intoxicante de poder recuperado. Sem temer diminuir a impressão que tinha
causado, ela se manteve afastada da plateia até a movimentação de
dispersão antes do jantar, e assim teve uma segunda chance de se
apresentar, enquanto os convidados entravam lentamente na sala de estar
onde ela se encontrava.
Logo ela se viu no centro de um grupo que crescia e se renovava de
acordo com a movimentação, e os comentários sobre o seu sucesso foram
uma prolongação deliciosa do aplauso coletivo. Em tais momentos ela
perdia algo do seu tédio natural, e se importava mais com a quantidade de
admiração recebida do que com a qualidade. As diferenças de personalidade
se fundiam numa atmosfera calorosa de exaltação, onde sua beleza se
expandia como uma flor ao sol; e se Selden tivesse se aproximando um ou
dois segundos antes ele a teria visto voltando para Ned Van Alstyne e
George Dorset o olhar que ele sonhara ganhar.
A sorte, porém, quis que a súbita chegada de Mrs. Fisher, que contava
com a ajuda de Van Alstyne, dispersasse o grupo antes que Selden tivesse
tempo de alcançar a entrada da sala. Um ou dois homens saíram em busca
das suas acompanhantes para jantar, e os outros, ao notarem a aproximação
de Selden, abriram caminho para ele em respeito à camaradagem implícita
do salão de baile. Lily estava sozinha quando ele se aproximou; e ao
encontrar o olhar esperado em seus olhos, ele teve a satisfação de supor que
tinha sido o causador daquele brilho no olhar. O olhar de fato brilhou ainda
mais quando pousou nele, pois até mesmo naquele momento inebriante Lily
sentiu a aceleração do pulso da vida que a proximidade dele sempre
produzia. Ela também viu, no olhar de resposta dele, a deliciosa
confirmação do seu triunfo, e por um momento teve a impressão de que só
queria parecer bonita para ele.
Selden ofereceu o braço sem nada dizer. Ela aceitou em silêncio, e
eles saíram andando, não em direção à sala de jantar, mas contra o fluxo. Os
rostos passavam iguais as imagens nebulosas de um sonho: ela mal notou
para onde Selden estava levando-a, até eles passarem por uma porta de
vidro no final de uma longa sequência de aposentos e de repente darem num
jardim deliciosamente silencioso. O cascalho remexeu sob seus pés, e a
penumbra de uma noite de verão os envolvia. Lanternas penduradas
formavam cavernas verde-esmeralda em meio às folhagens, e o borrifo
branco de uma fonte caía entre os lírios. O lugar mágico estava deserto: não
havia nenhum outro ruído além dos jatos de água que respigavam sobre os
canteiros de lírio, e o vago som distante de música que possivelmente tinha
soprado pelo lago dormente.
Selden e Lilly permaneceram parados, aceitando a irrealidade da cena
como se fizesse parte das suas próprias sensações oníricas. Não teria sido
nenhuma surpresa se tivessem sentido uma brisa de verão em seus rotos, ou
visto as luzes entre os galhos refletidas no arco de um céu estrelado. A
estranha solidão que os envolvia não era mais estranha do que a delícia de
estarem sozinhos ali. Até que finalmente Lily retirou a mão, e se afastou, de
modo que o contorno esbelto do seu corpo contrastou com o tom escuro das
árvores. Selden foi atrás, e ainda sem dizerem nada eles se sentaram em um
banco ao lado da fonte.
De repente, ela ergueu os olhos suplicantes como os de uma criança.
– Você nunca fala comigo; pensa mal de mim – murmurou.
– Deus sabe que penso em você de qualquer jeito! – disse ele.
– Então por que nunca nos encontramos? Por que não podemos ser
amigos? Uma vez você me prometeu que iria me ajudar – ela continuou no
mesmo tom, como se as palavras estivessem saindo contra a sua vontade.
– O único jeito que posso ajudá-la é amando-a – disse Selden com a
voz abafada.
Ela não respondeu, mas voltou-se para ele com um movimento suave
de uma flor. Ele também se moveu lentamente, e seus lábios se tocaram. Ela
recuou e ficou de pé. Selden fez o mesmo, e eles ficaram olhando um para o
outro. De repente, ela tomou a mão dele e a pressionou contra seu rosto.
– Ah, me ama, me ama… não diga isso! – olhou para as mãos dele, e
antes que ele tivesse tempo de dizer alguma coisa, ela já tinha dado as
costas e estava passando pelo arco de galhos, e desaparecendo no brilho da
sala adiante.
Selden permaneceu parado no lugar onde ela o deixara. Conhecia bem
a transigência dos momentos especiais para tentar segui-la; mas logo em
seguida ele entrou na casa e seguiu pelos cômodos desertos até a porta.
Algumas damas em capas suntuosas já estavam reunidas no vestíbulo de
mármore, e no quarto dos casacos ele encontrou Van Asltyne e Gus Trenor.
O primeiro, assim que Selden entrou, pegou um charuto de uma das
convidativas caixas de prata que estavam perto da porta.
– Olá, Selden, também está indo? Vejo que é um epicurista como eu:
não quer ver todas aquelas deusas devorando tartarugas. Céus, que
espetáculo de mulheres lindas; mas nenhuma para tocar naquele meu
amigo. Por falar em joias, por que as mulheres querem tanto ter joias
quando têm elas mesmas para exibir? O que atrapalha são todos aqueles
enchimentos que usam para esconderem seus corpos. Nunca imaginei que
Lily fosse tão esbelta.
– A culpa não é dela que até agora todos já não soubessem disso –
resmungou Trenor, vermelho pelo esforço de tentar entrar no seu casaco
forrado de pele. – Maldito mau gosto, isso sim. Não quero charuto. Não se
sabe o que está fumando em uma dessas casas de novos ricos… não deve
ser o Chef que compra os charutos. Ficar para o jantar? Nem pensar!
Quando as pessoas lotam as salas a ponto de não ser possível conversar com
ninguém, prefiro jantar mais cedo. Minha esposa tinha razão de preferir
ficar em casa: ela diz que a vida é muito curta perder tempo conhecendo
gente nova.
Capítulo 13
Lily despertou após lindos sonhos e encontrou duas cartas no seu
criado-mudo.
Uma era de Mrs. Trenor, avisando que estava vindo para a cidade na
tarde daquele dia para uma visita rápida, e esperava que Miss Bart pudesse
jantar com ela. A outra era de Selden. Ele informava que teria que ir até
Albany para cuidar de um caso importante, e como estaria impossibilitado
de voltar até o final do dia, perguntou a Lily a que horas ela poderia se
encontrar com ele no dia seguinte.
Lily, deitada entre os travesseiros, olhava pensativa para as cartas. A
cena no jardim de Bry tinha sido como uma parte dos seus sonhos; ela não
esperava acordar com uma prova tão forte de que tinha de fato acontecido.
Sua primeira reação foi de irritação: este ato impensado de Selden trazia
mais uma complicação à sua vida. Era tão contra a natureza dele um
impulso tão irracional! Será que ele realmente estava falando sério quando a
pediu em casamento? Ela já tinha apontado para ele a impossibilidade de tal
esperança, e sua reação pareceu mostrar que ele tinha aceitado a situação
com uma racionalidade que feriu sua vaidade. Era melhor saber que tal
racionalidade ainda se mantinha ainda que não pudesse vê-la; mas, como
nada na vida era tão doce quanto sua sensação de poder sobre ele, ela viu o
perigo de permitir que o episódio da noite anterior tivesse seguimento. Uma
vez que não poderia se casar com ele, seria mais gentil para com ele, e mais
fácil para ela mesma, escrever uma linha amigável fugindo do convite para
o encontro: ele não era do tipo que não entendia uma indireta, e da próxima
vez que se encontrassem seria de modo amigável.
Lily pulou da cama e foi direto para a escrivaninha. Queria escrever o
quanto antes, enquanto ainda podia confiar na força da sua determinação.
Ainda estava languida por conta das poucas horas de sono e da agitação da
noite anterior, e a visão da carta de Selden reavivou o momento culminante
do seu triunfo: o momento quando ela viu nos olhos dele que nenhuma
filosofia era páreo para seu poder. Seria muito bom sentir aquela sensação
outra vez… ninguém mais seria capaz de lhe proporcionar aquilo; e ela não
conseguiu estragar a sensação de prazer com uma recusa definitiva. Pegou a
caneta e escreveu rapidamente: “Amanhã as quatro”, murmurando consigo
mesma, enquanto colocava a folha dentro do envelope: “Posso dispensá-lo
amanhã”.
O convite de Judy Trenor foi muito bem recibo por Lily. Era a
primeira vez que recebia um comunicado direito de Bellomont desde a sua
última estada, e desde então ainda temia ter caído em desgraça com Judy.
Mas o característico tom impositivo parecia restabelecer a relação de
amizade; e Lily sorriu ao pensar que sua amiga provavelmente a chamara
para saber como tinha sido a festa de Bry. Mrs. Trenor não tinha ido à festa,
talvez pelo motivo tão francamente alegado pelo seu marido, talvez porque,
como Mrs. Fisher dissera, ela “não suportava os novos ricos só porque não
tinham sido descobertos por ela”. De qualquer maneira, embora não tivesse
arredado os pés de Bellomont, Lily desconfiava que ela estivesse morrendo
de curiosidade para saber o que tinha perdido, e descobrir exatamente até
onde Mrs. Wellington Bry tinha superado todas as suas competidoras
anteriores em nome do reconhecimento social. Lily estava disposta a
satisfazer tal curiosidade, mas o problema era que já tinha um jantar
marcado. Ela resolveu, no entanto, que iria se encontrar com Mrs. Trenor
mais tarde, e depois de tocar a sineta para chamar a criada, ela despachou
um telegrama, informando que iria se encontrar a com a amiga às dez horas
da noite.
Ela ia jantar com Mrs. Fisher, que estava oferecendo um jantarzinho
para algumas das pessoas que tinham se apresentado na noite anterior. Após
o jantar haveria uma apresentação de música folclórica no seu atelier, pois
Mrs. Fisher, desiludida com a política, começara a esculpir, e anexou um
cômodo extra à sua pequena casa, já abarrotada, para seus momentos de
inspiração artística, e que em outras ocasiões servia para o exercício de uma
hospitalidade incansável. Lily não estava com vontade de ir embora, pois a
reunião estava muito divertida e ela teria ficado para fumar mais um cigarro
e ouvir mais algumas músicas; mas ela não poderia faltar ao encontro com
Judy, e as dez em ponto ela pediu a sua anfitriã para mandar chamar um
coche, e seguiu para a Quinta Avenida, onde ficava a casa dos Trenor.
Mas teve de esperar por tanto tempo à porta a ponto de ficar admirada
com a demora de Judy em recebê-la; e sua surpresa foi ainda maior quando,
em vez do criado esperado, vestindo o paletó às pressas por conta do
horário avançado, ela foi introduzida ao vestíbulo apertado por uma pessoa
em trajes simples. Trenor, entretanto, foi quem apareceu na entrada da sala
de estar, dando as boas-vindas com uma desenvoltura estranha enquanto a
ajudava a tirar a capa e a conduzia para a sala.
– Acompanhe-me até a toca; esse é o único lugar confortável nesta
casa. Esta sala não parece estar esperando apenas o corpo ser trazido para
baixo? Não entendo porque Judy mantém a casa toda coberta com estes
panos brancos; se alguém andar por aqui num dia frio pode pegar uma
pneumonia. Por falar nisso, você parece estar arrepiada: está frio lá fora.
Notei quando estava voltando do clube. Venha, vou lhe dar uma dose de
conhaque, e podemos fazer um brinde em frente da lareira e provar um dos
meus novos cigarros egípcios; tenho um amigo na embaixada da Turquia
que me apresentou a marca que quero que você experimente, se gostar
posso conseguir mais para você: eles não são vendidos aqui, mas telefono
para ele.
Ele a conduziu pela casa até uma sala grande nos fundos, onde Mrs.
Trenor costumava ficar, e onde, mesmo na ausência dela, o lugar parecia
estar ocupado. Lá, como sempre, havia flores, jornais, uma escrivaninha
abarrotada de papéis e uma aparência geral de aconchego por conta da luz,
tanto que foi uma surpresa não ver a figura agitada de Judy sentada na
poltrona perto da lareira.
Aparentemente era Trenor que estivera ocupando a poltrona, pois
pairava ao alto uma nuvem de fumaça de cigarro, e ao lado havia uma
dessas intrincadas bandejas com pés que a engenhosidade inglesa inventara
para facilitar o transporte do tabaco e das bebidas. A visão de um aparato
como aquele em uma sala de estar não era novidade no mundinho por onde
Lily circulava, e seu primeiro movimento foi pegar um dos cigarros
recomendados por Trenor, enquanto verificava o motivo de tanta
descontração perguntando com um olhar surpreso:
– Onde está a Judy?
Trenor, um pouco solto por conta da tagarelice incomum, e talvez pela
prolongada proximidade com as garrafas, se curvava sobre uma delas para
tentar decifrar os rótulos prateados.
– Pegue, Lily, só um golinho de conhaque com um pouco de água
gaseificada; você parece estar arrepiada de frio: juro, a ponta do seu nariz
está vermelha. Vou pegar outro copo para lhe fazer companhia. A Judy? Ela
está com uma dor de cabeça terrível, que a derrubou, coitada. Ela pediu
para explicar para você, e recebê-la. Venha se sentar perto do fogo; você
parece estar tremendo. Agora permita que eu a acomode, pobre menina.
Ele segurava a mão dela, de um modo um pouco insinuante, e estava
puxando-a na direção de um banquinho perto da lareira; mas ela parou e
puxou a mão.
– Você está querendo dizer que Judy não está bem para me receber?
Ela não quer que eu suba?
Trenor bebeu de uma só vez a dose que tinha servido e parou para
colocar o copo sobre a mesa antes de responder.
– A verdade é que ela não está bem para receber ninguém. A dor veio
de repente, sabe, e ela me pediu para lhe dizer o quanto sente por isso, e que
se ela soubesse onde você estava jantando teria mandado um recado.
– Ela sabia onde eu estava jantando; mencionei no meu telegrama.
Mas não tem problema, claro. Creio que se ela está tão mal então não vá
retornar para Bellomont amanhã de manhã, e sendo assim posso voltar para
visitá-la, então.
– Sim, claro. Direi para ela que você vai dar uma passadinha aqui
amanhã cedo. Agora sente um pouco, minha querida, e vamos bater um
papinho. Não vai tomar um golinho, nem para me fazer companhia? Diga o
que achou do cigarro. Ou não gostou? Por que está amassando assim o
cigarro?
– Estou amassando porque preciso ir embora, se fizer a gentileza de
chamar um coche para mim – Lily respondeu com um sorriso.
Ela não gostou da descontração incomum de Trenor, com suas
respostas para tudo, e a ideia de ficar sozinha com ele, com sua amiga no
andar de cima, no outro extremo da mansão vazia, não serviu para aumentar
o desejo de prolongar aquele tête-à-têteh deles.
Mas Trenor, com uma rapidez que não passou despercebida, se
interpôs entre ela e a porta.
– Por que precisa ir embora, posso saber? Se Judy estivesse aqui
vocês ficariam fofocando juntas até altas horas, mas para mim você não
pode dar nem cinco minutos! É sempre a mesma história. Na noite passada
não pude nem chegar perto de você; fui naquela maldita festa só para vê-la,
e todos ficaram falando de você, e me dizendo o quanto você estava
maravilhosa, mas sempre que eu tentava me aproximar para uma
palavrinha, você nem notava, e continuava rindo e brincando com bando de
idiotas que só queriam contar vantagem depois, e fazendo cara de
entendidos sempre que seu nome era mencionado.
Ele fez uma pausa, ruborizado pela explosão de sentimentos, e a
encarou com um olhar cujo ressentimento que foi o ingrediente que ela
gostou menos. Mas ela recuperou a presença de espírito, e se postou ereta
no meio da sala, com um sorrisinho que parecia impor uma distância cada
vez maior entre eles.
Em meio a isso ela disse:
– Não exagere, Gus. Já passa das onze, e realmente preciso que você
mande chamar um coche para mim.
Ele permaneceu imóvel, com aquele franzir de testa que ela estava
começando a detestar.
– Suponhamos que eu não mande chamar um, o que você vai fazer,
então?
– Vou para falar com a Judy se me força a perturbá-la.
Trenor avançou mais um passo e posou a mão sobre o braço dela.
– Escute aqui, Lily: será que você não poderia me conceder cinco
minutos de boa vontade?
– Hoje não, Gus: você…
– Muito bem: então vou roubar. E o quanto mais eu quiser. Ele estava
entre o batente da porta, com as mãos nos bolsos. Então acenou com a
cabeça na direção da poltrona próxima à lareira.
– Sente-se lá, por favor: tenho uma coisinha para lhe dizer.
O pavio curto de Lily estava dominando seus temores. Ela se
empertigou e seguiu em direção à porta.
– Se tiver qualquer coisa para me dizer, diga em outra hora. Senão
mandar chamar um coche para mim, vou subir para falar com a Judy.
Ele caiu na risada.
– Pode subir se quiser, querida; mas você não vai encontrar a Judy.
Ela não está em casa.
Lily olhou assustada para ele.
– Você está querendo dizer que Judy não está em casa; nem na
cidade?
– Foi exatamente isso que eu quis dizer – respondeu Trenor, sua
arrogância expressa em seu olhar.
– Bobagem. Não acredito em você. Vou subir – disse ela, impaciente.
Ele abriu caminhou, permitindo que ela passasse pela porta
livremente.
– Pode subir; mas minha esposa está em Bellomont.
Mas Lily teve um lampejo de segurança.
– Se ela não tivesse vindo teria me avisado…
– Ela me telefonou hoje à tarde e pediu que eu lhe desse o recado.
– Não recebi nenhum recado.
– Não enviei nenhum.
Os dois ficaram se encarando por um momento, mas Lily ainda via
seu oponente encoberto por uma sombra de desdém que tornava todas as
outras considerações indistintas.
– Não consigo entender por que está fazendo esta brincadeira boba;
mas se já tiver se divertido o bastante, peço mais uma vez que chame um
coche para mim.
Foi o tom errado, e ela se deu conta enquanto falava. Para ser ferido
pela ironia nem é preciso entendê-la, e os traços de ira no rosto de Trenor
poderiam muito bem ter sido causados por uma chicotada de verdade.
– Escute aqui, Lily, não fale assim comigo.
Mais uma vez ele se aproximou da porta, e num movimento instintivo
de se esquivar dele ela permitiu que ele bloqueasse a saída mais uma vez. –
Eu a enganei, confesso; mas se pensa que estou com vergonha disso está
enganada. Deus sabe que já tive muita paciência e fiquei rodeando feito um
tonto. Enquanto isso você permitia que outros se aproximassem de você…
permitia que rissem de mim… mas sei quando estão tramando pelas minhas
costas… e sei quando estou fazendo papel de bobo.
– Nunca imaginei isso! – exclamou Lily; mas sua risada silenciou sob
o olhar dele.
– Não, você nunca teria imaginado, mas agora você sabe. É por isso
que está aqui nesta noite. Esperei um bom tempo para dizer estas coisas, e
agora que tenho a oportunidade você vai me ouvir.
A primeira onda de ressentimento repreendido foi substituída por um
tom tão calmo e concentrado que desconcertou Lily ainda mais do que o
furor anterior. Por um momento, sua presença de espírito lhe escapou. Mais
de uma vez ela estivera em situações em que uma tirada rápida fora
necessária para disfarçar seu recuo; mas seus batimentos cardíacos
acelerados indicavam que tal artifício não iria adiantar.
Para ganhar tempo, ela repetiu:
– Não estou entendo que você quer.
Trenor tinha colocado uma cadeira entre ela e a porta. Ele se sentou e
recostou olhando para ela.
– Vou lhe dizer o que eu quero: só quero saber em que pé estamos. O
homem que paga o jantar geralmente tem direito de se sentar à mesa.
Ela ferveu de raiva e humilhação, e pela necessidade de se ver
obrigada a conciliar até onde teria de se rebaixar.
– Não entendo o que quis dizer, mas você precisa entender, Gus, que
não posso ficar aqui conversando com você a está hora…
– Céus, você frequenta com a maior tranquilidade a casa de homens à
luz do dia. Parece-me que não costuma se preocupar muito as aparências.
A brutalidade da verdade causou uma sensação de vertigem seguida
por um golpe. Rosedale tinha contado – era assim que os homens estavam
falando dela. De repente, ela se sentiu fraca e indefesa: com um nó na
garganta. Mas ao mesmo tempo outra faceta estava em alerta, alertando que
cada palavra e gesto deveriam ser medidos.
– Se me convidou para vir aqui para me insultar… – ela iniciou.
Trenor riu.
– Não faça cena. Não quero insultá-la. Mas um homem tem
sentimentos, e você brincou com os meus. Não fui eu quem começou isso.
Fiquei de lado, e deixei o caminho livre para os outros, mas então você
começou a fugir de mim e a me fazer de bobo; o que foi fácil para você.
Esse é o problema, foi muito fácil; e você se tornou imprudente, pensou que
poderia me passar para trás e me jogar na sarjeta igual uma bolsa vazia.
Mas, isso não é jogar limpo: isso é trapacear. Agora sei muito bem o que
você queria; não era nos meus lindos olhos que estava interessada. Mas vou
lhe dizer uma coisa, Miss Lily, você vai ter de pagar por ter me feito
imaginar isso…
Ele se levantou, endireitando os ombros de modo agressivo, e foi para
cima dela com sobrancelhas cerradas; mas ela se manteve firme, apesar da
vontade de recusar à medida que ele avançava.
– Pagar? – ela hesitou. – Está querendo dizer que lhe devo dinheiro?
Ele riu novamente.
– Não estou pedindo que pague em espécie. Mas existe uma coisa que
se chama jogo justo, e juros, e negue se recebi algo além de um olhar seu…
– Seu dinheiro? O que eu tenho a ver com o seu dinheiro? Você me
ajudou a investir o meu… deve ter percebido que eu não entendia nada
sobre investimentos… você me disse que não havia problema…
– Foi isso mesmo, Lily. Você pode continuar fazendo tudo isso e
muito mais. Só estou lhe pedindo que me agradeça.
Ele se aproximou ainda mais, a uma distância cada vez menor; e o
lado assustado dela a puxava para longe.
– Já agradeci; mostrei que estava grata. O que mais você fez que
qualquer amigo não teria feito, ou que qualquer um não pudesse aceitar de
um amigo?
Trenor a surpreendeu com um sorriso sarcástico.
– Não tenho dúvidas de que já aceitou muito mais e depois dispensou
os outros assim como fez comigo. Não quero nem saber quanto você tirou
deles, se os enganou, para mim tanto faz. Não me olhe assim. Sei que estou
falando de um modo que um homem não deve falar com uma moça, mas se
não estiver gostando, você sabe como fazer com que eu pare. Você sabe que
sou locou por você, dane-se o dinheiro, tenho muito mais, se é isso que a
preocupa… Fui grosseiro, Lily. Lily! Olhe para mim…
Aos poucos, seu mar de humilhação foi crescendo – uma onda
arrebentando atrás da outra, tão próximas que a vergonha moral se
transformou em dor física. Parecia que sua autoestima a deixara num estado
vulnerável – que fora a sua própria desonra que lhe causara uma terrível
sensação de solidão.
O toque dele foi um choque para sua consciência que se afogava. Ela
se esquivou com uma demonstração desesperada de repulsa.
– Já disse que não estou entendendo. Mas se estou lhe devendo
dinheiro vou pagar…
O semblante de Trenor obscureceu de raiva: a repulsa despertou seu
lado primitivo.
– Ah, você vai pegar emprestado de Selden ou Rosedale, e depois
fazê-los de bobo como fez comigo! A menos… a menos que já tenha outro
em vista e eu não sou o único que vai ficar no prejuízo!”
Ela ficou calada, paralisada no lugar. As palavras – as palavras foram
piores do que o toque! Os batimentos acelerados do coração pareciam
reverberar por todo seu corpo – na garganta, nos membros, em suas mãos.
Seus olhos vagaram desesperadamente pela sala – pararam no sino, e ela
lembrou que bastava pedir ajuda. Sim, mas junto viria o escândalo – um
falatório detestável. Não, ela teria de se virar sozinha. Já bastava os criados
saberem que ela estava na casa com Trenor – a sua partida não deveria
levantar nenhum tipo de suposição.
Ela ergueu a cabeça, Trenor respondeu ao gesto encarando
emudecido. Junto da última rajada de palavras a chama se apagara,
deixando-o calmo e humilhado. Foi como se um ar frio tivesse dispersado
os vapores das suas libações, e a situação se descortinou diante dele nua e
crua como os destroços de um incêndio. Velhos costumes, antigas
restrições, a mão da ordem herdada, acalmou de volta a mente perturbada
que a paixão tinha tirado dos eixos. Os olhos de Trenor pareciam com os de
um sonâmbulo que acabou despertar à beira de um abismo.
– Vá embora! Vá embora daqui – ele gaguejou e, dando as costas para
ela, caminhou na direção da lareira.
A liberação de seus temores restaurou a lucidez de Lily. O colapso de
Trenor a colocou no controle, e ela se ouviu, numa voz que apesar de ser a
sua parecia vir de fora, dando ordens para que ele tocasse a sineta,
mandasse chamar um coche, dizendo que ele a colocasse dentro deste
quando chegasse. Onde arrumou forças para isso, ela não fazia a menor
ideia; mas uma voz insistente alertou que ela deveria ir embora
tranquilamente, e a encorajou, quando já estava no vestíbulo sob os olhos
curiosos do criado, a trocar algumas amenidades com Trenor, e pedir que
mandasse lembranças para Judy, enquanto tremia de raiva por dentro. Na
soleira da porta, com a rua adiante, ela sentiu a vibração louca da liberdade,
intoxicante como a primeira tragada de ar puro de um prisioneiro; mas a
clareza de raciocínio permaneceu e ela percebeu o aspecto mudo da Quinta
Avenida, achou que fosse por conta do avançado das horas, e chegou a ver
de relance a silhueta de um homem – será que havia algo familiar no vulto?
– que, quando ela entrou na carruagem, virou na direção da esquina oposta
e desapareceu na rua escura.
Mas com o girar das rodas veio a reação, e um tremor obscuro tomou
conta dela.
– Não consigo pensar… não consigo pensar – murmurou e recostou a
cabeça contra a lateral trepidante do coche. Ela não se reconhecia, ou
melhor, parecia que havia duas dela, uma que ela sempre conhecera, e um
novo ser abominável ao qual ela estava presa. Ela lera uma vez, em uma
casa onde estava hospedada, uma tradução de Eumênides, e sua imaginação
foi tomada de terror pela cena no qual Orestes, na caverna do oráculo,
encontrava suas implacáveis caçadoras dormindo, e aproveitava para tirar
um cochilo. Sim, às vezes as Fúrias também dormem, mas elas estavam lá,
num canto escuro, e agora tinham acordado e o trepidar metálico das suas
asas estavam na cabeça dela… Ela abriu os olhos e viu as ruas passando –
ruas ligeiramente conhecidas. Tudo parecia do mesmo jeito, mas ao mesmo
tempo diferente. Havia um imenso abismo entre o hoje e o ontem. Tudo
parecia tão simples antes, natural, claro como a luz do dia, mas agora ela
estava sozinha em um lugar escuro e contaminado. Sozinha! Era a solidão
que a amedrontava. Seus olhos pousaram sobre um relógio iluminado na
esquina de uma rua, e ela viu que os ponteiros marcavam onze e quinze.
Apenas quinze minutos depois das onze – ainda faltavam horas para noite
terminar! E ela queria passá-las sozinha, tremendo sem sono na sua cama.
Sua natureza sensível recuou de medo da provação, que não recebeu
nenhum estímulo do conflito para ajudá-la a superar. Oh, o lento gotejar frio
dos minutos dentro da sua cabeça! Ela teve uma visão de si mesma deitada
na cama de nogueira escura – a escuridão assustava, mas se ascendesse a
luz os detalhes assustadores do quarto ficariam registrados para sempre na
sua memória. Ela sempre odiou seu quarto na casa de Mrs. Peniston: sua
feiura, impessoalidade, o fato de nada ser seu de verdade. Para um coração
cansado da proximidade humana, um quarto chega a ser semelhante a
braços abertos, e o ser para quem tanto faz as quatro paredes no qual se
encontra encerrado, se sente, nestes momentos, um expatriado em qualquer
lugar.
Lily não tinha um lugar para repousar seu coração. Sua relação com a
tia era tão distante quanto as chances de um hóspede subir as escadas.
Mesmo que as duas fossem mais próximas, era impossível imaginar que a
mente de Mrs. Peniston fosse capaz de oferecer um abrigo ou compreensão
para as tristezas de Lily. Mas como a dor só pode ser descrita pela metade, a
piedade de quem pergunta pouco pode fazer para atenuá-la. Lily ansiava
pela escuridão feita de braços abertos, o silêncio que não é solidão, porém,
compaixão.
Ela se endireitou e olhou para as ruas que passavam. Gerty! Eles
estavam perto da casa dela. Se ao menos ela conseguisse chegar lá antes
que esta angústia sufocante explodisse em seu peito e saísse pela boca – se
ao menos pudesse sentir os braços de Gerty envolvendo-a enquanto ela
tentava conter o tremor de medo que tomava conta dela! Ela empurrou a
portinhola no teto e deu o endereço para o cocheiro. Não era tão tarde,
Gerty possivelmente ainda estaria acordada. E mesmo que ela não estivesse,
o som da sineta iria reverberar por cada canto do apartamentinho e
despertá-la para vir atender ao chamado da sua amiga.
Capítulo 14
Gerty Farish, na manhã seguinte a festa oferecida pelos Wellington
Bry, despertou de sonhos tão lindos quanto os de Lily. Suas cores eram
menos vibrantes, mais suscetíveis aos tons discretos da sua personalidade e
experiência de vida, e era exatamente por isso que eram mais adequados a
sua visualização mental. Os lampejos de felicidade por onde Lily circulava
poderiam cegar Miss Farish, que estava acostumada, para seus padrões de
felicidade, a reflexos luminosos que escapavam das arestas das vidas
alheias.
Mas agora ela se via no centro de uma luz própria: branda, mas
inconfundível, composta pelo crescente carinho de Lawrence para com ela e
a descoberta de que tal carinho se estendia a Lily Bart. Se estes dois fatores
podem parecer incompatíveis para um estudioso da psicologia feminina, é
preciso lembrar que Gerty sempre foi um parasita na ordem moral, vivendo
dos farelos das mesas alheias, e satisfeita por poder ver através da janela o
banquete posto para seus amigos. Agora que ela estava aproveitando um
pouco desta festa privada, teria sido muito egoísmo não colocar um prato
para uma amiga; e não havia ninguém com quem ela gostaria mais de ter
divido sua diversão do que com Miss Bart.
Quanto à natureza do crescente carinho de Selden, Gerty não ousaria
tentar decifrá-lo tanto quanto ousaria tentar descobrir as cores de uma
borboleta tirando o pó das suas asas. Para aproveitar o encanto seria preciso
arrancar o botão, e talvez vê-lo desbotar e endurecer na sua mão: melhor a
sensação de beleza palpitante fora do alcance, enquanto ela prendia o fôlego
e esperava para ver que poderia acontecer. Mesmo assim o comportamento
de Selden na festa dos Bry tinha despertado o bater de asas tão próximo que
parecia que elas estavam batendo dentro do seu coração. Ela nunca o vira
tão atencioso, tão receptivo, tão atento ao que ela tinha para dizer. Seu
comportamento normalmente era de uma gentileza distante que ela
aceitava, e do qual era grata, pois acreditava que este era o sentimento mais
intenso que a sua presença era capaz de inspirar; mas ela sentiu de imediato
uma mudança nele que insinuava que pela primeira vez ela poderia dar e
receber prazer ao mesmo tempo.
E foi tão bom que esse grau de simpatia mais elevado tivesse sido
alcançado pelo interesse comum que eles nutriam por Lily Bart!
O carinho de Gerty por sua amiga – um sentimento que tinha
aprendido a se manter vivo sob uma dieta parca – tinha se transformado em
adoração desde que a curiosidade inquietante de Lily a atraíra para o círculo
profissional de Miss Farish. O gosto de Lily pela caridade despertou nela
um apetite monetário para fazer o bem. Sua visita ao Clube das Moças foi o
primeiro contato com o contraste dramático da vida. Ela sempre aceitou
com uma calma estoica o fato de que tais existências como a sua eram
erguidas sobre bases de humanidade obscura. O assustador caos do limbo
da pobreza estava por toda parte e embaixo daquele pequeno grupo
iluminado onde a vida atinge sua melhor eflorescência, assim como a lama
e a nevasca de uma noite de inverno cercam uma estufa cheia de flores
tropicais. Tudo isto fazia parte da ordem natural das coisas, e as orquídeas
que se banham na sua atmosfera artificialmente criada podem dobrar as
curvas delicadas das suas pétalas sem se preocupar com o gelo nas vidraças.
Mas uma coisa é viver confortavelmente com a ideia abstrata da
pobreza, outra é entrar em contato com a sua personificação humana. Lily
nunca tinha imaginado estas vítimas do destino senão como uma massa. A
descoberta de que esta massa era composta por vidas distintas, inumeráveis
centros separados de sensações, cada qual com seus próprios anseios, com
seus medos da dor – que alguns desses sentimentos pesados eram
camuflados de uma maneira não muito distinta dos seus, com olhos que
deveriam mostrar felicidade e jovens lábios moldados para o amor – a
descobertas causou em Lily um desses ímpetos repentinos de piedade que
às vezes tiram a vida dos eixos. A natureza de Lily era incapaz de assimilar
tais mudanças: ela só conseguia sentir as necessidades dos outros através
das suas, e nenhuma dor precisava durar muito para causar um ataque de
nervos. Mas, naquele momento, ela se sentia atraída pelo interesse em se
relacionar diretamente com um mundo que era tão diferente do seu. Ela fez
uso do seu maior talento oferecendo assistência a uma ou duas das moças
mais necessitadas que eram atendidas por Miss Farish, e a admiração e
interesse que a sua presença causava entre as trabalhadoras cansadas do
clube proporcionou uma nova maneira de satisfação ao seu desejo
insaciável de agradar.
Gerty Farish não sabia julgar tão bem o caráter de alguém a ponto de
conseguir desembaraçar os fios emaranhados que teciam a filantropia de
Lily. Ela supôs que sua bela amiga fosse movida pelos mesmos motivos que
a moviam – aquela obrigação moral que torna os sofrimentos humanos tão
próximos e persistentes ao ponto dos outros aspectos da vida ficarem para
trás. Gerty vivia de acordo com regras tão simples que não hesitou em
classificar o estado de espírito da sua amiga como uma “mudança de
coração” causada pela sua dedicação aos pobres; e ela se alegrou com a
ideia de ter sido o instrumento causador desta mudança. E agora ela tinha
uma resposta para todas as críticas sobre o comportamento de Lily: como já
tinha dito, ela conhecia “a verdadeira Lily”, e a descoberta de que Selden
compartilhava do mesmo conhecimento elevou a sua plácida aceitação da
vida a uma sensação deslumbrada das suas possibilidades – a uma sensação
que aumentou ainda mais, no transcorrer da tarde daquele dia, quando
recebeu um telegrama de Selden convidando-a para jantar com ele naquela
noite.
Enquanto Gerty, em seu apartamentinho, estava perdida no rompante
de felicidade causado pelo convite, Selden também seguia na mesma
situação, só que pensando em Lily Bart. O caso que solicitara a sua
presença em Albany não era tão complicado a ponto de prender toda a sua
atenção, e ele era capaz de manter uma parte livre da sua mente quando
seus serviços não eram necessários. Esta parte – que no momento parecia
ser muito perigosa – transbordava com as sensações da noite anterior.
Selden conhecia os sintomas: reconhecia que estava pagando por isso, como
sempre teve que pagar pelas suas exclusões voluntárias do passado. Ele
sempre tivera a intenção de se manter livre de laços permanente, não por
que não tivesse sentimentos, mas porque, de um modo distinto, assim como
Lily, ele também era vítima do seu meio. Havia uma pontinha de verdade na
declaração que fizera para Gerty Farish de que ele nunca quis se casar com
uma garota “boazinha”: o adjetivo transmitiu uma conotação, no
vocabulário da sua prima, de certas qualidades utilitárias que são capazes de
acabar com todo o encanto. O destino de Selden foi ter uma mãe
encantadora: seu retrato gracioso, toda sorrisos e cashmere, ainda exalava
um leve perfume de qualidade indecifrável. Seu pai era do tipo que adorava
uma mulher encantadora: que a elogiava, estimulava e a mantinha sempre
encantadora. Nenhum dos dois se importava com dinheiro, mas o desdém
dele por ele assumiu uma forma de sempre gastar um pouco mais do que a
prudência recomendava. A casa deles era simples, mas estava sempre bem
arrumada: assim como havia bons livros nas estantes também havia bons
pratos à mesa. Selden pai tinha bons olhos para pintura e sua esposa era
grande conhecedora de rendas antigas; e os dois eram tão conscientes das
limitações e impedimentos de comprar que nunca sabiam direito como as
contas acabavam se acumulando.
Apesar de muitos amigos de Selden considerem seus pais pobres, ele
crescera numa atmosfera onde os parcos recursos eram sentidos apenas
como marca de gastos inatingíveis: onde as poucas posses eram tão boas
que sua raridade dava a elas o mérito do alívio, e a abstinência era
combinada com elegância pelo talento que Mrs. Selden tinha de usar seu
velho vestido de veludo como se fosse novo. Um homem tem a vantagem
de poder se distanciar mais cedo do ponto de vista doméstico, e antes de
concluir seus estudos universitários, Selden já tinha aprendido que existiam
várias formas de viver sem dinheiro e de gastá-lo. Infelizmente, ele não
encontrou nenhum modo tão bom quanto o praticado na sua casa; e a sua
visão das mulheres acabou sendo influenciada pela lembrança da mulher
que tinha lhe dado o seu senso de “valores”. Foi dela que ele herdou o
desapego pelo lado suntuoso da vida: o desinteresse estoico pelos bens
materiais, combinado com um prazer epicurista por eles. A vida despojada
destes sentimentos parecia insignificante para ele; e em nenhum lugar a
mistura dos dois ingredientes era tão essencial quanto no caráter de uma
mulher bonita.
Selden sempre teve a impressão de que a experiência oferecia algo
mais além da aventura sentimental. Na verdade, ele era capaz de imaginar
um amor que deveria crescer e se aprofundar até se tornar o objetivo central
da vida. O que ele não conseguia aceitar, no seu caso, era a alternativa
disfarçada de um relacionamento que fosse menos do que isto: isso deixaria
alguns aspectos da sua natureza insatisfeitos, e ao mesmo tempo exerceria
uma pressão indesejada em outros. Em outras palavras, ele não cederia ao
crescimento de um sentimento que pudesse apelar para a piedade, mas que
ao mesmo tempo deixasse intocada a compreensão: a simpatia não iria
iludi-lo mais do que uma ilusão de ótica, a graça da fragilidade mais do que
a curva da face.
Mas agora – aquele pequeno “se” tinha passado como uma esponja
por cima de todos os seus juramentos. Seus argumentos no momento
pareciam bem menos importantes do que saber se Lily tinha ou não
recebido seu bilhete! Ele cedeu aos encantos das preocupações triviais,
imaginando a que horas a resposta dela chegaria, com que palavras iria
começar. Quanto a seu teor ele não tinha dúvida – pois estava certo de que
ela estava tão apaixonada por ele quanto ele por ela. E assim se demorou
pensando em todos os detalhes, assim como um trabalhador, numa manhã
de final de semana, se permite ficar deitado na cama observando um raio de
luz penetrar aos poucos no seu quarto. Mas apesar de a nova luz ser
encantadora, ela não o cegou. Ele ainda era capaz de discernir os contornos
dos fatos, apesar de a sua relação com eles terem mudado. Ele não estava
menos ciente do que antes sobre os boatos que corriam sobre Lily Bart, mas
era capaz de separar a mulher que conhecia da que considerada vulgar. Ele
se lembrou das palavras de Gerty Farish, e a sabedoria popular pareceu uma
coisa tateando às escuras perto da percepção do inocente. Abençoados são
os puros de coração, pois verão a Deus – até mesmo o deus oculto no
coração do próximo! Selden estava num estado de egocentrismo
apaixonado causado pela primeira rendição ao amor. Ansiava estar com
alguém cujo ponto de vista justificasse o seu, que pudesse confirmar, por
meio de observação deliberada, a verdade que sua intuição tinha negado.
Ela mal aguentou esperar pela pausa para o almoço, e aproveitou uma
folguinha no tribunal para escrever um telegrama para Gerty Farish.
Ao chegar à cidade, ele foi direito para o clube que costumava
frequentar, onde esperava encontrar a resposta de Miss Bart. Mas na sua
caixa postal havia apenas uma linha animada de Gerty aceitando seu
convite, e ele já estava indo embora desapontado quando ouviu uma voz
chamando-o da sala de fumar.
– Olá, Lawrence! Vai jantar aqui? Venha tomar uma aqui comigo.
Pedi um pato.
Ele descobriu Trenor, em roupas diurnas, sentado, com um copo alto
ao lado do cotovelo, atrás das folhas de um jornal esportivo.
Selden agradeceu, alegando que já tinha compromisso.
– Espere, pelo visto todos os homens têm compromisso hoje. Desse
jeito vou ficar com o clube só para mim. Você sabe como tem sido meu
inverno, zanzando por uma casa vazia. Minha esposa disse que vinha para
cidade hoje, mas ela adiou outra vez, e como um sujeito pode jantar sozinho
em uma sala com os espelhos cobertos, e nada além de um vidro de molho
inglês no aparador? Cancele seu compromisso, Lawrence, e tenha pena de
mim. Fico deprimido em jantar sozinho e não tem ninguém no clube além
daquele idiota do Wetherall.
– Sinto muito, Gus. Mas não posso.
Ao se virar Selden notou algo sombrio no semblante de Trenor, o suor
desagradável na sua testa muito branca, o modo como seus anéis estavam
enterrados nas dobras dos seus dedos gordos vermelhos. Certamente a fera
predominava – a fera do fundo do copo. Em pensar que ele tinha ouvido o
nome deste homem associado ao de Lily! Eca! O pensamento lhe causou
nojo; ao longo de todo o caminho de volta para seu apartamento ele foi
assombrado pela visão das dobras dos dedos gordos de Trenor…
Sobre a mesa havia um bilhete: Lily tinha enviado a resposta para o
seu apartamento. Ele já sabia o que estava escrito antes mesmo de abrir –
um selo cinza escrito Além! Embaixo um navio voando. Ah, ele poderia
levá-la para longe – longe da maldade, da mesquinharia, do desgaste e da
corrosão da alma…
***

A pequena sala de estar de Gerty exalava boas-vindas quando Selden


entrou. A “decoração” modesta, que consistia basicamente de tinta esmalte
e ingenuidade, falou em uma língua que foi doce aos seus ouvidos. É
surpreendente como paredes estreitas e um teto baixo pouco importam
quando o teto da alma se eleva. Gerty também estava radiante; ou pelo
menos exalava bom humor. Ele nunca tinha notado que ela tinha “traços” –
alguns sujeitos nem isso teriam notado… Durante o jantar simples (e mais
uma vez o efeito foi maravilhoso) ele se sentiu de bem com o mundo. Ela
tinha feito um pudim, sozinha? Era um pecado esconder estes talentos. Ele
lembrou com uma ponta de orgulho que Lily sabia enfeitar seus chapéus –
pelo menos foi o que ela lhe contou no dia do passeio que fizeram por
Bellomont.
Ele só falou de Lily depois do jantar. Durante a refeição frugal ele só
falou sobre a sua anfitriã, que, lisonjeada por ser o centro das atenções,
brilhava tão rosada quanto as velas que ela tinha feito para a ocasião.
Selden mostrou grande interesse pela decoração: elogiou o modo como ela
soube aproveitar cada espaço, perguntou se a criada dava conta de limpar
tudo em meio dia, descobriu que era possível improvisar pratos deliciosos
com um fogareiro, e ponderou sobre as dificuldades de manter uma casa
grande.
Quando se sentaram novamente na sala de estar, onde se encaixaram
tão bem quanto peças de um quebra-cabeça, e ela tinha coado um café, e o
serviu nas xícaras de porcelana que tinham pertencido a sua avó, e ele viu,
enquanto recostava, desfrutando o aroma quente, uma fotografia recente de
Miss Bart e a desejada mudança de assunto ocorreu sem esforço. A
fotografia até que era boa – mas apenas para captar o modo como ela se
mostrara na noite anterior! Gerty concordou com ele – nunca a vira tão
radiante. Mas será que uma fotografia poderia capturar aquela luz? Havia
algo novo no rosto dela – algo diferente; sim, Selden concordou que havia
algo diferente. O café estava tão bom que ele pediu para repetir: um
contraste com a água rala que serviam no clube! Ah, pobre solteirão
obrigado a se submeter ao cardápio impessoal do clube, alternando com as
festas igualmente impessoais! Um homem que vive sozinho perde a melhor
parte da vida – ele se lembrou do jantar solitário de Trenor e sentiu uma
pontinha de pena do homem… Mas voltando a Lily – e ele voltou várias
vezes, perguntando, conjecturando, estimulando Gerty a compartilhar suas
opiniões pessoais mais ternas sobre a querida amiga deles.
A princípio ela se abriu sem reservas, feliz pelo sentimento em
comum. O modo como ele mostrou que compreendia Lily ajudou a
confirmar o que ela pensava sobre a amiga. Eles concordaram que Lily não
tinha tido oportunidade. Gerty citou seus ímpetos de generosidade – suas
inquietações e insatisfações. Mais de uma vez ela poderia ter se casado – ter
realizado o convencional casamento rico que tinha sido educada para
enxergar como o único objetivo da vida – mas quando a oportunidade
aparecia ela fugia. Percy Gryce, por exemplo, estava apaixonado por ela –
todos em Bellomont achavam que eles iam ficar noivos e o desfecho foi
inexplicável. Esta visão do incidente com Gryce foi tão de encontro à
opinião de Selden que ele não pôde deixar de adotar, com certa satisfação
pelo que então parecera a solução óbvia. Se houve uma rejeição – e agora
ele ponderou se chegou a duvidar de que houvera um! – então, ele tinha a
chave do segredo, e as colinas de Bellomont se iluminaram, não com a luz
do pôr do sol, mas com a do amanhecer. Foi ele quem apontou e repudiou a
tal oportunidade – e a satisfação que agora aquecia seu peito poderia ter
sido despertada antes se ele tivesse se dado conta.
Foi neste ponto, talvez, que uma alegria que tentava bater asas dentro
do coração de Gerty caiu por terra. Ela olhava para Selden, repetindo
mecanicamente: “Não, ela nunca foi compreendida…” ao mesmo tempo em
que caía em si. A pequena sala aconchegante, onde pouco antes seus
pensamentos se tocavam como seus cotovelos sobre as poltronas, pareceu
imensamente hostil, distanciando-a de Selden cada vez mais enquanto tinha
uma nova visão do seu futuro – e esse futuro se estendia interminável, com
a sua figura solitária labutando, um mero pontinho na solidão.
– Ela é ela mesma com algumas pessoas apenas; e você é uma delas –
ela ouviu Selden dizendo. E mais uma vez – seja gentil com ela, Gerty, você
promete?” e: – Ela tem esse dom de se transformar no que ela quiser; você
promete que vai ajudá-la a acreditar no que é melhor para ela?
As palavras martelavam na cabeça de Gerty como se fossem uma
língua que de longe parecia conhecida, mas que mais de perto era
incompreensível. Ele tinha vindo para falar sobre Lily – essa era a verdade!
Havia uma terceira pessoa no jantar que ela preparou para ele e essa teceria
pessoa tinha tomado o lugar dela. Ela tentou acompanhar o que ele estava
dizendo, participar da conversa, mas nada fazia sentido assim como a
arrebentação das ondas na cabeça de alguém que está se afogando, e ela
percebeu, enquanto se sentia afogando, que afundar não seria nada
comparado ao sofrimento de continuar tentando se manter na superfície.
Selden se levantou, e ela respirou fundo, sentindo que logo poderia
ceder as benditas ondas.
– Na casa de Mrs. Fisher? Você disse que ela está jantando lá? Vai ter
música depois; acho que estou com o convite que ela me mandou – ele deu
uma olhada para o relógio cor-de-rosa idiota que marcava aquele momento
horrível. – São dez e quinze? Vou dar uma passada lá; as noites na casa de
Mrs. Fisher são muito divertidas. Acho que já passou da sua hora de ir
dormir, Gerty? Você parece cansada; fiquei aqui tagarelando e cansando-a.
E com esta exposição indesejada de sentimentos, ele se despediu com
um beijo de primo no rosto dela.

***
Na casa de Mrs. Fisher, em meio a fumaça de cigarro que envolvia o
atelier, uma dúzia de vozes saldou Selden. Estava tocando uma música
quando ele entrou, e ele sentou ao lado da anfitriã, enquanto seus olhos
buscavam por Miss Bart. Mas ela não estava lá, e a descoberta causou uma
pontada despropositada; uma vez que o bilhete que trazia no bolso
assegurava que eles iriam se encontrar às quatro horas do dia seguinte. Para
sua impaciência era uma eternidade, e meio sem jeito, ele se aproximou de
Mrs. Fisher para perguntar, quando a música terminou, se Miss Bart tinha
jantado com ela.
– Lily? Ela acabou de sair. Teve que ir correndo, me esqueci para
onde. Ela não estava maravilhosa, ontem à noite?
– Quem? A Lily? – perguntou Jack Stepney, sentado em uma
poltrona, ao fundo. – Sério, você sabe que não sou puritano, mas ver uma
garota exposta como se estivesse em um leilão; pensei seriamente em falar
com a tia Julia.
– Você sabia que Jack virou o nosso fiscal da sociedade? – disse Mrs.
Fisher para Selden com uma risada; e Stepney resfolegou, em meio à
gargalhada coletiva: – Mas ela é minha prima, sabe, e quando um homem se
casa… O Town Talk só falava dela hoje de manhã.
– Sim, bela leitura – comentou Mr. Ned Van Alstyne, mexendo no
bigode para tentar disfarçar uma risadinha. – Pensa que comprei o
jornaleco? Claro que não; um amigo me emprestou, mas eu já tinha ouvido
umas histórias antes. Quando uma moça é bonita daquele jeito é melhor se
casar logo, para acabar com os falatórios. A nossa sociedade imperfeita
ainda não oferece espaço para moças que usufruem dos privilégios do
casamento sem assumir as suas obrigações.
– Bem, entendi que Lily está prestes a assumi-las com Mr. Rosedale –
disse Mrs. Fisher com uma risada.
– Rosedale, céus! – exclamou Van Alstyne, olhando para o seu copo.
– Stepney, a culpa é sua por ter nos provocado.
– Oh, você deve ter entendido errado, nenhum membro da nossa
família se casaria com Rosedale – protestou Stepney preguiçosamente, mas
sua esposa, que se encontrava numa posição desconfortável no outro
extremo da sala, o confrontou com a seguinte sentença: – Na situação que
Lily se encontra é um erro manter um padrão tão alto.
– Ouvi dizer que até mesmo Rosedale se assustou com as últimas
fofocas – retomou Mrs. Fisher –, mas a apresentação dela de ontem à noite
o fez perder a cabeça. O que acha que ele disse para mim depois do Tableau
dela? ‘Minha nossa, Mrs. Fisher, seu eu pudesse mandar Paul Morpeth
pintar um retrato dela daquele jeito, o quadro iria valer cem vezes mais
dentro de dez anos’”.
– Minha nossa, mas ela não está por aqui? – exclamou Van Alstyne,
retomando seu copo com um olhar ansioso.
– Não, ela foi embora enquanto vocês estavam preparando o ponche,
lá embaixo. Por falar nisso, para onde ela foi? O que está acontecendo nesta
noite? Não fiquei sabendo de nada.
– Oh, acho que não foi para uma festa – disse o jovem e ingênuo
Farish que tinha chegado atrasado. – Ela pegou o mesmo coche que cheguei
e deu o endereço da casa dos Trenor.
– Os Trenor?! – exclamou Mrs. Jack Stepney. – Mas não tem ninguém
em casa, Judy telefonou para mim de Bellomont, hoje à tarde.
– É mesmo? Estranho. Tenho certeza de que ouvi direito. De qualquer
maneira Trenor está em casa, se bem que… não ouvi falar – ele parou,
advertido pelo chute de um pé ao lado, e pelas risadinhas ao redor.
Durante a descoberta desagradável, Selden se levantou e estava
trocando um aperto de mão com a anfitriã. O ar estava sufocante, e ele se
perguntou como aguentara ficar tanto tempo ali.
Na soleira da porta, ele parou, lembrando-se de uma das frases de
Lily:
“Tenho a impressão de que você passa muito tempo em um ambiente
que desaprova”.
Bem, o que o levara ali senão a busca por ela? Aquele era o ambiente
dela, não o seu. Mas ele poderia tirá-la dali e levá-la para longe! Aquele
Além! Na carta dela parecia um grito de socorro. Ele sabia que a missão de
Perseu não chegara ao fim quando ele libertou Andrômeda das correntes,
pois suas pernas estavam fracas para sustentá-la e caminhar depois de ter
ficado tanto tempo presa, mas ela se agarrou a ele com força enquanto ele
voava de volta para a Terra, carregando seu fardo. Bem, ele tinha força
pelos dois – foi a fraqueza dela que lhe dera forças. Mas, infelizmente, não
era uma sucessão de ondas cristalinas que eles precisavam vencer, mas um
pântano de lama formado por associações e hábitos antigos, e naquele
momento os vapores deste pântano atingiam seu pescoço. Mas mesmo
assim ele conseguia enxergar com clareza, respirar livremente na presença
dela: ela era o mesmo tempo o peso morto no seu peito e a tábua de
salvação. Ele riu das metáforas que tentava construir para se defender das
influências da última hora. Era uma pena que ele, que conhecia os motivos
sobre os quais pairavam o julgamento da sociedade, ainda se deixasse
abalar tanto por estes. Como ele poderia alçar Lily para uma visão de vida
mais liberal, se a visão que tinha dela era influenciada pelas mentes onde
ele a via refletida?
A opressão moral tinha causado uma falta de ar física e ele saiu
andando e expandindo os pulmões para o ar frio da noite. Na esquina da
Quinta Avenida Van Alistyne fez sinal, oferecendo companhia.
– Vai caminhar? Faz bem para se livrar do cheiro de fumaça. Agora
que as mulheres também estão fumando, parece que vivemos mergulhados
em uma banheira de nicotina. Seria interessante estudar os feitos do cigarro
nos dois sexos. A fumaça tem uma capacidade de dispersão quase tão boa
quanto à do divórcio: ambos tendem a obscurecer a questão moral.
Nada poderia ter destoado menos do humor de Selden do que os
aforismos pós-jantar de Van Alstyne, mas enquanto o último se limitava as
generalidades os nervos do primeiro estavam controlados. Felizmente, Van
Alstyne se orgulhava da sua capacidade de resumir os aspectos sociais e
com Selden como espectador ele ansiava por exibir seu talento. Mrs. Fisher
morava a leste do Central Parque, e à medida que os dois desciam a Quinta
Avenida as novas construções arquitetônicas da via versátil convidaram Van
Alstyne a fazer o seguinte comentário:
– Veja a casa de Greniner, trata-se de um típico degrau social! O
homem que construiu veio de um meio onde todos os pratos são colocados
à mesa de uma só vez. A fachada arquitetônica é um banquete completo; se
tivesse omitido um estilo seus amigos poderiam pensar que ele estava sem
dinheiro. Não foi uma má compra para Rosedale: chama a atenção e atrai os
visitantes do oeste. Com o tempo ele vai sair dessa fase e vai querer algo
menos chamativo. Especialmente se casar com a espertinha da minha
prima…
Selden entrou no assunto:
– E a casa dos Wellington Bry? Tem um estilo bem melhor, não acha?
Eles estavam diante de uma imensa fachada branca, com linhas ricas
contidas, que sugeria a contenção dentro de um espartilho de um corpo de
formas avantajadas.
– Este é o estágio seguinte: o desejo de mostrar que esteve na Europa
e adotou os padrões. Estou certo de que Mrs. Bry pensa que sua casa é uma
cópia do Trianon; na América todas das casas forradas com mármore e
decoradas com móveis dourados são consideradas cópia do Trianon. Muito
inteligente este arquiteto: sabe refletir a imagem de seus clientes! Ele usou a
de Mrs. Bry para compor a sua obra. Agora veja a dos Trenor, lembre-se,
ele escolheu o estilo coríntio: exuberante, mas baseado nos melhores
precedentes. A casa dos Trenor é uma das suas melhores criações, não
parece uma sala de jantar do avesso. Ouvi dizer que Mrs. Trenor quer
construir um novo salão de baile e a divergência de Gus por isso a tem
mantido em Bellomont. As medidas do salão de baile dos Bry devem estar
dando nos nervos dela. Pode estar certo de que ela sabe direitinho quanto
mede como se tivesse estado lá na noite passada. Por falar nisso, quem disse
que ela estava na cidade? Foi o Farish? Mas ela não está, sabe; Mrs.
Stepney estava certa; a casa está escura, como pode ver, suponho que Gus
deve ocupar o quarto dos fundos.
Ele tinha parado na esquina oposta à da casa de Trenor e Selden foi
forçado a diminuir o passo também. A casa estava escura e parecia vazia;
apenas um facho alongado de luz acima da porta indicava a ocupação
provisória.
– Eles compraram a casa que ficava no fundo, isso deu a eles mais
45.000 metros na rua lateral. É lá que ficará o salão de baile, com uma
galeria ligando a ele, a sala de jogos e assim por diante. Sugeri que
mudassem a entrada e colocassem a sala de estar de frente para a Quinta
Avenida. Está vendo a porta da frente combina com as janelas…
A bengala que Van Alstyne usava para apontar caiu com um estalo
quando a porta se abriu e duas silhuetas surgiram contra a luz do vestíbulo.
Logo em seguida, um coche parou junto ao meio fio, e uma das figuras saiu
apressada num farfalhar de tecidos finos; enquanto a outra, escura e
volumosa, permaneceu parada, projetada contra a luz.
Durante um tempo indeterminado os dois espectadores do incidente
permaneceram calados; então a porta da casa fechou, o coche foi embora e
a cena passou como num giro de um estereoscópio.
Van Alstyne baixou o monóculo com um assovio.
– Hum… não é nada disso que você está pensando, hein, Selden? Sei
que posso contar com você como se fosse da família, as aparências
enganam, a iluminação da Quinta Avenida não é nada boa…
– Boa noite – disse Selden, virando a rua, sem olhar para a mão
estendida do outro.

***

Sozinha com o beijo do seu primo, Gerty se fixou em seus


pensamentos. Ele já tinha beijado-a antes, mas não com o gosto de outra
mulher nos lábios. Talvez ele a poupara para que pudesse terminar de se
afogar sozinha, aceitar a maré sombria enquanto era engolida por ela. Mas
agora o apogeu da maré alta já tinha passado, e era mais difícil se afogar ao
nascer do sol do que na escuridão. Gerty escondeu o rosto da luz, mas ela
penetrou até as profundezas da sua alma. Ela era uma pessoa tão feliz, a
vida parecia tão simples e boa – por que ele veio perturbá-la com novas
esperanças? E Lily – Lily, a sua melhor amiga! Típico das mulheres, ela
acusava a mulher. Talvez, se não fosse por Lily, sua esperança poderia ter se
tornado realidade. Selden sempre gostou dela – entendia e simpatizava com
seu estilo de vida independente e simples. Ele, que tinha fama de ponderar
tudo nos mínimos detalhes, tinha uma visão neutra e simples dela. Sua
inteligência nunca a assustara, pois ela sentia que tinha um lugar no coração
dele. E agora ela tinha sido expulsa e Lily tinha fechado a porta na sua cara!
Lily, por cuja admiração ela mesma tinha implorado! A situação foi
iluminada por um assustador lampejo de ironia. Ela conhecia Selden;
percebeu como a sua fé em Lily deve ter ajudado a espantar as hesitações
dele. Lembrou, também, do modo como Lily falara sobre ele; percebeu que
tinha unido os dois, possibilitando que um conhecesse o outro. Do lado de
Selden, sem dúvida, a dor infringida não tinha sido de propósito; ele nunca
iria adivinhar seu segredo bobo; mas Lily – Lily devia saber! Quando, em
se tratando de tais assuntos, a percepção de uma mulher falha? E se ela
sabia, então tinha despojado a amiga deliberadamente, e só para mostrar
poder, uma vez, que, apesar do ciúme da súbita onda que afligia Gerty,
parecia impossível que Lily realmente pudesse querer se casar com Selden.
Lily podia até ser incapaz de se casar por dinheiro, mas era igualmente
incapaz de viver sem, e a mania de economizar de Selden fez com que ele
parecesse para Gerty tão tragicamente enganado quando ela mesma.
Ela permaneceu por um bom tempo na sala, onde as brasas se
transformaram em pó cinza e a luz do abajur empalideceu sob a cúpula
colorida. E em meio a tudo isso estava a fotografia de Lily Bart, olhando
imperiosa para as badulaques, os móveis espremidos na salinha. Será que
Selden era capaz de imaginá-la e um lugar assim? Gerty sentiu a pobreza, a
insignificância do seu ambiente: enxergou a sua vida do modo que Lily
provavelmente via. E a crueldade dos julgamentos de Lily feriu na sua
memória. Ela percebeu que tinha vestido seu ídolo com atributos que eram
seus. Quando Lily tinha sentido de algo de verdade, fosse piedade, ou
compaixão? Ela só queria experimentar novas experiências: parecia uma
criatura cruel fazendo experiências em um laboratório.
O relógio de fundo rosa marcou mais uma hora e Gerty despertou com
um susto. Tinha um encontro logo cedo com um visitante do distrito no
East side. Ela apagou o abajur, abafou o fogo, e foi para o quarto se despir.
No pequeno espelho sobre a penteadeira viu a imagem do seu rosto refletida
contra as sombras do quarto e lágrimas embaçaram a imagem. Que direito
tinha de sonhar os sonhos do amor? Um rosto sem graça convidava a um
destino sem graça. Ela chorou baixinho enquanto se despia, colocando de
lado as roupas com seu cuidado de sempre, deixando tudo em ordem para o
dia seguinte, quando a antiga vida seria retomada como se não tivesse
acontecido nenhuma alteração na sua rotina. A criada não chegaria antes
das oito, por isso ela preparou a bandeja de chá e a colocou ao lado da
cama. Em seguida trancou a porta do apartamento, apagou a luz e se deitou.
Mas na cama o sono não vinha, e ela ficou cara a cara com o fato de que
odiava Lily Bart. Foi tomada por este sentimento na escuridão como se
fosse uma força maligna disforme contra o qual ela tentou lutar cegamente.
A razão, o julgamento, a renúncia, todas as forças sãs da luz do dia, foram
derrotadas na luta desesperada pela autopreservação. Ela queria ser feliz –
queria tão desesperadamente e inescrupulosamente quanto Lily o queria,
mas sem o poder de alcançar que Lily tinha. E ciente da sua impotência ela
ficou deitada tremendo e odiou a amiga…
O toque da campainha a fez levantar. Ela ascendeu a luz e ficou
ouvindo, assustada. Por um momento seu coração bateu descontrolado,
então ela sentiu as batidas calmantes da realidade, e lembrou que tais
chamados não eram raros no seu trabalho de caridade. Vestiu um penhoar
para atender, destrancou a porta e deu de cara com a visão iluminada de
Lily Bart.
O primeiro sentimento de Gerty foi de repulsa. Ela recuou como se a
presença de Lily realçasse a sua tristeza. Então ouviu seu nome, olhou de
relance para o rosto da amiga, e se viu envolvida em um abraço.
– Lily… o que aconteceu?! – perguntou.
Miss Bart a soltou, e ficou respirando com dificuldade, como se fosse
alguém que tivesse encontrado um abrigo após uma longa jornada.
– Eu estava com tanto frio; não poderia ir para casa. A sua lareira está
acesa?
Os instintos de compaixão de Gerty, respondendo a força do hábito,
colocaram de lado todas as suas relutâncias. Lily era simplesmente alguém
que estava precisando de ajuda – seja lá por que fosse, não havia tempo
para parar e ficar fazendo conjecturas: a simpatia domou a dúvida nos
lábios de Gerty e a fez puxar a amiga silenciosamente para dentro da sala e
sentá-la perto da lareira apagada.
– Tem um pouco de madeira ainda: logo o fogo vai ascender.
Ela ajoelhou e a chama ascendeu sob suas mãos ágeis, que refletiu de
modo estranho em seus olhos que ainda estavam embaçados, e iluminando
o semblante pálido de Lily. As duas se entreolharam caladas; então Lily
repetiu:
– Eu não poderia ir para casa.
– Não, não, você veio para cá, querida! Você está com frio e cansada.
Relaxe, vou fazer um chá para você.
Gerty tinha adotado inconscientemente o tom tranquilizador do seu
ofício. Todos os sentimentos pessoais tinham se juntado ao senso de
obrigação e a experiência tinha lhe ensinado que é preciso estancar o
sangramento antes de examinar o ferimento.
Lily permaneceu calada, inclinada sobre o fogo: o tilintar das xícaras
as suas costas acalmavam igual os barulhinhos conhecidos aquietam uma
criança que não consegue dormir por causa do silêncio absoluto. Mas
quando Gerty surgiu ao seu lado com o chá. Ela não quis, e olhou com certo
estranhamento para a sala conhecida.
– Vim para cá por que não iria suportar ficar sozinha em casa – disse.
Gerty colocou a xícara sobre a mesa e se ajoelhou ao lado dela.
– Lily! Aconteceu alguma coisa; você não pode me contar?
– Eu não iria suportar ficar deitada acordada até o dia amanhecer.
Odeio meu quarto na casa da tia Julia… por isso vi para cá…
Ela se mexeu de repente, rompendo a apatia, e se agarrou a Gerty
numa nova explosão de medo.
– Oh, Gerty, as fúrias… Você conhece o barulho das asas delas…
quando se está sozinha, à noite, no escuro? Claro que você não conhece.
Por que teria motivos para sentir medo do escuro…
As palavras trouxeram de volta as últimas horas de Gerty, e a
acometeram com certa ironia; mas Lily, no afã da sua própria tristeza,
estava cega para tudo ao redor.
– Você vai me deixar ficar? Não me importo quando a luz do dia
chegar… já é tarde? A noite está quase acabando? Deve ser horrível não
conseguir dormir… tudo fica resumido a cama e ficar olhando para o
nada…
Miss Farish tomou as mãos dela que estavam soltas no ar.
– Lily, olhe para mim! Aconteceu alguma coisa, um acidente? Você se
assustou, o que a assustou? Diga para mim, uma ou duas palavras, para que
eu possa ajudar.
Lily balançou a cabeça.
– Não estou assustada: está não é a palavra certa. Você imagina como
é olhar no espelho numa manhã e ver uma deformidade, uma mudança
horrorosa que aconteceu enquanto você dormia? Bem, e assim que eu me
vejo. Não suporto ver meus próprios pensamentos, odeio a feiura, sabe,
sempre a repeli; mas não consigo explicar direito, e você não iria entender.
Ela ergueu os olhos e olhou para o relógio.
– Quanto tempo dura a noite! Sei que não vou conseguir dormir
amanhã. Alguém me contou que meu pai não conseguia dormir e ficava
pensando coisas horríveis. E ele não era fraco, só não tinha sorte; e agora
percebo o quanto ele deve ter sofrido, deitado sozinho com seus
pensamentos! Mas não sou má, uma garota má, meus pensamentos é que
são maus… sempre estive cercada de pessoas más. Isso serve de desculpa?
Eu achava que iria conseguir cuidar da minha vida, eu tinha orgulho disso;
orgulho! Mas agora estou no mesmo nível deles…
Ela soluçava copiosamente e balançava igual uma árvore em uma
ventania.
Gerty ajoelhou ao lado dela, esperando, com a paciência advinda da
experiência, até que o rompante de tristeza passasse. A princípio ela
imaginou que Lily tivesse passado por algum choque físico, alguma ameaça
na rua, uma vez que Lily supostamente estava voltando da casa de Carry
Fisher; mas agora ela percebia que outros centros nervosos estavam
abalados e ficou com medo só de imaginar o que pudesse ser.
Os soluços de Lily cessaram, e ela ergueu a cabeça.
– Existem meninas más nos abrigos de vocês? Elas conseguem se
reerguer? Esquecer e se sentirem como antes?
– Lily! Não fale assim; você está delirando.
– Elas não acabam sempre indo de mal a pior? Não tem volta; o seu
antigo eu, rejeita o seu novo eu, e lhe dá um ponta pé?
Ela se levantou, estendendo os braços como se estivesse fisicamente
esgotada.
– Vá para a cama, querida! Você trabalha muito e levanta cedo. Vou
ficar aqui cuidando do fogo; deixe a luz acesa e a porta do seu quarto
aberta. Só preciso sentir que você está perto de mim.
Ela pousou as duas mãos sobre os ombros de Gerty, com um sorriso
que parecia um nasceu do sol sobre um mar de cheio de destroços.
– Não posso deixá-la, Lily. Venha se deitar comigo na minha cama.
Suas mãos estão geladas; você precisa tirar essa roupa e se aquecer – Gerty
parou de repente. – Mas e quanto a Mrs. Peniston? Já passa da meia noite!
O que ela vai pensar?
– Ela vai para a cama. Tenho uma chave. Não importa; não posso
voltar para lá.
– Não é preciso voltar, você pode ficar aqui. Mas você precisa me
contar onde esteve. Escute, Lily, vai ajudar se falar!
Ela retomou as mãos de Miss Bart, e pressionou-as contra seu corpo.
– Tente me contar, isto vai ajudar a clarear a sua mente. Escute, você jantou
na casa de Carry Fisher – Gerty parou e adicionou num ímpeto de coragem:
– Lawrence Selden saiu daqui e foi para lá atrás de você.
Nisso, o rosto de Lily passou da angústia para uma tristeza infantil.
Seus lábios começaram a tremer e os olhos ficaram marejados.
– Ele foi atrás de mim? E nos desencontramos! Oh, Gerty, ele tentou
me ajudar. Ele me falou, me alertou há muito tempo, previu que eu ia
acabar sentindo ódio de mim mesma!
Ao citar o nome de Selden, Gerty percebeu, com um aperto no
coração, que liberou o rompante de autopiedade do peito apertado de sua
amiga, e uma lágrima após a outra, Lily deu vazão a toda a sua angústia.
Ela estava de lado na poltrona de Gerty, a cabeça recosta no mesmo local
onde Selden estivera horas antes, largada de um jeito tão belo que reavivou
a dolorida sensação de derrota inevitável de Gerty. Ah, não era de propósito
que Lily roubava seu sonho! Bastava olhar para aquele abandono
encantador para ver nele uma força natural, reconhecer que o amor e o
poder pertenciam a tipos como Lily, assim como a renúncia e o trabalho
cabia aqueles que dos quais tinham sido roubados. Mas se a paixão de
Selden parecia ser uma necessidade fatal, o efeito causado pelo nome dele
abalou a determinação de Gerty com uma última estocada. Os homens
passam por tais amores sobre-humanos e sobrevivem a eles: eles são a
provação submetendo o coração às alegrias humanas. Como Gerty teria
aceitado de bom grado esta cura: como isto teria atenuado o sofrimento e
restabelecido a tolerância à vida! Mas a autotraição de Lily acabou por lhe
roubar esta última esperança. A serva mortal na praia não é páreo para as
sereias que amam suas presas: tais vítimas são lançadas de volta na praia
mortas.
Lily se levantou com um pulo e a segurou com força.
– Gerty, você o conhece, entende ele. Diga-me; se eu fosse atrás dele,
se eu contasse tudo para ele, se eu dissesse: ‘Sou uma pessoa má, tenho
necessidade de ser admirada, quero a agitação, quero dinheiro…’ Sim,
dinheiro! É disso que tenho vergonha, Gerty, e todos sabem disso, falam
isso de mim; é o que os homens pensam de mim. E se eu dissesse para ele,
contasse toda a história, tudinho: ‘Estou no fundo do poço, pois usufrui e
não paguei por isso’. Oh, Gerty, você o conhece bem, sabe o que ele iria
pensar: se eu contar tudo será que ele iria me odiar? Ou será que iria sentir
pena de mim, e entender, e me salvaria desse ódio que sinto por mim
mesma?”
Gerty permaneceu fria e passiva. Sabia que tinha chegado o momento
da sua provação e seu pobre coração batia desesperado contra o destino.
Como um rio escuro iluminado por um relâmpago, ela viu a sua chance de
felicidade surgindo com um lampejo de tentação. O que a impedia de dizer:
“Ele é igual a todos os outros homens!” Afinal, não sabia qual seria a
reação dele! Mas fazer isso seria uma blasfêmia contra o seu amor. Ela não
era capaz de vê-lo senão sob a luz da nobreza: teria de confiar nele acima da
sua própria paixão.
– Sim, eu o conheço, ele vai ajudá-la – disse, e na hora Lily se agarrou
a ela chorando.
Só havia uma cama no apartamentinho e as duas deitaram juntas
depois que Gerty ajudou Lily a tirar o vestido e a convenceu a tomar um
chá quente. A luz foi apagada, elas ficaram caladas no escuro, Gerty
encolhida na ponta do colchão estreito para não encostar-se à sua
companheira de cama. Sabendo que Lily não gostava de ser tocada, há
muito ela tinha aprendido a prestar atenção aos gestos da amiga. Mas nesta
noite cada fibra do seu corpo repelia a proximidade de Lily. Era uma tortura
ouvir a sua respiração e sentir o lençol se movendo. Quando Lily se virou, e
acabou adormecendo, uma mecha dos seus cabelos bateu no rosto de Gerty
com seu cheiro. Tudo nela era quente, macio e perfumado: até mesmo as
marcas da sua dor nela pareciam gostas de chuva sobre uma rosa. Mas
enquanto Gerty permanecia deitada com os braços estendidos ao longo do
corpo, imóvel como uma múmia, ela sentiu o chacoalhar de soluços ao seu
lado, e Lily estendeu a mão, em busca da mão da amiga e a segurou com
força.
– Abrace-me, Gerty, abrace-me, ou vou começar a pensar coisas –
murmurou; e Gerty passou o braço por baixo dela silenciosamente,
acomodando-a igual uma mãe faz para aninhar uma criança agitada. No
cantinho aconchegante, Lily ficou quietinha e aos poucos a sua respiração
foi se tornando mais profunda e regular. Ela ainda segurava a mão de Gerty
como se quisesse evitar pesadelos, mas seus dedos acabaram relaxando, a
cabeça pesou e Gerty percebeu que ela tinha adormecido.
Capítulo 15
Quando Lily acordou a cama era só sua e a luz do inverno tinha
invadido o quarto.
Ela se sentou, estranhando o lugar; então sua memória voltou, e ela
olhou ao redor com um tremor. Na nesga de luz fria que refletia da parede
do fundo de um prédio vizinho, ela viu seu vestido de noite e a capa de
ópera amontoados sobre uma cadeira. Os trajes finos estavam jogados como
se fossem restos de um banquete, e então lhe ocorreu que, em casa, a
vigilância constante da sua criada sempre a poupara de tais incongruências.
Seu corpo doía de cansaço e por ter dormido encolhida na cama de Gerty.
Durante o sono agitado, ela não perdeu a noção de que não tinha espaço
para se esparrar, e o esforço para não se mexer resultou na sensação de que
tinha passado a noite em um trem.
Essa sensação de desconforto físico foi a primeira coisa que sentiu; e,
em seguida, ela percebeu que além disso havia uma prostração mental
correspondente, um torpor paralisante mais insuportável do que a primeira
onda de desgosto. A ideia de acordar todas as manhãs com este peso no
peito despertou a sua mente cansada para mais um esforço. Ela precisava
encontrar o meio de sair deste atoleiro: foi o medo dos seus pensamentos
matinais, mais do que o pudor, que a levaram a tomar uma atitude. Mas ela
se sentia esgotada; era cansativo manter a mente ativa. Ela deitou outra vez,
olhando para o quartinho apertado com uma nova onda de desgosto. O ar do
lado de fora, preso entre os prédios altos, não refrescava; a calefação estava
começando a assoviar num espiral de canos enferrujados e um cheiro de
comida penetrou por baixo da porta.
A porta abriu, e Gerty, vestida e de chapéu, entrou trazendo uma
xícara de chá. Seu rosto parecia cansado e inchado sob a luminosidade
lúgubre, e seus cabelos opacos ocultavam parcialmente os tons da sua pele.
Ela olhou sem jeito para Lily, perguntando num tom embaraçado
como ela estava se sentindo. Lily respondeu com o mesmo
constrangimento, e sentou para tomar o chá.
– Creio que estava muito cansada, na noite passada; acho que tive
uma crise de nervos na carruagem – disse ela, enquanto a bebida clareava
seus pensamentos conturbados.
– Você não estava bem; fico feliz que tenha vindo para cá – retornou
Gerty.
– Mas como vou para casa? E tia Julia…?
– Ela já sabe; telefonei mais cedo, a sua criada trouxe as suas coisas.
Mas não vai comer alguma coisa? Fiz ovos mexidos.
Lily não estava com vontade de comer; mas o chá lhe deu forças para
levantar e se vestir sob o olhar atento da sua criada. Foi um alívio o fato de
Gerty ter de sair apressada: as duas se beijaram em silêncio, mas sem
nenhum traço da emoção da noite anterior.
Lily encontrou Mrs. Peniston muito nervosa. Ela tinha mandado
chamar Grace Stepney e estava tomando dedaleira. Lily suportou o
interrogatório da melhor maneira possível, explicando que tinha sofrido um
desmaio quando estava voltando da casa de Carry Fisher; e que, temendo
não ter forças para chegar em casa, ela seguiu para o apartamento de Miss
Farish; mas que a boa noite de sono tinha lhe feito bem, e que ela não
precisava ver um médico.
Isso foi um alívio para Mrs. Peniston, que pode voltar a cuidar dos
seus próprios sintomas, e Lily foi aconselhada a ir se deitar: a panaceia da
sua tia para todos os males físicos e da alma. Na solidão do seu quarto ela
retomou a dura contemplação dos fatos. Seu ponto de vista à luz do dia era
muito distinto da visão nebulosa da noite. As fúrias aladas eram agora as
comadres fofoqueiras que se encontravam para o chá. Mas seus temores
pareciam mais assustadores ainda, agitados pelas dúvidas; e além dos mais,
ela tinha de agir, não ficar divagando. Pela primeira vez ela resolveu
calcular quanto devia de fato para Trenor; e o resultado do cálculo
detestável foi a descoberta de que ela tinha, ao todo, recebido nove mil
dólares dele. O frágil pretexto com que fora dado e aceito arrefeceu no calor
da sua vergonha: ela sabia que nenhum centavo daquilo era seu, e que para
se reerguer teria de devolver imediatamente toda a quantia. Mas a
incapacidade de apaziguar seu ultraje causou uma sensação paralisante de
insignificância. Pela primeira vez, ela percebia que a dignidade de uma
mulher poderia custar mais do que manter uma carruagem; e a noção de que
a manutenção de um atributo moral pudesse depender de dólares e
centavos, fez com que mundo parecesse ainda mais sórdido do que ela
imaginava.
Após o almoço, depois que os olhos curiosos de Grace Stepney já
tinham ido embora, Lily pediu licença para ter uma conserva com a tia. As
duas subiram para a sala de estar, onde Mrs. Peniston se sentou na poltrona
forrada de cetim preto e adornada com botões amarelos, ao lado havia uma
mesinha e sobre ela uma caixa de bronze com uma miniatura de Beatrice
Cenci na tampa. Lily sentia por aqueles objetos o mesmo desprezo que um
condenado sente pelos aparatos de um tribunal. Era ali que a tia recebia
suas raras confidências, e na sua mente ela associou o olhar de desdém de
Beatrice em seu turbante ao sorriso que se desfazia gradualmente nos lábios
de Mrs. Peniston. O medo que a senhora tinha de um escândalo conferia a
ela uma inexorabilidade que nem mesmo a maior força de caráter seria
capaz de produzir, uma vez que era independente de todas as considerações
de certo ou errado; e ciente disso, Lily raramente se atrevia a provocá-la. E
nunca se sentiu menos tentada a provocar do que neste momento; mas tinha
buscado em vão por algum meio de escapar de uma situação intolerável.
Mrs. Peniston a examinou de um modo crítico.
– Você está muito pálida, Lily; essa correria está começando a deixar
marcas em você – disse a tia.
Miss Bart viu uma abertura.
– Não creio que seja isso, tia Julia; tenho andado preocupada –
respondeu.
– Ah! exclamou Mrs. Peniston, cerrando os lábios com o estalo de
uma bolsa fechando na cara de um mendigo.
– Sinto muito incomodá-la com elas – continuou Lily –, mas
realmente acredito que meu desmaio de ontem a noite foi causado em parte
pela ansiedade…
– Eu diria que a cozinheira de Carry Fisher foi a grande culpada. Ela
contratou uma mulher que trabalhou para Maria Melson em 1891, na
primavera do ano que fomos para Aix, e lembro que jantei dois dias antes
da viagem, e tenho certeza absoluta de que as panelas de cobre não tinham
sido bem areadas.
– Nem comi muito; não tenho conseguido comer e nem dormir – Lily
fez uma pausa, e então disse abruptamente: – A verdade, tia Julia, é que
devo algum dinheiro.
O rosto de Mrs. Peniston fechou de modo perceptível, mas não
expressou o espanto que a sobrinha esperava. Ela ficou calada, e Lily foi
forçada a continuar:
– Agi como uma tola…
– Sem dúvida você tem sido extremamente tola – interpôs Mrs.
Peniston. – Não entendo como alguém com a sua renda, e sem despesas,
isso sem mencionar os belos presentes que sempre lhe dei…
– A senhora sempre foi muito generosa, tia Julia; nunca vou me
esquecer da sua bondade. Mas talvez a senhora não imagine quanto custa
para manter uma moça atualmente…
– Não imagino com o que você tenha de gastar além de com roupas e
passagens de trem. Espero que ande bem vestida, mas paguei a conta da
Celeste em outubro.
Lily hesitou: a memória implacável da tia nunca foi mais
inconveniente.
– A senhora foi muito generosa, mas desde então adquiri mais
algumas coisas…
– Que tipo de coisas? Roupas? Quanto gastou? Deixe-me ver a conta;
essa mulher está te enganando.
– Não creio: o preço das roupas subiu muito; e é preciso ter variedade,
com tantas viagens para o campo e golfe e patinação, Aiken e Tuxedo…
– Deixe-me ver a conta – repetiu Mrs. Peniston.
Lily hesitou novamente. Em primeiro lugar, madame Celeste ainda
não havia enviado a conta, e em segundo, o montante representava apenas
uma fração da quantia que Lily precisava.
– Ela ainda não mandou a conta das roupas de inverno, mas sei que é
alta; e ainda tem mais duas coisas; fui muito imprudente e descuidada, temo
que devo…
Ela ergueu o belo semblante preocupado para Mrs. Peniston, com a
esperança vã de que a visão tão comovente para o sexo oposto não passaria
despercebida. Mas o feito produzido foi o de fazer Mrs. Peniston se
encolher apreensiva.
– Francamente, Lily, você já tem idade para resolver seus próprios
problemas e depois de quase ter me matado de susto pelo que fez ontem à
noite você poderia ter escolhido um momento mais oportuno para me
preocupar com essas coisas – Mrs. Peniston olhou para o relógio, e engoliu
um comprimido de dedaleira. – Se está devendo mil para Celeste outra vez,
peça para ela me enviar a conta – adicionou, encerrando a conversa.
– Sinto muito, tia Julia; detesto incomodá-la num momento como
este; mas realmente não tenho opção, eu deveria ter falado antes, mas estou
devendo muito mais de mil dólares.
– Muito mais? Você está devendo dois? Ela deve estar roubando!
– Já disse que não estou devendo apenas para Celeste. Eu… tenho
outras dívidas… mais urgentes… que preciso acertar.
– O que você andou comprando? Joias? Você deve ter perdido a
cabeça – disse Mrs. Peniston com rispidez. – Mas se está endividada, terá
que sofrer as consequências, e separar a sua renda mensal até pagar as suas
contas. Se ficar quietinha em casa até o verão, em vez de ficar zanzando
pelo país inteiro, você não terá despesas, e com certeza dentro de quatro ou
cinco meses terá conseguido quitar todas as suas dívidas se eu pagar a
modista agora.
Lily calou novamente. Sabia que não conseguiria tirar nem mil
dólares de Mrs. Peniston com a desculpa de pagar a conta na Celeste: Mrs.
Peniston iria querer ver a nota antes, e iria fazer o cheque para ela e não
para Lily. Mas era preciso conseguir o dinheiro antes do final do dia!
– As dívidas aos quais me refiro são… diferentes… não são contas –
ela iniciou de modo confuso; mas o olhar de Mrs. Peniston quase a impediu
de continuar. Será que a tia já desconfiava de alguma coisa? A ideia
precipitou a confissão de Lily.
– A verdade é que andei jogando muito… bridge; todas as mulheres
jogam; a moças também, é esperado. Às vezes eu ganho, ganho uma boa
quantia; mas ultimamente ando sem sorte, e obviamente tais dívidas não
podem ser pagas aos poucos…
Ela fez uma pausa: o rosto de Mrs. Peniston parecia petrificado
enquanto ouvia atenta.
– Baralho! Você tem jogado baralho a dinheiro? Então é verdade:
quando fiquei sabendo não acreditei. Nem vou perguntar se os outros
horrores que ouvi são verdadeiros; já escutei o suficiente para o meu estado
de nervos. Quando penso no exemplo que recebeu nesta casa! Mas suponho
que a influência tenha vindo de fora; sabe-se lá onde a sua mãe arrumava as
amigas. E os domingos dela eram escandalosos, disso eu sei.
Mrs. Peniston virou de repente.
– Você joga baralho aos domingos?
Lily corou ao se lembrar de um domingo chuvoso em Bellomont, na
companhia dos Dorset.
– A senhora está sendo muito severa comigo, tia Julia. Nunca gostei
muito de baralho, mas as moças odeiam ser consideradas pedantes e
superiores, e assim acabam fazendo o que todos fazem. Aprendi uma dura
lição, e se puder me ajudar desta vez prometo que…
Mrs. Peniston ergueu a mão.
– Não precisa me fazer nenhuma promessa: não é necessário. Quando
lhe ofereci um lar não me comprometi a pagar as suas dívidas de jogo.
– Tia Julia! A senhora está insinuando que não vai me ajudar?
– Certamente não farei nada para dar a impressão de que aprovo seu
comportamento. Se estiver devendo para a modista, vou acertar com ela;
além disso, não me vejo na obrigação de assumir as suas dívidas.
Lily estava de pé, e ficou pálida e trêmula diante da tia. Tinha sido
tomada pelo orgulho, mas a humilhação forçou as palavras que saíram de
seus lábios:
– Tia Julia, cairei em desgraça, eu…
Mas ela não conseguiu continuar. Se a tia já tinha ficado tão brava por
causa das dívidas de jogo, imagine a sua reação quando ouvisse a verdade?
– Para mim você já caiu em desgraça, Lily: em desgraça mais pelo
que fez do que pelo resultado. Você disse que suas amigas a persuadiram a
jogar baralho; então, elas também merecem aprender uma lição. Elas
provavelmente podem se dar ao luxo de perder um dinheirinho. De
qualquer maneira, não vou perder o meu pagando a elas. E agora peço que
se retire, esta cena foi extremamente dolorosa, e preciso poupar a minha
saúde. Feche as cortinas, por favor; e diga para Jennings que não quero ver
ninguém nesta tarde, exceto Grace Stepney.
Lily foi para seu quarto e bateu a porta. Estava tremendo de medo e
raiva – o sussurro das asas das fúrias ressoava em seus ouvidos. Ela andou
de um lado para o outro num passo cego e irregular. A última porta de
escape estava fechada – ela se viu abatida pela própria desonra.
De repente, seus passos desesperados a levaram diante do relógio
sobre o mantel da lareira. Já eram três e quinze, e ela lembrou que Selden
viria visitá-la as quatro. Tinha pensado em dispensá-lo com uma palavra
apenas, mas agora seu coração batia acelerado com a ideia de que iria vê-lo.
Será que não havia uma chance de salvação no amor dele? Deitada ao lado
de Gerty na noite anterior, ela imaginou a visita dele, e na delícia que seria
poder aliviar a sua dor no peito amigo. Claro que ela imaginava que já teria
resolvido seus problemas antes da chegada dele – nunca lhe ocorreu que
Mrs. Peniston não fosse ajudá-la. E ela sentiu, mesmo em meio a todo
aquele desespero, que o amor de Selden não podia ser seu último refúgio;
que só serviria para lhe oferecer conforto enquanto ela recuperava as suas
forças para seguir em frente.
Mas agora o amor dele era a sua única esperança, e enquanto
contemplava isto a triste ideia de recorrer a ele pareceu tão atraente quanto
o suicídio em um rio. O mergulho inicial seria terrível – mas depois, seria
uma benção! Ela se lembrou das palavras de Gerty: “Eu o conheço, ele vai
ajudá-la”; e sua mente se apegou a elas assim como uma pessoa doente se
apega a uma relíquia milagrosa. Ah, se ele pudesse entender – se pudesse
ajudá-la a refazer a sua vida desfeita, de um jeito tal que ganhasse uma nova
aparência de modo que não restasse nada do passado! Ele a fazia se sentir
merecedora de algo melhor, e ela nunca precisou tanto deste consolo. Temia
correr o risco de perder o amor dele com a sua confissão, pois amor era o
que ela precisava, este traria o brilho da paixão para juntar os fragmentos da
sua autoestima estilhaçada. Mas ela se lembrou das palavras de Gerty e se
agarrou a elas. Estava certa de que Gerty sabia o que ele sentia por ela, e na
sua cegueira ela nunca teria percebido que o julgamento que Gerty fazia
dele era muito mais colorido de emoções ardentes do que o dela.
As quatro ela se encontrava na sala de estar: tinha certeza de que
Selden seria pontual. Mas a hora chegou e passou – passou correndo,
marcada pelos batimentos impacientes do seu coração. Ela teve tempo
repensar a sua situação, e oscilar entre um novo impulso de contar tudo para
Selden e o medo de destruir as ilusões dele. Mas à medida que os minutos
passaram a necessidade de apelar pela compreensão dele foi se tornando
mais urgente: ela não suportava o peso da sua tristeza sozinha. Talvez
houvesse um risco, mas será que ela não poderia confiar sua beleza para
superar isso, para depositar a sua segurança no abrigo da devoção dele?
Mas a hora voou e Selden não apareceu. Sem dúvida tinha ocorrido
algum impedimento, ou tinha interpretado mal a sua resposta escrita às
pressas, e entendido cinco horas em vez de quatro. A campainha tocou
pouco depois das cinco confirmando a suposição, e fez Lily tomar a decisão
de escrever com mais nitidez no futuro. O barulho de passos no vestíbulo, e
da voz do mordomo, renovou suas energias. Sentia-se, mais uma vez, alerta
e capaz de resolver a emergência, e a lembrança do poder que exercia sobre
Selden a encheu de confiança. Mas quando a porta da sala se abriu foi
Rosedale quem entrou.
A reação causou uma pontada aguda, mas após uma onda de irritação
pela crueldade do destino, e por seu desleixo de não negar a porta para
ninguém exceto para Selden, ela recuperou o controle e cumprimentou
amigavelmente Rosedale. Era preocupante que Selden, quando chegasse,
pudesse encontrar justamente aquele visitante, mas Lily era mestre na arte
de se livrar de companhias indesejadas, e para seu presente estado de humor
Rosedale pareceu totalmente dispensável.
A visão que ele tinha da situação foi imposta após alguns segundos de
conversa. Ela tinha escolhido o tema da festa dos Bry como um assunto
fácil e impessoal, para passar o tempo antes da chegada de Selden, mas Mr.
Rosedale permaneceu plantado ao lado da mesa de chá, com as mãos nos
bolsos, as pernas estendidas à frente, até finalmente conferir um toque
pessoal ao tema.
– Deu tudo certo. Sim, suponho que tenha dado: Welly Bry contou
com apoio é bom não abandonar enquanto não pegar o jeito. Claro que
ocorreram alguns probleminhas; coisas que Mrs. Fisher descuidou um
pouco, o champanhe não estava gelado e os casacos acabaram misturando
no armário. Eu não teria economizado com a música. Mas isso sou eu: se
quero uma coisa estou disposto a pagar; não vou até uma loja e depois fico
em dúvida se o artigo vale o que custa ou não. Não teria me contentado com
a festa oferecida pelos Welly Bry; eu teria feito algo que parecesse mais
natural e simples, mais ao meu estilo. E é preciso apenas duas coisas para
fazer isso, Miss Bart: dinheiro e a mulher certa com quem gastá-lo.
Ele fez uma pausa e fitou-a atento, enquanto ela fingia ajeitar as
xícaras de chá.
– Tenho o dinheiro – continuou ele, limpando a garganta – e o que
quero é a mulher, e pretendo ficar com ela também.
Ele se inclinou um pouco para frente, apoiando as duas mãos sobre o
cabo da bengala. Tinha visto homens como Ned Van Alstyne trazendo seus
chapéus e bengalas para uma sala de estar, e imaginou que isto adicionava
um toque de intimidade elegante à aparência deles.
Lily ficou calada, com um leve sorriso estampado, o olhar perdido no
rosto dele. Na verdade, ela estava imaginando que ainda iria demorar um
pouco para que tal pedido fosse feito, e que Selden certamente chegaria
antes do momento da recusa. O semblante pensativo, como o de uma mente
distante, mas não avessa, foi visto por Mr. Rosedale como um
encorajamento sutil. Afinal, não teria apreciado nenhuma demonstração de
ansiedade.
– Pretendo ficar com ela também – repetiu ele, com uma risada que
tinha a intenção de fortalecer sua autoconfiança. – Geralmente consigo ter
tudo que quero na vida, Miss Bart. Eu queria ter dinheiro, e consegui muito
mais do que imaginava; e agora o dinheiro não parece ser importante, a
menos eu o gaste com a mulher certa. É isso que quero fazer com ele.
Quero que a minha esposa faça com que todas as outras se sintam
inferiores. Não economizarei nada que seja gasto com isso. Mas não é
qualquer mulher que é capaz disso, não importa quanto se gaste com ela.
Tem a história de uma menina que queria algumas moedas de ouro, ou algo
assim, e jogaram algumas para ela, mas ela acabou morrendo embaixo das
moedas. Isto acontece de verdade: algumas mulheres parecem que estão
enterradas embaixo de tantas joias. O que eu quero é uma mulher que
quanto mais diamantes tiver mais erguerá a cabeça. E quando olhei para
você naquela noite na festa dos Bry, naquele vestido branco simples, certa
de que dominava a plateia, eu disse para mim mesmo: ‘Céus, se ela tivesse
um diamante ela o usaria como se ele tivesse brotado dela’.
Mesmo assim Lily não disse nada, e ele continuou, empolgado com o
tema:
– Mas vou dizer a verdade, este tipo de mulher vale muito mais do
que todas as outras juntas. Se uma mulher ignora suas pérolas, é por que ela
deseja ser superior a todas as outras; e assim é com tudo o mais. Você sabe
o que quero dizer, sabe que as coisas chamativas são inferiores. Bem, eu
gostaria de ter uma mulher capaz de colocar o mundo aos seus pés se assim
ela desejasse. Sei que o dinheiro tem algo de vulgar, é isso o que pensam;
mas a minha mulher nunca teria de se rebaixar neste sentido.
Ele fez uma pausa, e então adicionou, como se tivesse se esquecido de
citar a quem estava se referindo: – Acho que sabe quem é a dama que tenho
em mente, Miss Bart.
Lily ergueu a cabeça, ligeiramente empolgada com o desafio. Mesmo
em meio ao todos os pensamentos confusos, o tilintar dos milhões de
Rosedale tinha algo de sedutor. Ah, pois um pouco deles poderia colocar
um fim a sua maldita dívida! Mas o homem por trás deles se tornava cada
vez mais repugnante diante da perspectiva da chegada de Selden. O
contraste era muito grotesco: ela mal conseguiu conter o sorriso que a ideia
provocara. Mas decidiu que a franqueza seria a melhor escolha.
– Se estiver se referindo a mim, Mr. Rosedale, sou muito grata, e me
sinto muito lisonjeada; mas não sei o que fiz para fazê-lo pensar que…
– Ah, se está querendo dizer que não morre de amor por mim, tenho
bom senso o suficiente para perceber isso. E não estou falando como se
você estivesse; presumo saber que tipo de conversa é esperado em tais
circunstâncias. Estou encantado por você, essa é a verdade, e por isso estou
fazendo uma proposta de negócio muito simples. Sei que não gosta de mim,
ainda, mas você gosta do luxo, e de estilo, e de se divertir, e de não ter de se
preocupar com dinheiro. Que gosta de se divertir e não ter de se preocupar
em pagar por isso; o que eu proponho é oferecer o divertimento e pagar por
isso.
Ele fez uma pausa, e ela devolveu com um sorriso frio.
– O senhor está enganado em um ponto, Mrs. Rosedale. Seja lá o que
eu goste, estou preparada para pagar por isso.
Ela falou com a intenção de fazê-lo ver que, se as palavras dele
tentavam aludir a sua vida íntima, ela estava preparada para encarar e negar
isso. Mas se percebeu o que ela quis dizer, ele prosseguiu no mesmo tom:
– Não tive a intenção de ofendê-la; desculpe se fui muito direto. Mas
por que não é sincera comigo, por que blefa comigo? Você sabe que andou
passando por dificuldades, as malditas dificuldades, e à medida que uma
moça envelhece, as coisas continuam acontecendo, e, antes que ela perceba,
as coisas que ela quer continuam acontecendo e não voltam mais. Não estou
dizendo que esta é a sua situação; mas você já passou por dificuldades que
uma garota como você nunca deveria passar, e o que estou lhe oferecendo é
a chance de superar isso de uma vez por todas.
O rosto de Lily corou quando ele terminou; não havia dúvidas quanto
ao que ele quis dizer, e permitir que ficasse por isso mesmo era uma
demonstração clara de fraqueza, enquanto mostrar ressentimento
abertamente incorria no risco de ofendê-lo em um momento muito perigoso.
A indignação tremia em seus lábios; mas foi contida por uma voz lá no
fundo que a avisou que era melhor não brigar. Ele sabia muito sobre ela, e
até mesmo no momento em que deveria mostrar o melhor de si, ele não teve
escrúpulos de deixar que ela soubesse o quanto ele sabia. Como ele poderia
usar seu poder depois que a demonstração de desprezo por ela expressada
tivesse dissipado o único motivo que o detinha? Seu futuro dependia do
modo como iria responder: ela teve de parar e pensar que, em meio a todas
as suas outras preocupações, assim como um fugitivo sem fôlego às vezes é
preciso parar em uma encruzilhada e tentar decidir friamente qual caminho
seguir.
– O senhor tem razão, Mr. Rosedale. Passei por algumas dificuldades;
e agradeço por querer me ajudar. Nem sempre é fácil ser independente e
respeitada quando se é pobre e vive entre os ricos; fui imprudente com
dinheiro, e estou preocupada com as minhas finanças. Mas eu seria egoísta
e ingrata se fizesse disso um motivo para aceitar a sua oferta, sem nada
melhor a oferecer em troca além do desejo de me ver livre das minhas
preocupações. O senhor precisa me dar um tempo; tempo para pensar sobre
a sua gentileza, e no que eu poderia lhe dar em troca disso…
Ela estendeu a mão com um gesto encantador para quebrar o gelo. A
sugestão de uma possibilidade futura fez Rosedale se levantar em
obediência, um pouco corado com o sucesso inesperado, e contido pela
tradição da sua raça de aceitar o que era concedido, sem pressa de
pressionar por mais. Algo na rápida aceitação a assustou; ela sentiu que por
trás havia uma força de vontade capaz de superar tudo. Mas pelo menos
eles se despediram amigavelmente, e ele tinha ido embora sem encontrar
Selden – Selden, cuja ausência a alarmava novamente. Rosedale tinha
permanecido por uma hora, e ela percebeu que agora era muito tarde para
esperar que Selden viesse. Ele iria escrever justiçando a ausência, claro; um
bilhete dele chegaria no último horário. Mas a sua confissão teria que ser
postergada; e o calafrio causado pelo atraso caiu pesado sobre seu humor
fragilizado.
E pesou ainda mais quando o carteiro tocou a campainha e não deixou
nada para ela, e assim ela teve de subir para uma noite solitária – uma noite
sombria e insone assim como tinha imaginado que seria na casa de Gerty.
Nunca soubera viver com seus próprios pensamentos, e ser confrontada por
eles por tantas horas de desesperadora lucidez fez com que a agitada vigília
anterior parecesse fácil.
A luz do dia espantou os fantasmas, e deixou claro que ela teria
notícias de Selden antes do meio-dia, mas o dia passou sem nenhum bilhete
ou visita dele. Lily não saiu de casa, almoçou e jantou sozinha com a tia,
que se queixou das palpitações do coração, e falou de modo frio sobre
temas genéricos. Mrs. Peniston se recolheu cedo, e depois que ela se foi,
Lily sentou e escreveu um bilhete para Selden. Ela estava prestes a chamar
um criado para mandar entregar a mensagem quando seus olhos pousaram
em um parágrafo no jornal do dia anterior que estava embaixo do seu
cotovelo: “Mrs. Lawrence Selden estava entre os passageiros que partiram
na tarde hoje para Havana e Índias ocidentais no Windward Liner Antilles”.
Ela abriu o jornal e ficou parada, olhando para seu bilhete. Agora
sabia que ele nunca viria – que tinha ido embora por que estava com medo
de vir. Ela se levantou, e saiu andando pela sala e se olhando no espelho
iluminado sobre a cornija da lareira. As marcas no seu rosto eram horríveis
– ela parecia velha; e quando uma moça parece velha para ela mesma, como
aparenta para as outras pessoas? Ela se afastou, e saiu andando sem rumo
pela sala, pisando mecanicamente entre as rosas enormes do tapete
Axminster de Mrs. Peniston. De repente, notou que a caneta que tinha
usado para escrever para Selden ainda estava encostada no tinteiro aberto.
Ela sentou novamente, pegou um envelope e o endereçou a Rosedale. Então
pegou uma folha de papel, e apoiou sobre ela a caneta. Foi fácil escrever a
data, e “Querido Mr. Rosedale”, mas depois disso a inspiração despareceu.
Ela pretendia dizer para ele vir visitá-la, mas as palavras se recusavam a
tomar forma. Finalmente, iniciou com um: “Estive pensando…” em seguida
abaixou a caneta, apoiou os cotovelos sobre a mesa e escondeu o rosto entre
as mãos.
O barulho da campainha da porta a despertou. Não era tão tarde –
quase dez horas – poderia ser uma carta de Selden, ou uma mensagem – ou
quem sabe ele mesmo, do outro lado da porta! A notícia da sua partida
poderia ter sido um engano – talvez fosse outro Lawrence Selden que
tivesse ido para Havana – deu tempo de todas estas possibilidades passarem
pela sua cabeça, e de fortalecer a certeza de que finalmente estava prestes a
vê-lo ou ter notícias dele, antes da porta da sala de estar abrir para a entrada
de um criado trazendo um telegrama.
Lily rasgou o envelope com mãos trêmulas, e leu o nome de Bertha
Dorset abaixo da mensagem: “Partindo inesperadamente amanhã. O que
acha de se juntar a nós em um cruzeiro pelo Mediterrâneo?”
LIVRO DOIS
Capítulo 1
Nos degraus do Casino de Monte Carlo, Selden teve a nítida sensação
de que aquele lugar, mais do que qualquer outro que ele conhecia, tinha o
dom de se adequar ao humor de cada homem. O seu, naquele momento,
estava pronto para o divertimento, mas que para olhos desencantados,
poderia muito bem voltar-se para a observação da pintura e arquitetura. O
apelo para tomar parte era tão sincero – tão fácil de identificar na natureza
humana a vontade de aproveitar as férias – que era como uma onda
refrescante em uma mente cansada pelas longas horas de trabalho em um
ambiente talhado para conter os sentidos. Enquanto observava a praça
branca, cercada por uma arquitetura exótica coquete, o tropicalismo
estudado dos jardins, os grupos que transitavam em primeiro plano com as
montanhas malvas ao fundo, que parecia lindo um cenário teatral esquecido
entre uma cena e outra – e enquanto assimilava os efeitos da luz e da
languidez, ele sentiu um movimento de revolta pelos últimos meses da sua
vida.
O inverno de Nova York tinha sido uma sequência interminável de
dias carregados de neve, substituído por uma primavera de sol intenso e
ventos furiosos, quando a feiura das coisas agridem os olhos enquanto o
vento arenoso machuca a pele. Selden, mergulhado em seu trabalho, disse a
si mesmo que as condições externas não importavam para um homem na
sua situação, e que o frio e a feiura eram um bom tônico para relaxar as
tensões. Quando o caso urgente o levou para Paris para se encontrar com
um cliente, foi com relutância que quebrou a rotina; e somente depois de
tratar do assunto e de ter resolvido dar uma escapadinha de uma semana no
Sul, que ele estava começando a sentir a renovação do entusiasmo de
espectador que encontra um motivo para viver.
A multiplicidade destes apelos – a eterna surpresa de seus contrastes e
semelhanças! Todos estes truques e reviravoltas do espetáculo saltavam
diante de seus olhos enquanto ele descia os degraus do Casino e parava na
caçada à frente. Fazia sete anos que não viajava para o exterior – e quantas
mudanças o contato renovado produziu! Se por um lado a essência
permanecia intocada, não era possível dizer o mesmo da superfície. E este
era o lugar ideal para despertar a completude da renovação. As grandezas,
perpetuidades, poderiam ter feito com que ele continuasse sendo como era:
mas aquela tenda erguida para um dia de folia ofereceu um teto de
esquecimento entre ele e seu céu fixo.
Era meado de abril, a folia estava atingindo seu clímax e logo os
grupos que vagavam pela praça e jardins iriam dispersar e reaparecer em
outros cenários. Enquanto isso, os últimos minutos do espetáculo pareciam
ganhar um brilho extra causado pela ameaça da cortina. A qualidade do ar, a
exuberância das flores, o azul intenso do mar e do céu, produziam o efeito
da exibição de um Tableu, quando todas as luzes se ascendem ao mesmo
tempo. Esta impressão foi reforçada pelo modo como um grupo de pessoas
conscientemente chamativas avançou para o centro da praça e parou diante
de Selden, como se fossem atores principais reunidos pelas exigências do
efeito final. A aparição deles confirmou a impressão de que o espetáculo
tinha sido encenado independente de qualquer coisa, e enfatizou a sua
semelhança com algumas daquelas “peças de época” onde os protagonistas
enfrentam as paixões sem desfazer uma prega. As damas estavam em poses
calculadamente desvinculadas para isolar seus efeitos, e os homens
próximos às elas tão irrelevantes quantos os galãs de palco cujos alfaiates
são citados no programa. Foi Selden que sem querer uniu o grupo ao focar
sua atenção em um dos membros.
– Mr. Selden! – exclamou Mrs. Fisher, surpresa; e com um gesto na
direção de Mrs. Jack Stepney e Mrs. Wellington Bry, adicionou em tom de
lamento: – Estamos morrendo de fome porque não conseguimos decidir
onde vamos almoçar.
Bem aceito no grupo, e transformado em confidente da dificuldade
deles, Selden descobriu com divertimento que havia vários lugares onde
alguém poderia perder algo por deixar de almoçar lá, ou ser privado de algo
por almoçar; de modo que comer na verdade ficava em segundo plano no
lugar consagrado aos estes ritos.
– Com certeza onde se come melhor é no Terrasse, mas pelo jeito não
há nenhum motivo para ir para lá: os americanos que não conhecem outro
lugar correm para lá em busca da melhor comida. E a duquesa de Beltshire
tem ido ao Becassin, ultimamente – Mrs. Bry resumiu o problema.
Mrs. Bry, para desespero de Mrs. Fisher, ainda não tinha perdido a
mania de ponderar suas alternativas sociais em público. Não conseguia
adquirir o ar de quem estava fazendo as coisas porque queria, e escolher a
que mais lhe agradasse.
Mr. Bry, um homem baixinho e pálido, com cara de homem de
negócios em roupas de laser, encarou o dilema de modo divertido.
– Creio que a duquesa vá onde é mais barato, a menos que arrume
alguém para pagar seu almoço. Se você a convidasse para ir ao Terrasse,
aposto que ela iria correndo.
Mas Mrs. Jack Stepney interpôs.
– Os grã-duques frequentam aquele lugarzinho em Condamine. Lorde
Hubert disse que é o único restaurante na Europa que sabe preparar
ervilhas.
Lorde Hubert Dacey, elegante e descontraído, com um sorriso
encantador, e o ar de ter passado seus melhores anos gastando a sua fortuna
nos restaurantes certos, concordou com ênfase delicada.
– É bem isso.
– Ervilhas? – disse Mr. Bry com desprezo. – Será que eles sabem
fazer sopa de tartaruga? Isto só mostra – continuou ele – o que estes
mercados Europeus são capazes, quando um sujeito fica famoso por saber
preparar ervilhas!
Jack Stepney interveio com autoridade.
– Não sei se concordo com Dacey. Tem uma portinha em Paris, fora
da Quai Voltaire... Mas de qualquer maneira, não recomendo o Candamine
Gargote; pelo menos não com as damas.
Stepney, que desde o casamento, tinha encorpado e se tornado ainda
mais pudico, como costumava acontecer com os maridos das Van Osburgh;
mas sua esposa, para sua surpresa e desconforto, tinha adquirido um
rebolado provocante que o fazia andar no rastro dela sem fôlego.
– Vamos para lá, então! – declarou ela, sacudindo suas plumas. –
Estou tão cansada do Terrasse: é tão chato quanto os jantares da minha mãe.
E Lorde Hubert prometeu nos contar quem são as danadinhas que
frequentam aquele outro lugar; ele não prometeu, Carry? Jack não faça essa
cara feia!
– Bem – disse Mrs. Bry, – só quero saber quem são as modistas delas.
– Certamente Dacey também pode lhe contar isso – apontou Stepney,
com uma intenção irônica que os outros receberam com um murmurinho. –
Posso tentar descobrir, minha cara –; e após Mrs. Bry declarar que seria
incapaz de dar mais um passo, o grupo acenou para duas ou três carruagens
que aguardavam atentas nos limites dos jardins, e seguiram juntos na
direção do Condamine.
O destino deles era um dos pequenos restaurantes que se destacavam
no bulevar que descia abruptamente de Monte Carlo até a parte baixa da
cidade que estendia ao longo do cais. Da janela onde se encontravam
acomodados, eles tinham vista para a intensa curva azul da marina,
instalada entre o verde dos promontórios gêmeos: à direita, o penhasco de
Mônaco, coberto pela silhueta medieval da igreja e do castelo, à esquerda
os terraços e os pináculos dos casinos. Entre os dois, as águas da baía
estavam ligeiramente movimentadas pela entrada e saída das embarcações
de veraneio, onde, no momento culminante do almoço, o majestoso avanço
de um iate a vapor desviou a atenção do grupo das ervilhas.
– Minha nossa, pelo visto os Dorset voltaram! – exclamou Stepney; e
lorde Hubert, pegando seu monóculo, corroborou: – É o Sabrina… isso
mesmo.
– Já? Eles iam passar um mês na Sicília – observou Mrs. Fisher.
– Desconfio que foi essa sensação que eles tiveram, pois há apenas
um hotel melhorzinho em toda a ilha – disse Mrs. Bry num tom
depreciativo.
– Foi ideia de Ned Silverton, mas o pobre Dorset e Lily Bart devem
ter se sentido terrivelmente entediados.
Mrs. Fisher adicionou num murmúrio para Selden: – Espero que não
tenha ocorrido nenhum desentendimento.
– É muito agradável ter Miss Bart de volta – disse lorde Hubert, num
tom de voz contido; e Mrs. Bry adicionou ingenuamente: – Aposto que
agora que Lily está de volta, a duquesa vai querer jantar conosco.
– A duquesa gosta muito dela. Tenho certeza de que ela pode marcar
um jantar – concordou lorde Hubert, com a pose profissional de um homem
acostumado a adaptar seu perfil de facilitador social. Selden ficou abismado
com mudança brusca de comportamento dele.
– Lily tem feito muito sucesso aqui – continuou Mrs. Fisher, ainda se
dirigindo confidencialmente a Selden. – Ela parece dez anos mais nova, está
ainda mais bonita. Lady Skiddaw desfilou com ela por toda Cannes, e a
princesa da Macedônia a recebeu por uma semana em Cimiez. Dizem que
foi por isso que Bertha resolveu ir para a Sicília: a princesa nem ligou para
ela, e ela não suportou a cara de triunfo de Lily.
Selden não comentou nada. Sabia vagamente que Miss Bart estava
fazendo um cruzeiro pelo Mediterrâneo com os Dorset, mas não tinha lhe
ocorrido que houvesse alguma chance de cruzar com ela na Riviera, onde a
temporada estava virtualmente terminando. Enquanto se recostava,
silenciosamente contemplando a delicada xícara cheia de café turco, ele
tentava organizar seus pensamentos, para dimensionar até que ponto a
notícia da proximidade dela estava de fato afetando-o. Ele tinha a
capacidade de se colocar acima, até mesmo nos momentos de alta pressão
emocional, para assim ter uma visão clara dos seus sentimentos, e ficou
muito surpreso pelo modo como a visão do Sabrina o perturbou. Ele tinha
motivos para pensar que seus três meses dedicados com afinco ao trabalho,
após o choque profundo da sua desilusão, tinham esvaziado a sua mente dos
vapores sentimentais. O sentimento que ele tinha alimentado e dado
importância era o de agradecimento por ter escapado: ele era como um
viajante tão grato por ter sido salvo de um acidente perigoso que a princípio
mal tinha percebido os hematomas. Mas naquele momento, ele sentiu a dor
latente, e percebeu que não tinha saído ileso.
Uma hora depois, ao lado de Mrs. Fisher nos jardins do Casino, ele
ainda tentava encontrar novos motivos para se esquecer do ferimento
causado pela contemplação do perigo evitado. O grupo tinha se dividido
com a indecisão característica da movimentação social em Monte Carlo,
onde o lugar todo, e as longas horas do dia banhadas pela luz do sol,
pareciam oferecer infinitas opções de lazer. Lorde Hubert finalmente tinha
saído à procura da duquesa de Beltshire, encarregado por Mrs. Bry da
delicada negociação de garantir a presença da lady no jantar, os Stepney
tinham para Nice de carro, e Mr. Bry tinha ido ocupar seu lugar na
competição de tiro ao pombo que no momento requeria todo seu talento.
Mrs. Bry, que costumava ficar vermelha e ofegante após o almoço,
tinha sido aconselhada por Carry Fisher para ir para seu hotel e repousar por
uma hora; e assim Selden e sua companheira foram deixados para um
passeio propício à troca de confidências. A caminhada não demorou muito,
acabou num longo descanso em um banco encoberto por um loureiro e
rosas banksiae, de onde eles tinham uma vista deslumbrante do mar azul
entre a balaustrada de mármore, e dos cactos floridos que brotavam das
pedras como se fossem meteoros. A sombra agradável do nicho onde se
encontravam, e o brilho adjacente do ar, convidavam para a preguiça, e para
fumar vários cigarros; e Selden, cedendo a estas influências, se viu obrigado
a ouvir Mrs. Fisher contar a história das suas experiências recentes. Ela
tinha vindo para a Europa com os Welly Bry no momento em que todos
fogem das inclemências da primavera de Nova York. Os Bry, intoxicados
pelo primeiro sucesso deles, já ansiavam por novos reinados, e Mrs. Fisher,
vendo a Riviera como o local perfeito para apresentá-los a sociedade
londrina, os trouxera até lá. Ela tinha conhecidos em várias capitais, e uma
facilidade de retomar o contato após longos períodos de ausência; e o boato
cuidadosamente disseminado sobre a fortuna dos Bry os colocou no centro
de um grupo de cosmopolitas em busca de prazer.
– Mas as coisas não estão indo tão bem quanto eu esperava – admitiu
Mrs. Fisher. – É fácil dizer que qualquer um com dinheiro consegue entrar
para a sociedade; mas seria mais correto dizer que quase todos conseguem.
E o mercado londrino está tão abarrotado de novos ricos americanos que,
para obter sucesso lá agora, eles precisam ser muito espertos ou muito
exóticos. Os Bry não são nenhuma das duas coisas. Ele até que se sairia
bem se ela o deixasse circular sozinho; eles gostam das suas gírias e da sua
mania de se gabar e das suas gafes. Mas Louisa estraga tudo ao tentar
repreendê-lo para se sobressair. Se ela fosse mais ela mesma, gorda, vulgar
e saltitante, tudo bem; mas assim que conhece alguém inteligente ela tenta
se fazer de fina e elegante. Ela tentou isso com a duquesa de Beltshire e
com lady Skiddaw, e as duas fugiram. Fiz o possível para tentar fazê-la
enxergar o seu erro; falei várias vezes: ‘Tente ser você mesma, Louisa’; mas
ela continua fingindo até mesmo comigo. Acho que ela tenta se fazer de
fina até mesmo dentro do próprio quarto, de porta fechada.
– O pior de tudo – prosseguiu Mrs. Fisher, – é que ela pensa que é
tudo culpa minha. Quando os Dorset apareceram aqui seis semanas atrás, e
todo mundo começou a fazer o maior rebuliço por causa de Lily Bart, pude
perceber que Louisa pensou que se ela estivesse com Lily, em vez de
comigo, ela já teria circulado em meio a toda a realeza. Ela não percebe que
é a beleza de Lily que faz isso tudo. Lorde Hubert me disse que Lily está
ainda mais bonita do que quando ele a conheceu em Aix, dez anos atrás.
Parece que ela fez muito sucesso por lá. Um príncipe italiano, rico de
verdade, quis se casar com ela; mas quando tudo estava dando certo
apareceu um filho postiço, e Lily fez a bobagem de flertar com ele,
enquanto os arranjos para o casamento com o padrasto eram
providenciados. Dizem que o jovem fez isso de propósito. Você imagina o
escândalo: os dois homens brigaram feio, e as pessoas começaram a olhar
para Lily de um jeito tão estranho que Mrs. Peniston teve de fazer as malas
e terminar de se curar em outro lugar. Não que ela tenha entendido o que
aconteceu: desde então ela pensa que Aix não lhe fez bem, e menciona a
sua estada lá como uma prova da incompetência dos médicos franceses.
Essa é a Lily, sabe: ela trabalha como uma escrava preparando o terreno
para plantar a sua semente, mas no dia da colheita ela perde a hora ou vai a
um piquenique.
Mrs. Fisher fez uma pausa e olhou pensativa para o mar reluzente
entre as flores de cactos.
– Às vezes – adicionou – penso que é apenas descuido; mas às vezes
penso que é porque, no fundo, ela despreza as coisas pelos quais tanto lutar
para conseguir. E é a dificuldade de decidir que faz dela um objeto de
estudo tão interessante.
Ela olhou atenta para o perfil de Selden, e retomou com um suspiro: –
Bem, tudo que posso dizer é que, eu gostaria que ela passasse para mim
algumas das suas oportunidades descartadas. Ela poderia fazer bem aos Bry
se os controlasse direito, e eu saberia cuidar direitinho de George Dorset
enquanto Bertha lê Verlaine com Neddy Silverton.
Ela ouviu o som de protesto de Selden com um olhar de desdenho.
– Bem, de que adianta tentar disfarçar? Todo mundo sabe que foi isso
que Trouxe Bertha para cá. Quando Bertha quer se divertir ela precisa
arrumar uma distração para George. A princípio pensei que Lily ia jogar
suas cartas direito, mas ouvi falar que Bertha está com ciúme do sucesso
dela aqui e em Cannes, e eu não me surpreenderia se houvesse uma ruptura
dia desses. Lily só está segura por que Bertha está precisando muito dela,
muito mesmo. O caso com Silverton está no auge: é preciso manter George
distraído o tempo todo. E sou obrigada a reconhecer que Lily sabe fazer
isso. Tenho certeza de que ele se casaria com ela amanhã se descobrisse que
Bertha está aprontando alguma. Mas sabe como ele é: tão cego quanto
ciumento; e obviamente a função de Lily é mantê-lo cego. Uma mulher
inteligente sabe o momento certo de tirar a venda dos olhos, mas Lily não é
inteligente nesse sentido, e quando George abrir os olhos provavelmente ela
fará de tudo para não estar na linha de visão dele.
Selden jogou fora o cigarro.
– Minha nossa! Está na hora do meu trem! – exclamou, verificando no
seu relógio.
Ao que Mrs. Fisher comentou surpresa, com um murmúrio: – Achei
que estivesse em Monte! – ao descobrir que ele estava hospedado em Nice.
– O pior de tudo é que agora ela despreza os Bry – ele escutou este
último comentário irrelevante.
Dez minutos depois, no quarto com vista para o Casino, ele jogava
seus pertences dentro de uma mala, enquanto o porteiro esperava do lado de
fora para levá-la até o táxi que esperava na frente do hotel. Depois do breve
percurso até a estação de trem, pelas ruas íngremes de pavimento branco,
ele chegou a tempo para pegar o trem da tarde para Nice; mas só depois de
se instalar no canto da carruagem vazia, que exclamou consigo mesmo,
numa reação de desprezo por si mesmo: “Do que diabos estou fugindo?”
A pertinência da pergunta colocou em cheque o impulso fugitivo de
Selden antes de o trem começar a entrar em movimento. Era ridículo fugir
como um covarde emotivo de uma paixão que a razão já tinha superado. Ele
tinha deixado instruções no escritório para que enviassem as cartas
importantes para Nice, e em Nice ele poderia esperar sossegado por elas. Já
estava irritado o suficiente por ter deixado Monte Carlo, onde tinha a
intenção de passar a semana antes de pegar o navio; mas agora seria difícil
voltar atrás sem parecer indeciso. No fundo ele não se arrependia por ter se
livrado da possibilidade de encontrar Miss Bart. Apesar de ter se desligado
dela completamente, ainda não estava em condições de se aproximar dela
nem socialmente; e de um ponto de vista mais pessoal, ela não parecia ser
um bom objeto de estudo. Encontros ao acaso, ou até mesmo a repetida
menção do nome dela, poderiam trazer seus pensamentos de volta aos
sulcos de onde ele tinha lutado tanto para tirá-los; ao passo que se pudesse
excluí-la completamente da sua vida, a pressão de impressões novas e
variadas, que não tivessem nenhuma ligação com ela, logo dariam um fim
ao trabalho da separação. A conversa de Mrs. Fisher tinha, na verdade, dado
conta cabo disso; mas o tratamento ainda era muito doloroso para ser
escolhido por vontade própria enquanto os medicamentos mais brandos
ainda não tinham sido experimentados; e Selden achou que só poderia
confiar em si mesmo para voltar a ver Miss Bart aos poucos, contando que
não a visse.
Tendo chegado à estação mais cedo, ele já tinha atingido este nível
das suas reflexões antes de a multidão que crescia na plataforma alertá-lo de
que não poderia continuar mantendo a sua privacidade; no minuto seguinte
havia uma mão à porta, e ele se virou para confrontar o rosto do qual estava
fugindo.
Miss Bart, corada por conta da pressa para alcançar o trem, liderava
um grupo composto pelos Dorset, o jovem Silverton e lorde Hubert Dacey,
que mal entrou no trem e já começou a encher Selden de exclamações de
surpresa e saudações, antes do apito de partida soar. O grupo, pelo visto,
estava indo de última hora para Nice, atendendo a um convite para jantarem
com a duquesa de Beltshire e depois ver a festa na praia; um plano
evidentemente improvisado, apesar dos protestos de lorde Hubert: – Oh,
quer dizer, você sabe – com o claro propósito de derrotar Mrs. Bry na sua
intenção de se aproximar da duquesa.
Durante as risadas pela manobra, Selden teve tempo de olhar de
relance para Miss Bart, que tinha sentado de frente para ele sob a luz
dourada de fim de tarde. Menos de três meses tinham passado desde que ele
se separara dela na saída do jardim de inverno dos Bry; mas uma mudança
sutil tinha alterado a qualidade da sua beleza. Antes havia uma
transparência pelo qual as flutuações do espírito às vezes se tornavam
tragicamente visíveis; agora sua superfície impenetrável sugeria um
processo de cristalização que tinha fundido todo seu ser em uma substância
dura e brilhante. A mudança foi vista por Mrs. Fisher como um
rejuvenescimento: para Selden parecia aquele intervalo quando a fluidez
quente da juventude congela na sua forma definitiva.
Ele sentiu isso no modo como ela sorriu para ele, e na rapidez e
habilidade com que, depois de se ver inesperadamente na presença dele, ela
assumiu o fio das suas relações como se este não tivesse sido rompido com
a violência da qual ele ainda tentava se recuperar. Tal facilidade lhe deu
náusea – mas ele disse para si mesmo que tinha sido a pontada de dor que
precede a recuperação. Agora ele poderia se recuperar de vez – poderia se
livrar da última gota de veneno que ainda restava em seu sangue. Até já se
sentia mais calmo na presença dela do que tinha aprendido ficar quando
pensava nela. Suas suposições e subterfúgios, seus atalhos e longos desvios,
o modo com o qual ela conseguiu encará-lo, a ponto de não deixar
transparecer nenhuma lembrança do passado, sugeriu as oportunidades que
ela tivera para praticar tais habilidades desde o último encontro deles. Ele
sentiu que finalmente ela tinha conseguido entrar num acordo consigo
mesma: tinha feito um pacto com seus impulsos rebeldes, e conquistado um
sistema uniforme de autocontrole, sob o qual todas as tendências errantes
eram dominadas ou forçadas a agir a seu favor.
E ele viu outras coisas também nos modos dela: viu como estes
tinham se ajustado para ocultar as complicações de uma situação da qual,
mesmo depois dos flashes elucidativos de Mrs. Fisher, ele ainda tentava se
recuperar. Certamente Mrs. Fisher não poderia mais culpar Miss Bart por
desperdiçar as suas oportunidades! Para indignação de Selden ela estava
demasiadamente atenta a elas. Ela estava “perfeita” para cada uma:
submissa ao desejo de predominar de Bertha, atenciosa aos humores de
Dorset, agradável com Silverton e Dacey, o último que a olhava com uma
clara admiração antiga, enquanto o jovem Silverton, pensando apenas em si
mesmo, parecia ciente da sua presença apenas como algo vagamente
obstrutivo. E de repente, enquanto observava o modo como ela se adaptava
ao meio, Selden se deu conta de que, se tal habilidade se fazia necessária,
era por que a situação era desesperadora. Ela estava à beira de algo, foi a
impressão que teve. Parecia que estava à beira de um abismo, com um
pezinho à frente para tentar se manter firme no chão que lhe faltava.
Na avenida Promenade des Anglais, onde Ned Silverton o segurou
por meia hora antes do jantar, e ele teve um resumo da insegurança geral.
Silverton estava tremendamente mal-humorado. Como alguém poderia se
enfiar num maldito buraco como a Riviera – qualquer um com um grão de
imaginação – com o Mediterrâneo inteiro à disposição; mas, se a escolha de
um lugar depende do modo como assam um frango! Céus! Que tese daria o
estudo da tirania do estômago – o modo como um fígado preguiçoso ou a
insuficiência de sucos gástricos pode afetar todo o curso do universo
ofuscam tudo ao redor – a dispepsia crônica deveria estar entre as “causas
estatutárias”; a vida de uma mulher pode ser arruinada pela incapacidade de
um homem de digerir pão fresco. Grotesco? Sim – e trágico – como a
maioria dos absurdos. Não existe nada mais sombrio do que a tragédia que
usa uma máscara cômica… Onde ele estava mesmo? Oh – o motivo pelo
qual eles deixaram a Sicília e voltaram correndo? Bem, em parte, sem
dúvida, foi pela vontade de Miss Bart de retornar para o bridge e para a
civilização. Insensível como uma pedra para a arte da poesia – nada parecia
bom para ela, nem no mar ou em terra! E assim ela convenceu Dorset de
que a comida italiana estava fazendo mal para ele. Oh, ela seria capaz de
convencê-lo de qualquer coisa – qualquer coisa! Mrs. Dorset sabia disso –
oh, e como: nada passa despercebido para ela! Mas ela segurou a língua –
teve de, muitas vezes. Miss Bart era uma amiga íntima – ela não queria
ouvir nada contra ela. Só que isto fere o orgulho de uma mulher – existem
algumas coisas com os quais as pessoas não se acostumam… Tudo isso é
segredo, certo? Ah – as damas estavam acenando da varanda do hotel… Ele
cruzou a avenida, deixando Selden pensativo, com um cigarro.
As conclusões aos quais tinha chegado foram reforçadas, mais tarde,
por um daqueles indícios que ganham luz própria nas sombras de uma
mente em dúvida. Selden, depois de encontrar por acaso com um conhecido
e jantar com ele, resolveu dar um passeio pelo calçadão da praia iluminado,
onde uma fileira de arquibancadas lotadas refletia escuras sobre as águas.
Era uma noite agradável e convidativa. Ao alto, no céu de verão, pipocava
uma rajada de fogos de artifícios; e ao leste uma lua atrasada, que se erguia
além da elevação costeira, espalhava sobre a baía um facho de luz que
ganhava um tom cinza pálido em contraste com o reflexo vermelho dos
barcos iluminados. Seguindo pelo calçadão iluminado por lanternas, o som
de uma banda flutuava acima do murmurinho das pessoas e do suave
farfalhar dos galhos nos jardins escuros; e entre estes jardins e a parte de
trás das arquibancadas havia um fluxo de pessoas cujo espírito festivo
parecia contaminado pela convidativa languidez da estação.
Selden e seu companheiro, sem conseguirem encontrar um lugar para
sentar em uma das arquibancadas de frente para a baía, continuaram
andando por um tempo em meio à horda, até encontrarem um lugar com
vista privilegiada no jardim acima do calçadão. De lá, eles tinham uma
visão triangular da água, e dos barcos passando por sua superfície; mas a
multidão na rua estava bem no foco de visão deles, e para Selden pareceu
muito mais interessante do que o espetáculo em si. Um tempo depois, no
entanto, ele se cansou do lugar e, descendo sozinho para a rua, dobrou na
primeira esquina e saiu em uma rua lateral silenciosa, iluminada pela luz do
luar. Muros altos de um jardim encoberto pelas copas das árvores que
refletiam uma sombra escura e comprida no chão; uma carruagem
desocupada passou pela rua deserta, e na hora Selden viu duas pessoas
surgirem do outro lado da rua, fazerem sinal para a carruagem, e seguirem
nela, rumo ao centro da cidade. A luz do luar iluminou quando eles pararam
para entrar na carruagem, e ele reconheceu Mrs. Dorset e o jovem Silverton.
Embaixo do poste mais próximo ele deu uma olhada no seu relógio e
viu que já eram quase onze horas. Ele pegou outra rua adjacente, e
desviando da multidão que circulava na avenida, seguiu para o clube da
moda que dava vista para a baía. Lá, em meio ao alarido das mesas de
bacará lotadas, ele avistou lorde Hubert Dacey, sentado com seu sorriso de
sempre atrás de uma pilha de dinheiro que diminuía rapidamente. Após a
pilha ter sido devidamente eliminada, lorde Hubert se levantou com um
encolher de ombros e se juntou a Selden, e seguiu com ele para o terraço
vazio do clube. Já passava da meia-noite, e a multidão, lá embaixo,
dispersava, enquanto a longa fila de barcos com luzes vermelhas tinha se
espalhado e desparecido sob um céu em posse novamente só tranquilo
esplendor do luar.
Lorde Hubert verificou as horas em seu relógio.
– Minha nossa, prometi encontrar a duquesa para a ceia no London
House; mas já passa da meia-noite, e acho que todos já devem ter ido
embora. A verdade é que me perdi deles em meio à multidão logo depois do
jantar, e busquei refúgio aqui, para azar meu. Eles tinham lugar em uma das
arquibancadas, mas obviamente não conseguiram ficar parados: a duquesa
não aguenta. Ela e Miss Bart saíram em busca de aventuras. Céus, a culpa
não será delas se não se encontraram nada de bom!
Adicionou num tom malicioso, após uma pausa para pegar um
cigarro: – Miss Bart é uma velha amiga sua, não é? Foi o que ela me disse.
Ah, obrigado, pensei que ainda tivesse um – ele ascendeu o cigarro
oferecido por Selden, e continuou, no mesmo tom falastrão: – Claro que
não é da minha conta, mas não fui eu quem a apresentou à duquesa. Mulher
encantadora, a duquesa, sabe; muito minha amiga; mas um tanto liberal.
Selden recebeu isso em silêncio, e após algumas baforadas, lorde
Hubert retomou: – É o tipo de coisa que não se pode dizer para uma moça,
apesar de as moças de hoje em dia serem capazes de julgarem por si
mesmas; mas neste caso, eu também a conheço há muito tempo, sabe, e
parece que não tem ninguém para aconselhá-la. A meu ver a situação toda é
um pouco confusa, mas parece que tinha uma tia em algum lugar, uma
difusa e inocente, ótima em transpor abismos sem nem perceber… Ah, ela
mora em Nova York, não é? Pena que Nova York esteja tão longe!
Capítulo 2
Miss Bart, saindo tarde da sua cabine na manhã seguinte, se viu
sozinha no deque do Sabrina. As cadeiras estofadas, dispostas convidativas
não mostravam sinal de ocupação recente, e ela ficou sabendo por um
comissário que Mrs. Dorset ainda não tinha aparecido, e que o cavalheiro –
sozinho – tinha deixado o barco logo depois que eles tomaram o café da
manhã. Atualizada sobre os acontecimentos, Lily deitou de lado apreciando
o espetáculo à sua frente. O sol no céu sem nuvens banhava o mar e a costa
com uma luz radiante. As águas púrpuras traçavam uma linha branca de
espuma na beira da praia; contrastando com as águas irregulares, hotéis e
vilas se destacavam do verde das oliveiras e dos eucaliptos; e as montanhas
finalmente esculpidas ao fundo pareciam tremer sob uma luz intensa.
Como era lindo – e como ela amava a beleza! Sempre achara que sua
sensibilidade neste sentido compensava a obtusidade de alguns sentimentos
dos quais sentia menos orgulho; e ao longo dos últimos três meses ela tinha
se rendido a isso apaixonadamente. O convite dos Dorset para viajar com
eles tinha chegado quase como um milagre para libertá-la das dificuldades
esmagadoras; e seu dom de se reinventar em novos cenários, e de se
esquecer dos problemas tão facilmente quanto dos lugares onde eles tinham
surgido, fez com que a mera mudança de um lugar para outro parecesse,
não apenas uma simples postergação, mas uma solução. Para ela as
complicações morais existiam apenas no meio em que tinham sido
causadas; não que pretendesse esquecê-las ou ignorá-las, mas elas
deixavam de ser reais quando se mudava de ambiente. Ela não poderia ter
continuado em Nova York sem pagar o que devia a Trenor; para se livrar
daquela dívida odiosa estava disposta até mesmo a encarar um casamento
com Rosedale; mas o acaso que tinha colocado o Atlântico entre ela e suas
obrigações, fez com que elas ficassem para trás como se fossem um evento
superado.
Os dois meses a bordo do Sabrina contribuíram para a ilusão de
distanciamento. Ela mergulhou em novos cenários, e encontrou neles a
renovação de antigas esperanças e ambições. O cruzeiro em si a encantou
como uma aventura romântica. Sentiu-se levemente sensibilizada pelos
nomes e paisagens pelos quais passou, e ouviu Ned Silverton lendo Teócrito
à luz do luar, enquanto navegavam pelos promontórios sicilianos, com uma
emoção que confirmou a superioridade intelectual que acreditava possuir.
Mas as semanas em Cannes e em Nice tinham sido bem mais agradáveis. A
satisfação de ter sido acolhida pela alta sociedade e se destacar a tal ponto
que se viu figurando mais de uma vez como a “bela Miss Bart” nos jornais
dedicados a relatar todos os passos de seus amigos cosmopolitas – todas
estas experiências acabaram lançando para as profundezas da memória as
dificuldades prosaicas e sórdidas das quais ela tinha escapado.
Apesar de estar levemente ciente das novas dificuldades, ela tinha
confiança na sua habilidade para enfrentá-las: era característica sua pensar
que os problemas que não podia resolver eram apenas aqueles com os quais
estava familiarizada. Enquanto isso poderia se orgulhar da sua capacidade
de se adaptar a situações delicadas. Ela tinha motivos para acreditar que se
fazia necessária para seus anfitriões; e se conseguisse encontrar um meio
irrepreensível de conseguir lucrar financeiramente com a situação, então
não haveria mais nuvens no seu horizonte. A verdade é que seus fundos,
como sempre, eram inconvenientemente escassos; e não era fácil esconder
este embaraço vulgar nem de Dorset ou de sua esposa. Mesmo assim, a
necessidade não era tão grande; ela poderia se preocupar com isso depois,
como já tinha feito antes, na esperança de alguma guinada da sorte
acontecesse; e enquanto isso a vida seguia alegria, linda e fácil, e ela sabia
que não era à toa que figurava em tal ambiente.
Ela tinha marcado para almoçar com a duquesa de Beltshire, e ao
meio-dia pediu que o barco a levasse a para terra firme. Antes disso
mandou sua criada perguntar se ela poderia falar com Mrs. Dorset; mas a
resposta foi que a senhora estava cansada e tentando dormir. Lily achou que
sabia o motivo do não. O convite da duquesa não era extensivo à sua
anfitriã, apesar de ela ter feito de tudo para mudar isso. Mas Vossa Graça
era inume a indiretas, e convidava ou omitia quem ela escolhesse. Não era
culpa de Lily se Mrs. Dosert não tinha caído nas graças da duquesa. A
duquesa, que raramente costumava se justificar, disse apenas que: “Ela é
muito chata, sabe. O único amigo seu que gosto é Mr. Bry, ele é
engraçado…”, mas Lily sabia que não adiantava insistir, e nem sentiu tanto
assim por se destacar à custa da amiga. Bertha tinha mesmo se tornado
muito chata desde que se apegara a poesia e a Ned Silverton.
Além do mais, era um alívio poder sair um pouco do Sabrina; e o
almocinho da duquesa, organizado por lorde Hubert com seu virtuosismo
costumeiro, pareceu ainda mais atraente para Lily por não incluir seus
companheiros de viagem. Dorset, ultimamente, estava ainda mais rabugento
e imprevisível, e Ned Silverton seguia com aquela cara que parecia desafiar
o mundo. A naturalidade e a leveza do encontro com a duquesa, resultou
numa agradável mudança de ares, e Lily ficou tentada, após o almoço, a se
juntar a seus companheiros na agitada atmosfera do casino. Não pretendia
jogar; não seria bom correr o risco com o pouco dinheiro que tinha no
bolso; mas foi divertido sentar em um divã, sob a proteção duvidosa da
duquesa, enquanto esta apostava suas fichas em uma mesa vizinha.
As salas estavam lotadas de uma multidão barulhenta que circulava
entre as mesas à tarde toda, igual as pessoas diante da jaula dos leões num
domingo. No fluxo lento da massa, mal dava para identificar os rostos, mas
Lily viu Mrs. Bry saindo determinada por uma porta, e, no seu rastro, a
figura elegante de Mrs. Fisher sacolejando atrás dela como se fosse um
barquinho a remo na proa de um rebocador. Mrs. Bry seguiu em frente,
evidentemente determinada a chegar a um determinado lugar; mas Mrs.
Fisher, quando passou por Lily, soltou-se do reboque, e flutuou até a moça.
– Se vou me perder dela? – ela ecoou a pergunta de Lily, com uma
olhada de soslaio para Mrs. Bry. – Acho que não importa. Eu já a perdi.
E, como Lily exclamou surpresa, ela adicionou: – Tivemos uma
discussão feia nesta manhã. Você sabe que a duquesa recusou o convite dela
para jantar ontem à noite, e ela acha que a culpa é minha, que eu não soube
conduzir as coisas. O pior é que, a resposta, um mero telefonema, veio tão
tarde que o jantar teve de ser pago; e o Becassin já não tinha mais lugar,
pois todos sabiam que a duquesa ia jantar lá! – Mrs. Fisher deu uma
risadinha ao lembrar. – Louisa odeia pagar por algo que não usou, não
consigo fazê-la enxergar que isto faz parte das preliminares para conseguir
aquilo pelo qual você não pagou, e eu era a coisa que estava mais próxima
para ser esmagada, e ela fez picadinho de mim, coitada!
Lily murmurou em consideração. Impulsos de empatia eram naturais a
sua pessoa, e foi instintivo se oferecer para ajudar Mrs. Fisher.
– Se houver algo que eu possa fazer, se for apenas uma questão de
conhecer a duquesa! Ela me disse que acha Mr. Bry engraçado…
Mas Mrs. Fisher interpôs com um gesto definitivo.
– Minha querida, tenho meu orgulho: o orgulho do meu trabalho. Não
consegui aproximá-la da duquesa, e não posso fazer uso da sua influência
para satisfazer Louisa Bry como se eu tivesse realizado o feito. Já dei meu
último passo: vou para Paris com os Sam Gourmer. Eles ainda estão no
estágio inicial; um príncipe italiano é muito melhor do que um príncipe para
eles, e eles sempre estão correndo o risco de ser enganados por um. Salvá-
los disso é a minha missão atual – ela riu novamente da situação. – Mas
antes de partir quero deixar meu último desejo e meu testamento: deixo os
Bry para você.
– Para mim? – Miss Bart riu com a amiga. – É muita gentileza sua
lembrar de mim, querida; mas francamente…
– Você já se ajeitou? – Mrs. Fisher fitou-a de um modo astuto. – Já,
Lily, a ponto de rejeitar a minha oferta?
Miss Bart ruborizou aos poucos.
– O que eu quis dizer é que os Bry não iriam se importar tanto assim
por terem sido rejeitados por mim.
Mrs. Fisher observava o embaraço dela com um olhar atento.
– O que você quis dizer que esnobou os Bry; e você sabe que eles
sabem…
– Carry!
– Ah, às vezes Louisa se irrita quando se dá conta de algumas coisas.
Se ao menos você tivesse dado um jeito de fazer com eles fossem
convidados uma vez para o Sabrina, especialmente quando a realeza tinha
sido convidada! Mas não é tarde – finalizou animada –, não é tarde para
você também.
Lily sorriu.
– Fique, e vou convencer a duquesa a jantar com eles.
– Não posso, os Gormer já pagaram pelo meu quarto – disse Mrs.
Fisher com honestidade. – Mas leve a duquesa para jantar com eles mesmo
assim.
Novamente o sorriso de Lily acabou em uma risadinha: os problemas
dos seus amigos pareciam pequenos perto dos seus.
– Sinto muito se tenho sido negligente para com os Bry…
– Oh, quanto aos Bry, é em você que estou pensando – disse Mrs.
Fisher abruptamente. Então fez uma pausa, e em seguida, se inclinou para
frente, num tom baixinho de voz: – Você sabe que todos nós fomos para
Nice na noite passada quando a duquesa nos dispensou. Foi ideia da Louisa,
falei para ela o que eu achava.
Miss Bart assentiu.
– Sim, vi você de relance na volta, na estação.
– Bem, o homem que estava no mesmo vagão com você e George
Dorset, aquele Dabham, horrendo, que escreve para as ‘Colunas Sociais da
Riviera’, ele tinha jantado conosco em Nice. E ele está dizendo para todo
mundo que você e Dorset voltaram sozinhos depois da meia noite.
– Sozinhos…? Mas ele não estava conosco? – Lily riu, mas a risada se
perdeu na gravidade que o olhar de Mrs. Fisher insinuava. – Nós voltamos
sozinhos de fato, se é que isso é tão assombroso! Mas a culpa foi de quem?
A duquesa ia passar a noite no Cimiez com a princesa; Bertha cansou do
show de fogos, e foi embora mais cedo, prometendo se encontrar conosco
na estação. Chegamos no horário combinado, mas ela não estava lá, nem
apareceu!
Miss Bart fez este anúncio num tom de alguém que está dizendo, com
uma segurança despreocupada, toda a verdade; mas Mrs. Fisher recebeu
tudo como se não fizesse muita diferença. Parecia ter perdido o papel que a
sua amiga desempenhara no incidente: seu ponto de vista pendia para outra
vertente.
– Bertha nem apareceu? Então como ela voltou?
– Acho que no próximo trem; eles colocaram dois extras para a festa.
De qualquer maneira, sei que ela está sã e salva, no iate, apesar de não ter
falado com ela hoje; mas como pode ver a culpa não foi minha – concluiu
Lily.
– Não foi sua culpa que Bertha não apareceu? Pobre criança, tomara
que não tenha de pagar por isso! – Mrs. Fisher se levantou, tinha visto Mrs.
Bry voltando em sua direção. – Lá vem a Louisa, preciso ir, oh, para todos
os efeitos ainda somos amigas; vamos almoçar juntas; mas no fundo é a
mim que ela vai devorar – explicou; e com uma última dica e um olhar,
adicionou: – Lembre-se, estou deixando-a para você; ela está às soltas,
prontinha para ser capturada por você.
Lily ficou com a impressão de que Mrs. Fisher a levou junto quando
saiu pelas portas do Casino. Ela tinha conseguido, antes de partir, dar o
primeiro passo para cair nas graças de Mrs. Bry novamente. Um conselho
afável – uma insinuação de que eles deveriam se ver mais – uma alusão a
um futuro imediato que deveria incluir a duquesa e o Sabrina – como foi
fácil fazer isso tudo, quando se tem o talento! Ela perguntou a si mesma,
como vinha se perguntando, que, se possuía o talento, por que não o usava
com mais frequência. Mas às vezes ela se esquecia – e às vezes, será que
era tão orgulhosa? Neste dia, de qualquer maneira, ela tinha uma vaga
noção de que deveria engolir seu orgulho ao ponto de sugerir a lorde Hubert
Dacey, com quem ela cruzou na entrada do Casino, que se ele arrumasse
para duquesa jantar com os Bry, ela cuidaria para que eles fossem
convidados para irem ao Sabrina. Lorde Hubert prometeu ajudar, com uma
disposição com o qual ela sempre pôde contar: era o jeito dele de mostrar
que sempre estivera pronto para fazer muito mais por ela. Seu caminho, em
suma, parecia se mostrar mais brando conforme ela avançava; mesmo assim
aquela duvidazinha ainda insistia. Será que tinha sido despertada, ela se
perguntou, por causa do encontro que tivera com Selden? Ela achou que
não – o tempo e a mudança de ares pareciam o ter colocado no seu devido
lugar. A reação súbita e exagerada de seus temores acabou por lançar os
acontecimentos recentes para tão longe que até mesmo Selden, que fazia
parte, ganhou certo ar de irrealidade. E ele tinha deixado claro que não
iriam se encontrar novamente; que iria passar um ou dois dias em Nice, e
que já estava praticamente com um pé no próximo navio. Não – aquela
parte do seu passado que tinha voltado à tona por um mero acaso; mas
agora mesmo depois de ter afundado novamente, a incerteza e a apreensão
ainda persistiam.
Esses sentimentos ganharam mais força quando ela viu George Dorset
descendo os degraus do Hotel de Paris, cruzando a praça e vindo em sua
direção. Ela pretendia seguir para o cais e voltar para o iate; mas agora tinha
a impressão de que algo mais iria acontecer primeiro.
– Para onde você está indo? Podemos caminhar um pouco? – iniciou
ele, fazendo a segunda pergunta antes mesmo de a primeira ter sido
respondida, e sem esperar por uma resposta para nenhuma, ele a conduziu
silenciosamente na direção de uma parte mais reservada dos jardins
inferiores.
Ela detectou nele todos os sinais de nervosismo. Havia bolsas sob os
olhos fundos, e sua tez tinha uma tonalidade pálida acinzentada, que em
contraste com as sobrancelhas falhadas e o longo bigode avermelhado, dava
um efeito soturno. Sua aparência, em suma, era uma mistura estranha de
desalinho e raiva.
Ele caminhou ao seu lado em silêncio, com passos rápidos e
precipitados, até eles chegarem às encostas ocultas pelas árvores a leste do
Casino; só então, se endireitou abruptamente, e falou:
– Você viu Bertha?
– Não, quando deixei o iate ela ainda não tinha levantado.
Ele recebeu a resposta com uma risada que mais parecia o zumbindo
de um relógio quebrado.
– Ainda não tinha levantado? Ela chegou a ir para a cama? Sabe que
horas ela veio para o barco? Às sete horas da manhã! – exclamou ele.
– Às sete? – Lily repetiu surpresa. – O que aconteceu, um acidente
com o trem?
Ele riu outra vez.
– Eles perderam o trem, todos os trens, tiveram de voltar de
carruagem.
– E…? – ela hesitou, sentindo que nada podia justificar a perda do
horário.
– E, que eles não conseguiam encontrar uma carruagem, naquela hora
da noite, sabe… – a entonação quase deu a impressão de que ele estava
justificando a atitude da esposa –, e quando finalmente conseguiram
encontrar, era uma de um cavalo apenas, e o cavalo era muito lerdo!
– Que cansativo! Entendi – ela afirmou, mais que depressa, pois
estava mais nervosa por não ter dito nada; e após uma pausa adicionou: –
Sinto muito, será que deveríamos ter esperado?
– Esperado pela carruagem de um cavalo apenas? Mal teria dado
conta de levar os quatro?
Ela tomou essa que parecia ser a única opção, com uma risada, na
intenção dar ênfase a faceta engraçada da situação.
– Bem, teria sido difícil; teríamos que revezar. Mas teria sido
divertido ver o sol nascer.
– Sim; ver o sol nascer foi divertido – ele concordou.
– Como assim? Você o viu o sol nascer?
– Sim, eu vi; do deque. Fiquei esperando por eles.
– Naturalmente, suponho que tenha ficado preocupado. Por que não
me chamou para lhe fazer companhia?
Ele permaneceu parado, alisando o bigode com uma mão trêmula.
– Acho que você não iria gostar do desfecho – disse ele com uma
tristeza repentina.
– Desfecho, não é uma palavra exagerada para um pequeno incidente?
O pior de tudo é que Bertha deve ter ficado tão cansada que ainda deve
estar dormindo até agora.
Ela se agarrou a justificativa com coragem, embora estivesse claro
nos olhos tristes dele que não tinha adiantado nada.
– Não… não…! – ele rompeu, com um grito ofendido de uma criança;
e enquanto ela tentava unir sua solidariedade à sua determinação em ignorar
os acontecimentos num murmúrio ambíguo de desaprovação, ele sentou
pesado sobre o banco próximo, e despejou toda a tristeza da sua alma.
Foi um momento difícil – um momento do qual ela saiu retraída e
chamuscada, como se suas pálpebras tivessem sido queimadas ao ver a
realidade. Não que nunca tivesse imaginado tal desfecho; mas sim porque,
ao longo dos últimos três meses, a superfície da vida tinha mostrado
algumas fissuras e vapores tão sinistros que seus receios sempre estiveram
alertas para algum transtorno. Houve momentos em que a situação se
apresentara sob uma imagem simples e ao mesmo tempo real – de um
veículo instável, puxado por cavalos indomados em uma estrada
esburacada, enquanto ela se encolhida dentro da carruagem, ciente de que
os arreios careciam de reparo, e em dúvida do que iria arrebentar primeiro.
Bem – tudo tinha se partido agora; e era de se admirar que a fachada maluca
tivesse durado por tanto tempo. A sensação de estar envolvida naquele
acidente, em vez de ser uma mera testemunha na estrada, foi intensificada
pelo modo como Dorset, por meio da sua fúria e demonstrações de desprezo
por si mesmo, fez com que ela percebesse o modo como ele estava apegado
a ela, o lugar que ela tinha ocupado na vida dele. Mas para ela, que ouvidos
não estariam abertos para os lamentos dele? E que mão, senão a sua, iriam
puxá-lo para cima novamente para uma base de sanidade e respeito próprio?
Durante o momento de tensão, ela foi acometida por um sentimento
maternal no seu esforço para guiá-lo e ajudá-lo a se reerguer. Mas naquele
momento precisamente, ele tinha se agarrado a ela, não com a intenção de
ser puxado para cima, mas para sentir que alguém se debatia junto nas
profundezas: ele queria que ela sofresse com ele, não que atenuasse seu
sofrimento.
Felizmente para os dois, ele não tinha forças para sustentar o frenesi.
Isto o deixou exausto e ofegante, num estado de apatia tão profundo e
prolongado que Lily temeu que alguém pudesse pensar que se ele estava
passado mal e parasse para oferecer ajuda. Mas Monte Carlo é, como a
maioria dos lugares, um daqueles onde os laços humanos são mais distantes
e cenas estranhas não chamam atenção. Quando muito um ou dois olhares
pousaram sobre o casal, mas ninguém se ofereceu para ajudar; e foi Lilly
que quebrou o silêncio ao se levantar do banco. Com uma visão mais clara
da extensão da ameaça, ela viu que o posto de perigo não estava mais do
lado de Dorset.
– Se não voltar, terei… não me force a abandoná-lo! – ela incitou.
Mas ele continuou emudecido, e ela adicionou:
– O que vai fazer? Não pode ficar sentado aqui à noite toda.
– Posso ir para um hotel. Posso enviar um telegrama para meus
advogados – ele se endireitou, animado com uma nova ideia. – Minha
nossa, Selden está em Nice, vou enviar um telegrama para Selden!
Lily, nisso, sentou-se novamente, com um protesto.
– Não, de jeito nenhum!
Ele voltou-se para ela irritado.
– Por que não Selden? Ele é advogado, não é? Poderá cuidar deste
caso tão bem quanto qualquer outro.
– Tão mal quanto qualquer outro, você quer dizer. Pensei que
confiasse em mim para ajudá-lo.
– Você ajudou, ao ser tão gentil e paciente comigo. Não fosse por
você eu já teria colocado um fim nisso há muito tempo. Mas agora acabou –
ele se levantou de repente, endireitou os ombros com esforço. – Você não
pode querer que eu faça papel de bobo.
Ela o fitou carinhosamente.
– Esse é o problema.
Então, após pensar um pouco, quase que para sua própria surpresa ela
teve um lance de inspiração: – Bem, vá em frente e fale com Mr. Selden.
Você terá tempo de fazer isso antes do jantar.
– Oh, o jantar… – ele a remedou; mas ela o deixou com uma resposta
sorridente:
– Jantar a bordo, não se esqueça; podemos postergar para as nove se
quiser.
Já passava das quatro; e quando um coche a deixou no caís, e
enquanto esperava pelo barco que a levaria, ela ficou imaginando o que
teria acontecido no iate. Nada tinha sido mencionado sobre o paradeiro de
Silverton. Será que ele tinha voltado para o Sabrina? Ou será que Bertha – a
alternativa assustadora passou pela sua cabeça – será que Bertha, deixada
sozinha, tinha ido se encontrar com ele? O coração de Lily parou só de
pensar. Todas as suas preocupações até então tinham sido pelo jovem
Silverton, não apenas porque, em situação como estas, o instinto da mulher
é ficar ao lado do homem, mas porque a situação dele lhe deu pena. O pobre
jovem estava tão desesperadamente apaixonado, mas sua paixão era muito
diferente da que Bertha sentia, apesar de a dela também ser desesperada. A
diferença era que Bertha estava apaixonada apenas por ela mesma,
enquanto ele estava apaixonado por ela. Mas agora, na atual crise, a
diferença pareceu jogar o peso da destituição para o lado de Bertha, uma
vez que ele pelos menos poderia sofrer por ela, enquanto ela só iria sofrer
por ela mesma. De qualquer maneira, de um ponto vista mais realista, todas
as desvantagens de uma situação como esta pesavam mais para a mulher; e
era com Bertha que Lily estava preocupada. Ela não gostava de Bertha
Dorset, mas por outro lado não era assim tão desprovida de um senso de
gratidão, a ponto de se sentir indiferente. Bertha tinha sido gentil com ela,
elas tinham convivido ao longo do último mês em termos amigáveis, e a
possibilidade de um atrito, sobre o qual Lily acabara de tomar
conhecimento, tornara ainda mais urgente a necessidade de trabalhar em
prol dos interesses da sua amiga.
Foi pensando em Bertha que ela permitiu que Dorset fosse falar com
Lawrence Selden. Uma vez ciente da gravidade da situação, ela percebeu
que era mais seguro que Dorset fosse falar com ele. Quem, senão Selden,
poderia combinar a habilidade de salvar Bertha com a obrigação de fazê-lo?
A noção de que tal habilidade seria necessária fez Lily agradecer pelo peso
da obrigação. Uma vez que ele teria de ajudar Bertha a sair dessa ela tinha
certeza de que ele daria um jeito; e assim ela depositou suas esperanças no
telegrama que enviou para ele no caminho para a marina.
Até este ponto, Lily achou que tudo estava correndo bem; e a
convicção a fortaleceu para o desafio que aguardava. Ela e Bertha nunca
foram de trocar confidências, mas em momentos de crise as barreiras
acabam caindo: a alusão pesada de Dorset sobre a cena da manhã fez Lily
sentir que tudo estava acabado, e que qualquer tentativa de reconciliação
estaria fora do alcance de Bertha. Ela imaginou a pobre criatura tremendo
atrás das suas defesas desmoronadas e esperando em suspense o momento
quando poderia buscar proteção no primeiro abrigo oferecido. Se é que tal
abrigo já não tinha sido oferecido em outro lugar! À medida que o barco
cruzava a curta distância entre o caís e o iate, Lily foi ficando mais ansiosa
por conta das possíveis consequências da sua longa ausência. E se Bertha,
devastada, não tivesse encontrado uma alma com quem se consolar… mas
nisso Lily já estava com um pé na escada lateral, e assim que pisou no
Sabrina todos seus temores se mostraram infundados; pois lá, sob a sombra
luxuosa do deque, a devastada Bertha, em pleno comando da sua habitual
elegância estudada, tomava um chá na companhia da duquesa de Beltshire e
de lorde Hubert.
A cena surpreendeu tanto que ela sentiu que Bertha, pelo menos,
percebeu isso no seu olhar, e ela ficou proporcionalmente desconcertada
pelo olhar vago que recebeu em resposta. Mas na hora ela percebeu que
Mrs. Dorset precisava, por motivos de necessidade, parecer tranquila na
frente dos outros, e que, para mitigar o efeito da sua própria surpresa, ela
teve, ao mesmo tempo, que arrumar uma desculpa simples para isso. E o
longo hábito de se adaptar as novas situações facilitou a exclamação que ela
dirigiu à duquesa:
– Por que, pensei que vocês tivessem voltado para o Princesa!” – e
isso bastou para a senhora, a quem ela tinha se dirigido, apesar de não ter
sido suficiente para lorde Hubert.
Pelo menos isso abriu uma oportunidade para explicar como a
duquesa que de fato, estava retornando, mas primeiro resolveu dar uma
passadinha no iate para falar com Mrs. Dorset sobre o jantar de amanhã à
noite – o jantar com os Bry, que lorde Hubert tanto insistira que eles
deveriam ir.
– Para salvar o meu pescoço, sabe! – explicou ele, com um olhar que
pareceu para Lily um pedido de reconhecimento pela sua prontidão; e a
duquesa adicionou com toda franqueza:
– Mr. Bry prometeu dar uma dica para ele, e ele disse que se formos
ele passará a dica para nós depois.
Isso levou a algumas brincadeiras finais, as quais, como pareceu a
Lily, Mrs. Dorset enfrentou com uma bravura espantosa, até o final, quando
lorde Hubert, na metade da escada lateral, virou de volta, com um ar de
dúvida:
– Claro que podemos contar com Dorset também?
– Podem contar com ele – Bertha garantiu animada. Pelo menos ela
estava conseguindo segurar bem – mas enquanto se virava depois de acenar
para os visitantes, Lily disse consigo mesma que a máscara iria cair e o
medo da alma iria transparecer.
Mrs. Dorset virou devagar; talvez quisesse um tempo para firmar os
músculos; de qualquer modo, ainda parecia controlada quando, ao se largar
novamente na cadeira junto à mesa de chá, ela disse com um leve tom de
ironia para Miss Bart:
– Suponho que esteja me devendo um bom dia.
Foi a deixa que Lily estava pronta a aceitar, apesar de não saber ao
certo o que viria depois. Havia uma tranquilidade na pose contemplativa de
Mrs. Dorset, e ela teve de forçar um tom leve para responder:
– Tentei falar com você hoje cedo, mas você ainda não tinha
acordado.
– Não, fui me deitar tarde. Depois que nos desencontramos de vocês
na estação achei melhor esperarmos por vocês até o último trem – ela falava
num tom delicado, mas com uma pontinha de reprovação.
– Vocês se desencontraram? Esperaram por nós na estação?
Surpreendida com a insinuação implícita nas palavras, Lily perdeu o
controle. – Mas pensei que vocês não chegaram à estação antes do último
trem partir!
Mrs. Dorset, que observava com olhos semicerrados, ouviu o
comentário com ares de surpresa:
– Quem te falou isso?
– George, acabei de encontrar com ele nos jardins.
– Ah, esta é a versão de George? Coitado do George, ele não estava
em condições de se lembrar do que eu falei. Ele teve um daqueles seus
ataques horríveis nesta manhã, e mandei-o procurar um médico. Você sabe
se ele encontrou um?
Lily, perdida em suposições, não respondeu nada, e Mrs. Dorset
continuou largada na cadeira.
– Ele vai esperar para falar com o médico; estava muito assustado
consigo mesmo. É muito ruim para ele ter ficado preocupado, e sempre que
algo aborrecedor acontece, acaba resultando em um ataque.
Desta vez Lily sentiu que estava sendo pressionada a dizer algo; mas a
sugestão tinha sido lançada tão de repente, e se saber de fato o que tinha
acontecido, só lhe restou perguntar em dúvida:
– Aconteceu alguma coisa?
– Sim, o fato de ter ficado exposto ao seu lado naquela hora da noite.
Você sabe, minha querida, que é uma grande responsabilidade em lugares
escândalos como aquele depois da meia-noite.
Nisso – diante do inesperado e da inconcebível audácia – Lily não
conseguiu conter uma risada de surpresa.
– Bem, considerando que foi você que colocou sobre ele o peso da
responsabilidade!
Mrs. Dorset ouviu o comentário com toda calma.
– Por não ter poderes sobre-humanos para encontrá-los em meio
àquela correria para pegar o trem? Ou a imaginação para acreditar que
vocês poderiam pegar o trem sem nós, você e ele sozinhos, em vez de
esperarem calmamente na estação até que conseguíssemos nos encontrar?
Lily ficou vermelha: estava ficando claro que Bertha perseguia um
objetivo, seguia uma linha que ela tinha traçado para si mesma. Diante de
uma condenação tão iminente, por que perder tempo com estes esforços
infantis para tentar fugir? A infantilidade da tentativa desarmou a
indignação de Lily: isto não mostrava o quanto a pobre criatura estava
apavorada?
– Não; se tivéssemos simplesmente ficado juntos em Nice – retrucou
ela.
– Ficado juntos? Quando foi você na primeira oportunidade teve
correu para a duquesa e os amigos dela? Minha querida Lily, você não é
uma criança que precise que segurem na sua mão!
– Não, nem para levar bronca, Bertha; se é isso que está fazendo
comigo agora.
Mrs. Dorset sorriu diante da reprovação.
– Dando uma bronca em você, eu? Deus me livre! Só estava tentando
dar uma dica, amiga. Mas normalmente é o contrário, não é mesmo? Eu
costumo ouvir dicas, não dá-las. Certamente segui todas ao longo deste
último mês.
– Dicas, minhas para você? – repetiu Lily.
– Ah, todas negativas, do que não fazer e de como não me portar. E
creio que aceitei todas com admiração. Mas se me permite, minha querida,
não entendi que uma das minhas obrigações não era avisá-la se você
ultrapassasse a linha da prudência.
Um calafrio de medo perpassou Miss Bart. Uma sensação de traição
que foi como o brilho de um punhal na calada da noite. Mas a compaixão
superou seu recuo instintivo. O que era aquela verborragia sem sentido
senão uma tentativa da criatura encurralada de fugir? Lily estava por dizer:
“Pobre alma, não tente destorcer as coisas, conte comigo para ajudá-la a
encontrar uma saída!” Mas as palavras morreram diante do impenetrável
sorriso insolente de Bertha. Lily ficou calada, assimilando a força do
impacto, permitindo que se esgotasse toda a falsidade até a última gota;
então, sem dizer nada, ela se levantou e desceu para sua cabine.
Capítulo 3
O telegrama de Miss Bart apanhou Selden na porta do hotel; e depois
de ler, ele voltou para esperar por Dorset. A mensagem deixou várias
lacunas para conjecturas; mas tudo que ele tinha ouvido e visto
recentemente fez com que as coisas se encaixassem perfeitamente. No geral
ele não ficou surpreso; apesar de ter percebido que a situação continha
todos os elementos de uma explosão, já tinha visto isto várias vezes, em sua
ampla experiência pessoal, que a junção de tais elementos acabava não
dando em nada. Mesmo assim, o temperamento explosivo de Dorset, e o
descuido com as aparências de sua esposa, conferia à situação uma
insegurança peculiar; e foi mais por zelo profissional do que por receio de
uma retaliação especial pelo caso, que Selden resolveu ajudar o casal.
Ainda que, na atual situação, o melhor para os dois fosse reparar o dano
com um acordo, isso não era problema seu: ele só teria, em teoria, que
ajudar a evitar um escândalo, e seu desejo neste sentido aumentou pelo
receio de que tal escândalo pudesse acabar envolvendo Miss Bart. Não
havia nada de específico no seu receio; ele só queria poupá-la do embaraço
de se ver envolvida com a lavagem de roupa suja em público dos Dorset.
Após duas horas de conversa com o pobre Dorset ele constatou quão
exaustivo e desagradável poderia ser o processo. Depois que seu visitante se
foi, a pilha de roupa suja e trapos morais era tamanha que sua vontade era
abrir a janela e jogar tudo para fora. Mas nada poderia sair dali; e
felizmente para ele, a sua parte dos trapos sujos, apesar de também estarem
no meio, dariam, sem grande dificuldade, para serem reparados juntos sem
grande prejuízo. Nem sempre era possível consertar com precisão as barras
rasgadas – às vezes ficava faltando pedaços, havia disparidade de tamanho
e cor, e cabia a Selden apontar todas estas possibilidades para seus clientes.
Mas para um homem na situação de Dorset nada seria capaz de convencê-
lo, e Selden percebeu que por hora tudo que podia fazer era acalmar e
ganhar tempo, oferecer solidariedade e aconselhar prudência. Ele deixou
Dorset partir com a incumbência de que, até o próximo encontro deles, ele
deveria se manter neutro; que, em resumo, sua parte no jogo agora era
observar. Selden sabia, no entanto, que não conseguiria manter o equilíbrio
da situação por muito tempo; e marcou para encontrar com Dorset, na
manhã seguinte, em um hotel em Monte Carlo. Enquanto isso ele não
contava com uma reação de fraqueza e insegurança que, em tais naturezas,
costumam surgir após um esforço inusitado de força moral; e o telegrama
que enviou em resposta para Miss Bart consistia das seguintes palavras,
apenas: “Aja como se tudo estivesse bem”.
Com base nesse pressuposto, a primeira parte do dia seguinte seguiu
normalmente. Dorset, como se tivesse atendendo a ordem de Lily, voltou a
tempo para o jantar no iate. A refeição foi o momento mais difícil do dia.
Dorset tinha mergulhado num daqueles seus silêncios profundos que
normalmente costumavam seguir o que sua mulher chamava de seus
“ataques” para justificar, diante dos seus criados, a causa do emudecimento;
mas Bertha mesmo parecia pouco disposta a recorrer a este recurso óbvio
de proteção. Ela simplesmente deixou o impacto da situação nas mãos do
marido, como se ao tentar absorvê-lo pudesse levantar alguma suspeita de
que ela poderia ser o motivo do desagravo. Para Lily esta atitude foi o que
mais surpreendeu, por conta do elemento desconcertante da situação.
Enquanto tentava animar a conversa para reconstruir a estrutura das
“aparências” que desmoronava, a todo o momento sua atenção era desviada
para a seguinte pergunta: “O que ela está tramando?” A atitude de um
desafio direcionado de Bertha tinha algo irritante. Se ao menos ela tivesse
dado uma dica para a amiga de que elas ainda poderiam se unir em prol
desta causa; mas como Lily poderia ajudar, se estava sendo ostensivamente
excluída de participar? Honestamente ela preferia não se meter; e não pelo
seu próprio bem, mas pelo dos Dorset também. Não estava pensando na sua
própria situação: estava apenas empenhada em tentar acertar um pouco a
deles. Mas o encerramento da noite catastrófica a deixou com uma sensação
de que tinha se esforçado em vão. Ela não tinha tentado falar a sós com
Dorset, pelo contrário, tinha fugido da possibilidade de ouvir novas
confidencias dele. Era a confiança de Bertha que ela buscava; de quem a
tinha convidado ansiosamente para a viagem; mas Bertha, que parecia
encantada com o processo autodestrutivo, estava na verdade recusando a
sua mão salvadora.
Lily se recolheu cedo, deixando o casal a sós; e como se fizesse parte
do clima geral de mistério que a envolvia, mais de uma hora depois ela
ouviu Bertha descendo silenciosamente e entrando no seu quarto. O dia
seguinte nasceu com uma aparente continuidade das mesmas condições,
sem relevar nada sobre o suposto confronto do casal. Um fato apenas
apontou uma mudança na situação que todos tentavam ignorar; e este foi a
ausência de Ned Silverton. Ninguém comentou a respeito disso, e a tácita
evasão do assunto se manteve firme. Mas houve outra mudança, perceptível
apenas para Lily; e esta era que agora Dorset a evitava quase tão
abertamente quanto a esposa. Talvez ele tivesse se arrependido da explosão
do dia anterior; talvez estivesse tentando se conformar com o conselho de
Selden para agir “como se estivesse tudo bem”; e para uma criatura tão
inconsciente quanto o pobre Dorset do modo como costumava se portar, a
luta para manter as aparências certamente resultara naquele comportamento
esquisito.
A atitude, de qualquer maneira, acabou por isolá-la. Ela descobriu, ao
sair do quarto, que Mrs. Dorset ainda continuava invisível, e que Dorset
tinha saído do iate logo cedo; e muito agitada para ficar sozinha, ela
também resolveu descer para terra firme. Ela estava seguindo na direção do
Casino, na companhia de um grupo de conhecidos de Nice, com quem tinha
almoçado, quando encontrou Selden cruzando a praça. Ela não poderia,
naquele momento, se separar definitivamente do grupo, que tinha assumido
que ela ficaria com eles até a hora de irem embora; mas ela deu um jeitinho
de dar uma escapadinha para fazer uma pergunta, ao qual ele respondeu de
imediato:
– Eu o vi novamente, ele acabou de falar comigo.
Ela aguardou por mais ansiosa.
– E? O que aconteceu? O que vai acontecer?
– Nada, ainda, e nada no futuro, eu acho.
– Acabou, então? Está tudo acertado? Você tem certeza?
Ele sorriu.
– Dê um tempo. Não tenho certeza, mas creio que sim.
E com isso ela teve de se contentar, e saiu apressada para se juntar ao
grupo que a esperava.
Selden tinha na verdade tentado passar o máximo de segurança
possível, chegara até a colocar ênfase no modo como falara para apagar
aquela sombra de ansiedade que viu nos olhos dela. Mas agora, enquanto
voltava, descendo rumo à estação de trem, a ansiedade era sua. Na verdade,
não temia por nada em específico: a declaração de que nada iria acontecer
tinha sido literalmente verdadeira. O que o incomodava era que, a atitude de
Dorset tinha mudado perceptivelmente, mas o motivo da mudança não
estava claro. Certamente não tinha sido causada pelos argumentos de
Selden, ou por uma tomada de consciência. Cinco minutos de conversa
foram suficientes para mostrar que alguma influência de fora tinha agido, e
que tinha suprimido e enfraquecido seu ressentimento, tanto que ele se
encontrava em um estado de apatia, como se fosse um louco perigoso
fortemente medicado. Sem dúvida tinha funcionado, ainda que
temporariamente, para o bem de todos: a questão era por quanto tempo iria
durar, e que tipo de reação viria depois. Sobre estes aspectos Selden não
sabia o que pensar, pois percebeu que um dos efeitos da mudança tinha sido
o encerramento da sua comunicação livre com Dorset. Este, no entanto,
ainda parecia movido pelo desejo de falar sobre o acontecido; mas, embora
ainda falasse sobre isso com o mesmo desespero, Selden percebeu que algo
o impedia de se expressar livremente. Seu estado era daqueles que,
primeiro, causa preocupação, e depois impaciência ao ouvinte; e quando a
conversa chegou ao fim, Selden sentiu que tinha feito o possível, e que
podia lavar as mãos.
Estava pensando nisso enquanto seguia para estação quando Miss
Bart cruzou seu caminho; mas apesar de, após as poucas palavras que
trocou com ela, ter continuado seguindo mecanicamente seu caminho, ele
sentiu uma leve mudança em seu propósito. A mudança tinha sido causada
pelo olhar dela; e no afã de tentar definir a natureza daquele olhar, ele
sentou em um banco no jardim, e ficou pensando. Era natural que ela
parecesse ansiosa: uma moça colocada, na intimidade de uma viagem de
iate, entre um casal à beira de um desastre, dificilmente poderia, além da
preocupação pela situação dos amigos, se manter insensível ao desconforto
da sua própria posição. O pior de tudo era que, ao interpretar o estado de
espírito de Miss Bart, muitas eram as alternativas possíveis; e uma destas,
na mente confusa de Selden, assumiu a forma indecente da insinuação de
Mrs. Fisher. Se a moça estava com medo, será que estava com medo por ela
mesma ou por seus amigos? E até que ponto seu medo era de uma
catástrofe intensificada pela sensação de estar fatalmente envolvida nisso?
Sendo que o peso da culpa estava claramente sobre Mrs. Dorset, esta ideia
pareceu cruel; mas Selden sabia que na maioria das brigas de casais
geralmente surgem contra-acusações, e que estas são lançadas com grande
audácia, apesar de a acusação original ser tão enfática. Mrs. Fisher não
hesitou em sugerir a possibilidade de Dorset se casar com Miss Bart caso
“algo acontecesse”; e embora as conclusões de Mrs. Fisher fossem
precipitadas, ela era esperta o suficiente para identificar os sinais. Dorset
pelo jeito tinha mostrado interesse pela moça, e este interesse tinha sido
usado com crueldade na luta da sua esposa para se fortalecer na sua
posição. Selden sabia que Bertha iria lutar até o fim: a imprudência do seu
ato combinou de uma maneira ilógica com uma determinação fria de
escapar das consequências. Ela seria capaz de lutar inescrupulosamente por
si mesma tanto quanto tinha sido descuidada ao cortejar o perigo, e em
momentos assim qualquer coisa que caísse em suas mãos seria usada como
um míssil. Ele ainda que não conseguia ver com clareza que rumo ela
pretendia seguir, e tal perplexidade aumentou sua apreensão, e com isso a
sensação de que, antes de partir, ele deveria falar com Miss Bart novamente.
Seja lá qual fosse a parte dela na situação – e ele sempre tentou resistir a
tentação de julgá-la pelo seu meio – por mais que estivesse livre de
qualquer ligação com isso, ela deveria se manter longe de uma possível
separação; e uma vez que ela tinha pedido a sua ajuda, obviamente era
obrigação sua dizer isso a ela.
A decisão ao menos o trouxe de volta para a realidade, e o levou para
o cassino, onde ele a vira entrar; mas após uma prolongada busca entre as
salas lotadas foi em vão. Acabou encontrando, em vez dela, e para sua
surpresa, Ned Silverton apostando a sorte nas mesas; e descobriu que este
personagem do drama além de estar batendo as asas estava atraindo a
atenção dos holofotes para seus pés, apesar de que a atitude pudesse ser um
indício de que o perigo tinha passado, ela serviu na verdade para deixar
Selden ainda mais preocupado. Com essa impressão ele retornou para a
praça, na esperança de encontrar Miss Bart cruzando-a, pois todos em
Morte Carlo pareciam inevitavelmente fazer isso ao menos uma dúzia de
vez por dia; mas, mais uma vez, esperou em vão, e acabou sendo forçado a
concluir que ela tinha retornado para o Sabrina. Seria difícil ir atrás dela lá,
e seria ainda mais difícil, mesmo que conseguisse embarcar, arrumar uma
oportunidade de ter uma conversa em particular com ela; e ele já estava
decidido a escrever uma carta quando o diorama incessante da praça, de
repente, apresentou diante dele as figuras de lorde Hubert e Mrs. Bry.
Saldando-os com suas perguntas, ele acabou ficando sabendo por
intermédio de lorde Hubert que Miss Bart tinha acabado de retornar para o
Sabrina na companhia dos Dorset; um anúncio evidentemente tão
desconcertante para ele que Mrs. Bry, após uma olhada de soslaio do seu
acompanhante, que pareceu agir como uma mola propulsora, o convidou
para se juntar a eles em “um jantarzinho, no Becassin, com a duquesa”,
naquela noite, antes que lorde Hubert tivesse tempo de desfazer a pressão.
A sensação de privilégio de Selden por ter sido incluído em tal grupo
o levou a chegar mais cedo à porta do restaurante, onde ficou observando os
clientes no terraço iluminado. Ali, enquanto os Bry tentavam escolher entre
as várias opções do cardápio, ele ficou vendo os ocupantes do Sabrina, que
tinham acabado de chegar acompanhados da duquesa, lorde e Lady
Skiddaw e os Stepney. Foi fácil para ele tirar Miss Bart deste grupo com a
desculpa de dar uma olhada em uma das luxuosas lojas ao longo da galeria,
e dizer para ela, enquanto estavam parados na frente da reluzente vitrine de
uma joalheria:
– Vim para vê-la, para pedir que deixe o iate.
O olhar que ela lançou para exibiu um lampejo do medo que
demonstrara mais cedo.
– Para que eu deixe…? O que quer dizer? O que aconteceu?
– Nada. Mas se acontecer algo, por que ficar no caminho?
O brilho das joias da vitrine realçava a palidez do seu rosto e conferia
aos traços delicados o formato de uma máscara da tragédia.
– Estou certa de que não vai acontecer nada; mas enquanto ainda
pairar alguma dúvida, como posso pensar em deixar Bertha?
As palavras tinham um tom de desprezo – seria desprezo por ele?
Bem, ele estava disposto a correr o risco de insistir novamente, adicionando
uma declarada pitada de interesse:
– Você precisa pensar em si mesma…
Ao que ela respondeu num tom de tristeza estranho, olhando nos
olhos dele.
– Se soubesse a pouca diferença que isto faz!
– Bem, nada vai acontecer – disse ele, mais para ele mesmo do que
para ela. – Nada, nada, é claro!
Ela aceitou com coragem, enquanto eles davam meia volta para
retornaram para os amigos.
No restaurante lotado, ao ocuparem seus lugares à mesa iluminada
dos Bry, a confiança deles pareceu ganhar forças com o clima familiar que
os cercava. Lá estavam Dorset e sua esposa mais uma vez apresentando as
mesmas caras de sempre ao mundo, ela parecia estar mais preocupada em
se entender com seu vestido novo, ele torcendo o nariz com temor
dispéptico diante das diversas opções do cardápio. O simples fato de
estarem juntos, em um local público como aquele, parecia ser suficiente
para mostrar que sem dúvida as diferenças tinham sido resolvidas. Como tal
feito tinha sido conquistado ainda era um mistério, mas estava claro que por
enquanto Miss Bart podia ficar tranquila com o desfecho; e Selden tentou se
convencer do mesmo dizendo a si mesmo que as oportunidades que ela
tinha de observar eram mais amplas do que as dele.
Enquanto isso, à medida que o jantar seguia com seus inúmeros
pratos, o que deixou claro que Mrs. Bry ocasionalmente ignorava a mão
repressora de lorde Hubert, a vigilância geral de Selden começou se perder
em um estudo particular de Miss Bart. Aquele foi um daqueles dias quando
ela estava tão linda que ser linda era o bastante, e todo o resto – sua
delicadeza, sua sagacidade, suas habilidades sociais – pareciam transbordar
de uma natureza generosa. Mas o que mais chamou sua atenção foi o modo
com o qual ela se destacava, por uma centena de tons indefinidos, das
pessoas do seu meio. E era inserida neste meio, na fina flor da sociedade, e
expressão completa do estado ao qual ela aspirava, que as diferenças se
destacavam ainda mais, que seu encanto diminuía a inteligência das outras
mulheres, assim como seus silêncios oportunos tornavam a conversa das
outras cansativas. A tensão das últimas horas tinha restaurado em seu rosto
a eloquência profunda da qual Selden sentira falta, e a coragem das palavras
que ela tinha dito para ele ainda pairavam na sua voz e nos olhos. Sim, ela
era incomparável – esta era a palavra que a definia; e ele se sentiu à vontade
para admirá-la, pois pouco havia de sentimento pessoal nisso. Seu
verdadeiro afastamento dela acontecera, não no triste momento do
desencanto, mas agora, sob a luz sóbria da discriminação, onde ele a viu
definitivamente separada dele, pela crueldade de uma escolha que parecia
negar as diferenças que ele tinha visto nela. Estava diante dele novamente
na sua completude – a escolha com o qual ela se contentava: no preço
ridiculamente caro da comida e na conversa cansativa, na liberdade de
expressão que nunca chegava a uma conclusão inteligente, e na liberdade de
agir que nunca acabava em romance. O ambiente barulhento do restaurante,
onde a mesa deles parecia ter sido estrategicamente posicionada para
chamar atenção, e a presença de Dabham do “Colunas Sociais da Riveira”,
enfatizavam as ideais de um mundo onde a visibilidade era vista como
distinção, e as colunas sociais tinham se tornado o registro da fama.
Foi assim que aquele jornalistazinho, Dabham, o responsável por
imortalizar momentos como estes, sentado entre dois vizinhos famosos, de
repente se tornou o alvo do escrutínio de Selden. Até onde ele sabia sobre o
que estava acontecendo, e até onde, para seus propósitos, ainda valia a pena
descobrir? Seus olhinhos pareciam tentáculos prontos para capturar
insinuações flutuantes que, para Selden, às vezes, pareciam tornar o ar
pesado; mas em seguida o clima retomava ao seu vazio normal, e ele não
via nada demais no fato do jornalista tomar nota da elegância dos vestidos
das damas. Mrs. Dorset, em particular, desafiou a riqueza de vocabulário de
Mr. Dabham: que contou com surpresas e sutilezas dignas do que ele
chamaria de “estilo literário”. No começo, como Selden observara, a
preocupação parecia estar mais voltada para a própria aparência; mas
depois ela se tornou dona da situação, e estava até mesmo produzindo seus
efeitos com uma liberdade inusitada. Mas será que não estava muito livre,
muito fluente, para a naturalidade perfeita? Já Dorset, para quem seu olhar
passou por uma transição natural, não estaria ele oscilando indeciso entre os
mesmos extremos? Dorset sempre foi indeciso; mas nesta noite Selden teve
a impressão que cada vibração o afastava mais do seu centro.
Enquanto isso o jantar chegava ao seu final triunfal, para evidente
satisfação de Mrs. Bry, que, majestosamente sentada entre lorde Skiddaw e
lorde Hubert, parecia evocar em espírito Mrs. Fisher para testemunhar a sua
conquista. Apesar da ausência de Mrs. Fisher sua plateia podia ser
considerada completa; pois o restaurante estava cheio de pessoas que
estavam lá com o intuito de ver, e que para tal estavam atentas aos nomes e
rostos de celebridades que tinham vindo ver. Mrs. Bry, ciente de que todos
seus convidados correspondiam a tais expectativas, e que cada um
desempenhava seu papel, olhava para Lily com toda gratidão reprimida pelo
que Mrs. Fisher não tinha feito por merecer. Selden, ao notar o olhar,
imaginou qual a participação de Miss Bart na organização do evento. Ela
estava, no mínimo, servindo de adorno; e enquanto observava a segurança
com o qual ela se portava, ele riu por ter imaginado que ela precisava de
ajuda. Nunca ela se mostrara tão serenamente dona da situação do que
quando, na hora de irem embora, se distanciou um pouco do grupo à mesa e
se virou com um sorriso e um inclinar de ombro gracioso para receber seu
manto de Dorset.
O jantar se estendeu com os charutos excepcionas de Mr. Bry e uma
surpreendente variedade de licores, e apesar de várias mesas já estarem
vazias, ainda restava um número razoável de comensais para testemunhar a
saída dos distintos convidados de Mrs. Bry. Esta parte demorou um pouco
mais, pois a duquesa e lady Skiddaw estavam se despedindo, com
promessas de se reencontrarem em breve em Paris, onde iriam ficar por uns
dias para renovar o guarda-roupa antes de retornarem para a Inglaterra. A
qualidade da hospitalidade de Mrs. Bry, e das gorjetas que seu marido
presumivelmente tinha deixado, resultou num estado de euforia tal nas
damas inglesas que iluminou com uma luz rosada o futuro da anfitriã. E
Mrs. Dorset e os Stepney também brilharam sob a mesma luz, e toda a cena
tinha toques de intimidade que valia ouro para a caneta atenta de Mr.
Dabham.
A duquesa deu uma olhada no seu relógio e exclamou para a irmã que
elas precisavam correr para pegar o trem, e no furor da partida das duas, os
Stepney, que estavam com o carro parado na porta, ofereceram uma carona
para os Dorset e Miss Bart até a marina. A oferta foi aceita, e Mrs. Dorset
se afastou com o marido rumo à saída. Miss Bart ficou para trás para trocar
uma última palavrinha com lorde Hubert, e Stepney, a quem Mr. Bry
presenteava com um último charuto ainda mais caro, chamou:
– Vamos, Lily, se quiser voltar para o iate.
Lily virou obediente; mas quando o fez, Mrs. Dorset, que tinha parado
no meio do caminho, virou na direção da mesa.
– Miss Bart não vai retornar para o iate – disse num tom de voz de
distinção singular.
Todos se entreolharam surpresos; Mrs. Bry ficou tão vermelha que
parecia que ia explodir, Mrs. Stepney se escondeu nervosa atrás do marido,
e Selden, que estava com os nervos à flor da pele, tinha vontade de pegar
Dadham pelo colarinho e arrastá-lo para a rua.
Dorset, que enquanto isso, tinha voltado para o lado da esposa, estava
pálido e olhava ao redor nervoso.
– Bertha! Miss Bart… isto não passa de um mal-entendido… um
engano…
– Miss Bart fica aqui – insistiu sua esposa incisiva. – E creio que é
melhor não atrasarmos mais Mrs. Stepney, George.
Miss Bart, durante o breve colóquio, permaneceu admiravelmente
ereta, ligeiramente isolada da situação constrangedora do grupo. Estava um
pouco pálida por causa do insulto, mas o embaraço dos rostos que a
cercavam não refletia no seu. O leve toque de desprezo no seu sorriso
parecia colocá-la acima do alcance da sua adversária, e só depois de impor
a devida distância entre as duas que ela se virou e estendeu a mão para a
anfitriã.
– Vou me juntar à duquesa amanhã – explicou –, e será mais fácil para
mim ficar em terra nesta noite.
Ela conseguiu prender o olhar incerto de Mrs. Bry, enquanto dava a
explicação, mas quando terminou Selden a viu lançando um olhar
desafiador a cada uma das mulheres. Ela percebeu que ninguém tinha
acreditado pelos olhares desviados, e viu a indignação muda dos homens
atrás delas, e por uma infeliz fração de segundo ele achou que ela estava
prestes a se entregar. Mas em seguida, ela se voltou para ele com
naturalidade, e com uma bravura pálida em seu sorriso recuperado:
– Meu querido, Mr. Selden – disse –, você prometeu chamar um
coche para mim.
Do lado de fora, o céu estava carregado e nublado, e enquanto Lily e
Selden seguiam na direção dos jardins desertos abaixo do restaurante,
gostas de chuva quente espirravam intermitentes contra os rostos deles. A
invenção do coche foi tacitamente abandonada; e eles seguiram em silêncio,
ela com a mão entrelaçada ao braço dele, até a escuridão dos jardins, e
parando ao lado de um banco, ele disse:
– Sente um pouco.
Ela sentou sem dizer nada, mas a luz de um posto no caminho
iluminou seu semblante triste. Selden sentou ao lado dela, esperando que
ela falasse, temendo que qualquer palavra que escolhesse pudesse tocar na
ferida dela, e tentou afastar a dúvida miserável que lentamente se renovava
dentro dele. Como ela tinha chegado a este ponto? Que fraqueza a colocara
a mercê da sua inimiga? Por que Bertha tinha se transformado em uma
inimiga no momento em que mais precisava contar com o apoio do seu
sexo? Mesmo estando furioso pela subordinação dos maridos às suas
esposas, e da crueldade das mulheres para com as outras, a razão insistia na
relação proverbial de onde há fumaça há fogo. A lembrança da indireta de
Mrs. Fisher, e a conformação de suas próprias impressões, além de
aprofundar ainda mais seu sentimento de piedade também aumentavam suas
restrições, pois cada saída que encontrava para mostrar sua solidariedade
era bloqueada pelo receio de cometer um erro.
De repente, lhe ocorreu que seu silêncio poderia parecer tão acusador
quanto o dos homens que ele desprezara por terem dado as costas para ela;
mas antes que conseguisse encontrar as palavras certas ela o interrompeu
com uma pergunta.
– Você conhece um hotel sossegado? Posso mandar um recado para a
minha criada, amanhã de manhã.
– Um hotel… aqui… para onde você possa ir sozinha? Impossível.
Ela respondeu com seu característico bom humor.
– O que vou fazer, então? Está muito molhado para dormir no jardim.
– Mas deve ter alguém…
– Alguém que possa me receber? Claro que tem, várias pessoas, mas
numa hora dessas? Como pôde perceber minha mudança de planos foi um
tanto precipitada…
– Meu Deus, se tivesse me escutado! – disse ele, dando asas a sua
impotência num rompante de raiva.
Mesmo assim ela respondeu com um sorrisinho brincalhão.
– Mas eu não escutei? – e prosseguiu. – Você me aconselhou a sair do
iate, e aqui estou eu.
Ele percebeu então, com uma ponta de arrependimento, que ela não
tinha intenção de se justificar e nem de se defender; que com seu silêncio
infeliz ele tinha perdido todas as oportunidades de ajudá-la, e que o
momento certo tinha passado.
Ela estava de pé, diante dele numa pose majestosa, como se fosse uma
princesa destronada indo tranquilamente para o exílio.
– Lily! – ele exclamou, num tom de apelo desesperado; mas…
– Oh, agora não – ela o advertiu gentilmente, e então, com a doçura
da sua compostura recuperada: – Uma vez que preciso encontrar um abrigo
em algum lugar, e uma vez que está fazendo a gentileza de me ajudar…
Ele abraçou o desafio.
– Você vai fazer o que eu lhe disser? Só resta uma alternativa, então;
você deve ir direito para o hotel onde seus primos, os Stepney, estão
hospedados.
– Oh! – ela deixou escapar num gesto de resistência instintiva; mas
ele insistiu:
– Vamos, já é tarde, e é melhor que pareça que você foi diretamente
para lá.
Ele tinha pousado a mão dela em seu braço, mas ela o segurou num
último gesto de protesto.
– Não posso… não posso… isso não… você não conhece a Gwen:
não me peça isso!
– Eu preciso, e você deve me obedecer – ele persistiu, apesar de ter
sido acometido pelo medo dela.
A voz dela não passava de um sussurro:
– Se ela se recusar a me receber?
– Confiem em mim. Confie em mim! – só lhe restava insistir nisso; e
cedendo, ela permitiu que ele a acompanhasse em silêncio até a praça.
Eles seguiram calados no coche durante o curto trajeto até a porta do
hotel onde os Stepney estavam hospedados. Ele a deixou do lado de fora,
sob a sombra do toldo, enquanto seu nome era anunciando no apartamento
de Stepney, e enquanto este não descia, ele ficou andando de um lado para o
outro no saguão. Dez minutos depois os dois homens passaram pelos
funcionários de uniformes com dragonas douradas parados de cada lado da
porta; mas antes, Stepney rompeu num último rompante de relutância.
– Mas estamos entendidos, então? – ele estipulou nervoso, segurando
Selden pelo braço. – Ela parte amanhã, no primeiro trem, e minha esposa
está dormindo, e não posso incomodá-la.
Capítulo 4
As cortinas da sala de estar de Mrs. Peniston tinham sido fechadas
contra o sol opressivo de junho, e no fim de tarde abafado os rostos de seus
parentes reunidos foram encobertos por uma sombra adequada a luto.
Estavam todos lá: os Van Alstyne, os Stepney e os Melson – até mesmo um
ou dois Peniston afastados, indicando, pelo modo como estavam vestidos e
se portavam, um parentesco distante e esperanças imediatistas. O lado
Peniston estava, na verdade, seguro de que a maior parte da fortuna de Mr.
Peniston “voltaria”; enquanto o outro aguardava em suspense a divisão de
fortuna pessoal da viúva dele, sem saber se esta existia de fato. Jack
Stepney, no seu novo personagem de sobrinho mais rico, assumiu
tacitamente a liderança, enfatizando sua importância com seu traje preto
brilhante e modos contidos; enquanto sua esposa com sua pose de
desinteresse e vestido extravagante mostrava que a herdeira não dava a
mínima para a fortuna insignificante em jogo. O velho Ned Van Alstyne,
sentado ao lado dela, vestindo um casaco de dar dó, torcia o bigode grisalho
para esconder a vontade de torcer os lábios; e Grace Stepney, com o nariz
vermelho e inchado, sussurrou emocionada para Mrs. Hebert Melson:
– De todos os lugares eu jamais iria para o Niágara!
Um farfalhar de trajes pretos e um rápido giro de cabeças na direção
da porta que se abria, e Lily Bart surgiu, alta e majestosa em seu vestido
preto, com Gerty Farish ao seu lado. Os rostos das mulheres, quando ela
parou pensativa na estrada, estudavam a hesitação. Uma ou duas fizeram
menção de que a reconheciam, mas a atitude pode ter sido contida tanto
pela solenidade da cena quanto pela dúvida de qual seria a reação dos
outros. Mrs. Jack Stepney acenou com a cabeça apenas, e Grace Stepney
com um gesto sepulcral, indicou a cadeira ao seu lado. Mas Lilly ignorou o
convite, assim como a tentativa oficial de Jack Stepney de lhe dar ordens, e
seguiu andando pela sala com seu passo suave, e sentou em uma cadeira
que parecia ter sido colocada afastada dos outros de propósito.
Essa foi a primeira vez que teve de encarar sua família desde o
retorno da Europa, duas semanas antes da data marcada; mas se percebeu
algum sinal de hesitação no modo como a receberam, isto serviu apenas
para dar um toque a mais de ironia ao seu fardo. O choque que sentiu ao
ouvir, ainda no porto, de Gerty Farish a notícia da morte súbita de Mrs.
Peniston, foi atenuado, quase que de imediato, pelo irreprimível
pensamento de que agora, ao menos, poderia quitar suas dívidas. Ela voltara
ansiosa, sem saber como seria o reencontro com a tia, pois Mrs. Peniston
tinha sido veementemente contra a partida da sobrinha com os Dorset, e
marcara sua contínua desaprovação ao não escrever nenhuma carta durante
a ausência de Lily. A certeza de que ela tinha ficado sabendo sobre a
ruptura com os Dorset tornou a perspectiva do encontro ainda mais
assustadora; e como Lily poderia conter a sensação de alívio ao pensar que,
em vez de ter de passar pela difícil provação, ela teria apenas de receber
uma herança que iria garantir a sua vida por muito tempo? E era exatamente
por causa da frase consagrada “tente sempre compreender” que Mrs.
Peniston iria deixar sua sobrinha numa ótima situação; e na mente desta a
compreensão há muito já tinha sido concretizada.
– Obviamente ela vai ficar com tudo, nem sei por que estamos aqui –
comentou Mrs. Jack Stepney, num volume de voz demasiadamente alto,
com Ned Van Alstyne; e o comentário depreciativo do último “Julia nunca
passou de uma mulher simples” poderia ter sido interpretado tanto como
uma aquiescência quanto como uma dúvida.
– Bem, são apenas quatrocentos mil – retomou Mrs. Stepney com um
bocejo; e Grace Stepney, no silêncio produzido por uma tosse preliminar do
advogado, deixou escapar num sussurro:
– Não vai faltar uma tolha sequer, eu a ajudei a arrumar tudo no dia
que…
Lily, sufocada pelo clima quente e o odor sufocante de luto recente,
sentiu sua atenção dispersando do advogado de Mrs. Peniston, solenemente
ereto atrás da mesa de marchetaria no outro extremo da sala, lendo, num
tom arrastado, os preâmbulos do testamento.
– Parece que estamos em uma igreja – ela refletiu, pensando onde
Gwen Stepney tinha arrumado aquele chapéu horroroso. Então ela notou o
quanto Jack tinha engordado – logo ele estaria tão pletórico quanto Hebert
Melson, que se encontrava sentado a poucos metros de distância, respirando
com dificuldade e apoiado com as mãos vestidas de luvas pretas em sua
bengala.
– Gostaria de saber por que os ricos sempre engordam, acho que é
porque eles não têm nenhuma preocupação. Seu eu herdar tudo, não vou
descuidar do meu corpo – ela concluiu consigo mesma, enquanto o
advogado percorria os labirintos das leis. Os criados foram os primeiros,
depois algumas instituições de caridade, em seguida alguns Melson e
Stepney distantes, que despertaram ao ouvirem seus nomes, e que depois
retomaram um estado de indiferença que combinava com a solenidade da
ocasião. Ned Van Alstyne, Jack Stepney, e um primo ou dois foram citados
em seguida, cada casal recebeu alguns milhares: Lily ficou admirada por
Grace Stepney não estar entre eles. Então ela ouviu seu nome – “para minha
sobrinha Lily Bart dez mil dólares” – e depois disso o advogado se perdeu
novamente num caracol de parágrafos incompreensíveis, até que a frase
final saiu com uma nitidez surpreendente: “e o restante da minha fortuna
vai para minha querida sobrinha e homônima, Grace Julia Stepney”.
Houve um murmurinho abafado de surpresa, uma rápida virada de
cabeças, e uma agitação de figuras de preto correndo na direção do canto
onde Miss Stepney lamentava a sua indignação por trás de um lenço preto
amassado.
Lily se manteve à parte da movimentação geral, sentindo-se pela
primeira vez sozinha. Ninguém olhou para ela, ninguém parecia se importar
com sua presença; ela estava experimentando a profunda insignificância. E
junto da sensação de indiferença coletiva veio o sofrimento pelas
esperanças perdidas. Deserdada – ela tinha sido deserdada – e substituída
por Grace Stepney! Ela notou o olhar de lamento de Gerty, fixo nela num
esforço desesperado de consolá-la, e o olhar a trouxe de volta para a
realidade. Havia algo que deveria ser feito antes de deixar a casa: algo que
deveria ser feito com toda a nobreza que ela sabia impor em um gesto
destes. Ela se aproximou do grupo que rodeava Miss Stepney, e segurando
sua mão disse simplesmente:
– Minha querida Grace, estou tão feliz.
As outras damas recuaram quando ela se aproximou, e um espaço se
abriu ao seu redor. Espaço esse que aumentou quando ela virou para se
afastar, e que ninguém avançou para preencher. Ela parou por um momento,
olhando ao redor, avaliando calmamente a situação. Ouviu alguém fazendo
uma pergunta sobre a data do testamento; e pegou um fragmento da
resposta do advogado – algo sobre uma convocação de última hora, e um
“instrumento anterior”. Depois disso o grupo começou dispersar, passando
por ela; Mrs. Jack Stepney e Mrs. Herbert Melson estavam paradas à porta
esperando pelos seus carros; um grupo solidário acompanhou Grace
Stepney até o coche que acharam melhor ela pegar, apesar de morar a
apenas uma ou duas ruas de distância; e Miss Bart e Gerty se viram
praticamente sozinhas na sala de estar roxa, onde mais do que nunca, o tom
sombrio e sufocante, lembrou um mausoléu de família bem conservado,
onde o último defunto tinha acabado de ser sepultado com toda dignidade.

***

Na sala de estar do apartamento de Gerty Farish, para onde um coche


tinha levado as duas amigas, Lily largou-se em uma poltrona com uma
risadinha: parecia uma ironia o fato de a herança deixada por sua tia ser
praticamente a mesma quantia que ela devia a Trenor. A necessidade de
liquidar esta dívida tinha se tornado ainda mais urgente após seu retorno à
América, e Gerty foi a primeira a ouvir sobre o pensamento que tanta
ansiedade vinha lhe causando:
– Gostaria de saber quando vou receber a herança.
Mas Miss Farish não conseguiu se prender ao detalhe da herança; e
assim despejou toda sua indignação.
– Oh, Lily, quanta injustiça; que crueldade! Grace Stepney deve saber
que não tem direito a todo aquele dinheiro!
– Qualquer um que sabia como agradar tia Julia tem direito a herança
– ponderou Miss Bart filosoficamente.
– Mas ela adorava você, mostrava isso para todo mundo… – Gerty
hesitou embaraçada, e Miss Bart a encarou.
– Gerty, seja honesta: este testamento foi feito há seis semanas apenas.
Ela ficou sabendo sobre a minha briga com os Dorset?
– Todo mundo ficou sabendo, obviamente, que ocorreu algum
desentendimento… um mal-entendido…
– Ela ficou sabendo que Bertha me expulsou do iate?
– Lily!
– Foi isso que aconteceu. Ela disse que eu estava tentando me casar
com George Dorset. Ela fez isso para que ele pensasse que ela estava com
ciúme. Não foi o que ela disse para Gewn Stepney?
– Não sei, não costumo dar ouvido a estas coisas.
– Mas eu preciso… para saber onde estou pisando – ela fez uma
pausa, e mais uma vez retomou o tom levemente zombeteiro. – Você notou
o comportamento das mulheres? Elas estavam com medo de me esnobar
enquanto achavam que eu ia receber toda a herança, mas depois elas se
afastaram como se eu estivesse com uma doença contagiosa.
Gerty ficou calada, e ela continuou: – Fiquei para ver o que ia
acontecer. Elas seguiram Gwen Stepney e Lulu Melson… eu as vi
observando o que Gwen ia fazer. Gerty, preciso saber o que estão falando de
mim.
– Já disse que não dou ouvidos…
– Mas tais coisas escutamos mesmo sem querer – ela se levantou e
pousou as mãos decidida sobre os ombros de Miss Farish. – Gerty, as
pessoas vão me evitar?
– Seus amigos, Lily… como pode pensar uma coisa dessas?
– Quem é amigo numa hora dessas? Que, além de você, minha
querida amiga fiel? E sabe-se lá o que estão pensando de você! – ela deu
um beijo estalado em Gerty. – Você nunca permitiria que isto fizesse a
menor diferença, mas você gosta de transgressores, Gerty! Que tal os
inveterados? Pois eu não tenho salvação, sabe.
Ela se ergueu majestosa, altiva como um anjo caído desafiando a
perturbada Gerty, que hesitou:
– Lily, Lily… como consegue rir de uma situação como esta?
– Para não chorar, talvez. Mas não… não sou do tipo que chora.
Descobri cedo que chorar deixa meu nariz vermelho, e isso me ajudou em
vários momentos difíceis.
Ela andou impaciente pela sala, e então, sentou-se novamente no
mesmo lugar, ergueu os olhos zombeteiros para o semblante consternado de
Gerty.
– Sabe, eu não teria me importado se tivesse ficado com toda a
fortuna… – e diante de um “Oh!” de protesto de Miss Farish, ela repetiu
calmamente: – Nenhum pingo, minha querida; pois, em primeiro lugar, eles
não ousariam me ignorar; e se o fizessem, não teria problema, pois eu não
iria mais depender deles. Mas agora! – a ironia desapareceu de seus olhos, e
seu semblante entristeceu.
– Como pode falar assim, Lily? Claro que o dinheiro deveria ser seu,
mas isto não faz diferença. O importante é que… – Gerty parou, e então
continuou convicta: – O importante é que você limpe o seu nome, que conte
toda a verdade para suas amigas.
– Toda a verdade? – Miss Bart riu. – O que é verdade? Quando diz
respeito a uma mulher, a verdade é a história mais fácil de acreditar. Neste
caso é bem mais fácil acreditar na história de Bertha Dorset do que na
minha, pois ela tem uma casa grande e um camarote na ópera, e é
conveniente continuar amiga dela.
Miss Farish ainda olhava ansiosa.
– Mas qual é a sua história, Lily? Não acredito que ninguém saiba.
– A minha história? Acho que nem eu sei. Nunca pensei em preparar
uma versão como Bertha fez, e mesmo que tivesse, não creio valha a pena
tentar usá-la agora.
Mas Gerty seguiu com sua linha de raciocínio sensato:
– Não quero a versão preparada, quero que você me conte exatamente
o que aconteceu desde o começo.
– Desde o começo? – Miss Bart a remedou carinhosamente. – Minha
querida, Gerty, como sua imaginação é pobre! Acho que tudo começou no
berço, no modo como fui criada, e nas coisas que me ensinaram a valorizar.
Ou não, não vou culpar ninguém pelos meus erros: digamos que esteja no
meu sangue, que herdei isso de algum antepassado que amava os prazeres
da vida, que se rebelou contra as virtudes domésticas da Nova Amsterdã, e
morria de vontade de voltar para a corte dos Charles!
E como Miss Farish ainda pressionava com olhos ansiosos, ela
continuou perdendo a paciência: – Você acabou de me pedir para dizer a
verdade, bem, a verdade sobre qualquer moça é que se ela fica falada é
porque fez por merecer; e quanto mais explicações tentar dar pior fica.
Minha querida, Gerty, você não teria um cigarro, teria?

***

No quartinho abafado do hotel para onde tinha ido assim que chegou,
Lily Bart repassou toda a sua situação, naquela noite. Era a última semana
de junho, e nenhuma das suas amigas estava na cidade. Os poucos parentes
que tinham ficado, ou voltado, para a leitura do testamento de Mrs.
Peniston, tinham partido novamente naquela tarde para Newport ou Long
Island; e nenhum deles ofereceu hospitalidade a Lily. Pela primeira vez na
sua vida ela se viu totalmente sozinha, com a exceção de Gerty Farish. Nem
mesmo no momento do rompimento com os Dorset ela teve noção das
consequências, pois a duquesa de Beltshire, quando ficou sabendo da
catástrofe por lorde Hubert, na hora ofereceu sua proteção, e sob a asa dela
Lily praticamente triunfou em Londres. Lá, ela se viu tentada a se demorar
um pouco mais em uma sociedade que só lhe pedia para diverti-los e
encantá-los, sem perguntas curiosas de como ela tinha adquirido todo
aquele talento. Mas Selden, antes de se despedirem, a pressionou para que
voltasse o quanto antes para a tia, e lorde Hubert, assim que chegou a
Londres, reforçou o mesmo conselho. Ninguém precisou dizer para Lily
que a companhia da duquesa não era o melhor caminho para a reabilitação
social, e assim como sabia que sua nobre defensora a qualquer momento
poderia trocá-la por uma nova protegida, ela resolveu, ainda que relutante,
retornar para a América. Mas não fazia nem dez minutos que tinha pisado
na sua terra natal quando se deu conta de que tinha demorado muito para
voltar. Os Dorset, os Stepney, os Bry – todos os personagens e testemunhas
do drama infeliz – já tinha voltado e dado a versão deles sobre o caso; e,
mesmo que tivesse tido uma chance de ser ouvida, um desdém e uma
relutância a teriam impedido de fazê-lo. Ela sabia que não seria por meio de
explicações e contra-acusações que iria conseguir recuperar o posto
perdido; mas mesmo que achasse que isto poderia adiantar alguma coisa,
mesmo assim ela teria se segurando pelo mesmo sentimento que a impediu
de se defender para Gerty Farish – um sentimento que era uma mistura de
orgulho com humilhação. Pois embora soubesse que tinha sido cruelmente
sacrificada em nome da determinação de Bertha Dorset de recuperar o
marido, e embora a sua relação com Dorset não passasse de uma simples
amizade, desde o começo ela sabia que seu papel era, assim como Carry
Fisher tinha colocado brutalmente, distrair a atenção de Dorset da esposa.
Era “para isso” que ela estava lá: este foi o preço que ela escolheu pagar por
três meses de luxo e liberdade. Seu hábito de encarar os fatos de modo
resoluto, nos seus raros momentos de introspecção, agora não lhe permitia
encobrir com um brilho falso a situação. Ela estava sofrendo as
consequências por ter cumprido a sua parte do trato implícito, mas a parte
não era nada bonita, e, agora, via isso em toda a feiura do fracasso.
Viu também, sob a mesma luz intransigente, a corrente de
consequências resultante desse fracasso; e isto foi se tornando claro dia
após dia, após sua chegada. Ela buscou pelo conforto da amizade de Gerty
Farish em parte por que não sabia para onde ir. Sabia muito bem a natureza
do desafio que teria de enfrentar. Teria de se preparar para recuperar, aos
poucos, a posição que tinha perdido; e o primeiro passo deste desafio
cansativo era descobrir, assim que possível, quantas eram as amigas com
quem ainda poderia contar. Suas esperanças estavam centradas em Mrs.
Trenor, que costumava desculpar com facilidade aqueles que a divertiam ou
lhe eram úteis, e que mesmo em meio ao murmurinho da voz da difamação
ainda podia ser ouvida. Mas Judy, que embora tivesse ficado sabendo sobre
o retorno de Miss Bart, não enviou nem mesmo um telegrama de
condolências que o luto da amiga requeria. Qualquer tentativa de
aproximação por parte de Lily poderia ser perigosa: não havia nada a fazer
além de confiar na sorte de um encontro casual, e Lily sabia que, apesar de
a temporada estar terminando, sempre havia uma esperança de cruzar com
uma de suas amigas em uma de suas frequentes visitas a cidade.
Com este intuito apareceu várias vezes nos restaurantes que elas
frequentavam, onde, acompanhada da preocupada Gerty, almoçava sem
medir as despesas, como ela dissera, por sua conta.
– Minha querida, Gerty, você não vai querer que o maître pense que
não tenho nada para viver além da herança da tia Julia? Imagine a satisfação
de Grace Stepney se ela aparecer e ver que estamos almoçando carne de
carneiro fria e chá! Que sobremesa vamos pedir hoje, querida: Coupe
Jacques ou pêssegos melba?
Ela soltou o cardápio abruptamente, com um rubor súbito, e Gerty,
acompanhando seu olhar, percebeu o avanço vindo do salão do fundo, de
um grupo encabeçado por Mrs. Trenor e Carry Fisher. Seria impossível para
essas damas e seus acompanhantes – entre os quais Lily já tinha distinguido
Trenor e Rosedale – não passarem, ao saírem, pela mesa onde as duas
estavam sentadas; e Gerty mostrou que estava ciente deste detalhe por meio
de um tremor incontrolável. Miss Bart, ao contrário, se inclinou para frente
num gesto delicado, e não se encolheu com a aproximação dos amigos ou
aparentou expectativa, dando assim ao encontro o mesmo toque de
naturalidade que era capaz de demonstrar nas situações mais tensas. Os
constrangimentos ficaram a cargo de Mrs. Trenor, manifestados com uma
mistura de calor exagerado com certa reserva. Sua alegria exagerada ao ver
Miss Bart assumiu a forma de uma generalização nebulosa, que não incluiu
perguntas sobre o seu futuro e tão pouco expressou um desejo de encontrá-
la novamente. Lily, versada na linguagem destas omissões, sabia que elas
também tinham sido compreendidas pelos outros membros do grupo: até
mesmo Rosedale, roborizado como estava pela importância de estar em
meio a tais companhias, na hora percebeu o grau da cordialidade de Mrs.
Trenor, e refletiu isso ao cumprimentar Miss Bart sem estender a mão.
Trenor, vermelho e desconfortável, safou-se da situação com a desculpa de
que precisava falar com o maître, e o restante do grupo saiu no rastro de
Mrs. Trenor.
Tudo acabou muito rápido – o garçom, com o cardápio na mão,
esperando para anotar a escolha do Coupe Jacks e do Pêssego Melba – mas
Miss Bart, neste intervalo, teve uma dimensão do seu destino. Judy Trenor
era um modelo a ser seguido por todo mundo; e Lily se sentiu como um
náufrago condenado à morte que vê em vão as velas indo embora.
Ela se lembrou, então, das reclamações de Mrs. Trenor sobre a
voracidade de Carry Fisher, e percebeu que elas denotavam um inesperado
conhecimento sobre a vida particular do seu marido. No grande tumulto da
vida em Bellomont, onde ninguém parecia ter tempo para observar
ninguém, e os interesses pessoais e objetivos particulares passavam
despercebidos na correria das atividades coletivas, Lily se sentia protegida
de um olhar mais atento; mas se Judy ficou sabendo quando Mrs. Fisher
pegou dinheiro emprestado do seu marido, será que teria ignorado a mesma
transação por parte de Lily? Se por um lado ela não se preocupava com as
escapadas dele, por outro ela morria de ciúme do bolso dele; e pensando
nisso Lily entendeu o motivo da repulsa dela. O resultado imediato destas
conclusões foi um grande desejo de quitar de uma vez por todas suas
dívidas com Trenor. Uma vez livre desta obrigação, restaria apenas mil
dólares da herança de Mrs. Peniston, e nada mais para viver além da sua
pequena renda, que era consideravelmente menor do que a miséria que
Gerty Farish ganhava; mas isto foi esquecido em nome do seu orgulho
ferido. Primeiro ela precisava ficar livre dos Trenor; depois disso pensaria
no futuro.
Na sua ignorância sobre as procrastinações legais ela imaginou que
sua parte da herança seria paga alguns dias depois da leitura do testamento
da tia; e após um período de espera ansiosa, ela escreveu para saber a causa
da demora. Houve outro intervalo de espera antes de o advogado de Mrs.
Peniston, que era também um dos executores, responder que por conta de
alguns pontos relativos à interpretação do testamento terem sido levantados,
ele e seus sócios não poderiam liberar o pagamento da herança antes final
dos doze meses legalmente previstos para a liquidação. Perplexa e
indignada, Lily tentou um apelo pessoal; mas retornou da empreitada com
uma sensação de que a beleza e o charme não tinham nenhum poder sobre
os processos insensível da lei. A ideia de viver mais um ano sob o peso da
sua dívida parecia intolerável; em seu desespero, ela procurou Miss
Stepney, que ainda se encontrava na cidade, imensa no agradável dever de
“aceitar” os efeitos da sua benfeitora. Foi muito amargo para Lily ter de
pedir um favor para Grace Stepney, mas a alternativa era pior; e numa
manhã ela compareceu à casa de Mrs. Peniston, onde Grace, para facilitar a
árdua missão, tinha tomado como moradia provisória.
A estranheza de entrar como uma pedinte na casa que ela dominara
por tanto tempo, aumentou o desejo de Lily de dar cabo o quanto antes à
questão; e quando Miss Stepney entrou na sala de estar escura, farfalhando
seu traje de crepe da melhor qualidade, a visitante foi direito ao ponto: será
que ela poderia adiantar a sua parte da herança?
Grace, em resposta, chorou e ponderou sobre o pedido, lamentou a
inflexibilidade da lei, e ficou surpresa ao descobrir que Lily não sabia que
as duas se encontravam na mesma situação. Será que ela estava pensando
que apenas a sua parte ainda não tinha sido paga? Pois, Miss Stepney
também não tinha recebido nem um centavo ainda da herança, e estava
pagando aluguel – sim, estava! – pelo privilégio de morar em uma casa que
era sua. Ela tinha certeza de que este não era o desejo da querida tia Julia –
chegou a dizer isso na cara dos executores; mas eles não tinham bom senso,
e não restava mais nada a fazer senão esperar. Que Lily seguisse seu
exemplo, e tivesse paciência – que as duas se lembrassem do quão paciente
tia Julia sempre foi.
Lily fez um gesto que mostrou que não tinha entendido muito bem o
exemplo.
– Mas você vai ficar com tudo, Grace… seria fácil para você me
emprestar dez vezes mais do que a quantia que estou lhe pendido.
– Emprestar, seria fácil para eu emprestar? – Grace Stepney se
levantou enfurecida. – Você imaginou por um momento que eu levantaria
dinheiro contando com o que vou receber da tia Julia, quando sei muito
bem o horror indescritível que ela tinha por teste tipo de transação? Para
dizer a verdade, Lily, foram as suas dívidas que a fez adoecer, você se
lembra de que ela teve um pequeno ataque antes da sua partida. Oh, não sei
dos detalhes, é claro, e não quero saber, mas correram boatos sobre o seu
caso que a deixaram muito triste… todo mundo podia perceber. Não posso
fazer nada se ficou ofendida pelo que acabei de lhe dizer, se houver algo
que eu possa fazer para que você perceba a insensatez de seus atos, e o quão
profundamente ela os desaprovou, sinto que este será o único modo de fazê-
la sentir pela perda dela.
Capítulo 5
Lily teve a impressão, assim que a porta de Mrs. Peniston se fechou
para ela, de que estava se despedindo da sua antiga vida. O futuro se
mostrava sombrio e vazio como a deserta Quinta Avenida, e as
oportunidades tão escassas quanto os poucos coches que passavam à cata de
um passageiro que não aparecia. Mas a concretude da analogia foi
interrompida assim que ela pisou na calçada e um coche parou ao vê-la.
Sob a capota carregada de bagagem, ela viu uma mão acenando; e em
seguida Mrs. Fisher desceu, e a envolveu em um abraço.
– Não me diga que você ainda está na cidade, querida? Quando a vi
outro dia no Sherry’s não tive tempo de perguntar… – ela parou, e
adicionou num rompante de franqueza: – A verdade é que agi muito mal, e
desde então estou para lhe dizer isso.
– Oh… – Miss Bart protestou, afastando-se do afago de culpa; mas
Mrs. Fisher prosseguiu com sua franqueza habitual: – Escute, Lily, vamos
deixar de rodeios: metade dos problemas da vida acontece por fingirmos
que não existem. Mas este não é o meu estilo, e só posso dizer que estou
tremendamente envergonhada por ter seguido a liderança de outras
mulheres. Mas depois falaremos disso; agora me diga onde você está
hospedada e quais são seus planos. Não acho que esteja dividindo o teto
com Grace Stepney, está? Tenho a impressão de que você está em
dificuldade.
No estado de espírito de Lily que se encontrava não havia por que
tentar resistir à oferta sincera de amizade, e ela disse com um sorriso:
– Estou em dificuldades no momento, mas Gerty Farish ainda está na
cidade, e ela tem me feito companhia sempre que tem um tempo livre.
Mrs. Fisher soltou um leve sorriso.
– Hum… que uma companhia sóbria. Oh, eu sei, a companhia de
Gerty é um trunfo, e vale muito mais do que a de todas nós juntas; mas você
está acostumada com um pouquinho mais de tempero, não está, querida?
Além do mais, creio que logo ela irá partir, no dia primeiro de gosto, foi
isso que você falou? Escute, você não pode passar o verão inteiro na cidade;
mas vamos falar sobre isso também depois. Por agora, o que acha de fazer
uma malinha e ir comigo para a casa dos Sam Gormer, hoje à noite?”
Enquanto ponderava sobre o inesperado convite irresistível, Lily
manteve seu sorriso fácil.
– Você não os conhece e eles não conhecem você; mas isso não tem
problema. Eles compraram a casa de Van Alstyne em Roslyn, e recebi carta
branca para levar os amigos que quiser; quanto mais, melhor. Eles sabem
receber bem, e haverá uma festa muito divertida neste final de semana… –
ela parou, detida pela mudança de expressão de Miss Bart. – Oh, não se
trata do povo que você já conhece: é um grupo totalmente diferente, mas
muito divertido. A verdade é que, os Gormer seguem a linha deles: e o que
eles querem é se divertirem, e do jeito deles. Eles experimentaram o outro
lado por alguns meses, sob a minha tutela, e estavam indo muito bem,
aprendendo mais rápido do que os Bry, porque eles não se preocupam
muito, mas, de repente, eles se cansaram, e que perceberam o que queriam
mesmo era estarem entre pessoas com quem pudessem se sentir mais à
vontade. Muito original da parte deles, não acha? Mattie Gormer ainda tem
aspirações; as mulheres sempre têm; mas ela é muito sossegada, e Sam não
vai se incomodar, e os dois gostam de serem o centro das atenções, por isso
eles criaram um estilo próprio de vida, é um tipo de Coney Island social,
onde todos são bem-vindos e podem se divertir à vontade desde que não
sejam esnobes. Acho muito divertido: é um pessoal do meio artístico, sabe,
qualquer atriz em ascensão, e assim por diante. Neste final de semana, por
exemplo, eles vão receber Audrey Anstell, que fez um tremendo sucesso no
último verão com ‘The Winning of Winny’; e Paul Morpeth, ele vai pintar o
retrato de Mattie Gormer, e os Dick Bellinger, e Kate Corby, enfim, um
monte de gente divertida. Não fique parada com esse nariz empinado,
minha querida, vai ser bem melhor do que passar o domingo escaldante na
cidade, e você terá uma chance de conhecer gente inteligente e divertida.
Morpeht, que admira muito a Mattie, sempre leve uma ou duas pessoas do
seu meio.
Mrs. Fisher empurrou Lily na direção do coche com uma autoridade
amistosa.
– Entre logo, minha querida, vamos para o seu hotel arrumar as suas
coisas, depois podemos tomar um chá, e nossas criadas podem nos
encontrar no trem.

***

Era bem melhor do que passar um domingo escaldante na cidade –


quanto a isso Lily não teve dúvidas, enquanto repousava sob a sombra de
uma varanda ampla, e observava o mar além de uma faixa verde pitoresca
pontilhada com grupos de mulheres em trajes de renda e homens de
uniforme de tênis. A imensa casa de Van Alstyne e todas suas dependências
espalhadas estavam completamente lotadas com os convidados dos Gormer,
que agora, sob o sol radiante da manhã de domingo, espalhavam-se em
busca das várias opções de lazer que o lugar oferecia: opções estas que
abrangiam desde as quadras de tênis a estandes de tiro, de bridge e uísque
indoor a carros e passeios de barco a vapor ao ar livre. Lily tinha a estranha
sensação de ter sido incluída no grupo do mesmo jeito que um passageiro
tem o direito de entrar num trem; sem a menor seleção prévia. A loira e
genial Mrs. Gomer podia, de fato, ser vista como o condutor, calmamente
indicando os assentos para os viajantes apressados, enquanto Carry Fisher
representava o cobrador ajudando a colocar as malas no lugar, distribuindo
os bilhetes para o vagão restaurante, e avisando quando a estação deles
estava chegando. O trem, por sua vez, mal diminuía a velocidade – a vida
passava com um zumbindo e um barulho ensurdecedor, onde o passageiro
ao menos encontrava um refúgio bem-vindo dos ecos dos seus próprios
pensamentos.
O ambiente dos Gormer representava uma periferia social que Lily
sempre fez questão de evitar; mas, agora, que estava no meio, ela ficou
surpresa ao perceber que se tratava de uma cópia gritante do seu mundo,
uma caricatura tão parecida com a versão verdadeira quanto o “jogo social”
se parece com os códigos de conduta social. As pessoas ao seu redor
estavam fazendo as mesmas coisas que os Trenor, os Van Osburgh e os
Dorset faziam: a diferença estava em alguns aspectos e modos, que iam
desde a estampa dos coletes dos homens ao tom de voz das mulheres. Tudo
estava num tom mais alto, e havia mais de tudo: mais barulho, mais cores,
mais champanhe, mais intimidade – mas também havia mais cordialidade,
menos rivalidade e uma disposição para o divertimento.
A chegada de Miss Bart foi acolhida com uma simpatia acrítica que
primeiro feriu seu orgulho e em seguida a fez enxergar a realidade da sua
situação – um lugar no mundo, que no momento, ela deveria aceitar e
aproveitar ao máximo. Essas pessoas sabiam da sua história – a longa
conversa que tivera com Carry Fisher não deixou dúvidas: ela estava
marcada como a protagonista de um “episódio estranho”, mas em vez de se
afastarem dela assim como seus amigos tinham feito, eles a receberam sem
entrarem nos detalhes das promiscuidades. Engoliram o passado dela com a
mesma facilidade com que engoliram os de Miss Anstell, e sem nenhuma
diferença aparente: tudo que pediram foi que ela – a seu modo, pois eles
reconheciam todos seus talentos – contribuísse o máximo possível para o
divertimento geral assim como aquela atriz encantadora, cujos talentos, fora
do palco, eram os mais variados. Lily se deu conta de que quaisquer
demonstrações de “superioridade”, para impor uma noção de diferença e
distinção, poderiam ser fatais para sua estada no grupo dos Gormer. O fato
de ter sido aceita sob estas condições – e num mundo como aquele! – foi
um grande golpe em seu orgulho; mas ela percebeu, com uma pontinha de
desprezo por si mesma, que ser excluída seria ainda mais difícil. Pois, quase
de imediato, sentira o encanto insidioso de voltar a uma vida onde as
dificuldades materiais eram suavizadas. A fuga de um quarto de hotel abado
em uma cidade deserta para o espaço e o luxo de uma casa de campo
sensacional refrescada pela brisa do mar, produzira um estado de lassitude
espiritual extremante agradável depois de toda a tensão e o desconforto
físico das últimas semanas. Por enquanto ela poderia se render ao descanso
que seus sentidos tanto ansiavam – depois disso pensaria na sua situação, e
se reconciliaria com sua dignidade. O prazer que sentia, na verdade,
mesclava-se a desagradável noção de que ela estava aceitando a
hospitalidade e o assédio de pessoas que em outras circunstâncias teria
desprezado. Mas ela estava ficando menos sensível a tais detalhes: uma
camada de verniz começava a encobrir rapidamente suas sensibilidades e
suscetibilidades, e a cada concessão a camada superficial endurecia um
pouco mais.
Na segunda-feira, quando o grupo se dispersou com alvoroço, a volta
à cidade realçou ainda mais os encantados da vida que ela estava deixando
para trás. Os outros convidados partiam para a mesma existência em outro
meio: alguns iam para Newport, outros para Bar Harbour, outros para a
beleza rústica das montanhas Adirondack. Até mesmo Gerty Farish, que
recebera Lily com todo carinho, estava de partida para se juntar à tia com
quem costumava passar os verões no Lago George: Lily era a única que
ainda não tinha um plano ou rumo; estava encalhada em um remanso da
grande correnteza do prazer. Mas Carry Fisher, que insistira em levá-la para
sua própria casa, onde ela mesma ia passar um ou dois dias antes de partir
para o campo com os Bry, tentou ajudar com uma nova sugestão.
– Escute, Lily, vou lhe dizer uma cosia: quero que assuma meu lugar
ao lado de Matti Gormer neste verão. Eles estão levando um grupo para o
Alaska no próximo mês, no vagão particular deles, e Mattie, que é a mulher
mais preguiçosa do mundo, quer que eu vá junto, para cuidar de tudo; mas
os Bry também me querem, ah, nós fizemos as pazes: não contei? E, para
ser franca, apesar de eu gostar mais dos Gormer, é mais vantajoso para mim
ficar com os Bry. O fato é que eles querem experimentar Newport neste
verão, e se eu conseguir fazer com que tudo dê certo… bem, eles farão o
mesmo por mim – Mrs. Fisher bateu palmas animada. – Sabe de uma coisa,
Lily, quanto mais penso na minha ideia melhor ela parece, tanto para você
quanto para mim. Os Gormer gostaram muito de você, e a viagem para o
Alaska será… bem… a melhor coisa no momento para você.
Miss Bart ergueu os olhos com um olhar malicioso.
– Tirar-me do caminho dos meus amigos, você quer dizer? – disse ela
baixinho; e Mrs. Fisher respondeu com um beijo de desaprovação:
– Para afastá-la deles até perceberem que o quanto sentem falta de
você.

***
Miss Bart foi com os Gomer para o Alaska; e a viagem, se não
produziu o resultado almejado pela sua amiga, teve ao menos a vantagem
negativa de tirá-la do centro nervoso do criticismo e falatórios. Gerty Farish
se opôs ao plano com toda a energia da sua natureza um tanto inarticulada.
Chegou até a dizer que iria desistir da sua visita ao Lago George, e ficar na
cidade com Miss Bart, se esta também desistisse da sua; mas Lily conseguiu
disfarçar o verdadeiro motivo pelo qual detestou o plano com uma boa
desculpa.
– Você é tão inocente, minha querida, não percebe – ela protestou –
que Carry está certa, e que preciso retomar à minha vida, e circular entre o
maior número de pessoas possível? Se meus antigos amigos optaram por
acreditar em mentiras sobre a minha pessoa então devo arrumar novos
amigos, é isso; e você sabe que pedintes não podem se dar ao luxo de
escolher muito. Não que eu não goste de Mattie Gormer, gosto dela: ela e
gentil e franca, e não é afetada; e não pense que não sou grata a ela por ter
me recebido quando, como você mesma viu, minha própria família lavou as
mãos para mim?
Gerty balançou a cabeça, sem se convencer. Além de achar que Lily
estava se rebaixando a recorrer a uma amizade que jamais teria cultivado
por opção própria, mas por que, ao retomar ao seu antigo estilo de vida, ela
estava desperdiçando a sua última chance de escapar disso. Gerty fazia uma
vaga ideia do que tinha Lily passado: mas suas consequências tinham
deixado um sentimento de pena duradouro desde a noite memorável quando
ela abriu mão das suas esperanças secretas em nome do desespero da amiga.
Para personagens como Gerty, tal sacrifício representa uma reivindicação
moral em nome da pessoa beneficiada. Depois de ter ajudado Lily uma vez,
ela teria de continuar ajudando; e ao ajudá-la, ela precisava acreditar nela,
pois a fé é a mola propulsora em tais naturezas. Mas mesmo que Miss Bart,
após retomar seu gosto pelas comodidades da vida, voltasse para a aridez de
agosto em Nova York, mitigada apenas pela presença da pobre Gerty, sua
sabedoria de vida a acolheria contra tal ato de abnegação. Ela sabia que
Carry Fisher estava certa: que uma ausência oportuna era o primeiro passo
para a reabilitação, e que, de qualquer maneira, ficar na cidade fora da
temporada era uma admissão fatal de fracasso. Da agitada viagem em
companhia dos Gormer pelo continente pelo natal deles, ela retornou com
uma visão distinta da sua situação. O hábito renovado do luxo – o despertar
todos os dias sem ter de se preocupar com a presença ou acesso aos bens
materiais – gradualmente atenuou seu apreço por estes bens, deixando-a
mais consciente do vazio que eles não eram capazes de preencher. A boa-
natureza sem preconceitos de Mattie Gormer, e seu círculo social de amigos
despretensiosos, que tratavam Lily como tratavam uns aos outros – todas
essas nuances de diferenças começaram a fortalecer a sua resistência; e
quanto mais motivos ela via para criticar seus companheiros, menos
justificativas encontrava para se aproveitar deles. A ânsia de retomar para o
seu meio se transformou em uma ideia fixa: mas junto com o fortalecimento
da sua determinação veio a inevitável noção de que, para atingir seus
objetivos, ela deveria, mais uma vez, fazer novas concessões ao seu
orgulho. Concessões estas que se concretizaram na desagradável forma de
continuar pendurada aos seus anfitriões após o retorno da viagem ao
Alaska. Aos poucos ela acabou se tornando o centro do círculo social deles,
sua imensa facilidade de socialização, sua antiga capacidade de se adaptar
aos outros sem se omitir, a habilidade de aplicar todos seus recursos, a
ajudou a conquistar um posto importante no grupo dos Gormer. Se a alegria
esfuziante deles nunca seria sua, ela ao menos contribuiu com uma nota de
elegância mais valiosa para Mattie Gormer do que a passagem barulhenta
de uma banda. Sam Gormer e seus companheiros na verdade não deram
muita importância para ela: mas os seguidores de Mattie, encabeçados por
Paul Morpeth, levaram-na a perceber que eles a valorizavam exatamente
pelas qualidades que lhes faltavam. Apesar de Morpeth, cuja indolência
social era tão grande quanto seus talentos artísticos, ter se entregado a
existência fácil com os Gormer, onde as pequenas exigências de cortesia
eram desconhecidas ou ignoradas, e onde um homem podia quebrar suas
promessas, ou mantê-las vestindo robe e chinelos, ele ainda preservou seu
discernimento, e o apreço pelas qualidades que ele não tinha tempo de
cultivar. Durante os preparativos para o Tableax dos Bry ele ficou
impressionado com as perspectivas artística de Lily – “não o rosto: muito
controlado para se expressar; mas todo o restante dela – céus, que modelo
ela daria!” – e apesar da sua aversão pelo mundo onde a conhecera ainda
ser muito grande para ele pensar em voltar lá para procurar por ela, ele
ficou muito contente por ter tido o privilégio de poder olhar para ela e ouvi-
la enquanto relaxava na sala de estar bagunçada de Mattie Gormer.
Desta maneira, Lily acabou formando, no tumultuado círculo onde
estava inserida, um pequeno núcleo de relações amistosas que serviu para
diminuir a crueza da realidade de continuar com os Gormer depois do
retorno deles. Mesmo assim ela não perdeu de vista, ainda que a distância,
as coisas o que estavam acontecendo no seu mundo, especialmente após o
final da temporada em Newport que arrastou a corrente social de volta para
Long Island. Kate Corby, cujos gostos a tornaram tão promíscua quanto
Carry Fisher, vivia presa as suas necessidades, vez ou outra recorria aos
Gormer, onde, após o primeiro impacto de surpresa, viu a presença de Lily
como algo normal. Mrs. Fisher, que também costumava aparecer com
frequência, vinha compartilhar suas experiências e dar a Lily o que ela
chamava de o último relatório meteorológico; e esta, apesar de nunca ter
solicitado diretamente a sua confidência, mesmo assim se sentia mais à
vontade com ela do que com Gerty Farish, em cuja presença era impossível
até mesmo admitir a existência de tudo que Mrs. Fisher convenientemente
considerava certo.
Mrs. Fisher, além disso, não fazia perguntas embaraçosas. Não tinha
intenção de investigar a fundo a situação de Lily, mas simplesmente
observar tudo de fora, e chegar as suas conclusões; e uma destas conclusões
foi compartilhada com a amiga, mais uma vez, ao final de uma conversa
confidencial, de maneira sucinta:
– Você precisa se casar o mais rápido possível.
Lily soltou uma risadinha – pela falta de originalidade de Mrs. Fisher.
– Você está querendo dizer, assim como Gerty Farish, que o remédio é
o amor de um homem bom?
– Não, não acho que nenhum dos meus candidatos corresponda a essa
descrição – disse Mrs. Fisher após uma pausa para pensar.
– Nenhum? Você tem dois?
– Bem, talvez fosse mais correto dizer um e meio, por enquanto.
Miss Bart achou isso ainda mais engraçado.
– Do jeito que vão as coisas, acho que prefiro meio marido: quem é
ele?
– Não brigue comigo antes que eu possa explicar: George Dorset.
– Oh! – exclamou Lily num tom de reprovação; mas Mrs. Fisher não
se deu por vencida.
– Por que, não? Eles passaram algumas semanas em lua de mel depois
que voltaram da Europa, mas agora as coisas estão ficando ruim outra vez.
Bertha tem se comportado como uma maluca, e a capacidade de George de
aguentar as crueldades estão se esgotando. Eles estão na casa daqui, e
passei a última semana com eles. Foi um encontro horrível, não foi
ninguém, além do pobre Neddy Silverton, que parecia um servo (eles
costumavam dizer que eu deixava o pobre garoto infeliz!)… e depois do
almoço George me convidou para uma longa caminhada, e me contou que o
final estava próximo.
Miss Bart fez um gesto incrédulo.
– Do jeito que as coisas são, o fim nunca chegará. Bertha sempre
saberá como trazê-lo de volta quando quiser.
Mrs. Fisher prosseguiu com seu discurso tentador.
– Não se ele tiver outra pessoa a quem recorrer! Sim, esta é a verdade:
a pobre criatura não consegue se sustentar sozinha. E lembro que ele era um
sujeito muito bom, cheio de vida e entusiasmo – ela fez uma pausa e
continuou desviando o olhar de Lily: – Ele não teria ficado dez minutos
com ela se soubesse…
– Soubesse…? – repetiu Miss Bart.
– Você sabe, por exemplo, com as oportunidades que você teve! Se
ele tivesse uma demonstração positiva, quer dizer…
Lily a interrompeu com um rubor de contrariedade.
– Por favor, vamos mudar de assunto, Carry: é muito repulsivo para
mim.
E para desviar a atenção da amiga ela adicionou, numa tentativa de
atenuar o clima: – E o seu segundo candidato? Não podemos nos esquecer
dele.
Mrs. Fisher ecoou a risada dela.
– Não sei se você vai esbravejar tanto quanto antes quando eu disser:
Rosedale?
Miss Bart não esbravejou: ela ficou calada, olhando pensativa para a
amiga. A sugestão, na verdade, deu voz a uma possibilidade que nas últimas
semanas, mais de uma vez tinha lhe ocorrido; mas após um momento ela
disse com desdém:
– Mr. Rosedale quer uma esposa que possa colocá-lo no convívio
íntimo com os Van Osburgh e os Trenor.
Mrs. Fisher emendou ansiosa.
– E isso que você poderia fazer, com o dinheiro dele! Não vê como
funcionaria para os dois?
– Não vejo nenhum modo de fazê-lo enxergar isso – retomou Lily,
com uma risada insinuando que estava na hora de mudar de assunto.
Mas na verdade o tema persistiu em seus pensamentos após a partida
de Mrs. Fisher. Desde que se aliara aos Gormer ela o tinha visto em poucas
ocasiões, pois ele ainda tinha fortes esperanças de entrar no paraíso do qual
ela tinha sido expulsa; mas uma ou duas vezes, na ausência de um convite
melhor, ele apareceu num domingo, e nestas ocasiões não deixou nenhuma
dúvida quanto à visão que tinha da situação dela. Que ainda a admirava,
mais do que nunca, ainda era ofensivamente evidente; pois no círculo dos
Gormer, onde ele circulava como se estivesse em casa, não restava
nenhuma dúvida quanto à plena expressão da sua aprovação. Mas foi na
expressão da sua admiração que ela leu o modo como ele qualificava
astutamente a sua situação. Ele adorou mostrar para os Gormer que já
conhecia “Miss Lily” – pois ela era “Miss Lily” para ele agora – antes
mesmo de eles existirem socialmente. Adorou mais ainda impressionar Paul
Morpeth ao dizer que a intimidade vinha de longa data. Mas deu a entender
que tal intimidade tratava-se de uma mera ondulação na superfície da
correnteza social, o tipo de relaxamento que um homem, de grandes
interesses e preocupações, se dá ao luxo nas horas vagas.
A necessidade de aceitar esta versão da relação passada deles, e de ver
isso como motivo de chacota entre seus novos amigos, foi profundamente
humilhante para Lily. Mas agora, mais do que nunca, ela não ousaria brigar
com Rosedale. Ela desconfiava que sua rejeição figurava entre as mais
inesquecíveis que ele já tinha sofrido, e o fato de que ele saber algo sobre o
seu triste desfecho com os Trenor, e a certeza de que jogaria a culpa nela,
parecia colocá-la de modo inevitável nas mãos deles. Por mais que não
gostasse de Rosedale, ela já não o desprezava mais terminantemente. Pois
aos poucos ele estava atingindo seu objetivo de vida, e isso, para Lily,
sempre foi menos desprezível do que perdê-lo. Com a persistência lenta e
inabalável que ela sempre reconhecera nele, ele estava conseguindo abrir
seu caminho em meio a massa densa dos antagonismos sociais. A sua
riqueza, e o uso magistral que fazia dela, já estavam lhe dando fama o
suficiente no mundo dos negócios, e sujeitando Wall Street a obrigações
que apenas a Quinta Avenida poderia pagar. Como resultado, seu nome
começou a figurar nos comitês municipais e comissões de beneficentes; ele
foi convidado para banquetes de desconhecidos e a sua candidatura para se
tornar membro de um dos clubes da moda foi discutida sem grandes
oposições. Foi convidado uma ou duas vezes para os jantares dos Trenor, e
aprendeu a falar com o tom exato de desdém dos casos dos Van Osburgh; e
agora só lhe faltava uma esposa cuja filiação pudesse encurtar os últimos
passos da sua cansativa escalada. Foi com este objetivo, que, um ano antes,
ele expôs seus afetos a Miss Bart; mas neste intervalo ele chegou bem perto
de atingir seu objetivo, enquanto ela perdeu o poder de abreviar os passos
que ainda faltavam. Tudo isso ela viu com a clareza de visão que a acometia
nos momentos de desânimo. Foi o sucesso que a cegou – mas agora, no
crepúsculo do fracasso, ela conseguia enxergar tudo com clareza. E este
crepúsculo, agora que procurava analisar profundamente, aos poucos se
iluminava com uma faísca de esperança. Camuflado nos motivos utilitários
da corte de Rosedale, ela viu, com toda clareza, o calor das inclinações
pessoais dele. Não o detestava tanto a ponto de negar que sabia que ele
ousara admirá-la. E se a paixão ainda persistisse, apesar de o outro motivo
ter deixado de existir? Ela nunca tentara agradá-lo – apesar do desdém ele
se sentiu atraído por ela. E se agora ela resolvesse exercer o poder que, até
mesmo em seu estado passivo, ele sentira tão fortemente? Se se ela o
fizesse se casar por amor, agora que ele não tinha outro motivo?
Capítulo 6
Como tinham se tornado pessoas importantes, os Gormer resolveram
construir uma casa de campo em Long Island; e parte das obrigações de
Miss Bart era acompanhar seus anfitriões nas frequentes visitas de inspeção
da obra. Lá, enquanto Mrs. Gormer se ocupava com problemas de
iluminação e saneamento, Lily tinha o prazer de passear, sob o sol intenso
de outono, ao longo da baía margeada de árvores. Apesar de não ser muita
adepta a solidão, aqueles momentos acabaram se tornando uma fuga bem-
vinda dos ruídos vazios da sua vida. Estava cansada de se deixar levar pelas
correntes do prazer e dos negócios dos quais não fazia parte; cansada de ver
outras pessoas correndo atrás de diversão e esbanjando dinheiro, enquanto
ela tinha a sensação de que não passava de um brinquedo caro nas mãos de
uma criança mimada.
Foi com este retrato em mente que, enquanto se afastada da costa
numa manhã, por uma trilha desconhecia, ela topou com a figura de George
Dorset. A casa de Dorset ficava ao lado do terreno recém-adquirido pelos
Gormer, e em uma das suas viagens de carro para lá com Mrs. Gormer, Lily
viu de longe uma ou duas vezes o casal; mas eles orbitavam numa esfera
tão diferente que ela não considerou a possibilidade de um encontro direto.
Dorset, caminhando distraído de cabeça baixa, só viu Miss Bart
quando chegou mais perto; mas a visão, em vez de fazê-lo parar, como ela
esperava, fez com ele se movesse ao encontro dela com uma ansiedade
expressa na maneira como a cumprimentou.
– Miss Bart! Ainda somos amigos, não somos? Eu esperava encontrá-
la, eu deveria ter escrito se tivesse tido coragem.
Sua fisionomia, com seus cabelos ruivos em desalinho e o bigode
penteado, tinha certa agitação, como se a vida tivesse se transformado em
uma corrida incessante entre ele mesmo e os pensamentos que o
perseguiam.
Isso fez com que Lily o cumprimentasse com compaixão, e ele se
adiantou, como se encorajado pelo tom dela:
– Eu queria pedir desculpa… pedir que me desculpasse pelo papel que
fiz…
Ela o desculpou com um gesto rápido.
– Não vamos falar disso, senti muito por você – disse ela, com uma
pontinha de desdém que, como ela percebeu, não passou despercebida por
ele.
Ele ficou com vergonha dos olhos abatidos, com tanta vergonha que
ela se arrependeu do impulso.
– Você tem toda razão, permita que eu me explique. Fui enganado:
terrivelmente enganado…
– Sinto mais ainda, então – ela interpôs, com ironia, – mas entenda
que não sou a melhor pessoa para falar sobre esse assunto.
Ele ouviu isso surpreso.
– Por que, não? Afinal, é para você que devo uma explicação…
– Não é preciso explicar nada: a situação ficou muito clara para mim.
– Ah… – ele murmurou, baixando cabeça novamente, e sua mão
indecisa tocou num arbusto. Mas quando Lily fez um movimento para
seguir em frente, ele rompeu com uma nova veemência: – Miss Bart, pelo
amor de Deus não dê as costas para mim! Nós éramos amigos, você sempre
foi gentil comigo… e não imagina o quanto estou precisando de um amigo
agora.
A fraqueza lamentável de suas palavras causou uma pontada de
piedade no peito de Lily. Ela também precisava de amigos, tinha
experimentado a dor da solidão; e o ressentimento pela crueldade de Bertha
Dorset amoleceu seu coração para o pobre coitado que era a maior vítima
de Bertha.
– Ainda quero ser gentil; não tenho nada contra você – disse ela. –
Mas depois do que aconteceu não podemos voltar a ser amigos, não
podemos nos encontrar.
– Ah, como você é boa, como é generosa… sempre foi! – ele a fitou
com seu olhar triste. – Mas por que não podemos ser amigos… por que não,
se estou tão arrependido? É justo me condenar pela falsidade e traição dos
outros? Já fui punido o bastante, não há trégua para mim?
– Achei que tivesse encontrado toda a trégua na reconciliação que se
deu às minhas custas – iniciou Lily, impaciente; mas ele a interrompeu,
implorando:
– Não fale assim, desse que foi o pior castigo para mim. Meu Deus! O
que eu poderia ter feito, que poder eu tinha? Você foi escolhida como bode
expiatório. Qualquer coisa que eu dissesse teria sido usada contra você…
– Já disse que não o culpo; só peço que entenda que, depois do modo
como Bertha me usou, depois das consequências acarretadas pelo
comportamento dela, é impossível que nós nos encontremos.
Em sua fraqueza, ele continuou parado diante dela.
– Precisa ser assim? Nestas circunstâncias…? – ele parou para pensar
novamente, arrancando as ervas daninhas ao redor. Então retomou: – Miss
Bart, escute, só peço um minuto. Se não pudermos nos encontrar
novamente, então ao menos me escute agora. Você diz que não podemos ser
amigos depois… depois do que aconteceu. Mas posso ao menos apelar pela
sua piedade? Não irá se comover se eu pedir que me veja como um
prisioneiro… um prisioneiro que só você pode libertar?
A surpresa de Lily transpareceu um ligeiro rubor: seria mesmo
possível que esse fosse o sentido dos comentários de Carry Fisher?
– Não vejo como posso ajudá-lo – ela murmurou, recuando por conta
do olhar cada vez mais agitado dele.
Seu tom pareceu acalmá-lo, como tinha feito tantas vezes nos
momentos de nervosismo dele. As linhas de seu rosto relaxaram, e ele disse,
com certa docilidade: – Você veria, se fosse tão boa como costumava ser: e
Deus sabe o quanto estou precisando de ajuda!
Ela parou por um momento, comovida, contra vontade, pela
lembrança da influência que exercia sobre ele. Suas fibras tinham sido
amaciadas pelo sofrimento, e o rápido vislumbre da vida triste e desgraçada
que ele estava levando desarmou o desprezo que sentia por sua fraqueza.
– Sinto muito, eu o ajudaria de bom grado, mas você deve ter outros
amigos, outros conselheiros.
– Nunca tive uma amiga como você – ele respondeu simplesmente. –
Além do mais, não percebe? Você é a única – sua voz se transformou num
sussurro – a única que sabe de tudo.
Mais uma vez ela sentiu a cor mudando; mais uma vez seus
batimentos cardíacos aceleraram para esperar o que ela sentia que estava
por vir. Ele ergueu os olhos, implorando.
– Você percebe, não? Entende? Estou desesperado… estou ficando
sem forças. Quero ficar livre, e você pode me libertar. Você sabe que pode.
Você não quer que eu continue preso neste inferno, quer? Não é possível
que queira se vingar desta maneira. Você sempre foi boa, seus olhos exalam
bondade neste momento. Você diz que sente muito por mim. Bem, cabe a
você mostrar isso; e Deus sabe que nada a impede. Claro que você sabe de
tudo, ninguém iria ficar sabendo, nada seria dito que pudesse ligá-la a isso.
Nunca chegaria a esse ponto, você sabe: tudo que preciso é poder falar com
certeza: ‘Sei disso… e daquilo… e daquilo’… e a briga chegaria ao fim, a
caminho estaria limpo, e todo esse negócio nojento esquecido num piscar
de olhos.
Ele falava de modo ofegante, como se fosse um corredor cansado,
com pausas entre uma palavra e outra; e entre as pausas ela percebeu, como
se fossem raios dourados penetrando através da neblina, chances de paz e
segurança. Pois não restavam dúvidas quanto à intenção por trás do vago
apelo; ela teria sido capaz de preencher as lacunas até mesmo sem as
insinuações anteriores de Mrs. Fisher. Ali estava um homem que tinha se
voltado para ela no momento extremo de humilhação e solidão: se ela o
socorresse em um momento como aquele ele seria seu com todas as forças
da sua fé desiludida. E o poder de colocá-lo na palma da sua mão – estava
lá de um modo tal que ele nem podia imaginar. Ela poderia se vingar e se
reabilitar num piscar de olhos – havia algo de fascinante na plenitude da
oportunidade.
Ela permaneceu calada, olhando além dele para a paisagem de outono
que se entendia pela trilha deserta. E de repente, foi tomada pelo medo –
medo por ela mesma, e pela força terrível da tentação. Todas as suas
fraquezas passadas pareciam empurrá-la na direção do caminho aos seus
pés, que parecia tão suave. Ela virou rapidamente, e estendeu a mão para
Dorset.
– Adeus… sinto muito, mas não tem nada que eu possa fazer.
– Nada? Ah, não diga isso! – ele gritou. – Diga a verdade: que você
me abandonou assim como os outros. Você, a única que poderia me salvar!
– Adeus… adeus – ela repetiu apressada; e enquanto se afastava ainda
uma última súplica:
– Pelo menos permita que eu a veja uma vez mais?

***

Lily, assim que pisou no terreno dos Gormer, cruzou disparada o


gramado, imaginando que sua anfitriã pudesse especular, inconformada,
sobre o motivo do seu atraso; pois, assim como várias pessoas que não são
pontuais, Mrs. Gormer não gostava de esperar.
Mas assim que Miss Bart alcançou a alameda, ela viu um cabriolé,
ocupado por um casal, desparecendo atrás dos arbustos na direção do
portão; e parada a porta estava Mrs. Gormer, com um brilho satisfeito no
rosto. Ao ver Lilly o brilho se transformou em rubor, e ela falou com uma
risadinha:
– Você viu a minha visita? Oh, achei que tivesse voltado pela
alameda. Era Mrs. George Dorset, ela disse que veio fazer uma visitinha de
vizinha.
Lily recebeu a notícia com sua pose de sempre, apesar de saber muito
bem que Bertha não compartilhava do espírito da boa vizinhança; e Mrs.
Gormer, aliviada por ver que ela não tinha mostrado nenhum sinal de
surpresa, continuou com uma risada de desdém:
– Obviamente o que a trouxe aqui foi a curiosidade, ela me fez
mostrar a casa inteira. Mas ela foi muito simpática, nada de afetação, sabe,
e estava de muito bom humor. Acho que entendo por que as pessoas são tão
fascinadas por ela.
Esse surpreendente acontecimento coincidiu muito com o seu
encontro com Dorset para ser considerado como uma obra do acaso, causou
uma vaga sensação de presságio em Lily. A política da boa vizinhança não
fazia o estilo de Bertha, muito menos se aproximar de alguém que não
fizesse parte do seu meio social. Ela sempre ignorou o mundo dos novos
ricos, e só reconhecia algum deles quando lhe interessava; e o capricho da
sua condescendência tinha, como Lily sabia muito bem, um valor especial
aos olhos dos escolhidos. Foi exatamente isso que Lily percebeu na
satisfação indisfarçável de Mrs. Gormer, e no modo displicente com que,
um ou dois dias depois, ela citou as opiniões que Bertha tinha dado e
especulou sobre a origem do vestido dela. Todas as ambições secretas que a
preguiça nata de Mrs. Gormer, e a postura de suas amigas, mantiverem em
suspense, estavam agora germinando sob o brilho da aproximação de
Bertha; e seja qual fosse o motivo disso, Lily percebeu que se fossem
seguidas, elas muito provavelmente poderiam causar um efeito desastroso
em seu futuro.
Ela conseguiu dar um jeito de encurtar a duração da sua estadia com
os novos amigos com uma ou duas visitas a outras pessoas que tinha
conhecido recentemente; mas assim que retornou do passeio, um tanto
deprimente, ela percebeu que a influência de Mrs. Dorset ainda estava no ar.
Havia ocorrido outra troca de visita, um chá em um clube de campo, um
encontro em um baile; havia rumores até de um jantar de aproximação, que
Mattie Gormer, com um esforço artificial, sempre tentava desconversar
quando Miss Bart se aproximava.
Miss Bart já planejava voltar para a cidade após um domingo de
despedida com os amigos; e, com a ajuda de Gerty Farish, tinha descoberto
um hotelzinho discreto onde ela poderia passar o inverno. Como o hotel
ficava próximo a um bairro elegante, a diária estava bem acima do seu
poder aquisitivo; mas ela justificou o repudio aos bairros mais pobres com a
desculpa de que na atual conjuntura, era de suma importância manter as
aparências. Na verdade, era impossível para ela, enquanto pudesse pagar
adiantado por uma semana, se entregar a uma existência igual à de Gerty
Farish. Ela nunca estivera tão perto da falência; mas pelo menos conseguia
pagar a conta semanal do hotel, e depois de ter quitado a maior parte das
suas dívidas com o dinheiro que tinha recebido de Trenor, ela ainda tinha
uma margem justa de crédito para seguir em frente. A situação, no entanto,
não era agradável o suficiente a ponta de fazê-la se esquecer de toda a
insegurança. Seu quarto, com vista para uma parede de tijolos e escadas de
incêndio, as refeições solitárias no restaurante escuro com seu teto
enfumaçado e o cheiro assustado de café – todos estes desconfortos
materiais, que ainda não tinham se juntado a tantos outros privilégios que
em breve seriam cortados, denunciavam constantemente as desvantagens da
sua situação; e os conselhos de Mrs. Fisher fervilhavam cada vez mais na
sua cabeça. Cansada de se perguntar o que iria fazer, ela acabou chegando à
conclusão de que deveria tentar se casar com Rosedale; e a ideia foi
reforçada com uma visita inesperada de George Dorset.
Ela o encontrou, no primeiro domingo após seu retorno, andando de
um lado para o outro pela antessala apertadinha do seu quarto prestes a
derrubar uns dos poucos bibelôs que ela tinha comprado para tentar
disfarçar a decoração duvidosa; mas a visão dela pareceu acalmá-lo, e ele
disse humildemente que não pretendia incomodá-la – que só pedia
permissão para ficar por meia hora e conversar sobre o que ela desejasse.
Na verdade, como já sabia, ele só tinha um assunto: ele mesmo e a sua
tristeza; e foi a necessidade da sua compaixão que o atraiu de volta. Mas ele
começou com uma desculpa de querer saber como ela estava, e ao
responder, ela percebeu que, pela primeira vez, uma vaga noção da sua
situação tinha conseguido penetrar na densa camada do egocentrismo dele.
Seria mesmo possível que sua tia velha realmente a deserdara? Que ela
estava vivendo sozinha daquele jeito porque não havia ninguém mais a
quem pudesse recorrer, e que mal tinha com que sobreviver até que aquela
miséria de herança que tinha a receber fosse paga? As fibras da sua
compaixão estavam praticamente atrofiadas, e ele estava sofrendo tanto que
só conseguia ver por alto que existiam outros sofrimentos –, e, nisso, ela
notou, quase que ao mesmo tempo, como sua desgraça poderia ser útil a ele.
Quando finalmente conseguiu se livrar dele, com a desculpa de que
precisava se arrumar para o jantar, ele ainda insistiu junto à porta:
– Seria reconfortante… saber que vai permitir que eu volte… – mas
foi impossível concordar com este apelo direito; e ela disse com uma
determinação amistosa:
– Sinto muito, mas você sabe que não posso.
Ele ficou com os olhos vermelhos, fechou a porta com força, e ficou
diante dela envergonhado, mas insistente:
– Sei que faria, se pudesse… se as coisas fossem diferentes, mas só
depende de você mudar isso. Basta dizer uma palavra para me tirar desta
agonia!
Seus olhos se encontraram, e por um segundo ela quase não resistiu à
tentação.
– Você está enganado; eu não sei de nada; não vi nada – disse,
buscando através da repetição construir uma barreira entre ela mesma e a
ameaça; e enquanto lhe dava as costas, ele saiu murmurando:
– Você está sacrificando a nós dois.
Mas ela continuou repetindo, como se fosse um feitiço:
– Eu não sei de nada, absolutamente nada.

***

Foram poucas as vezes que Lily viu Rosedale desde a sua conversa
humilhante com Mrs. Fisher, mas nas duas ou três ocasiões quando eles se
encontraram, ela notou que estava caindo cada vez mais nas graças dele.
Não havia dúvida de que ele a admirava tanto quanto antes, e ela achou que
cabia a ela mesma alimentar tal admiração ao ponto se tornar impossível
evitar a convivência. Não era um desafio fácil; mas também não era fácil,
durante as longas noites sem dormir, encarar a ideia do que George Dorset
estava prestes a pedir a sua mão. Baixeza por baixeza, ela odiava menos a
primeira opção: havia momentos em que o casamento com Rosedale
parecia ser a única saída honrada para seus problemas. Mas ela não permitia
que sua imaginação voasse além do dia do pedido. Depois que aquela tarde
caiu em uma névoa de bem-estar material, onde a imagem do seu benfeitor
pairava vagamente distante. Ela tinha aprendido, durante as longas vigílias,
que havia certas coisas que era melhor nem pensar, certas imagens que
surgiam à meia-noite que deveriam ser exorcizadas a qualquer custo – e
uma destas imagens era a dela mesma como esposa de Rosedale.
Carry Fisher, como prêmio pelo sucesso dos Brys em Newport, tirou
um descanso merecido de alguns meses, no outono, em uma casinha em
Tuxedo; e foi para lá que Lily foi no domingo após a visita de Dorset.
Apesar de já estar quase na hora do jantar quando ela chegou, sua anfitriã
ainda não tinha chegado, e a casa silenciosa, iluminada pelo fogo da lareira
tocou seu espírito com uma sensação de paz e intimidade. Era de se duvidar
que tais sentimentos pudessem ter sido despertados na casa de Carry Fisher;
mas, comparado ao mundo que Lily estava vivendo, havia um clima de
repouso e estabilidade na disposição dos móveis e até mesmo no modo
calmo como a criada a conduziu até o seu quarto. A informalidade de Mrs.
Fisher, na verdade, não passava de uma mera divergência com as crenças
sociais herdadas, enquanto as atitudes do círculo social dos Gormer
representavam o primeiro passo para o estabelecimento de uma crença para
eles mesmos.
Era a primeira vez, desde que voltara da Europa, que Lily se
encontrava em uma atmosfera agradável, e a emoção despertada pelas
sensações conhecidas quase a fez pensar, enquanto descia a escada antes do
jantar, que iria encontrar um grupo de velhos amigos. Mas a expectativa
logo foi substituída pela noção de que os amigos que ainda eram leais eram
justamente aqueles os que menos queriam expô-la a tal encontro; e foi uma
surpresa quando ela encontrou, em vez desses amigos, Mr. Rosedale
ajoelhado no centro da sala de estar, numa cena doméstica, diante de uma
menininha que o recebia.
Nem no papel paternal a figura de Rosedale conseguiu amolecer o
coração de Lily; apesar de não ter deixado de notar uma bondade no modo
como se ele se dirigia a criança. O gesto, de qualquer maneira, não era um
carinho premeditado e superficial de um visitante sob o olhar da sua
anfitriã, pois ele e a menininha estavam sozinhos na sala; e algo na sua
atitude fez com que ele parecesse um ser simples e gentil comparado à
criaturinha que recebia a sua homenagem. Sim, ele podia ser gentil – Lily,
na entrada da sala, teve tempo de perceber isso – gentil no seu modo
grosseiro, inescrupuloso e explorador, do mesmo modo que o predador é
gentil com seu companheiro. Ela teve um momento apenas para decidir se a
visão do homem perto da lareira atenuava a sua repugnância ou, em vez
disso, dava a ela uma forma mais concreta e íntima, pois assim que a viu ele
se levantou, e era o mesmo Rosedale sanguíneo e dominador da sala de
estar de Mattie Gormer.
Não foi surpresa para Lily descobrir que ele tinha sido selecionado
como seu único companheiro de visita. Apesar de ela e sua anfitriã ainda
não terem se encontrado desde a tentativa da última de discutir seu futuro,
Lily sabia que a astúcia que garantia a Mrs. Fisher circular em segurança
num mundo de forças antagônicas era frequentemente usada a favor de seus
amigos. Esta era, na verdade, a característica de Carry que, enquanto
juntava ativamente seu próprio estoque no campo de influências, suas
simpatias verdadeiras estavam do outro lado – com as azaradas, as
excluídas, as fracassadas, com todas suas companheiras de labuta famintas
tentando agarrar as migalhas do sucesso.
A experiência de Mrs. Fisher a impediu de cometer o erro de expor
Lily, na primeira noite, única e exclusivamente a Rosedale. Kate Corby e
mais dois ou três homens apareceram para jantar, e Lily, atenta a todos os
detalhes da metodologia da amiga, percebeu que as oportunidades para ela
planejadas deveriam ser postergadas, por assim dizer, até que ela criasse
coragem para usá-las efetivamente. Ela concordou com o plano com a
mesma passividade que um paciente resignado se submete ao exame de um
médico; e esta sensação de desamparo quase letárgico persistiu quando,
após a partida dos convidados, Mrs. Fisher a seguiu para até o andar de
cima.
– Posso fumar um cigarro com você no seu quarto? Se ficarmos
conversando no meu vamos acordar a criança – Mrs. Fisher fitou-a com um
olhar solene de anfitriã. – Espero que esteja bem acomodada, querida? A
casinha não é muito simpática? É uma benção poder ter algumas semanas
de sossego com a minha filha.
Carry, em seus raros momentos de prosperidade, se tornava tão
maternal que Miss Bart as vezes conjecturava se, caso ela tivesse tempo e
dinheiro suficientes, não os usaria apenas com a filha.
– É um descanso merecido, posso dizer – ela continuou, sentando com
um suspiro satisfeito na poltrona próxima à lareira. – Louisa Bry é uma
controladora exigente, sinto saudades dos Gormer. Por falar em amor que
desperta inveja e desconfiança… isto não tem nada a ver com ambição
social! Louisa costumava passar a noite em claro pensando se as mulheres
que nos visitaram tinham vindo me visitar porque eu estava com ela, ou se
tinham vindo visitá-la porque ela estava comigo; e ela sempre tentava armar
armadilhas para tentar descobrir o que eu achava. Claro que tive de fingir
que não conhecia minhas velhas amigas para que ela não desconfiasse que
só estava fazendo novas amizades por causa de mim… quando, na verdade,
foi exatamente por isso que ela me manteve ao seu lado, e por isso que
assinou um belo cheque no final da temporada!
Mrs. Fisher não era uma mulher que costumava falar sobre si mesma
sem motivo, e a praticidade do discurso direto, longe de impedi-la de
recorrer ocasionalmente a métodos mais indiretos, funcionava, em
momentos cruciais, como a conversinha do trapaceiro enquanto ele puxa
sorrateiramente algo de dentro da manga. Através da fumacinha do cigarro
ela olhava pensativa para Miss Bart, que, tendo dispensado sua criada,
estava sentada diante da penteadeira escovando os cabelos que desciam
ondulados sobre os ombros.
– Seu cabelo é lindo, Lily. É mais fino…? Mas que diferença faz se
tem tanto brilho e vida? As preocupações de muitas mulheres parecem
refletir diretamente em seus cabelos, mas os seus parecem nunca ter
passado por nenhuma ansiedade. Nunca a vi tão linda quanto nesta noite.
Mattie Gormer me contou que Morpeth queria pintar um retrato seu… por
que você não deixou?
A resposta de Miss Bart foi endereçada com um olhar crítico a
imagem do rosto em discussão. Então ela disse, com um leve tom de
irritação:
– Não quis um retrato de Paul Morpeth.
Mrs. Fisher refletiu.
– Não. Especialmente agora… que ele pode pintar um seu depois de
casada – ela esperou um momento. Então, continuou: – Por falar nisso,
Mattie veio me visitar outro dia. Ela apareceu aqui sábado passado, e estava
com Bertha Dorset, imagine só!
Parou novamente para analisar o efeito do anúncio na sua ouvinte,
mas a escova na mão de Miss Bart desceu inabalada da testa até a nuca.
– Foi uma grande surpresa – prosseguiu Mrs. Fisher. – Nunca vi duas
mulheres menos predestinadas a intimidade, isto é, do ponto de vista de
Bertha; pois é claro que a pobre Mattie acha que é natural que ela seja
escolhia; não há dúvida de que o coelho sempre fica fascinado pela
anaconda. Bem, você sabe que sempre falei que Mattie sempre sonhou em
segredo circular na alta sociedade; e agora que a oportunidade surgiu, vejo
que ela é capaz de sacrificar todas as velhas amigas por isso.
Lily pousou a escova e virou um olhar penetrante na direção da
amiga.
– Inclusive eu? – ela sugeriu.
– Ah, minha querida – murmurou Mrs. Fisher, levantando para ajeitar
uma tora dentro da lareira.
– Esta é a intenção de Bertha, não é? – Miss Bart continuou
calmamente. – Pois ela sempre está tramando alguma coisa; e antes de
partir de Long Island vi que ela estava começando a armar algo para cima
de Mattie.
Mrs. Fisher soltou um suspiro evasivo.
– De qualquer maneira, ela está saboreando seu banquete agora. Em
pensar que toda aquela independência espalhafatosa de Mattie não passava
de uma forma de esnobismos oculta! Bertha já consegue fazê-la acreditar no
que ela quiser, e temo que ela tenha começado, minha querida, insinuando
coisas horríveis a seu respeito.
Lily ruborizou sob a sombra dos seus cabelos caídos.
– O mundo é muito ruim – murmurou, evitando o olhar ansioso de
Mrs. Fisher.
– Não é um lugar bom; e o único modo de manter os pés firmes é
lutando nos termos dele, e acima de tudo, minha querida, nunca sozinho! –
Mrs. Fisher resumiu suas insinuações de modo resoluto. – Você me contou
tão pouco que só pude supor o que aconteceu; mas na correria que vivemos
não dá tempo de odiar os outros sem motivo, e se Bertha ainda está
perdendo tempo em inventar coisas a seu respeito, só pode ser por que
ainda está com medo de você. Do ponto de vista dela só existe um motivo
para ter medo de você; e penso que, se quisesse se vingar dela, você
poderia. Acho que você pode se casar com George Dorset amanhã; mas se
não quiser recorrer a essa pequena vingança, a única coisa que pode salvá-la
de Bertha é se você se casar com outra pessoa.
Capítulo 7
A luz projetada sobre a situação por Mrs. Fisher tinha o mesmo tom
triste de um amanhecer de inverno. Ela realçava os fatos com uma precisão
fria e precisamente inalterada pelo sombreado ou pela cor; e refratava,
assim, das paredes brancas das limitações circundantes: ela tinha aberto as
janelas para onde não era possível ver o céu. Mas o idealista subjugado às
necessidades vulgares precisa recorrer a mentes vulgares para delinear as
interferências aos quais ele não é capaz de ceder; e foi mais fácil para Lily
permitir que Mrs. Fisher formulasse seu caso do que fazer ela mesma. Uma
vez confrontada, no entanto, ela abraçou o caso até as últimas
consequências; e estas nunca estiveram mais claras do que quando, na tarde
seguinte, ela saiu para passear com Rosedale.
Era um daqueles dias parados de novembro quando o ar ainda é
assombrado com a luz do verão, e algo nas linhas da paisagem, e no brilho
dourado que as banham, fez Miss Bart se lembrar da tarde de setembro
quando ela subiu as colinas de Bellomont com Selden. A lembrança
inoportuna se apresentou como um contraste irônico da sua situação atual,
uma vez que seu passeio com Selden representava um voou irresistível de
um clímax ao passo que o passeio atual tinha sido planejado para dar
resultados. Mas outras lembranças a importunaram também; a lembrança de
situações parecidas, tão habilidosamente arquitetas quanto, mas que por um
azar do destino, ou por sua falta de determinação, acabaram não atingindo o
resultado desejado. Bem, sua determinação era firme agora. Ela sabia que
teria de reiniciar o cansativo trabalho de reabilitação novamente, e contra
adversidades ainda maiores, caso Bertha Dorset conseguisse estragar a sua
amizade com os Gormer; e a sua necessidade de um abrigo e segurança se
tornou ainda mais importante por conta do desejo de Bertha de vencer a
qualquer custo, uma vez que somente a riqueza e a supremacia poderiam
vencê-la. Como esposa de Rosedale – o Rosedale que ela sentia que tinha
poder de criar – ela poderia ao menos apresentar uma fachada de
invulnerabilidade à sua inimiga.
Ela teve de se agarrar a esse pensamento, como se fosse um
estimulante potente, para conseguir desempenhar seu papel na cena para a
qual Rosedale mostrava sinais claros de que queria participar. Enquanto
caminhava ao lado dele, repudiando cada olhar e tom que ele tomava a
liberdade de dirigir a ela, e enquanto dizia a si mesma que suportar a
investidas era o preço que teria de pagar para dominá-lo definitivamente,
ela calculava o momento certo em que a concessão deveria se transformar
em resistência, e o preço que ele teria de pagar ficaria igualmente claro para
ele. Mas a sua autoconfiança atenta parecia impenetrável para tais sinais, e
ela sentiu que havia um autocontrole firme por trás de seus modos
superficialmente calorosos.
Eles estavam sentados há algum tempo em um vale rochoso isolado,
acima do lago, quando subitamente ela interrompeu o auge do momento
romântico, voltando-se para ele, com seu encantador olhar grave.
– Acredito quando diz, Mr. Rosedale – disse calmamente –, e estou
pronta para me casar com você quando desejar.
Rosedale, vermelho até as raízes do seu cabelo emplastrado, recebeu o
anúncio com um recuo que o levou a ficar de pé com um impulso, onde
ficou parado diante dela numa pose quase cômica de desconforto.
– Pois suponho que é isto que deseja – prosseguiu ela, no mesmo tom
calmo. – E, embora eu estivesse impossibilitada de aceitar quando falou
sobre isso comigo, agora, que o conheço bem melhor, estou pronta para
confiar a minha felicidade em suas mãos.
Ela falou do modo mais direito que conseguia em tais ocasiões, e que
foi como uma luz intensa lançada na escuridão tortuosa da situação. Sob o
foco inconveniente, Rosedale pareceu hesitar por um momento, como se
soubesse que cada rota de fuga estava iluminada, de modo desagradável.
Então ele soltou uma risadinha, e sacou uma cigarreira dourada, onde,
com seus dedos cheios de anéis, buscou um cigarro com a ponta dourada.
Escolheu um e parou para contemplá-lo por um momento antes de dizer:
– Minha querida, Miss Lily, sinto se houve algum mal-entendido entre
nós, mas você me fez acreditar que meu pedido era tão inútil que eu não
tinha intenção de renová-lo.
Lily ruborizou com a grosseria da rejeição; mas conteve o primeiro
ímpeto de raiva, e disse num tom de dignidade:
– Só posso culpar a mim mesma se lhe dei a impressão de que a
minha decisão era definitiva.
O jogo de palavras dela sempre foi muito rápido para ele, e essa
reposta o deixou emudecido enquanto ela estendeu a mão e adicionou, com
um leve tom de tristeza na voz:
– Antes de nos despedirmos, eu gostaria ao menos de agradecê-lo por
um dia ter pensado em mim.
O toque da mão dela, a delicadeza comovente de seu olhar, abalou
Rosedale. Foi a sua inacessibilidade requintada, a noção de distanciamento
que ela foi capaz de impor sem nenhuma sombra de desprezo, que tornou
difícil para ele desistir dela.
– Por que está falando em dizer adeus? Não podemos continuar sendo
bons amigos mesmo assim? – ele incitou, sem soltar a mão dela.
Ela retirou a mão calada.
– Qual é a sua ideia de ser bons amigos? – ela devolveu a pergunta
com um sorrisinho. – Fazer amor comigo sem me pedir em casamento? –
Rosedale riu, recuperando o bom humor.
– Bem, suponho que seja mais ou menos isso. Claro que eu gostaria
de fazer amor com você… que homem não gostaria; mas não pretendo
pedi-la em casamento enquanto puder evitar isso.
Ela continuou sorrindo.
– Aprecio a sua franqueza; mas não creio que nossa amizade possa
continuar em outros termos – ela virou, como se para mostrar que era o fim,
e ele a seguiu por alguns passos com uma sensação desconcertante de que o
jogo estava nas mãos dela novamente.
– Miss Lily… – ele iniciou, num impulso; mas ela seguiu, fingindo
que não tinha escutado.
Ele a alcançou com alguns passos largos, e a segurou pelo braço.
– Miss Lily… não corra assim. Esta sendo muito crítica; mas se não
se importa em falar a verdade, não entendo por que não tenho permissão
para fazer o mesmo.
Ela parou um momento com as sobrancelhas erguidas, esquivando-se
instintivamente da mão dele, apesar de não ter se esforçado para fugir das
palavras ditas.
– Tive a impressão – ela retomou –, de que fez isso sem esperar pela
minha permissão.
– Bem… por que não escuta meus motivos para isso, então? Não
somos mais tão jovens a ponto de nos ofendermos com uma conversa
franca. Gosto de você: isso não é nenhuma novidade. Estou mais
apaixonado por você do que estava nesta mesma época, no ano passado:
mas preciso encarar o fato de que a situação mudou.
Ela continuou confrontando-o com o mesmo tom de ironia.
– Você quer dizer que não sou mais uma candidata tão desejável
quanto antes?
– Sim; é exatamente isso que quero dizer – ele respondeu de modo
resoluto. – Não vou entrar em detalhes. Não acredito nos boatos que correm
sobre você, não quero acreditar. Mas eles existem e o fato de eu não
acreditar não vai mudar a situação.
Ela enfureceu, mas a necessidade extrema conteve sua resposta e ela
continuou encarando-o de modo composto.
– Se eles não são verdadeiros – disse apenas – isto não altera a
situação?
Ele a fitou com seus olhos de especulador da bolsa, o que a fez se
sentir como uma mercadoria humana de luxo.
– Acredito que mude nos romances, mas estou certo de que na vida
real não. Você sabe disso tão bem quanto eu. Se vamos falar a verdade,
vamos falar por inteiro, então. No ano passado eu estava louco para me
casar com você, e você nem olhava para mim. Já neste ano… bem, você
parece disposta. O que mudou neste intervalo? A sua situação. Então você
achou que poderia se sair bem; agora…
– E você não acha que pode? – ela o interrompeu ironicamente.
– Sim, eu acho: de certo modo, sim – ele ficou diante dela, com as
mãos nos bolsos, o peito estufado sobre o colete vistoso. – Tenho me saído
muito bem nestes últimos anos, na conquista da minha posição social. Não
acha engraçado eu dizer isso? Por que eu iria me importar em dizer que
quero entrar para a sociedade? Um homem não se envergonha de dizer que
gostaria de ter um haras ou uma galeria de arte. Bem, o desejo de fazer
parte da sociedade é apenas outro tipo de hobby. Talvez eu queira me vingar
de algumas pessoas que me ignoraram, no ano passado… vamos colocar
assim se soar melhor. De qualquer maneira, quero frequentar as melhores
casas; e estou conseguindo, aos poucos. Mas sei que o modo mais rápido de
ser malvisto pelas pessoas certas é ser visto com as pessoas erradas; e é por
isso que quero evitar erros.
Miss Bart continuou parada diante dele num silêncio que poderia ter
sido interpretado tanto como desdém como por um respeito meio relutante
diante da sinceridade dele, e após uma breve pausa, ele continuou:
– É isso. Estou mais apaixonado por você do que nunca, mas se me
casasse com você agora eu seria malvisto, e tudo aquilo pelo qual trabalhei
durante todos esses anos seria jogado fora.
Ela escutou isso de um modo tal que parecia que todo ressentimento
tinha desaparecido. Após anos circulando em meio a uma sociedade falsa,
foi um refresco se deparar com tanta franqueza.
– Eu o entendo – disse ela. – Um ano atrás eu teria sido útil para você,
e agora eu seria um estorvo; e aprecio por ter sido tão sincero comigo – ela
estendeu a mão com um sorriso.
Mais uma vez o gesto teve um efeito perturbador no autocontrole de
Rosedale.
– Por causa de George, você é carta fora do baralho! – ele exclamou, e
enquanto ela retomava o caminho, ele a irrompeu abruptamente: – Miss
Lily, espere. Você sabe que não acredito nos boatos, acho que tudo não
passa de invenção de uma mulher que não hesitou em sacrificá-la em nome
dela mesma…
Lily se afastou com um gesto de desdém: era mais fácil aguentar a
insolência dele do que sua piedade.
– É muita gentileza sua, mas não creio que devemos discutir mais este
assunto.
Mas a impermeabilidade natural de Rosedale o fez ignorar a
demonstração de resistência.
– Não quero discutir nada; só quero falar claramente sobre o caso.
Ela parou contrariada, detida pelo tom de um novo propósito no olhar
e na voz dele; e ele prosseguiu, encarando-a com firmeza:
– Estou admirado que tenha esperado tanto para enquadrar aquela
mulher, quando tem o poder em suas mãos.
Ela continuou calada, apesar da surpresa que as palavras causaram, e
ele avançou um passo para perguntar mais diretamente: – Por que não usa
aquelas cartas que comprou no ano passado?
Lily ficou emudecida por conta do choque causado pela pergunta. Em
tudo que dissera anteriormente ela tinha, quando muito, insinuado uma
suposta influência sobre George Dorset; mas nada que pudesse justificar o
modo espantosamente indelicado com o qual Rosedale se referiu a isso.
Agora ela percebia o quão perto sua máscara tinha caído; e a surpresa de
saber que ele tinha descoberto o segredo das cartas fez com que, por um
momento, ela não fizesse a menor ideia de como ele pretendia fazer uso
deste conhecimento.
A perda temporária de controle deu a ele tempo de insistir no seu
ponto, e ele agarrou a oportunidade mais que depressa, como se para
garantir o total controle da situação:
– Percebe agora onde quero chegar, sei que ela está em suas mãos.
Isso soa uma fala teatral, não é mesmo? Mas sempre há um fundo de
verdade nas farsas antigas; e não suponho que tenha comprado essas cartas
simplesmente por que gosta de colecionar assinaturas.
Ela continuou olhando para ele ainda mais assombrada: a única coisa
do qual tinha certeza era a sensação de medo do poder dele.
– Você deve estar se perguntando como fiquei sabendo? – ele
prosseguiu, respondendo a expressão dela com uma nota de orgulha. –
Talvez tenha se esquecido de que eu sou o proprietário do Benedick, mas
isso não vem ao caso. Manter-me bem informado pode ser útil nos
negócios, e costumo estender isso para a minha vida privada. E isto é da
minha conta, percebe, pelo menos, depende de você para que seja. Vamos
analisar friamente a situação. Mrs. Dosert, por motivos que desconhecemos,
puxou seu tapete no último verão. Todos sabem como Mrs. Dorset é, e seus
melhores amigos não acreditariam nela se não tivessem interesse; mas
contanto que não se envolvam em confusão é bem melhor seguir a liderança
dela do que se declararem contra, e assim você foi sacrificada pela preguiça
e pelo egoísmo deles. Não foi uma bela explicação para o caso? Bem,
algumas pessoas dizem que você tem a vingança em suas mãos: que George
Dorset se casaria com você amanhã, caso contasse para ele tudo que sabe, e
desse a ele a chance de mostrar a porta da rua para sua senhora. Acho que
ele faria isso; mas você não parece nada interessada nesta forma de
vingança, e, vendo a questão de um ponto de vista de puro interesse, acho
que você tem razão. Em uma negociata dessas, ninguém sai com as mãos
limpas, e o único jeito de se reabilitar socialmente é fazendo as pazes com
Bertha Dorset, em vez de tentar enfrentá-la.
Ele parou o suficiente para recuperar o fôlego, mas não para dar
tempo a ela de expressar resistência; e enquanto ele seguia em frente,
expondo e elucidando sua ideia com a franqueza de um homem que não
duvida dos seus motivos, ela sentia a indignação congelando aos poucos em
seus lábios, viu-se cercada pela mera frieza com que ele expunha os
argumentos. Não havia tempo agora para ficar tentando descobrir como ele
tinha ficado sabendo sobre as cartas: todo seu mundo estava sendo
monstruosamente envolto pela sombra do esquema dele para usá-las. Ele se
casaria com ela somente se ela conseguisse fazer as pazes com Bertha
Dorset; e para induzir a retomada desta amizade, e a retratação implícita de
tudo que tinha causado o rompimento, ela teria apenas de apontar à dama
em questão a ameaça latente contida no maço de cartas que tinham vindo
para em suas mãos milagrosamente.
Na hora Lily reconheceu que esta opção seria bem mais vantajosa do
que a oferecida pelo pobre Dorset. O sucesso do outro plano dependia da
imposição de uma punição aberta, enquanto este reduzia a transação a um
acordo privado, do qual não seria necessário envolver uma terceira pessoa.
Colocado por Rosedale nos termos de uma negociação de dar e receber, este
acordo assumia o tom inofensivo de um entendimento bom para as duas
partes, como uma transferência de propriedade ou uma revisão de
fronteiras. Certamente era mais fácil ver isso como um ajuste permanente,
uma transação política, onde cada concessão tinha seu equivalente. A mente
cansada de Lily ficou fascinada com esta opção de fuga das avaliações
éticas variáveis para uma região de pesos e medidas concretos.
Rosedale, enquanto ela o ouvia, parecia ler em seu silêncio não
apenas uma aceitação gradual do seu plano, mas uma percepção perigosa
das possibilidades que este oferecia; pois enquanto ela se manteve parada
diante dele sem nada dizer, ele retomou rapidamente:
– Você percebeu como é simples, não? Mas não se deixe enganar pela
ideia de que é tão simples assim. Não é como se tivesse começado com um
atestado de saúde limpo. Agora que estamos nos entendendo, vamos
chamar as coisas pelos nomes certos e esclarecer o negócio. Você sabe
muito bem que Bertha Dorset não teria conseguido atingi-la, se não
tivessem surgido dúvidas, alguns pontinhos de interrogação, não é mesmo?
Passíveis de ocorrer em se tratando de uma moça bonita, com parentes
sovinas, suponho; mas foi o que aconteceu, e ela viu nisso o terreno para se
preparar. Percebe onde quero chegar? Você não quer que essas dúvidas
voltem à tona. Uma coisa é colocar Bertha na linha, mas o que você quer é
que ela continue lá. Você pode dar um susto nela com a maior facilidade,
mas como vai fazer para que ela não perca o medo? Mostrando que você é
tão poderosa quanto ela. Nem mesmo todas as cartas do mundo vão ajudá-la
na sua atual situação; mas com um bom respaldo, você vai conseguir
mantê-la no lugar que quiser. É aí que eu entro; é isto que estou lhe
oferecendo. Você não vai conseguir fazer isso sem a minha ajuda, não
adianta pensar que vai conseguir. Em seis meses você estará na mesma
situação atual, ou pior; mas aqui estou eu, pronto para tirá-la disso amanhã
se disser que sim. O que acha, Miss Lily? – ele adicionou, avançando de
repente.
As palavras, e o movimento que as acompanharam, se juntaram para
tirar Lily do estado de transe que ela se encontrava. A luz chega por
caminhos tortuosos em uma mente dispersa, e esta a atingiu com a noção
assustadora de que seu suposto cúmplice tinha assumido, como algo
natural, a probabilidade de ela desconfiar dele e tentar enganá-lo. Este
vislumbre dos pensamentos dele deu a transação um novo aspecto, e ela
percebeu que a baixeza básica do ato jazia na total ausência de risco.
Ela recuou com um gesto rápido de rejeição, dizendo, numa voz que
soou diferente para seus próprios ouvidos:
– Você está enganado, muito enganado, tantos nos fatos quanto na
conclusão ao qual chegou.
Rosedale a encarou por um momento, surpreso pela súbita mudança
de direção da qual ela aparentemente estava se deixando guiar.
– O que está querendo dizer? Pensei que tivéssemos nos entendido! –
ele exclamou; e para o sussurro dela de “Agora nós nos entendemos” ele
retorquiu num tom subitamente violento: – Suponho que seja porque as
cartas são dele? Duvido que vá receber algum sinal de gratidão dele!
Capítulo 8
Os dias de outono viraram inverno. Mais uma vez o mundo do
divertimento estava em transição entre o campo e a cidade, e a Quinta
Avenida, ainda deserta aos finais de semana, exibia de segunda a quinta um
trânsito cada vez mais intenso de carruagens passando em frente as casas
que aos poucos ganhavam vida novamente.
A Exposição de Cavalos, que tinha ocorrido em torno de duas
semanas antes, contribuiu para o clima de animação, enchendo os teatros e
restaurantes com um desfile de humanos do mesmo padrão alto e valor
daqueles que circulavam diariamente nas pistas. No mundo de Miss Bart a
exposição, e o público que ele atraía estava entre os espetáculos
desprezados; mas, como o senhor feudal por uma questão de capricho acaba
participando da dança em seus campos verdes, da mesma forma a
sociedade, não oficialmente e ocasionalmente, ainda costumava aparecer.
Mrs. Gormer, assim como os outros, não ia perder esta oportunidade de
exibir ela mesma e seus cavalos; e Lily teve a oportunidade de aparecer
uma ou duas vezes ao lado da amiga no camarote mais evidente da casa.
Mas a ligeira aparência de intimidade serviu apenas para ressaltar a
mudança nos termos da sua amizade com Mattie. Era inevitável que Lily
fosse a primeira a ser sacrificada em nome do novo ideal, e ela sabia que,
assim que os Gormer conseguissem se firmar na cidade, a agitação da
sociedade acabaria colaborando para que Mattie se afastasse dela
definitivamente. Ela tinha, em suma, falhado em se fazer indispensável; ou
melhor, a sua tentativa de fazê-lo tinha sido frustrada por uma influência
mais forte do que a que ela era capaz de exercer. Esta influência, em última
análise, era simplesmente o poder do dinheiro: o crédito social de Bertha
Dorset era baseado em um saldo bancário muito sólido.
Lily sabia que Rosedale não tinha exagerado nem na dificuldade da
sua posição e nem na possibilidade de concretização da vingança que ele
tinha oferecido: quando Bertha se deparasse com uma fonte de recursos
financeiros equiparados ao seu, seria fácil para Lily, com seus talentos
superiores, dominar a sua oponente. Uma noção do que tal domínio poderia
significar, e das desvantagens resultantes da sua rejeição, se tornaram muito
claras para Lily ao longo das primeiras semanas do inverno. Até então, ela
matinha uma aparente movimentação social; mas com o retorno de todos
para a cidade, e as várias atividades, o simples fato de não ter conseguido
retomar seus antigos hábitos de vida mostrou de modo inequívoco que ela
tinha sido posta de lado. A pessoa que não participava ativamente das
atividades sociais da temporada caía numa esfera de inexistência social.
Lily, apesar de todas as suas desilusões, nunca tinha imaginado a
possibilidade de se ver em outra esfera: era fácil desprezar o mundo, mas
era muito mais difícil encontrar outra região habitável. Seu senso crítico
nunca a abandonou, e ela ainda conseguia notar, rindo de si mesma, o valor
absurdo que os detalhes mais cansativos e insignificantes da sua vida
pregressa tinha adquirido. Até mesmo as labutas tinham seus encantos
agora que ela tinha sido involuntariamente privada delas: cartões de
despedida, responder cartas, a gentileza forçada para com os chatos e os
idosos, e aguentar sorrindo os jantares cansativos – como estas obrigações
teriam preenchido de modo tão agradável seus dias vazios! Na verdade, ela
continuou enviando cartas; se manteve sorrindo e persistiu corajosamente,
bem aos olhos do seu mundo; assim como não sofreu nenhuma daquelas
invertidas grosseiras que costumam produzir uma sensação de desprezo em
suas vítimas. A sociedade não virou as costas para ela, ela simplesmente se
afastou, ocupada e desatenta, fazendo com que ela sentisse toda a dimensão
do seu orgulho ferido, o quão culpada era por tudo isso.
Ela tinha rechaçado a sugestão de Rosedale com uma demonstração
de desprezo tão imediata que surpreendeu a si mesma: não tinha perdido a
sua capacidade de se indignar. Mas ela não conseguia respirar por muito
tempo nas alturas; não tinha sido treinada para manter a força moral. O que
ela ansiava, e realmente acreditava ser o certo, era uma situação em que a
atitude mais nobre deveria ser também a mais fácil. Até então seus impulsos
intermitentes de resistência tinham sido suficientes para manter o respeito
por si mesma. Se tinha cometido um deslize ela recuperara o equilíbrio, mas
só depois se deu conta de que a recuperação a deixara num nível um pouco
mais baixo. Tinha recusado a oferta de Rosedale sem muito esforço; todo
seu ser se revoltara contra aquilo; e nem percebeu que, pelo simples fato de
ter dado ouvidos a ele, ela acabou aprendendo a conviver com ideias que
antes lhe pareciam intoleráveis.

***

Para Gerty Farish, que continuou de olho nela com o mesmo carinho,
mas com menos discernimento do que Mrs. Fisher, os resultados da luta já
podiam ser percebidos. Ela, na verdade, não sabia o quão refém Lily era da
situação; mas notou o seu empenho apaixonado e irremediável pela política
desastrosa de “se manter por cima”. Gerty chegou a achar graça por ter
imaginado que a amiga pudesse se renovar através da adversidade. Ela
entendeu com toda clareza que Lily não era daquelas pessoas cujas
privações ensinam a importância daquilo que perderam. Mas este fato, para
Gerty, tornava sua amiga ainda mais digna de piedade e necessitada de
ajuda, pois quanto mais carinho recebia menos ela percebia o quanto
precisava.
Desde que voltara a cidade, foram poucas as ocasiões em que Lily
subira os degraus de Miss Farish. Havia algo de irritante para ela no
interrogatório mudo da solidariedade de Gerty: era como se não pudesse
compartilhar as verdadeiras dificuldades da sua situação com alguém cujos
valores eram tão diferentes dos seus, e as restrições da vida de Gerty, que
um dia tiveram seu charme por ser diferente, agora eram uma lembrança
dolorosa das limitações para a qual a sua própria existência estava se
resumindo. Numa tarde, quando finalmente resolveu fazer uma visita à
amiga, a sensação de limitação a acometeu com uma intensidade nunca
antes experimentada. Na Quinta Avenida, sob o brilho intenso do sol de
inverno, se desdobrava uma fileira interminável de carruagens de luxo –
dando a ela, através das janelinhas dos coches, a oportunidade de ver de
relance rostos conhecidos debruçados sobre listas de visitantes, de mãos
apressadas entregando bilhetes e cartões aos criados de plantão – este
vislumbre das rodas da grande máquina social sempre girando tornou Lily
mais ciente do que nunca da inclinação e estreiteza dos degraus de Gerty, e
do beco escuro e apertado da vida para onde aquela escada levava. Escadas
feias feitas para serem usadas por pessoas sem brilho: milhares de figuras
insignificantes subiam e desciam escadas como aquelas pelo mundo todo,
naquele exato momento – figuras tão maltrapilhas e embotadas como a
senhora de meia-idade vestida de preto que saiu do andar de Gerty quando
Lily estava entrando!
– Aquela é a pobre Miss Jane Silverton, ela veio falar comigo. Ela e a
irmã querem fazer alguma coisa para se sustentarem – explicou Gerty,
enquanto Lily a seguia até a sala de estar.
– Para se sustentarem? Elas se encontram em dificuldades
financeiras? – perguntou Miss Bart com um toque de irritação, afinal, não
tinha vindo para se inteirar sobre as desgraças alheias.
– Elas estão sem nada. As dívidas de Ned consumiram tudo. Elas
tinham algumas esperanças quando ele terminou com Carry Fisher;
acharam que Bertha Dorset poderia ser uma boa influência, pois ela não
gosta de jogar baralho, e… bem, ela disse coisas tão bonitas para Miss Jane
sobre considerar Ned como se fosse seu irmão caçula, e que queria levá-lo
junto para uma viagem no seu iate, para que assim ele tivesse uma chance
de abandonar as cartas e as corridas, e retomar o trabalho com a literatura
novamente.
Miss Farish parou com um suspiro que refletiu a perplexidade da sua
visitante que ameaçava ir embora.
– Mas isso não é tudo; não nem o pior. Parece que Ned se
desentendeu com os Dorset; ou pelo menos Bertha não quer recebê-lo mais,
e ele está tão triste por isso que voltou a jogar novamente, e tem andado na
companhia de todo tipo de gente estranha. E a prima Grace Van Osburgh o
acusa de ser uma péssima influência para Freddy, que abanadou Harvard no
verão passado e tem sido visto na companhia de Ned desde então. Ela
mandou chamar Miss Jane, e fez uma cena assustadora; e Jack Stepney e
Hebert Melson, que também estavam presentes, contaram para Miss Jane
que Freddy estava querendo se casar com uma mulher que Ned tinha
apresentado a ele, e que eles não poderiam fazer nada para impedi-lo, pois
agora ele já é maior de idade e tem seu próprio dinheiro. Você imagina
como a pobre Jane se sentiu; ela me procurou logo em seguida, e imaginou
que eu pudesse ajudá-la a arrumar um trabalho para que assim ela pudesse
ganhar dinheiro suficiente para pagar as dívidas de Ned e mandá-lo para
longe, mas não entendo como ele pôde gastar muito mais sobre a influência
de Bertha do que sob a de Carry; você entende?
Lily respondeu a pergunta com um gesto impaciente.
– Minha querida, Gerty, sempre entendo como as pessoas conseguem
gastar mais, nunca como podem gastar menos!
Ela soltou a pelerine e se acomodou na poltrona de Gerty, enquanto a
amiga servia um chá.
– Mas o que pode ser feito pelas Misses Silverton? O que elas vão
fazer para se sustentarem? – perguntou ela, ciente do tom de irritação que
persistia em sua voz. Este era o último assunto que pretendia falar sobre –
não lhe interessava nenhum pouco – mas ela foi acometida por uma súbita
curiosidade preserva para saber como as duas vítimas das experiências
sentimentais do jovem Silverton iam se virar com a necessidade sombria
que também rondava sua porta.
– Não sei, estou tentando arrumar alguma coisa para as duas. Miss
Jane lê muito bem em voz alta, mas é muito difícil encontrar alguém
precisando deste tipo de trabalho. E Miss Annie pinta um pouco…
– Oh, eu sei, flor de macieira em mata-borrão; é o tipo de coisa que
farei no futuro! – exclamou Lily, levantando-se com um movimento tão
brusco que quase quebrou a delicada mesinha de chá de Miss Farish.
Lily se inclinou para amparar as xícaras; em seguida, sentou com um
baque na poltrona.
– Eu tinha me esquecido de que mal dá para se mexer aqui, é preciso
saber se comportar em um apartamentinho! Oh, Gerty, não fui feita para me
comportar – ela suspirou.
Gerty olhou preocupada para seu rosto pálido, onde olhos brilhavam
com um brilho peculiar de noites mal dormidas.
– Você parece muito cansada, Lily, tome seu chá, e pegue esta
almofada para recostar.
Miss Bart aceitou a xícara de chá, mas recusou a almofada com um
gesto impaciente.
– Não quero isso! Não quero recostar, acabarei dormindo se fizer isso.
– E por que não, querida? Ficarei quietinha como um rato – disse
Gerty num tom carinhoso.
– Não, não; não fiquei quieta; converse comigo, mantenha-me
acordada! Não tenho dormindo à noite e a tarde sinto muito sono.
– Você não tem dormido à noite? Desde quando?
– Não sei, não consigo me lembrar.
Ela se levantou e pousou a xícara vazia sobre a bandeja. – Mais um
pouco, e mais forte, por favor; se não me mantiver acordada terei uma noite
horrível, horrível!
– Mas será pior se tomar muito chá.
– Não, não, dê-me mais um pouco; e não venha com sermões, por
favor – Lily retomou imperativa. Sua voz tinha algo de ameaçador, e Gerty
notou que a sua mão tremeu quando ela a ergueu para pegar a segunda
xícara.
– Mas você parece tão cansada. Desse jeito vai acabar adoecendo…
Miss Bart pousou a xícara de repente.
– Pareço doente? Meu rosto está mostrando isso? – ela se levantou e
correu na direção do espelhinho que havia em cima da escrivaninha. – Que
espelho horrível, está todo manchado e desbotado. Qualquer um pareceria
um fantasma olhando nele! – ela virou de volta, encarando Gerty com seu
olhar tristonho. – Sua tola, por que está dizendo essas coisas horríveis para
mim? Basta dizer que alguém parece estar doente para a pessoa adoecer!
Parecer doente significa estar feia.
Ela segurou Gerty pelo pulso e a puxou para perto da janela. – Mas
prefiro que fale a verdade. Olhe bem no meu rosto, Gerty, e me diga: estou
muito assustadora?
– Você está linda, Lily. Seus olhos estão brilhando e suas bochechas
ficaram tão rosadas de repente…
– Ah, elas estavam pálidas, então… como um fantasma, quando
cheguei? Por que não diz logo que estou horrível? Meus olhos estão
brilhando agora porque estou nervosa, mas de manhã eles estão opacos. E
vejo as linhas aparecendo no meu rosto, as marcas de preocupação,
decepção e fracasso! Cada noite sem dormir deixa mais uma, mas como vou
conseguir dormir, quando penso em coisas tão assustadoras?
– Coisas assustadoras, que coisas? – perguntou Gerty, livrando o
pulso delicadamente dos dedos nervosos da amiga.
– Que coisas? Bem, pobreza, por exemplo, e não conheço nada mais
assustador do que isso – Lily virou e sentou, soltando o peso do corpo sobre
a poltrona próxima à mesa de chá. – Há pouco você me perguntou se eu
sabia como Ned Silverton pode gastar tanto dinheiro. Claro que eu sei, ele
gastou vivendo como um rico. Você pensa que vivemos à custa dos ricos, e
não com eles; e vivemos mesmo, de certo modo, mas é um privilégio pelo
qual temos de pagar! Jantamos com eles, bebemos o vinho deles e fumamos
os cigarros deles, usamos suas carruagens e os camarotes da ópera e os
vagões particulares deles, sim, mas é preciso pagar por cada um desses
luxos. O homem paga dando fartas gorjetas aos criados, apostando no
baralho acima das suas posses, mandando flores e presentes, e… fazendo
várias outras coisas que custam caro; a moça paga isso com gorjetas e jogos
de baralho também… ah, sim, nós também temos de jogar bridge, e
frequentando as melhores modistas, tendo os vestidos certos para cada
ocasião, e precisamos nos apresentar sempre descansadas, bonitas e bem-
humoradas!
Ela recostou por um momento, fechando os olhos, e enquanto ficou
assim, seus lábios pálidos se entreabriram, e quando as pálpebras baixaram
sobre os olhos cansados, Gerty percebeu a tremenda mudança em seu rosto
– do mesmo jeito que um clarão cinza parece perder repentinamente seu
brilho artificial. Ela olhou para cima e a visão despareceu.
– Não parece muito divertido, não é mesmo? E não é. Estou cansada
disso! E mesmo assim a ideia de abrir mão disso está me matando, é o que
tem me mantido acordada à noite, e me deixa louca para tomar o seu chá
forte. Pois não posso continuar assim, sabe, estou quase sem forças. Além
do mais, o que eu posso fazer, como vou fazer para me sustentar sozinha?
Vejo que vou acabar tendo o mesmo destino da pobre Siverton, procurando
emprego de agência em agência, e tentando vender mata-borrão pintado
para a Women’s Exchanges! E já existem milhares e milhares de mulheres
tentando fazer isso, e nenhuma delas, assim como eu, tem a menor ideia de
como ganhar um dólar!
Ela se levantou novamente e deu uma olhada para o relógio.
– Já é tarde, preciso ir, tenho um encontro marcado com Carry Fisher.
Não se preocupe, minha querida. Não fique pensando nas bobagens que eu
falei.
Ela estava diante do espelho novamente, ajeitando o cabelo com
delicadeza, abaixando o véu, e deu uma última arrumada na pelerine. –
Ainda não cheguei ao ponto de passar de agência em agência e pintar mata-
borrão: mas estou sem dinheiro, e se conseguisse arrumar alguma coisa para
fazer, como escrever cartar e listas de convidados, coisas assim, me ajudaria
até eu receber a minha parte da herança. Carry prometeu que vai arrumar
alguém que esteja precisando de uma secretária social, sabe, para ajudar
pessoas ricas sem tempo.

***

Miss Bart não revelou para Gerty toda a extensão da sua ansiedade.
Ela, na verdade, estava precisando muito de dinheiro, e imediatamente:
dinheiro para bancar as despesas comuns da semana, que não podiam ser
adiadas ou postergadas. Abrir mão do seu quarto no hotel, cair na
obscuridade de uma pensão, ou contar provisoriamente com a hospitalidade
de uma cama na sala de Gerty Farish, eram opções que só iriam adiar o
problema; e parecia mais sensato e aceitável permanecer onde estava e
encontrar um meio de ganhar a vida. A possibilidade de ter de fazer isto era
uma que ela nunca tinha considerado seriamente antes, e a descoberta de
que, como trabalhadora, ela provavelmente acabaria se mostrando tão
inapetente e inútil quanto as pobres Misses Silverton, foi um tremendo
golpe para sua autoconfiança.
Acostumada a se ver de acordo com a visão que os outros tinham
dela, como uma pessoa cheia de energia e recursos, capaz de se adaptar a
qualquer situação, ela imaginou que tais talentos não seriam muitos úteis
para aqueles que buscavam por direcionamento social; mas infelizmente
não havia uma função específica para a qual a arte de dizer e fazer a coisa
certa pudesse ser oferecida no mercado, e até mesmo a criatividade
inesgotável de Mrs. Fisher falhou diante da dificuldade de descobrir uma
linha a ser explorada no vasto leque de encantos de Lily. Mrs. Fisher
conhecia vários meios indiretos de ganhar a vida, e já tinha dado várias
chances para Lily; mas métodos mais específicos de ganhar o pão de cada
dia estavam tão fora da sua linha assim como estavam além da capacidade
daqueles que costumavam recorrer a sua ajuda para ascender socialmente.
O fracasso de Lily de lucrar com as oportunidades que já tinham sido
oferecidas podia, de certo modo, se justificar pela falta de esforço de sua
parte; mas a natureza boa e incansável de Mrs. Fisher fez dela uma
especialista em criar demandas artificiais para um produto de verdade. Com
este intuito ela saiu em busca de algo para Miss Bart; e para compartilhar o
resultado da busca, mandou chamar Lily com um anúncio de que tinha
“encontrado algo”.

***

Sozinha, Gerty refletiu angustiada sobre a situação da amiga, e a sua


incapacidade de ajudar. Estava claro para ela que Lily, no momento, não
queria o tipo de ajuda que ela poderia oferecer. Miss Farish não via futuro
para a amiga senão em uma vida completamente reorganizada e afastada de
seu antigo círculo de amizade; apesar de todas as energias de Lily estarem
concentradas no esforço determinado de se manter inserida neste círculo, e
continuar visível no meio, pelo máximo de tempo que conseguisse manter a
ilusão. Por mais digna de pena que tal atitude pudesse parecer para Gerty,
ela não era capaz de julgar de modo tão severo quanto Selden, por exemplo,
teria julgado. Não tinha se esquecido da emoção que sentira naquela noite
em que ela e Lily dormiram abraçadas, e ela teve a sensação de que seu
sangue correra nas veias da amiga. O sacrifício que tinha feito pelo jeito
tinha sido em vão; não restara nenhum sinal de Lily de influência positiva
daquele momento; mas a candura de Gerty, disciplinada por anos de
contado com o sofrimento obscuro e inarticulado, era capaz de esperar pelo
resultado desejado com uma paciência silenciosa e sem pressa. Entretanto,
não poderia negar-se o consolo de se aconselhar com Lawrence Selden,
com quem, desde seu retorno da Europa, ela retomara a antiga amizade de
primos e confidentes.
Selden mesmo nunca percebeu nenhuma mudança na amizade deles.
E encontrou Gerty do mesmo jeito de que a deixara, simples, compreensiva
e dedicada, mas com uma sagacidade que ele percebeu, apesar de não ter
tentado entender. Para Gerty parecia impossível que um dia ela fosse capaz
de voltar a falar livremente de Lily Bart com ele; mas o que tinha se
passado em segredo no seu coração parecia ter se resolvido sozinho quando
a névoa da luta se dissipou, derrubando as barreiras do interesse próprio,
direcionando a emoção pessoal desperdiçada para a correnteza geral da
compreensão humana.
Mas Gerty só teve a oportunidade de compartilhar seus receios com
Selden umas duas semanas depois da visita de Lily. Este apareceu num
domingo à tarde na casa da prima, na hora do chá, e foi ficando, o tempo
todo ciente de que havia algo na voz e nos olhos dela que solicitavam uma
conversava em particular; e assim que a última visitante se foi Gerty abriu a
conversa, perguntando quanto tempo fazia desde a última vez que ele vira
Miss Bart.
A demora de Selden para responder surpreendeu.
– Não a vi mais. Na verdade, não a vejo desde que ela voltou.
A resposta inesperada também retardou a reação de Gerty; e ela ainda
hesitava sobre como iria retomar o assunto quando ele a aliviou,
completando:
– Bem que tentei, mas ela parece estar muito ocupada com os Gormer
desde que voltou da Europa.
– Este é um dos motivos; ela tem andando muito triste.
– Triste por que está com os Gormer?
– Oh, não estou defendendo a amizade dela com os Gormer; que nem
existe mais, eu acho. Sei que as pessoas têm sido muito cruéis desde que
Bertha Dorset brigou com ela.
– Ah! – Selden exclamou, levantando-se de repente para se aproximar
da janela, onde ficou com os olhos voltados para a rua escura enquanto a
prima continuou: – Judy Trenor e a própria família dela também a
abandonaram, e tudo porque Bertha Dorset disse coisas horríveis. E ela está
sem dinheiro, Mrs. Peniston deixou uma quantia pequena para ela, depois
de ter dado a entender que deixaria tudo.
– Sim, fiquei sabendo – disse Selden, voltando-se para a sala, mas
apenas para caminhar impaciente entre o espaço exíguo entre a porta e a
janela. – Sim, ela tem sido muito displicente; mas infelizmente isto é
exatamente o que um homem que quer se mostrar solidário não pode dizer a
ela.
As palavras causaram um leve tremor de decepção em Gerty.
– Deve existir outros meios de mostrar a sua solidariedade a ela –
sugeriu.
Selden, com uma risadinha, sentou ao lado dela no pequeno sofá
voltado para a lareira.
– O que você está tramando, sua missionária incorrigível?
Gerty ficou vermelha, e seu rubor, por um momento, foi sua única
resposta. Então ela insinuou ao dizer: – Estou pensando no fato de que você
e ela costumavam ser muito amigos, que ela gostava muito de saber o que
você pensava dela, e que, se ela vir o seu afastamento como um sinal do que
você está pensando agora, imagino que isto a deixará ainda mais triste.
– Minha querida, não dê a isso um peso ainda maior, atribuindo a ela
suscetibilidades típicas de você.
Selden, por tudo que tinha passado, não conseguiu conter um tom de
secura em sua voz; mas ao perceber a perplexidade de Gerty, disse de modo
mais brando: – Apesar de estar exagerando a importância de qualquer coisa
que eu pudesse fazer por Miss Bart, você não exagerou quanto a minha
disposição em ajudar, se é isto que está me pedindo.
Ele pousou a mão sobre a dela por um momento, e entre eles passou,
na corrente do raro contado, uma daquelas trocas que enchem os
reservatórios ocultos da afeição. Gerty teve a sensação de que ele
considerou o peso do seu pedido de modo tão claro quanto ela entendeu o
significado da resposta dele; e a sensação de que de repente tudo ficara
claro entre eles ajudou-a a encontrar as próximas palavras.
– Eu peço, então; peço porque uma vez ela me contou que você a
ajudou, e porque agora, mais do que nunca, ela precisa de ajuda. Você sabe
como ela sempre foi apegada a facilidade e ao luxo, como sempre odiou as
coisas simples, feias e o desconforto. Ela não pode evitar, foi criada assim, e
nunca soube como se livrar disso. Mas agora tudo que ela presa lhe foi
tirado, e as pessoas que a ensinaram a gostar disso também a abandonaram;
e tenho a impressão de que se alguém pudesse lhe estender a mão e mostrar
o outro lado; mostrar o quanto ainda lhe resta de vida e nela mesma… –
Gerty parou, embaraçada pelo tom da própria eloquência, e impedida pela
dificuldade de expressar precisamente seu anseio pela recuperação da
amiga. – Não posso ajudá-la, está fora do meu alcance – continuou. – Acho
que ela teme se transformar em um fardo para mim. Dá última vez que
esteve aqui, ela parecia muito preocupada com o próprio futuro; disse que
Carry Fisher estava tentando arrumar uma posição de secretária particular, e
que não era para eu me preocupar, pois tudo ia dar certo, e ela viria me
contar como estava indo quando tivesse tempo; mas ela não apareceu mais,
e não quero procurá-la, pois tenho receio de impor a minha presença.
Quando éramos crianças, após um longo período de separação, lancei os
braços ao redor dela, e ela disse: ‘Por favor, não me beije a menos que eu
peça, Gerty’… e ela me pediu um beijo, um minuto depois; mas desde
então sempre esperei até que ela me pedisse.
Selden escutou tudo calado, do modo concentrado que seu rosto fino e
obscuro costumava assumir quando ele queria se resguardar de qualquer
mudança involuntária de expressão. Quando a prima terminou, ele disse
com um leve sorriso:
– Uma vez que aprendeu a esperar, não entendo porque deseja me
empurrar para isso… – mas o olhar preocupado dela o fez adicionar,
enquanto se levantava para ir embora: – Mesmo assim, farei o que está me
pedindo, e não se culpe se eu fracassar.
Selden vinha evitando Miss Bart de um modo bem mais intencional
do que o que tinha dado a entender a prima. A princípio, na verdade,
enquanto a lembrança da última vez que se encontrara com ela em Morte
Carlo ainda guardava o furor da sua indignação, ele aguardou ansiosamente
pelo retorno dela; mas ela o desapontou ao ficar na Inglaterra, e quando ela
finalmente voltou ele teve de viajar a trabalho e quando retornou ficou
sabendo que ela estava de partida para o Alaska com os Gormer. A
revelação da nova relação de amizade enfraqueceu seu desejo de vê-la. Se
no momento em que tudo na sua vida parecia estar desmoronando ela era
capaz de confiar tranquilamente a sua reconstrução aos Gormer, então não
havia motivo para imaginar que tais incidentes pudessem atingi-la de modo
irreparável. Cada passo que ela dava parecia na verdade levá-la para cada
vez mais longe da região onde, uma ou duas vezes, eles se encontram por
um momento iluminado; e o reconhecimento deste fato, quando sentiu a
primeira pontada, produziu uma sensação de alívio negativo. Era muito
mais fácil para ele julgar Miss Bart pela sua conduta habitual do que pelos
raros desvios que a colocaram no seu caminho de modo tão perturbador; e
cada atitude dela tornava mais improvável a recorrência de tais desvios,
confirmando a sensação de alívio que com que ele retomou a visão
convencional que costumava ter dela.
Mas as palavras de Gerty Farish o fizeram enxergar o quão limitada
era a sua visão, e o quão impossível era para ele continuar seguindo a vida
sossegado, pensando na situação de Lily Bart. O fato de ter ouvido que ela
estava precisando de ajuda – até mesmo a vaga ajuda que ele poderia
oferecer – já era suficiente para confirmar a ideia anterior; e quando chegou
à rua ele já estava tão convencido da urgência do apelo da prima a ponto de
mudar de direção e seguir para o hotel em que Lily estava hospedada.
Lá, seu entusiasmo foi posto à prova com a notícia de que Miss Bart
tinha se mudado; mas, após alguma pressão, o rapaz da recepção lembrou
que ela tinha deixado um endereço, que, na hora, ele começou a procurar
entre os livros.
Era estranho que ela tivesse dado este passo sem compartilhar com
Gerty Farish a sua decisão; e Selden esperou com uma vaga sensação de
inquietação, enquanto o rapaz procurava pelo endereço. O processo
demorou o suficiente para que a inquietação acabasse se transformando em
apreensão; mas quando finalmente uma folha de papel dobrada lhe foi
entregue, e nela ele leu: “Aos cuidados de Mrs. Norma Hatch, Hotel
Emporium” a apreensão passou para um olhar incrédulo, e deste para um
gesto de desgosto com o qual ele rasgou o papel em dois, e tomou o rumo
da sua casa.
Capítulo 9
Quando Lily acordou na manhã após a sua mudança para o Hotel
Emporium, a primeira sensação que teve foi de pura satisfação física. A
força do contraste valorizou ainda mais o luxo de estar deitada mais uma
vez em uma cama macia, vendo no quarto espaçoso e iluminado pelo sol a
convidativa mesa de café da manhã posta perto da lareira. Análise e
introspeção que ficassem para mais tarde; agora ela não ia nem se
preocupar com os excessos dos estofamentos ou os torneados excessivos
dos móveis.
Quando, na tarde do dia anterior, ela se apresentou à dama a quem
Carry Fisher a tinha recomendado, ela tinha consciência de que estava
entrando em um mundo novo. A breve apresentação que Carry fez sobre
Mrs. Norma Hatch (cuja mudança de nome foi explicada como sendo
resultante do seu último divórcio), deu a entender que ela tinha “vindo do
oeste”, com a atenuação nada incomum de ter trazido uma grande quantia
de dinheiro. Resumindo, ela era rica, indefesa, deslocada: a pessoa perfeita
para receber os cuidados de Lily. Mrs. Fisher não especificou que linha sua
amiga deveria seguir; ela mesma não conhecia Mrs. Hatch, de quem ficara
sabendo por intermédio de Melville Stancy, advogados nas horas de folga, e
um Falstaff do mundo das festas. Socialmente, podia-se dizer que Mr.
Stancy era um elo de ligação entre o mundo dos Gormer e a esfera mais
obscura onde Miss Bart estava entrando. Entretanto, era apenas
figurativamente que a iluminação do mundo de Mrs. Hatch poderia ser
descrita como obscura: na verdade, Lily a encontrou sentada sob um foco
de luz elétrica intenso, que refletia imparcialmente das diversas
protuberâncias decorativas de uma ampla concavidade forrada de tecido
adamascado rosa e dourado, de onde ela se levantou igual a uma Vênus
saindo da sua concha. A analogia se justificou com a aparência da dama,
cujos belos olhos grandes pareciam parados como os de uma criatura
empalhada, exposta em uma redoma de vidro. Isto não impediu a imediata
constatação de que ela era alguns anos mais nova do que a visitante, e que
sob o seu exibicionismo, a sua tranquilidade, a agressividade do seu modo
de se vestir e voz, ainda existia aquela inocência que nunca desaparece em
damas da sua natureza, e que curiosamente coexiste com os extremos
surpreendentes da experiência.
O meio onde Lily se encontrava lhe era estranho assim como seus
habitantes. Ela desconhecia o mundo moderno dos Hotéis de Nova York –
um mundo superaquecido, superestofado, e superequipado com aparelhos
criados para oferecer todas as satisfações necessárias, enquanto os confortos
da vida civilizada estavam tão fora de alcance da maioria como um deserto.
Em meio a esta atmosfera de tórrido esplendor circulavam criaturas vagas
tão ricamente revestidas quantos os móveis, seres sem propósitos definidos
ou relações estáveis, que vagavam numa maré languida do restaurante para
o salão de concertos, do jardim para o salão de música, da “exposição de
arte” para o desfile de moda. Carruagens puxadas por cavalos de raça ou
carros com motores potentes aguardavam para levar essas damas pelas ruas
da metrópole, de onde retornavam, ainda mais cansadas por conta do peso
das suas peles de zibelina, para serem sugadas de volta para a inércia
sufocante da rotina no hotel. Em algum lugar, nos bastidores de suas vidas,
sem dúvida existia um passado real, povoado por atividades humanas de
verdade: elas próprias muito provavelmente eram o fruto de fortes
ambições, energias inesgotáveis, de vários contatos com a aspereza da vida;
mesmo assim a existência que levavam não era mais real do que as sombras
do poeta no limbo.
Não foi preciso passar muito tempo neste mundo pálido para Lily
descobrir que Mrs. Harch era a figura mais substancial. A dama, embora
ainda flutuasse no vácuo, apresentava alguns sinais de que tinha potencial
para o desenvolvimento de um perfil; e nesta empreitada era ativamente
apoiada por Mr. Melville Stancy. Foi Mr. Stancy, um homem de presença
marcante, agradável e de um cavalheirismo que se expressava na forma de
socorrer as pessoas que tinham acabado de mudar enviando caixas de
bombons de luxo, quem transplantou Mrs. Hatch do cenário da sua primeira
ascensão para o estágio superior da vida em um hotel na metrópole. Foi ele
quem escolheu os cavalos com os quais ela ganhou uma faixa azul na
Exposição, que a apresentou ao fotógrafo que colocava os retratos dela
frequentemente nos “Suplementos de Domingo”, e quem reuniu o grupo
que formava o mundo social dela. O grupo ainda era pequeno, composto
por figuras heterogêneas suspensas em grandes espaços despovoados; mas
logo Lily percebeu que o comando do grupo não estava mais nas mãos de
Mr. Stancy. Como sempre costuma acontecer, o aluno supera o mestre, e
Mrs. Hatch já sabia qual era o máximo da elegância assim como as
minúcias do luxo além do mundo do Emporium. E tal descoberta despertou
nela uma necessidade de sair em busca de uma orientação superior, do
toque feminino que a ajudaria a dar o retoque final, a escolher os chapéus
certos para ela, explicar a sucessão correta dos itens do cardápio.
Resumindo, Miss Bart tinha sido contratada para ser a reguladora de uma
vida social que germinava; uma vez que as suas funções como secretária
ainda eram restritas, uma vez que Mrs. Hatch ainda não tinha quase
ninguém para quem escrever.
Os detalhes diários da existência de Mrs. Hatch eram tão estranhos
para Lily assim como o teor geral. Os hábitos da dama eram marcados por
uma indolência oriental e uma desordem peculiar que parecia desafiar a sua
acompanhante. Horários não eram respeitados; não existiam obrigações
fixas; noite e dia seguiam num tumulto de compromissos confundidos e
atrasados, tanto que dava a impressão de estar-se almoçando na hora do chá,
enquanto o jantar normalmente costumava emendar com a ceia após o
teatro, o que mantinha Mrs. Hatch acordada até o raiar do sol.
Em meio a esse emaranhado de atividades fúteis circulava uma
estranha equipe de apoio, composta por manicures, médicos especialista em
estética, cabeleireiros, professores de bridge, de francês, de “exercícios
físicos”: figuras muitas vezes indistinguíveis pela aparência, ou pela relação
de Mrs. Hatch com elas, ou com os visitantes que constituíam o seu
reconhecido círculo social. Mas o mais estranho para Lily foi encontrar,
neste último grupo, vários conhecidos seus. Ela tinha imaginado, e com
alívio, que estivesse circulando, no momento, completamente fora do seu
círculo; mas acabou descobrindo que Mr. Stancy, cuja vasta gama de
conhecidos invadia os limites do mundo de Mrs. Fisher, tinha trazido vários
dos seus ornamentos de destaque para o círculo do Emporium. Encontrar
Ned Silverton entre os frequentadores da sala de estar de Mrs. Hach foi uma
das primeiras surpresas de Lily; mas logo ela descobriu que ele não era o
recruta mais importante de Mr. Stancy. As atenções do grupo de Mrs. Hatch
estavam voltadas para o jovem Fredy Van Osburgh, o herdeiro de milhões
de Van Osburgh. Freddy, que mal tinha acabado de abandonar a faculdade,
despontara no horizonte após o eclipse de Lily, e ela viu com surpresa o
fulgor que ele deu à existência ofuscada de Mrs. Hatch. Este era um dos
motivos pelo qual os jovens rapazes eram “admitidos” quando liberados da
rotina social oficial; este era o tipo de “compromisso anterior” que muito
frequentemente os fazia frustrar as esperanças das anfitriãs ansiosas. Lily
tinha a estranha sensação de que estava por trás da tapeçaria social, do lado
onde os fios eram amarrados e a pontas ficavam penduradas. Por um tempo,
ela achou o espetáculo divertido, assim como sua participação: a situação
tranquila e a falta de convenções teve um efeito revigorante após sua
experiência com a ironia das convenções. Mas estes lances de diversão não
passavam de reações aos desgostos do seu dia a dia. Comparada ao grande
vazio dourado que era a existência de Mrs. Hatch, a vida das antigas amigas
de Lily parecia repleta de atividades ordenadas. Até mesmo, a mais
irresponsável das suas conhecidas, tinham suas obrigações de herdeiras, as
obras de caridade convencionais, sua participação no trabalho da grande
máquina civil; e todas se uniam solidárias em nome destas funções
tradicionais. O desempenho de obrigações específicas teria simplificado a
posição de Miss Bart; mas o vago atendimento a Mrs. Hatch causava
estranheza.
Não era sua patroa quem criava tais estranhezas. Mrs. Hatch mostrou
desde o princípio uma vontade quase comovente de aprovar Lily. Longe de
querer impor a sua riqueza, seus belos olhos pareciam exortar a súplica da
inexperiência: ela queria fazer o que era “certo”, que a ensinassem a ser
“adorável”. A dificuldade estava em encontrar um elo entre os ideais dela e
as de Lily.
Mrs. Hatch vagava em uma onda de entusiasmo indeterminado, de
aspirações colhidas no palco, nos jornais, nas revistas de moda e no mundo
dos esportes, que estavam ainda mais distantes dos domínios da sua
companheira. A obrigação de Lily era selecionar entre estes conceitos
confusos aqueles que seriam mais uteis ao progresso da dama; mas seu
desempenho encontrou obstáculos nas dúvidas de um crescimento rápido. E
assim Lily foi se dando conta cada vez mais da ambiguidade da sua
situação. Não que ela tivesse, no sentido convencional, qualquer dúvida
quanto à possibilidade de Mrs. Hatch ser reprovada. Os defeitos da dama
estavam sempre mais relacionados a uma questão de gosto do que de
conduta; seu divórcio parecia estar ligado mais a condições geográficas do
que éticas; e suas maiores fraquezas muito provavelmente eram devido a
sua natureza boa e extravagante. Mas se Lily não se importava em segurar a
manicure na hora do almoço, ou oferecer ao médico um lugar à mesa de
jogo de Freddy Van Osburgh, ela não se sentia tão à vontade assim com
relação a alguns lapsos menos aparentes das convenções. A relação de Ned
Silverton com Stancy, por exemplo, parecia muito mais próxima e menos
clara do que quaisquer afinidades naturais poderiam garantir; e ambos
pareciam unidos no esforço de cultivar o crescente interesse de Freddy Van
Osburgh por Mrs. Hatch. Ainda não havia nada definido na situação, que
podia muito bem não passar de uma grande brincadeira para os dois; mas
Lily tinha a sensação de que o alvo do experimento dos dois era muito
jovem, muito rico e muito ingênuo. Seu embaraço cresceu ao perceber que
Freddy a via como uma colaboradora para o aprimoramento social de Mrs.
Hatch: uma visão que sugeria, para ele, um permanente interesse no futuro
da dama. Às vezes Lily se divertia com a ironia deste aspecto do caso. A
ideia de lançar um míssil como Mrs. Hatch no seio pérfido da sociedade até
que tinha seus encantos: Miss Bart chegou até imaginar a bela Norma sendo
apresentada pela primeira vez em um jantar íntimo dos Van Osburgh. Mas a
ideia de estar ligada a transação era menos atraente; e seus lampejos de
diversão eram seguidos por períodos cada vez maiores de dúvida.
Essas dúvidas ganharam força quando, num final de tarde, ela foi
surpreendida pela vista de Lawrence Selden. Ele a encontrou sozinha em
meio à imensidão de brocado cor-de-rosa, pois no mundo de Mrs. Hatch a
hora do chá não era dedicada a rituais sociais, e a dama estava nas mãos da
sua massagista.
A chegada de Selden causou certo constrangimento; mas o embaraço
dele acabou por restaurar o autocontrole dela, e assim ela assumiu o tom de
surpresa e prazer, admirada por ele a ter encontrado em um lugar tão
improvável, e perguntando o que o teria levado a fazer tal busca.
Selden encarou a situação com uma seriedade incomum: ela nunca o
vira tão desconfortável, tão à mercê de quaisquer obstáculos que ela
pudesse impor.
– Eu queria vê-la – disse ele; e ela não resistiu à tentação de apontar
em resposta que ele continuava conseguindo manter seus desejos
notavelmente controlados. Ela, na verdade, via a longa ausência dele como
mais uma das tristezas que a abatera nos últimos meses: o abandono dele
tinha tocado em um ponto sensível muito abaixo da superfície do seu
orgulho.
Selden encarou o desafio com franqueza.
– Por que eu deveria ter vindo, a menos que achasse que poderia lhe
ser útil? Esta é a minha única desculpa para imaginar que pudesse querer
me ver.
Isso soou como uma evasão desajeitada, e a ideia deu um toque astuto
a sua resposta.
– Então veio agora porque acha que pode me ser útil?
Ele hesitou novamente.
– Sim: na humilde posição de ouvinte.
Para um homem inteligente este certamente foi um começo errado; e a
ideia de que o seu desconforto fosse devido ao medo de que ela pudesse ver
algum significado pessoal na sua visita, acabou com sua alegria em vê-lo.
Mesmo sob as condições mais adversas, este prazer sempre se fez sentir: ela
podia até odiá-lo, mas nunca foi capaz de expulsá-lo de um lugar. Neste
momento, ela estava bem perto de odiá-lo; mesmo assim o som da sua voz,
o modo como a luz incidia sobre seus cabelos castanhos, a maneira como
ele se sentou e levantou e ajeitou suas roupas – ela estava ciente de que até
mesmo estes detalhes triviais faziam parte da sua vida interior. Na presença
dele ela foi tomada por uma súbita sensação de tranquilidade, e o tormento
do seu espírito cessou; mas um impulso de resistir a esta influência furtiva
levou-a a dizer:
– É muita gentileza sua se colocar à disposição, mas o que o faz
pensar que tenho algo em particular para lhe falar?
Apesar de o tom por ela usado estar mais para o de um bate papo, a
pergunta foi formulada para lembrá-lo de que ninguém tinha requisitado
seus serviços; e por um momento Selden ficou emudecido. O mal-estar que
pairava entre eles poderia ter se resolvido com uma súbita explosão de
sentimentos; mas todo o treinamento e controle mental iam contra as
possibilidades de tal explosão. A calma de Selden pareceu ainda mais
resistente, e Miss Bart exalava ironia, enquanto eles se encaravam, cada um
em uma ponta de um dos sofás gigantes de Mrs. Hatch. O sofá em questão,
e o apartamento decorado com seus pares imensos, finalmente acabaram
ajudando Selden a encontrar uma resposta.
– Gerty me contou que você está trabalhando como secretária de Mrs.
Hatch; e percebi que ela estava ansiosa para saber como você está se
saindo.
Miss Bart recebeu a explicação sem baixar a guarda.
– Por que ela não veio me ver pessoalmente, então?
– Porque, como você não passou o endereço, ela ficou com receio de
incomodar – Selden continuou com um sorriso: – Com percebe tais
escrúpulos não me impediram; mas por outro lado não o risco de cair em
desgraça com você.
Lily retornou o sorriso dele.
– Você ainda não caiu; mas acho que vai.
– Isso cabe a você, não é? Como pode perceber minha iniciativa não
vai além de me colocar à sua disposição.
– Mas para qual uso? Como você poderia me ser útil? – ela perguntou
no mesmo tom suave.
Mais uma vez Selden olhou ao redor da sala de Mrs. Hatch; então
falou, com uma determinação que parece ter tirado desta última inspeção:
– Permita que eu a leve daqui.
Lily ruborizou diante do ataque surpresa; então enrijeceu e disse
friamente:
– E posso perguntar para onde quer que eu vá?
– De volta para a casa de Gerty, se assim quiser; o principal é que
fique longe daqui.
A rispidez incomum do seu tom deve ter mostrado a ela o quanto
estava sendo difícil para ele dizer aquelas coisas; mas ela não estava em
condições de analisar os sentimentos dele enquanto os seus próprios
estavam tão inflamados de revolta. Depois de desprezá-la, quem sabe até
mesmo evitá-la, no momento em que ela mais precisou dos seus amigos,
agora ele aparecia do nada e sem aviso prévio para invadir a sua vida com
uma suposta autoridade que despertou nela seus instintos de orgulho e
autodefesa.
– Sou-lhe muito grata – disse ela –, por se interessar tanto pelos meus
planos; mas estou muito satisfeita aqui, e não tenho intenção de ir embora.
Selden tinha se levantado, e estava em pé diante dela numa pose de
expectativa descontrolada.
– Isto só mostra que você não sabe onde está! – exclamou ele.
Lily também se levantou, num lampejo de raiva.
– Se veio aqui para dizer coisas desagradáveis sobre Mrs. Hatch…
– É exatamente a sua relação com Mrs. Hatch que me preocupa.
– Não tenho motivos para me envergonhar da minha relação com Mrs.
Hatch. Ela me deu trabalho quando meus amigos não fizeram nada
enquanto eu passava fome.
– Bobagem! Passar fome não é a única alternativa. Você sabe muito
bem que pode ficar com Gerty até conquistar a sua independência
novamente.
– Você mostra que sabe tanto sobre a minha vida que suponho que
esteja querendo dizer até que eu receba a herança da minha tia?
– Foi exatamente o que eu quis dizer; Gerty me contou – reconheceu
Selden sem embaraço. Estava muito inflamado agora para sentir qualquer
tipo de falso constrangimento ao falar o que lhe vinha à mente.
– Mas o que Gerty não sabe – retomou Miss Bart –, é que devo cada
centavo da minha herança.
– Meu Deus! – exclamou Selden, perdendo a compostura devida para
a surpresa causada pela declaração.
– Cada centavo, e um pouco mais – repetiu Lily –, e agora você sabe
por que prefiro ficar com Mrs. Hatch a me aproveitar da bondade de Gerty.
Não tenho mais nada, além da minha pequena renda, e preciso ganhar um
pouco mais para me manter.
Selden hesitou por um momento; então retomou num tom mais calmo:
– Mas com sua renda e a de Gerty, se me permite entrar em detalhes
da situação, você e ela poderiam morar juntas sem que você tivesse de
trabalhar para se sustentar. Gerty, estou certo, anseia por tal arranjo, e seria
muito bom se…
– Mas não posso – interpôs Miss Bart. – Existem vários motivos pelos
quais isto não seria bom para Gerty e nem para mim.
Ela fez uma pausa, e enquanto ele parecia esperar por mais
explicações, adicionou com um gesto rápido de cabeça: – Creio que vai me
perdoar se eu não lhe der mais explicações.
– Não tenho direito de querer saber mais – respondeu Selden,
ignorando o tom dela. – Não tenho direito de fazer nenhum comentário ou
dar mais opinião, além da que já dei. E meu direito de ter feito isso foi
simplesmente o direito universal de um homem para com uma moça
casadoura quando ele percebe que ela se colocou inconscientemente em
uma posição falsa.
Lily sorriu.
– Suponho – retomou –, que ao ser referir à posição falsa esteja
querendo dizer ficar fora do que chamamos de sociedade; mas lembre-se de
que fui excluída deste recinto sagrado muito antes de conhecer Mrs. Hatch.
Ante onde sei, existe pouca diferença entre estar dentro ou fora, e me
recordo que uma vez você me disse que somente aqueles que estão de fora é
que levam a sério a diferença.
A alusão à conversa memorável que eles tiveram em Bellomont não
foi sem segundas intenções, e ela esperou com um tremor estranho para ver
qual seria a reação; mas o resultado do experimento foi decepcionante.
Selden não permitiu que a alusão mudasse seu ponto de vista; disse
simplesmente com toda ênfase:
– A questão de estar fora ou dentro é, como você diz, um detalhe
muito pequeno, e isto não tem nada a ver com este caso, exceto que o
desejo de Mrs. Hatch de estar dentro pode colocá-la na posição que chamo
de falsa.
Apesar da moderação do seu tom, cada palavra dita só serviu para
aumentar ainda mais a resistência de Lily. Suas apreensões a colocaram
ainda mais contra ele. Ela esperava por um tom de empatia, por qualquer
sinal de que tinha recuperado seu poder sobre ele; mas a sua atitude de
sóbria imparcialidade, a ausência de todos os sinais esperados, transformou
o seu orgulho ferido em um ressentimento cego pela interferência dele. A
convicção de que ele tinha sido enviado por Gerty, e que, seja lá qual fora o
acordo deles, ele jamais teria se oferecido para vir ajudá-la, firmou sua
convicção em não confiar mais nele. Apesar da insegurança da sua situação,
ela preferia continuar na obscuridade a ficar devendo o alcance da luz a
Selden.
– Não sei – disse ela, quando ele terminou de falar –, porque imagina
que sou tão casadoura quanto diz; mas você já me disse que o único
objetivo de uma criação como a que recebi é o de ensinar uma menina a
conseguir o que ela quer, por que então não aceita que é exatamente isso
que estou fazendo?
O sorriso com o qual ela encerrou a discussão foi como uma barreira
erguida para a possibilidade de outras confidências: impôs um
distanciamento tão grande que ele teve a sensação de que nem seria ouvido
quando retomou:
– Não estou certo de que já a classifiquei como um exemplo de
sucesso deste tipo de criação.
Ela ruborizou com a insinuação, mas se recompôs com uma risadinha.
– Ah, espere um pouco mais, me dê um pouco mais de tempo antes de
decidir!
E enquanto ele hesitava diante dela, esperando por uma brecha na
barreira impenetrável que ela tinha erguido:
– Não desista de mim; ainda posso fazer jus a minha criação! – ela
afirmou.
Capítulo 10
– Dê uma olhada nestas lantejoulas, Miss Bart, foram todas pregadas
tortas.
A supervisora, uma mulher alta e levemente torta para um lado, jogou
a estrutura de arame e fios condenada sobre a mesa ao lado de Lily, e
passou para a próxima na linha de produção.
Havia umas vinte mulheres na sala de trabalho, seus perfis cansados,
sob penteados exagerados, debruçadas sobre o foco de luz forte que incidia
sobre seus utensílios de arte; pois a criação dos mais variados adereços para
os rostos das felizardas era muito mais do que uma linha de produção. Os
rostos delas mesmo eram abatidos por conta do ar abafado e do trabalho
sedentário, em vez de transparecerem algum sinal de anseio: elas eram
funcionárias de uma fábrica de chapéus, e eram bem-vestidas e bem-
remuneradas; mas a mais jovem era tão apagada e sem vida quando a de
meia-idade. Em toda a sala havia apenas uma cuja pele ainda mostrava um
pouco de vigor; e esta estava corada de vergonha quando Miss Bart, após a
crítica da supervisora, começou a arrancar as lantejoulas mal pregadas.
Para o espírito esperançoso de Gerty Farish uma solução surgiu
quando ela se lembrou do talento que Lily tinha para enfeitar seus chapéus.
Exemplos de jovens que tinham se estabelecido como modistas de chapéus
sob o patrocínio da moda, e que davam às suas “criações” aquele toque
especial que a mão profissional não é capaz de dar, iluminou as perspectivas
de futuro de Gerty, e convenceu até mesmo Lily de que a sua separação de
Mrs. Norma Hatch era necessária para que assim ela não dependesse mais
das amigas.
O rompimento ocorrera poucas semanas após a visita de Selden, e
teria acontecido antes não fosse pela resistência de Lily à tentativa infeliz
de aconselhamento por parte dele. A sensação de se ver envolvida em uma
transação que ela não tomara o cuidado de analisar com cautela logo se
confirmou pela dica dada por Mr. Stancy de que, se ela “aguentasse firme”,
não teria motivos para se arrepender. A insinuação de que tal lealdade
estaria diretamente ligada a uma recompensa direta apressou a sua partida, e
a mandou de volta, envergonhada e arrependida, para o seio acolhedor de
Gerty. Mas ela não pretendia ficar de papo para o ar, e a lembrança de Gerty
sobre os chapéus reavivou suas esperanças de exercer uma atividade
lucrativa. Finalmente algo que suas belas mãozinhas eram capazes de fazer;
ela não tinha dúvidas quanto a sua capacidade de dar um laço em uma fita
ou combinar uma flor. Obviamente só podia-se esperar dela estes delicados
toques de acabamento: dedos subordinados, grosseiros, manchados, furados
de agulhas, cuidariam dos formatos e pregariam os forros, enquanto ela iria
transitar na parte elegante da loja – uma loja decorada com panéis brancos,
espelhos e tapetes verde-musgo – onde as suas criações, chapéus, grinaldas,
penachos e tudo o mais, ficariam expostos nos manequins como se fossem
pássaros prestes a alçarem voo.
Mas a visualização de uma loja verde e branca se desfez logo no
início da campanha de Gerty. Outras moças do mundo da moda tinham se
“estabelecido” deste modo, vendendo seus chapéus por conta da atração
exercida por um sobrenome famoso e o talento para dar um laço; mas estes
seres privilegiados só puderam fazer isso por que tinham capital para bancar
o aluguel da loja e um bom montante para bancar outros gastos do
investimento. Como Lily poderia arrumar tal financiamento? E mesmo que
arrumasse, como as damas de quem dependia seu sucesso poderiam ser
convencidas a apoiarem a sua causa? Gerty sabia que as chances do caso da
sua amiga despertar qualquer tipo de simpatia eram mínimas alguns meses
antes, e, agora, após a sua associação com Mrs. Hatch, eram nulas. Mais
uma vez, Lily conseguiu se safar de uma situação ambígua a tempo de
salvar seu respeito próprio, mas tarde demais para uma retratação pública.
Fredy Van Osburgh acabou não se casando com Mrs. Hatch; foi salvo na
última hora – uns dizem que pelos esforços de Gus Trenor e Rosedale – e
partiu para a Europa com o velho Ned Van Alstyne; mas o risco que ele
correra sempre seria atribuído à conivência de Miss Bart, e de alguma
maneira iria contribuir para somar e corroborar a vaga desconfiança geral
que pairava sobre a sua pessoa. Foi um alívio para aqueles que tinham se
afastado dela se verem justificados, e assim acabaram por insistindo no
envolvimento dela com o caso Hatch para mostrarem que estavam certos.
De qualquer maneira a tentativa de Gerty colidiu contra um muro
sólido de resistência; e nem mesmo quando Carry Fisher, culpada pela sua
parcela de responsabilidade no caso Hatch, se juntou aos esforços de Miss
Farish, elas obtiveram sucesso. Gerty tentou justificar seu fracasso com
ambiguidades ternas; mas Carry, sempre sincera, expôs o caso em toda a
sua plenitude para a amiga.
– Falei primeiro com Judy Trenor; ela é menos preconceituosa do que
as outras, e, além disso, ela sempre odiou Bertha Dorset. Mas o que você
fez para ela, Lily? Na primeira palavra sobre ajudá-la a recomeçar ela
reagiu irritada, falando sobre o dinheiro que você pegou emprestado do
Gus; nunca a vi tão fora de si antes. Ela está de olho nele, e só vai permitir
que ele gaste dinheiro com os amigos: ela só me recebeu bem porque sabe
que não estou em dificuldades financeiras. Ele especulou na bolsa para você
é isso? Que mal tem? Ele não tinha nada a perder. Ele não perdeu? Então
qual o problema. Mas nunca conseguiu te entender, Lily!
O final disso foi que, após vários questionamentos e deliberações,
Mrs. Fisher e Gerty, unidas no esforço de ajudar a amiga, decidiram
arrumar um emprego para ela na renomada loja de chapéus de Madame
Regina. Até mesmo este acerto só conseguiu ser acordado após
considerável negociação, pois Madame Regina não gostava de contratar
assistentes sem experiência, mas acabou cedendo porque devia o apoio de
clientes como Mrs. Bry e Mrs. Gormer à influência de Carry Fisher. A
princípio ela estava disposta a contratar Lily como modelo: a contratação de
uma mulher da sociedade para exibir seus chapéus seria vantajosa. Mas
Miss Bart se opôs a ideia com o apoio de Gerty, enquanto Mrs. Fisher, não
convencida, mas resignada com esta última prova de irracionalidade de
Lily, concordou que no fim talvez fosse mais útil que ela aprendesse o
ofício. Assim, com o apoio das amigas, Lily foi contratada para trabalhar na
linha de produção de Regina, onde Mrs. Fisher a deixou com um suspiro de
alívio, enquanto os olhos vigilantes de Gerty continuaram observando-a de
longe.
Lily começou a trabalhar no início de janeiro: e agora, dois meses
depois, ela ainda estava sendo criticada pela sua incapacidade de forrar as
armações dos chapéus. Enquanto retomava o trabalho ela ouviu umas
risadinhas correndo pelas mesas. Ela sabia que era alvo de crítica e piada
das outras funcionárias. Obviamente, elas sabiam da sua história pregressa
– a situação de cada moça da sala era sabida e livremente discutida por
todas – mas o conhecimento não produziu nela nenhum tipo de distinção
social: o fato simplesmente explicava porque seus dedos destreinados ainda
estavam engatinhando nos rudimentos do ofício. Lily não esperava por
nenhum tipo de diferenciação social; mas achou que seria recebida como
uma igual, e talvez antes que tivesse tempo de mostrar para si mesma a sua
superioridade por uma questão de gosto refinado, foi humilhante descobrir
que, após dois meses de trabalho árduo, ela ainda era traída pela falta de
experiência. Ainda faltava muito para o dia em que ela pudesse aspirar a
exercitar os talentos que tinha certeza possuir; a delicada arte de moldar e
enfeitar chapéus era confiada apenas as artesãs mais experientes, e a
encarregada ainda se recusava a tirá-la da rotina estafante do trabalho
preparatório.
Ela começou a arrancar os apliques da armação, escutando ao longe a
murmurinho da conversa que erguia e diminuía de acordo com o ir e vir da
figura altiva de Miss Haines. O ar estava mais abafado do que o costume,
pois Miss Haines, que estava resfriada, não permitiu que abrissem uma
janela sequer, nem mesmo durante o horário de folga ao meio-dia; e a
cabeça de Lily estava tão pesada por conta das noites insones que o
burburinho das suas companheiras acabou se transformando em algo
parecido com um sonho sem sentido.
– Falei para ela que ele nunca mais iria olhar para ela novamente; e
ele não olhou mesmo. Eu também não olharia; acho que ela agiu muito mal.
Ele a levou ao Arion Ball, e se decepcionou com ela nos dois sentidos…
Ela tomou dez frascos e mesmo assim a dor de cabeça não melhorou; mas
ela escreveu um testemunho dizendo que se curou com o primeiro frasco, e
por isso recebeu cinco dólares e a foto dela saiu no jornal… O chapéu de
Mrs. Trenor? Aquele com a pena verde? Está aqui, Miss Haines. Já estou
terminando… Uma das meninas Trenor esteve aqui ontem com Mrs.
George Dorset. Como eu sei? Por que Madame mandou me chamar para eu
trocar a flor do chapéu Virot… o tule azul: ela é alta e magra, tem cabelos
finos… é a cara da Mamie Leach, só que é mais magra…
A conversa fluiu sem interrupção, uma corrente de som sem sentido,
onde, vez ou outra, surgia um nome conhecido, que ficava pairando na
superfície. Esta foi a parte mais estranha da experiência sinistra de Lily,
ouvir estes nomes, ver a imagem fragmentada e distorcida do mundo onde
ela vivia espelhada nas mentes das trabalhadoras. Ela nunca desconfiara da
mistura de curiosidade insaciável e desdém gratuito com o qual ela e a sua
classe eram tradadas no submundo das profissionais da moda que viviam da
vaidade e da autoindulgência delas. Cada uma das funcionárias de Madame
Regina sabia a quem se destinava o adereço de cabeça que tinham em mãos,
e tinha uma opinião formada sobre a futura proprietária, e um conhecimento
do lugar que esta ocupava no sistema social. O fato de Lily ser uma estrela
que caiu daquele céu, passado o primeiro acesso de curiosidade, não
adicionou nenhum tipo de interesse material por ela. Ela tinha caído, ela
tinha “fracassado”, e fieis ao ideal da sua classe, elas se encantavam apenas
com o sucesso – pela possibilidade factível de conquista material. A noção
do ponto de vista distinto que ela possuía só serviu para mantê-las afastada,
como se ela fosse uma estrangeira com que era difícil conversar.
– Miss Bart, se não conseguir pregar estes apliques direito acho
melhor passar o chapéu para Miss Kilroy.
Lily olhou desanimada para seu trabalho. A supervisora tinha razão: a
costura dos apliques estava péssima. Por que ela estava mais desajeitada do
que o normal? Seria o crescente desgosto pela função, ou algum problema
físico? Ela se sentia cansada e confusa: estava difícil organizar as ideias.
Ela se levantou e entregou o chapéu para Miss Kilroy, que pegou a peça,
segurando uma risadinha.
– Sinto muito, mas acho que não estou bem – disse ela à supervisora.
Miss Haines não falou nada. Era a primeira vez que ela via Madame
Regina aceitar uma aprendiz entre as suas funcionárias. Naquele templo da
arte não havia lugar para iniciantes inexperientes, e Miss Haines, como é
natural ao ser humano, sentiu certo prazer ao ver as suas suspeitas
confirmadas.
– Acho melhor você voltar para as barras – disse rispidamente. Lily
saiu junto das últimas funcionárias, ao final do expediente. Ela não se
importava em sair em meio ao grupo barulhento: uma vez na rua, sempre se
sentia o retorno irresistível ao seu antigo ponto de vista; um afastamento
instintivo daquele mundo confuso e sem requinte. Naqueles dias – como
pareciam distantes agora! – quando ia visitar o Clube das Moças com Gerty
Farish, ela sentira um interesse sincero pela classe trabalhadora; mas isto foi
porque estava olhando de cima para baixo, da posição confortável da sua
graça e benevolência. Agora que estava no mesmo nível, o ponto de vista
era bem menos interessante.
Ela sentiu uma mão tocando em seu braço, e se deparou com os olhos
culpados de Miss Kilroy.
– Miss Bart, acho que você consegue pregar aquelas lantejoulas tão
bem quanto eu quando estiver se sentindo melhor. Miss Haines não foi justa
com você.
Lily ruborizou diante da aproximação inesperada: fazia muito tempo
que alguém, senão Gerty, era gentil para com ela.
– Oh, obrigada: não estou me sentindo muito bem, mas Miss Haines
tem razão. Sou muito desajeitada.
– É difícil para qualquer um trabalhar com dor de cabeça – Miss
Kilroy hesitou. – É melhor ir direto para casa e se deitar. Já tomou
Orangeine?
– Obrigada – Lily gesticulou com a mão. – É muita gentileza sua.
Estou indo para casa.
Ela olhou agradecida para Miss Kilroy, mas nenhuma das duas sabia o
que dizer. Lily sabia que a outra estava prestes a se oferecer para
acompanhá-la até a sua casa, mas ela preferia ir sozinha e não ter de
conversar; apesar de estar sendo gentil, até mesmo a gentileza de Miss
Kilroy iria incomodar.
– Obrigada – ela repetiu enquanto se virava.
Ela seguiu rumo ao oeste sob a luz lúgubre de fim de tarde de março,
em direção à rua onde ficava a sua pensão. Tinha recusado resolutamente a
oferta de hospitalidade de Gerty. O horror que sua mãe tinha de ser
observada e de ser digna de pena estava começando a se desenvolver nela, e
a falta de intimidade e o aperto parecia mais insuportável do que a solidão
em uma casa onde ela poderia entrar e sair sem ser notada. Por um tempo o
anseio por privacidade e independência foram o que a mantiveram firme;
mas agora, talvez pelo cansaço físico cada vez mais intenso, a fadiga
causada pelas horas de confinamento indesejado, ela estava começando a
perceber com mais acuidade a feiura e o desconforto da vizinhança. Ao
final do dia, ela tinha horror de voltar para seu quartinho forrado com papel
de parede manchado e feio; e odiava cada trecho do caminho, que passava
por uma rua degradada de Nova Iorque nos últimos estágios de decadência
comercial.
Mas o que ela mais temia era passar em frente à farmácia que ficava
na esquina da Sexta Avenida. A princípio pensou em pegar outra rua:
ultimamente vinha fazendo isso. Mas neste dia seus passos a levaram na
direção da vitrine da esquina; ela tentou atravessar depois, mas uma carroça
carregada veio por trás, e assim ela acabou atravessando na transversal, e
quando pisou na calçada deu de cara com a entrada da farmácia.
Atrás do balcão estava o mesmo funcionário que já tinha atendido
antes, e ela deslizou a receita para a mão dele. Não havia dúvidas sobre a
receita: era uma cópia de uma das receitas de Mrs. Hatch, manipulada para
a senhora por este mesmo farmacêutico. Lily esperava que o balconista
aceitasse sem hesitação; enquanto isso, o medo de uma recusa, ou de um
questionamento, se manifestava em suas mãos agitadas enquanto ela fingia
examinar os frascos de perfume expostos em uma vitrine de vidro sobre o
balcão.
O balconista leu a receita sem comentar; mas quando estava
entregando o frasco parou.
– Não aumente a dose – alertou. Lily sentiu um aperto no coração.
O que ele quis dizer olhando para ela daquela maneira?
– Claro que não – murmurou ela, estendendo a mão.
– Muito bem. Este medicamento é perigoso. Uma ou duas gotas a
mais e pronto… os médicos não sabem por quê.
O medo de que ele a questionasse, ou segurasse o remédio, reteve o
murmúrio de aquiescência na sua garganta; e quando finalmente saiu ilesa
da farmácia estava até atordoada de alívio. O mero toque no embrulho
causou um tremor nos nervos com a promessa de uma bela noite de sono, e
em reação ao medo momentâneo ela teve a sensação de que os primeiros
sinais de sonolências já estavam rondando.
Na confusão ela trombou com um homem que descia apressado os
últimos degraus da estação ao alto. Ele recuou, e ela ouviu seu nome
surpresa. Era Rosedale, de casaco de pele, reluzente e próspero – mas
porque ele parecia tão distante e envolto em uma nuvem de cristais
cintilantes? Antes que tivesse tempo de analisar melhor o fenômeno ela já
estava trocando um aperto de mãos com ele. Dá última vez que tinham se
encontrado, eles se despediram com ira do lado dela e raiva do dele; mas
todos os traços destas emoções pareciam ter desaparecido quando suas
mãos se tocaram, e ela só sentia um desejo confuso de continuar segurando
a mão dele.
– O que aconteceu, Miss Lily? Parece não estar se sentindo bem! –
exclamou ele; e ela forçou um sorriso nos lábios pálidos.
Ele olhou ao redor da esquina suja e inapropriada em que se
encontravam, agitada pela barulheira e tumulto irritante dos bondes e
carroças.
– Não podemos ficar aqui, mas permita-me levá-la para algum lugar
para tomarmos um chá. O Longworth fica a poucos metros daqui, e deve
estar vazio agora.
Uma xícara de chá em um lugar calmo, longe do barulho e da feiura,
pareceu naquele momento um consolo bem-vindo. Poucos passos depois
eles estavam na porta do hotel que ele tinha mencionado, e segundos depois
ele estava sentado de frente para ela, e o garçom colocava uma bandeja de
chá entre eles.
– Tem certeza de que não quer um conhaque ou uísque primeiro?
Você parece muito cansada, Miss Lily. Então tome um chá bem forte; e,
garçom, traga uma almofada para as costas da dama.
Lily soltou um leve sorriso para a prescrição de tomar um chá forte.
Esta era uma tentação ao qual ela vinha resistindo. O desejo de ingerir a
bebida estimulante conflitava com a necessidade de dormir – a ansiedade da
noite que apenas o frasco em sua mão poderia acalmar. Mas neste dia, o chá
poderia ser forte: ela contava com a bebida para aquecer e fortalecer suas
veias vazias.
Enquanto recostava diante dele, suas pálpebras pesaram num sinal
claro de lassidão, apesar de o calor já ter devolvido um pouco de vida ao
seu rosto, Rosedale, mais uma vez, foi pego de surpresa pela beleza tocante
dela. O risco escuro de fadiga sob os olhos, o tom mórbido das veias
azuladas nas têmporas, realçava o brilho dos cabelos e lábios, como se todo
o fluxo da sua vitalidade esgotada tivesse se concentrado ali. Contra o
fundo marrom escuro do restaurante, a pureza de seu rosto se destacava
como nunca antes, nem mesmo sob a luz mais cintilante de um salão de
baile. Ele olhou para ela com uma sensação desconfortável, como se a
beleza dela fosse um inimigo esquecido que ficara de tocaia e agora o
apanhara de surpresa.
Para aliviar a tensão ele se dirigiu a ela num tom suave:
– Faz tempo que não a vejo, Miss Lily. Não sei por onde andava.
Enquanto falava, ele foi tomado por uma sensação embaraçosa das
complicações que suas palavras poderiam causar. Apesar de não ter visto-a
mais, ele tinha ouvido falar dela; sabia da sua ligação com Mrs. Hatch, e do
desfecho resultante. Ele frequentara o círculo de Mrs. Hatch com
assiduidade, mas agora tinha se afastado com afinco.
Lily, para quem o chá tinha restaurado a clareza de pensamentos, leu
os pensamentos dele e disse com um sorrisinho:
– Acho que não gostaria de saber o que aconteceu comigo. Entrei para
a classe trabalhadora.
Ele a fitou surpreso.
– Não me diga que…? Por que diabos está fazendo?
– Estou aprendendo a fazer chapéus… ou estou tentando aprender –
ela se corrigiu.
Rosedale conteve um bufar de surpresa.
– Você não está falando sério, está?
– Muito sério. Fui obrigada a trabalhar para sobreviver.
– Mas entendi… pensei que estivesse com Norma Hatch.
– Você ficou sabendo que eu estava trabalhando como secretária dela?
– Algo assim – ele se inclinou para servir mais chá para ela.
Lilly pensou nos possíveis embaraços que o tópico poderia causar
para ele, e erguendo os olhos, disse de repente:
– Eu a deixe há dois meses.
Rosedale continuou segurando o bule sem jeito, e ela teve certeza de
que ele tinha ouvido os boatos que estavam correndo. Mas o que
exatamente Rosedale tinha ouvido?
– Não era um trabalho fácil? – perguntou ele, tentando aliviar a
tensão.
– Muito fácil, demasiadamente fácil – Lily apoiou um braço sobre a
beirada da mesa, e ficou olhando para ele mais intensamente do que nunca.
Um impulso incontrolável a incentivava a contar tudo para aquele homem,
cuja curiosidade ela sempre se defendeu com afinco.
– Creio que conhece Mrs. Hatch? Neste caso, talvez saiba por que ela
facilitou as coisas para mim.
Rosedale parecia genuinamente surpreso, e ela percebeu que ele tinha
percebido a alusão.
– De qualquer maneira não servia para você – concordou ele, tão
envolvido e imerso na luz do olhar intenso dela que ele se deu conta que de
que estava sendo arrastado para as profundezas da intimidade desconhecida.
Ele que sempre fora obrigado a se contentar com olhares evasivos, olhares
de soslaio e as escondidas, se viu sob a mira tão intensa dos olhos dela que
ficou atordoado.
– Eu me demiti – continuou Lily –, antes que dissessem que eu estava
ajudando Mrs. Hatch a se casar com Freddy Van Osburgh, que é no mínimo,
muito para ela, mas como continuam dizendo isso de qualquer maneira,
acho que eu deveria ter ficado onde estava.
– Oh, Freddy… – Rosedale desdenhou o caso como se não fosse
importante, agora que tinha ficado sabendo de todos os detalhes. – Freddy
não conta, mas eu sabia que você não estava envolvida naquilo. Não faz seu
estilo.
Lily corou um pouco: não conseguiu esconder que as palavras a
agradaram. Ela gostaria de poder ficar sentada ali, tomando mais chá, e
conversando com Rosedale. Mas o velho hábito de obedecer às convenções
a lembrou de que já estava na hora de finalizar o colóquio, e ela fez menção
de afastar a cadeira.
Rosedale a impediu com um gesto de protesto.
– Espere, não vá ainda; fique e descanse mais um pouco. Você parece
muito cansada. E ainda não me contou… – ele parou, ciente de que tinha
ido longe demais. Ela percebeu e entendeu; entendeu também a natureza do
feitiço que o prendia e enquanto ainda olhava fixamente para ela, ele
retomou abruptamente: – O que quis dizer quando falou que está
aprendendo a fazer chapéus?
– Exatamente isso. Sou uma aprendiz da Madame Regina.
– Senhor, você? Mas por quê? Fiquei sabendo que sua tia faleceu:
Mrs. Fisher me contou. Mas entendi que você recebeu uma herança dela.
– Vou receber dez mil dólares, mas a herança não será paga antes do
próximo verão.
– Sim, mas... Escute: posso emprestar o quanto você quiser.
Ela negou com um aceno grave de cabeça.
– Não, pois já devo tudo.
– Deve tudo? Os dez mil?
– Cada centavo – ela fez uma pausa, e então retomou num rompante,
olhando fixamente para ele. – Creio que Gus deve ter comentado que
ganhou um dinheiro na bolsa para mim.
Ela esperou, e Rosedale, sem jeito, murmurou que tinha ouvido falar
algo.
– Ele ganhou mil dólares – prosseguiu Lily, no mesmo tom de quem
estava disposta a contar tudo. – Na época, achei que ele tinha especulado o
meu dinheiro: fui muito tola, mas eu não entendia nada de negócios. Depois
descobri que ele não tinha usado meu dinheiro; que o que ele tinha dito que
ganhara, na verdade ele tinha dado para mim. Foi um favor, é claro; mas
não é certo ficar devendo este tipo de favor. Infelizmente gastei o dinheiro
antes de descobrir meu erro; e assim toda minha herança será usada para
quitar esta dívida. É por isso que estou tentando aprender sobre os negócios.
Ela contou tudo com clareza, deliberadamente, com pausas entre as
sentenças, tanto que cada uma teve tempo de assentar profundamente na
mente do seu interlocutor. Ela tinha um desejo sincero de que alguém
soubesse toda a verdade sobre essa transação, para que assim, os rumores
da sua intenção de devolver o dinheiro, chegasse aos ouvidos de Judy
Trenor. E de repente lhe ocorreu que Rosedale, que soubera tudo por
Trenor, era a pessoa certa para receber e passar adiante a sua versão dos
fatos. Ela chegou até a sentir um alívio momentâneo com a noção de que
tinha se livrado do segredo odioso; mas a sensação foi se desfazendo aos
poucos durante a revelação, e quando terminou a sua palidez tinha sido
tingida pelo rubor da tristeza.
Rosedale ainda olhava estupefato, mas a surpresa tomou um rumo que
ela não esperava.
– Mas veja bem, se este é o caso, você vai ficar sem nada.
– Sim, nada – ela concordou calmamente.
Ele ficou calado, as mãos cruzadas sobre a mesa, os olhinhos curiosos
voltados para os fundos do restaurante vazio.
– Veja, está tudo bem! – exclamou ele de repente.
Lily se levantou com uma risada de desprezo.
– Oh, não, não está nada bem – disse ela, juntando as pontas do
cachecol.
Rosedale permaneceu sentado, muito entretido com os próprios
pensamentos para notar o movimento dela.
– Miss Lilly, se quiser qualquer tipo de ajuda minha… – irrompeu ele
de modo desconexo.
– Obrigada – ela ergueu a mão. – O chá que me ofereceu já foi de
grande ajuda. Sinto-me preparada para fazer qualquer coisa agora.
Seu gesto mostrou uma clara intenção de despedida, mas o já
acompanhante tinha deixado uma nota de gorjeta para o garçom, e estava
enfiando os bracinhos curtos dentro do casaco caro.
– Espere, permita que eu a acompanhe até a sua casa – disse ele.
Lily não protestou, e após uma pausa dele para conferir o troco, eles
saíram pela porta do hotel e atravessaram a Sexta Avenida novamente. À
medida que ela avançava para o oeste, passando por uma sucessão de áreas
que, através das suas cercas por pintar, revelavam com crescente candor os
dsjecta membra de jantares passados, Lily percebeu que Rosedale olhava
com desprezo para o bairro; e diante da porta onde ela finalmente parou ele
olhou para cima com um ar de desgosto incrédulo.
– Este é o lugar? Alguém me falou que você estava morando com
Miss Farish?
– Não: estou morando aqui. Já vivi por muito tempo com meus
amigos.
Ele continuou observando a fachada de pedrinhas marrom, as janelas
abertas com suas cortinas de renda descoradas, e para a pintura ao estilo
romano do vestíbulo encardido; então olhou de volta para o rosto dela e
disse com um visível esforço:
– Vai permitir que eu volte para lhe fazer uma visita, dia desses?
Ela sorriu, reconhecendo o heroísmo da oferta ao ponto de se
sensibilizar de verdade.
– Obrigada. Eu ficaria muito feliz – respondeu ela, pela primeira vez,
se dirigindo com toda sinceridade a ele.
Naquela noite, em seu quarto, Miss Bart – que deixara mais cedo o
ambiente pesado de fumaça da sala de jantar, que ficava no porão – ficou
pensando no impulso que a levara a se abrir para Rosedale. Por trás disso
ela descobriu uma crescente sensação de solidão – um medo de voltar para
seu quarto, enquanto poderia ficar em qualquer outro lugar, ou na
companhia de qualquer outra pessoa que não fosse a sua própria. A força
das circunstâncias vinha afastando-a mais e mais dos poucos amigos que
lhe restavam.
Após o seu último esforço a favor de Lily, e depois de deixá-la segura
do atelier de Madame Regina, Mrs. Fisher pareceu propensa a se aposentar
da função; e Lily, compreendendo o motivo, não a condenava. Carry na
verdade chegou bem perto de se envolver com o episódio de Mrs. Norma
Hatch, e teve de contar uma boa história para conseguir se safar. Ela de fato
tinha apresentado Lily a Mrs. Hatch, mas na época não conhecia muito Mrs.
Hatch – chegou a avisar expressamente Lily que não conhecia Mrs. Hatch –
e além do mais, ela não era dona de Lily, e a moça já tinha idade suficiente
para cuidar de si mesma. Carry declarou de modo tão brutal sua situação,
mas permitiu que fosse colocado deste modo pela sua mais nova amiga do
peito, Mrs. Jack Stepney, que o fez temendo a ligação dela com a fuga do
seu único irmão, e ávida por inocentar Mrs. Fisher, em cuja casa ela poderia
contar com as “festinhas divertidas” que tinham se tornado uma
necessidade desde que seu casamento a emancipara dos olhos vigilantes dos
Van Osburgh.
Lily entendeu a situação e deu um desconto. Carry tinha sido uma boa
amiga nos dias difíceis, e talvez somente uma amizade como a de Gerty
fosse à prova de tantos percalços. A amizade de Gerty continuava firme;
apesar de Lily estar começando a evitá-la. Pois não havia como visitar
Gerty sem correr o risco de encontrar Selden; e encontrá-lo agora seria
muito dolorido. Já era dolorido o suficiente pensar nele, fosse nos
momentos indistintos de um cochilo, ou na insistente sensação de que ele
estava por perto no tumulto de suas noites mal dormidas. Este fora um dos
motivos pelo qual ela voltara a comprar o remédio receitado para Mrs.
Hatch. Era nos momentos de sono agitado que ele aparecia em seus sonhos,
às vezes com o velho disfarce de amizade e carinho; e depois disso ela
acordava da doce ilusão sentindo-se ridícula e desencorajada. Mas no sono
produzido pelo medicamento ela ficava livre de tais aparições, e
mergulhava nas profundezas do sono pesado e sem sonhos de onde
despertava na manhã seguinte sem passado.
Claro que a tensão dos antigos pensamentos acabava voltando; mas
pelos menos não importunavam mais durante as horas de sono. O
medicamento lhe deu uma ilusão momentânea de completa renovação, de
onde ela tirou forças para encarar o trabalho diário. A força era mais e mais
necessária à medida que as dúvidas seu futuro aumentavam. Ela sabia que
para Gerty e Mrs. Fisher ela só estava passando por um período temporário
de dificuldades, uma vez que elas acreditavam que o aprendizado no atelier
de Madame Regina a ajudaria, depois que a herança de Mrs. Peniston fosse
paga, a realizar o sonho de abrir a loja verde e branca com todo o
conhecimento adquirido no treinamento anterior. Mas para Lily, que sabia
que a herança não poderia ser usada para isso, o período de aprendizagem
parecia ser uma perda de tempo. Ela sabia que, mesmo que conseguisse
aprender a competir com mãos treinadas para a função desde a tenra idade,
o pequeno salário que iria receber não seria suficiente para aumentar a sua
renda e livrá-la das dificuldades. E a noção disso a fez pensar várias vezes
em usar a herança para abrir seu negócio. Uma vez instalada, e no comando
das suas funcionárias, ela acreditava que tinha tato e habilidade suficientes
para atrair uma clientela elegante; e se o negócio desse certo ela poderia ir
guardando dinheiro aos poucos para quitar a sua dívida com Trenor. Mas o
negócio poderia demorar anos para dar certo, mesmo que ela tentasse
economizar ao máximo; e enquanto isso seu orgulho continuaria esmagado
sob o peso da obrigação insuportável.
Essas considerações eram superficiais; mas por trás delas rondava o
receio secreto de que a obrigação pudesse deixar de ser insuportável. Ela
sabia que não poderia contar com sua firmeza de propósito, e o que mais a
assustava era a ideia de que aos poucos acabasse se acomodando em
permanecer indefinitivamente em dívida com Trenor, assim como ela se
acomodara ao seu papel no Sabrina, e assim como quase concordara com o
plano de Stancy para o avanço de Mrs. Hatch. O perigo estava, como ela
bem sabia, no seu antigo e incurável medo do desconforto e da pobreza; no
medo daquela maré ascendente de pobreza contra o qual sua mãe sempre a
alertara com fervor. E agora um novo perigo se colocara no seu caminho.
Ela sabia que Rosedale estava disposto a lhe emprestar dinheiro; e o desejo
de tirar vantagem da oferta começou a rondar assiduamente. Claro que era
impossível aceitar um empréstimo de Rosedale; mas a possibilidade
rondava tentadora. Era praticamente certo que ele viria lhe fazer uma visita,
e quase certo que, se o fizesse, ela poderia induzi-lo a pedi-la em casamento
nos mesmos termos que ela tinha rejeitado anteriormente. Será que iria
rejeitá-los se fossem oferecidos novamente? Cada vez mais, a cada desastre
que a abatia, a fúrias pareciam assumir a forma de Bertha Dorset; e ao
alcance da mão, guardados em segurança com seus documentos, estavam os
meios para pôr um fim a perseguição. A tentação, que seu desprezo por
Rosedale um dia a levara a rejeitá-lo, agora voltava insistentemente; e até
quando ela teria forças para se opor?
Que mal havia em se casar com ele, de qualquer maneira; o que ela
não podia era se expor mais aos perigos de uma noite sem dormir. Ao longo
das horas silenciosas, o espírito sombrio do cansaço e da solidão pensava
em seu peito, deixando-a tão exaurida e sem forças que seus pensamentos,
na manhã seguinte, pairavam numa nuvem confusa de fraqueza. A única
esperança de renovação jazia no frasco sobre o criado-mudo; mas por
quanto tempo aquela esperança poderia durar nem ela ousava conjecturar.
Capítulo 11
Lily, parada na esquina, observava o espetáculo de fim de tarde na
Quinta Avenida. Era um dia de final de abril, e a doçura da primavera
estava no ar. Ela disfarçava a feiura da longa via movimentada, tirava o
foco das linhas secas dos telhados, refletia uma luz malva sobre as
perspectivas desencorajadoras das ruas laterais, e dava um toque poético ao
delicado tom verde que marcava a entrada do parque.
Enquanto permaneceu ali, Lily reconheceu vários rostos conhecidos
dentro das carruagens que passavam. A temporada tinha chegado ao fim, e
suas forças propulsoras tinham debandado; mas ainda restavam alguns,
adiando a partida para a Europa, ou de passagem pela cidade, retornando do
sul. Entre eles estava Mrs. Van Osburgh, desfilando majestosa na sua
carruagem aberta, ao lado de Mrs. Percy Gryce, e o mais novo herdeiro dos
milhões dos Gryce sentado de frente para elas, no colo da babá. Logo
depois, passou o carro elétrico de Mrs. Hatch, onde a dama seguia no
esplendor de um assento de molas, obviamente feito para dois ocupantes; e
um ou dois minutos depois veio Judy Trenor, acompanhada de Lady
Skiddaw, que tinha vindo para a sua pesca anual “na cidade”.
Esse ligeiro vislumbre do seu passado serviu para fortalecer a falta de
propósito com o qual Lilly costumava voltar para casa nos últimos tempos.
Ela não tinha nada para fazer pelo resto do dia, nem nos dias que estavam
por vir; pois a temporada tinha acabado na loja de chapéus assim como na
sociedade, e uma semana antes Madame Regina a notificou de que seus
serviços não eram mais necessários. Madame Regina costumava reduzir a
equipe no dia primeiro de maio, e a frequência de Miss Bart nos últimos
tempos era tão irregular – ela vivia doente, e seu trabalho pouco rendia
quando ela aparecia – que foi apenas por uma questão de favor que ela não
foi dispensada antes.
Lily não questionou se a decisão tinha ou não sido justa. Tinha
consciência da sua displicência, da falta de habilidade e que custava a
aprender. Era duro reconhecer a inferioridade até mesmo para si mesma,
mas o fato era que como trabalhadora ela jamais poderia competir com a
habilidade profissional. Uma vez que tinha sido criada para enfeitar, ela não
podia se culpar por não servir para algum propósito mais prático; mas a
descoberta colocou um ponto final a confortante ideia de que poderia ser
útil para alguma coisa.
Enquanto voltava para casa ela foi acometida pela ansiedade por não
ter um motivo para acordar na manhã seguinte. O luxo de ficar na cama até
mais tarde era um prazer que pertencia a uma vida tranquila; não fazia parte
da existência útil de uma moradora de pensão. Ela gostava de sair do seu
quarto e de voltar o mais tarde possível; e caminhava devagar agora para
adiar a detestável aproximação da sua soleira.
Mas ao se aproximar, a visão da porta despertou um súbito interesse
por estar ocupada – na verdade tomada – pela figura chamativa de Mr.
Rosedale, cuja presença parecia se destacar da pobreza do local.
A visão despertou em Lily uma irresistível sensação de triunfo.
Rosedale, um ou dois dias depois de terem se encontrado por acaso, tinha
vindo saber se ela tinha se recuperado da indisposição; mas desde então ela
não o tinha visto ou ouvido falar dele, e sua ausência foi interpretada como
um sinal de que ele lutara para se manter afastado, para mais uma vez
expulsá-la da sua vida. Se este tinha sido o motivo, seu retorno mostrava
que a luta tinha sido em vão, pois Lily sabia que ele não era homem de
perder tempo com namoricos inconsequentes. Ele era muito ocupado, muito
prático, e acima de tudo muito preocupado com seu próprio avanço, para se
preocupar com tais apartes não lucrativos.
Na saleta azul-pavão, adornada com suas flores desidratadas, e
quadrinhos de latão com cenas românticas em relevo, ele olhou ao redor
com um desgosto indisfarçado, ao colocar desconfiado o chapéu sobre o
console enfeitado com uma estatueta de Rogers.
Lily sentou em um dos sofás de veludo e pau-rosa, e ele se acomodou
em uma cadeira de balanço coberta com uma capa engomada que roçava
desagradavelmente a dobrinha rosada da pele acima do seu colarinho.
– Minha nossa, você não pode continuar vivendo aqui! – exclamou
ele.
Lily achou engraçado.
– Não sei se conseguirei, mas tenho procurado economizar, e acho
que vai dar.
– Acha que vai dar? Não foi isso que eu quis dizer. Este lugar não
serve para você!
– Mas foi o que eu quis dizer, pois estou sem trabalho há uma semana.
– Sem trabalho, sem trabalho! Isso é jeito de falar! A ideia de você
tendo de trabalhar… é ridícula.
Suas frases saiam entremeadas a sacudidas abruptas, como se
estivessem vindo de uma cratera profunda de indignação. – Isto é uma
farsa… uma farsa maluca – repetiu ele, com os olhos fixos na paisagem da
sala refletida no espelho manchando entre as janelas.
Lily seguia ouvindo os arroubos com um sorriso.
– Não sei por que deveria me ver como uma exceção… – iniciou ela.
– Porque você é; é por isso; e o fato de estar em um lugar como este é
ultrajante. Não consigo falar sobre isso calmamente.
Na verdade, ela nunca o vira tão abalado; e havia algo de comovente
no modo como ele tentava conter as emoções.
Ele se levantou tão bruscamente que deixou a cadeira de balanço
oscilando, mesmo depois de já estar diante dela.
– Escute aqui, Miss Lily, estou de partida para a Europa na semana
que vem: vou passar alguns meses entre Paris e Londres, e não posso deixá-
la nestas condições. Não posso fazer isso. Sei que não é da minha conta,
você já me disse isso; mas a sua situação piorou muito, e você precisa
aceitar a ajudar de alguém. Naquele dia, você falou sobre uma dívida que
tem para com Trenor. Sei o que quis dizer, e a respeito pelo modo como está
encarado a situação.
Um rubor de surpresa tomou conta do rosto pálido de Lily, mas antes
que ela pudesse interrompê-lo, ele continuou afoito:
– Permitia que eu lhe empreste o dinheiro para pagar Trenor; e não
vou, eu… escute, não me interrompa até eu terminar. O que quero dizer é
que isto será um simples acordo de negócios, do tipo que um homem faz
com outro. Agora, diga o que tem a dizer?
O rubor de Lily intensificou numa mistura de humilhação e gratidão;
e os dois sentimentos se revelaram na gentileza inesperada da sua resposta.
– Só tenho a dizer que foi exatamente isso que Gus Trenor propôs; e
por isso nunca mais terei certeza se compreendi corretamente um acordo de
negócio.
Então, ao perceber que a resposta era um tanto injusta, ela adicionou,
com mais gentileza ainda: – Não que não aprecie a sua bondade, sou muito
grata. Mas um acordo de negócio entre nós seria impossível, pois não tenho
nada a oferecer como garantia depois que a minha dívida com Gus for paga.
Rosedale recebeu a declaração em silêncio. Ele pareceu perceber o
tom definitivo na voz dela, mesmo assim não conseguiu aceitar o fim da
questão entre eles.
No intervalo de silêncio, Lily percebeu exatamente o que se passava
na cabeça dele. Por mais perplexo que estivesse diante da determinação
dela – apesar de não ter entendido muito bem seus motivos – ela percebeu
que isto fortalecia o fascínio que exercia sobre ele. Era como se seu
sentimento de escrúpulos inexplicáveis e resistência exercessem o mesmo
tipo de atração que a figura delicada, os modos contidos, que davam a ela
uma aparência externa de raridade, algo de inatingível. À medida que ele
ascendia socialmente esta exclusividade adquirira um grande valor para ele,
como se ele fosse um colecionador que tinha aprendido a distinguir as
menores diferenças de estilo e qualidade de um objeto muito cobiçado.
Lily, percebendo tudo isso, entendeu que finalmente ele se casaria
com ela, com a condição de que ela fizesse as pazes com Mrs. Dorset; e a
tentação foi bem menos fácil de ser superada, pois, aos poucos, as
circunstâncias estavam desfazendo a aversão que nutria por Rosedale. A
aversão, na verdade, ainda existia; mas tinha sido atenuada pela percepção
das suas qualidades: de uma bondade rústica, um sentimento de fidelidade
incontrolável, que pareciam lutar para romper a superfície dura das suas
ambições materiais.
Lendo nos olhos dela que estava sendo dispensado, ele ergueu a mão
com um gesto que tinha algo deste conflito inarticulado.
– Se me permitir, posso colocá-la acima de todos. Você poderia limpar
os pés neles! – declarou ele; e a tocou de uma maneira estranha perceber
que a nova paixão dele não tinha alterado seus antigos valores.

***
Naquela noite Lily não tomou remédio para dormir. Passou a noite em
claro na cama, analisando sua situação sob a luz cruel lançada pela visita de
Rosedale. Ao rechaçar a oferta que ele renovou de bom grado, não teria ela
se sacrificado em nome de uma daquelas noções abstratas de honra mais
conhecidas como convenções da vida moral? Que satisfação ela devia para
uma classe social que a tinha condenado e banido sem julgamento prévio?
Ela nunca teve uma chance de se defender; era inocente da acusação pela
qual tinha sido declarada culpada; e a irregularidade da sua condenação
poderia justificar o uso de métodos pouco ortodoxos para a recuperação dos
seus direitos perdidos. Bertha Dorset, para se salvar, não teve escrúpulos em
arruiná-la sob um pretexto falso; por que ela deveria hesitar em se utilizar
dos fatos que o acaso tinha colocado no seu caminho? Afinal, metade do
opróbrio de tais atos depende do nome que se dá a ele. Chame de
chantagem e o ato se torna inadmissível; mas diga que não vai prejudicar
ninguém, e que os direitos por ele recuperados foram usurpados
injustamente, e ele se transforma em uma concepção formal de um fato ao
ponto de não encontrar nenhum argumento contra sua defesa.
Os argumentos que justificavam isso para Lily eram os mesmos
incontestáveis que justificavam sua situação pessoal: o sentimento de
injustiça, de fracasso, o desejo árduo de ter uma chance contra o despotismo
egoísta da sociedade. Ela tinha aprendido com a experiência que não tinha
nem aptidão ou constância moral para refazer sua vida de acordo com
novos padrões; para se tornar uma trabalhadora em meio aos trabalhadores,
e esquecer o mundo de luxo e prazeres. Ela não podia se responsabilizar
pela tentativa não ter dado certo, e talvez fosse menos culpada do que
imaginava. Tendências herdadas tinham sido combinadas com um
treinamento desde a tenra idade com o intuito de transformá-la no produto
altamente requintado que ela era: um organismo tão indefeso quanto uma
anêmona lançada contra uma pedra. Ela tinha sido moldada para adornar e
encantar; para que outros fins a natureza arredondou a pétala da rosa e
coloriu o peito do beija-flor? Seria culpa sua que a missão puramente
decorativa era mais difícil de ser exercida entre os seres da sociedade do
que no mundo da natureza? Que esta pode ser dificultada por necessidades
materiais ou atrapalhada por escrúpulos morais?
Essas foram as duas forças antagônicas que travaram uma batalha
dentro do seu peito durante a longa noite em claro; e quando se levantou na
manhã seguinte ela não fazia ideia de qual das duas tinha saído vencedora.
Ela estava exausta pelo efeito de uma noite sem dormir, após várias noites
de descanso obtido artificialmente; e sob à luz distorcida do cansaço o
futuro se mostrou cinza, interminável e desolador.
Ela ficou até mais tarde na cama, recusando o café e os ovos fritos
que a simpática criada irlandesa deixara à sua porta, e odiando os barulhos
domésticos íntimos da casa e dos gritos e rumores vindos da rua. A semana
ociosa a tinha colocado cara a cara de modo brutal com estes pequenos
agravantes da vida em uma pensão, e ela sentiu saudades daquela outra vida
de luxo, cujo maquinário ficava cuidadosamente escondido para que as
cenas mudassem de uma para outra sem percalços.
Finalmente ela se levantou e se vestiu. Desde que tinha perdido o
emprego no atelier de Madame Regina que passava os dias vagando pelas
ruas, em parte para fugir das promiscuidades insuportáveis da pensão, e em
parte na esperança de que o cansaço físico a ajudasse a dormir. Mas assim
que saiu, ela não conseguiu decidir para onde iria; pois vinha evitando
Gerty desde a demissão, e não tinha certeza se seria recebida em outro
lugar.
A manhã estava difícil comparada ao dia anterior. O céu carregado era
um prenúncio de chuva, e um veto forte soprava a poeira em espirais
violentos pelas ruas. Lily seguiu pela Quinta Avenida em direção ao parque,
na esperança de encontrar um lugar protegido onde pudesse se sentar; mas o
vento estava congelante, e depois de vagar uma hora sob os galhos agitados
ela resolveu se abrigar em um pequeno restaurante na rua Cinquenta e
Nove. Não estava com fome, e pretendia sair sem almoçar; mas estava
muito cansada para voltar para casa, e a visão das mesas forradas de branco
se apresentava de modo sedutor através das janelas.
O salão estava cheio de mulheres e moças, todas estavam muito
ocupadas com seus chás e tortas para notarem a sua chegada. O
murmurinho de vozes estridentes reverberava contra o pé direito baixo,
deixando Lily encerrada em um pequeno círculo de silêncio. Ela sentiu uma
pontada súbita de solidão. Tinha perdido a noção do tempo, e parecia que
não conversava com alguém há dias. Seus olhos buscaram nos rostos ao
redor, ansiando por um olhar receptivo, algum sinal de que alguém notara a
sua situação. Mas as mulheres, ocupadas com suas bolsas, cadernos e
partituras, pareciam muito envolvidas com seus próprios afazeres, até
mesmo aquelas que estavam sentadas sozinhas corrigindo provas ou lendo
revistas entre goles apressados de chá. Lily por sua vez não tinha
absolutamente nada para fazer.
Ela bebeu várias xícaras de chá que foram servidas com uma porção
de ostras cozidas, e sua mente parecia mais clara e desperta quando ela
pisou na rua novamente. Enquanto estava sentada no restaurante, ela
percebeu que inconscientemente tinha chegado a uma decisão final. A
descoberta lhe deu uma ilusão momentânea de ocupação: foi excitante
pensar que tinha um motivo para voltar correndo para casa. Para prolongar
o sabor da sensação ela resolveu andar; mas a distância era muito grande e
por conta disso acabou olhando ansiosa para os relógios que encontrou ao
longo do caminho. Uma das surpresas do seu estado de desocupação foi a
descoberta de que o tempo, quando é deixado por contra própria e não sofre
nenhum tipo de cobrança definida, não passa a um ritmo reconhecível.
Normalmente ele se estende; mas justamente quando alguém conta com a
sua lentidão, ele dispara de repente num galope selvagem.
Ela descobriu, entretanto, ao chegar em casa, que ainda dava tempo de
sentar e descansar por alguns minutos antes de colocar o plano em ação. A
demora não enfraqueceu sua determinação. Ela estava assustada e ao
mesmo tempo empolgada pela força da resolução que sentia dentro de si:
viu que seria mais fácil, muito mais fácil do que tinha imaginado.
Às cinco ela se levantou, destrancou seu baú, e pegou um pacote
fechado que guardou dentro do decote do vestido. Nem mesmo o contato
com o pacote abalou seus nervos como ela esperava. Ela tinha a sensação
de que estava protegida por uma forte barreira de indiferença, como se a
determinação tivesse finalmente entorpecido sua sensibilidade.
Mais uma vez ela se preparou para sair, trancou a porta e saiu.
Quando pisou na calçada, o dia ainda estava claro, mas a ameaça de chuva
escurecia o céu e rajadas de vento frio agitavam as placas das lojas ao longo
da rua. Quando chegou à Quinta Avenida ela diminuiu o ritmo. Conhecia
bem os hábitos de Mrs. Dorset a ponto de saber que ela sempre costumava
estar em casa depois das cinco. Ela poderia, na verdade, até não estar
disposta a receber visitas, especialmente uma tão indesejada, e contra o qual
ela muito possivelmente tinha se precavido de receber por meio de ordens
explícitas; mas Lily tinha escrito um bilhete que pretendia enviar para se
anunciar, e tinha certeza de que seria recebida.
Ela dera tempo suficiente para caminhar até a casa de Mrs. Dorset,
imaginando que o exercício durante a tarde fria iria ajudar a acalmar seus
nervos; mas na verdade ela nem precisava se acalmar. Sua perspectiva
diante da situação se matinha calma e inabalada.
Quando alcançou a rua Cinquenta, as nuvens romperam
abruptamente, e uma rajada de chuva fria colidiu contra o seu rosto. Ela não
tinha guarda-chuva e a umidade encharcou rapidamente o fino vestido de
verão. Ainda estava a quase um quilometro do seu destino, e resolveu
seguir até a Avenida Madison e pegar um bonde. Ao entrar na rua lateral,
foi acometida por uma vaga lembrança. A fileira de árvores brotando, as
novas fachadas de tijolos e blocos de calcário, os prédios de apartamento
estilo georgiano com floreiras nas sacadas, se fundiram no cenário que lhe
parecia familiar. Foi por esta rua que ela caminhou com Selden, naquele dia
de setembro, dois anos antes; poucos metros adiante ficava a porta por onde
eles tinham entrado juntos. A lembrança desencadeou uma série de
sensações entorpecidas – anseios, arrependimentos, fantasias, a lembrança
pulsante da única primavera que seu coração tivera. Foi estranho passar ao
acaso pela casa dele. De repente, ela viu sua atitude como ele veria – e o
fato de ele estar ligado a isso, o fato de que, para atingir seu objetivo, ela
teria de usar o nome dele, e lucrar com um segredo do seu passado, causou
um calafrio de vergonha. Que longa jornada ela tinha percorrido desde a
primeira vez que eles conversaram! Naquele dia seus passos seguiam para o
mesmo destino que se dirigiam agora – naquele dia ela resistiu em aceitar a
mão que ele estendera.
Todo seu ressentimento pela suposta frieza dele foi esquecido por
conta desta lembrança envolvente. Por duas vezes ele se ofereceu para
ajudá-la – ajudá-la amando-a, como ele dissera – e se, na terceira vez, ele
hesitou, quem senão ela mesma seria a culpada?… Bem, aquela parte da
sua vida estava encerrada; ela não sabia por que seus pensamentos ainda
estavam presos a isso. Mas a súbita vontade de vê-lo permaneceu;
intensificou quando ela parou na calçada oposta à da porta dele. A rua
estava escura e vazia, molhada da chuva. Ela imaginou o apartamento dele,
as estantes de livros, e o fogo na lareira. Olhou para o alto e viu luz na
janela dele; então atravessou a rua e entrou no prédio.
Capítulo 12
A biblioteca estava do jeitinho que ela tinha imaginado. Os abajures
verdes refletiam círculos de luz calmantes na penumbra de fim de tarde, um
foguinho crepitava na lareira, e a poltrona de Selden, que ficava próxima,
tinha sido empurrada para o lado quando ele se levantou para atendê-la.
Sua primeira reação foi de surpresa, e ele ficou calado, esperando ela
falar, enquanto ela permaneceu por um momento na soleira, acometida por
uma avalanche de lembranças.
O cenário não tinha mudado nada. Ela reconheceu a fileira de estantes
de onde ele tinha tira o seu La Bruyere, e o braço surrado da poltrona onde
ele se apoiara enquanto ela examinava o precioso volume. Mas então a luz
intensa de setembro invadira a sala, fazendo com que aquilo parecesse fazer
parte de outro mundo: agora a sombra dos abajures e o calor da lareira,
destacando da escuridão que tomava a rua, conferiu à cena uma nota de
intimidade.
Ao perceber a surpresa no silêncio de Selden, Lily voltou-se para ele e
disse simplesmente:
– Vim lhe dizer que sinto muito pelo modo como nos despedimos,
pelo que eu lhe disse daquele dia no apartamento de Mrs. Hatch.
As palavras brotarem em seus lábios espontaneamente. Nem mesmo
enquanto subia a escada, ela pensou em arrumar uma desculpa para
justificar a sua visita, mas agora sentiu um forte desejo de dissipar a nuvem
de mal-entendidos que pairava entre eles.
Selden devolveu com um sorriso.
– Eu também sinto muito que tenhamos nos despedido daquela
maneira, mas creio que nem pensei nisso. Sorte a minha que eu tinha
previsto o risco que estava correndo…
– Então você não nem se importou? – ela deixou escapar no seu velho
tom irônico.
– Eu estava preparado para as consequências – ele corrigiu bem-
humorado. – Mas vamos falar disso depois. Entre e sente perto do fogo.
Recomendo que se sente na poltrona, e se permitir posso colocar uma
almofada às suas costas.
Enquanto ele falava, ela avançava lentamente sala adentro, e parou
perto da escrivaninha, onde a luminária, com a cúpula virada para cima,
lançava uma sombra exagerada sobre a palidez do seu rosto abatido.
– Você parece cansada, sente-se – repetiu ele gentilmente.
Ela pareceu nem ouvir a oferta.
– Eu gostaria que soubesse que deixei Mrs. Hatch logo depois que
estivemos juntos – disse ela, como se dando continuidade à sua confissão.
– Sim, sim; eu sei – assentiu ele, com certo embaraço.
– E o fiz porque você me falou para eu fazer. Antes que fosse me ver
eu já estava começando a perceber que seria impossível continuar com ela,
pelos mesmos motivos que você me deu; mas não pude admitir… Não quis
que percebesse que entendi o que a sua insinuação...
– Ah, eu tinha certeza de que você iria conseguir sair daquela
situação, não me responsabilize pela minha intromissão!
O tom tão suave dele, que, se estivesse mais calma ela teria percebido
o esforço para superar o momento constrangedor, despertou nela uma
vontade imensa de ser compreendida. No seu estranho estado de lucidez,
que lhe dava a sensação de estar no cerne da situação, pareceu incrível que
alguém pudesse achar necessário continuar com o convencional joguinho de
palavras evasivas.
– Não é isso, fui muito ingrata – ela insistiu. Mas o poder de se
expressar falhou de repente; ela sentiu um tremor na garganta, e duas
lágrimas brotaram e desceram lentamente de seus olhos.
Selden avançou e tomou a mão dela.
– Você está muito cansada. Por que não senta e permiti que eu ajude a
se sentir confortável?
Ele a conduziu até a poltrona próxima à lareira, e colocou uma
almofada para amparar as costas dela.
– Agora permita que eu lhe sirva um chá: você sabe que sempre posso
oferecer ao menos isso.
Ela balançou a cabeça, e mais duas lágrimas desceram. Mas ela não
era de chorar facilmente, e o antigo hábito de se controlar se impôs, apesar
de ainda ter restado um tremor na voz.
– Posso colocar uma água para ferver em cinco minutos – continuou
Selden, falando como se ela fosse uma criança em apuros.
As palavras fizeram com que ela se lembrasse daquela tarde quando
eles sentaram juntos à mesa de chá e falaram brincando sobre o futuro dela.
Havia momentos em que aquele dia parecia mais remoto do que qualquer
outro acontecimento da sua vida; mas mesmo assim ela ainda conseguia se
lembrar de cada detalhe.
Ela recusou com um gesto.
– Não: tenho bebido muito chá. Prefiro ficar sentada um pouco, já vou
embora – adicionou confusa.
Selden continuava de pé perto dela, apoiado no mantel da lareira. A
sombra de constrangimento estava começando se destacar, apesar da sua
postura aparentemente amigável. Seu egocentrismo não lhe permitiu
perceber isso no começo, mas agora que sua mente estava mais
desanuviada, ela notou que sua presença era o motivo do embaraço. Tal
situação só pode ser salva por meio de um jorro imediato de sentimento;
mas da parte de Selden ainda lhe faltava o impulso determinante.
A descoberta não perturbou Lily como teria perturbado antes. Ela
tinha passado da fase da reciprocidade educada, quando cada demonstração
deve ser escrupulosamente dimensionada de acordo com as emoções
despertadas, e a generosidade de sentimento é uma ostentação proibida.
Mas o sentimento de solidão retornou com força redobrada quando ela se
viu para sempre expulsa da intimidade de Selden. Ela tinha vindo sem um
motivo definido: tinha sido guiada pelo mero desejo de vê-lo; mas a
esperança secreta que trouxera consigo de repente se revelou com dor
profunda.
– Preciso ir – repetiu ela, fazendo menção de se levantar. – Mas talvez
não o veja novamente por um longo período, e quero lhe dizer que nunca
me esqueci das coisas que me disse em Bellomont, e que às vezes… às
vezes, quando parece que vou me esquecer… e como aquilo me ajudou, e
me impediu de errar; me impediu de me tornar aquilo que muitas pessoas
pensavam que eu fosse.
Apesar do esforço para organizar as ideias, as palavras não fluíam
com clareza; mesmo assim ela sentiu que não poderia ir embora sem tentar
fazer com que ele entendesse que ela tinha conseguido se salvar da aparente
ruína da sua vida.
Uma mudança se esboçou no rosto de Selden enquanto ela falava. Sua
fisionomia reservada tinha cedido para uma expressão que, apesar de não
demonstrar emoções pessoais, mostrava uma compreensão afetuosa.
– Estou feliz por ter me dito isso; mas nada do que eu disse realmente
fez diferença. A diferença está em você; sempre esteve. E uma vez que já
estava aí, você não deveria se preocupar com o que as pessoas pensam a seu
respeito: tenha certeza de que seus amigos sempre irão compreendê-la.
– Não diga isso, não diga que o que me disse não fez diferença.
Aquilo pareceu me isolar; me condenou a viver isolada em meio a outras
pessoas.
Ela tinha se levantado e estava diante dele, mais uma vez
completamente a mercê da necessidade de se abrir. A relutância dele já não
fazia mais diferença. Querendo ou não, ele iria vê-la por inteiro antes de se
despedirem.
Sua voz tinha ganhado força, e ela olhou fixamente nos olhos dele à
medida que seguia adiante:
– Uma, duas vezes, você me deu uma chance de fugir da minha vida,
e eu recusei: recusei porque era covarde. Depois percebi meu erro, vi que
nunca poderia ser feliz com aquilo que me contentava antes. Já era tarde
demais para a felicidade, mas não tarde o bastante para me consolar com a
ideia do que perdi. É por isso que tenho me orientado, não tire isso de mim!
Mesmo nos piores momentos isto foi como uma luz na escuridão. Algumas
mulheres são fortes o bastante para acreditarem nelas mesmas, mas eu
precisei da sua ajuda para acreditar em mim. Talvez eu tenha resistido a
uma grande tentação, mas foram as pequenas que acabaram me derrubando.
Mas então eu me recordo, eu me recordo de você dizendo que eu nunca me
contentaria com esta vida; e eu tive vergonha de admitir que eu poderia. Foi
isso que você fez por mim, é por isso que eu queria lhe agradecer. Eu queria
lhe dizer nunca me esqueci disso; e que tenho tentado… tenho tentado
muito…
Ela parou de repente. As lágrimas caíam novamente, e ao buscar pelo
lenço seus dedos roçaram o pacote que estava entre as camadas do seu
vestido. Ela foi acometida por uma onda de rubor, e as palavras morreram
em seus lábios. Então ela ergueu os olhos até os dele e continuou num tom
de voz alterado.
– Tenho tentado muito, mas a vida é dura, e sou uma inútil. Não posso
nem me considerar uma pessoa independente. Não passo de um parafuso ou
dente de uma engrenagem daquela grande máquina que eu chamava de
vida, e quando fui expulsa dela descobri que não era útil em nenhum outro
lugar. O que fazer quando se descobre que nos encaixamos em um papel
apenas? Devemos voltar para isso ou ficar no monte lixo para onde fomos
atirados… você não imagina como é a vida no monte de lixo!
Seus lábios ondularam num sorriso – ela se lembrou das confidências
que tinha feito para ele, dois anos antes, naquela mesma sala. Na época ela
planejava se casar com Percy Gryce – o que ela planejava agora?
O sangue tinha subido sob a pele morena de Selden, mas suas
emoções transpareceram o suficiente para adicionar ainda mais sobriedade
aos seus modos.
– Você tem algo para me contar, tem planos de se casar? – perguntou
ele, sem rodeios.
Os olhos de Lily não hesitaram, mas um espanto, dúvida consigo
mesma, formou-se lentamente lá fundo deles. À luz da pergunta dele, ela
parou para perguntar a si mesma se sua decisão já tinha sido tomada quando
ela entrou naquela sala.
– Você sempre me disse que mais cedo ou mais tarde eu teria que
tomar uma decisão! – respondeu com um leve sorriso.
– E você tomou uma agora?
– Chegarei lá; logo. Mas antes preciso fazer uma coisa.
Ela parou novamente, tentando transparecer na voz a firmeza do seu
sorriso recuperado. – Preciso me despedir de mais uma pessoa. Oh, não é de
você, certamente vamos nos ver novamente… é da Lily Bart que você
conheceu. Eu a mantive comigo este tempo todo, mas agora vamos nos
separar, e eu a trouxe de volta para você… vou deixá-la aqui. Quando eu
sair ela não estará mais comigo. Ficarei feliz em saber que ela ficou com
você; mas prometo que ela não vai incomodar e nem ocupar espaço.
Ela se aproximou dele, e estendeu a mão, ainda sorrindo.
– Você vai permitir que ela fique? – perguntou.
Ele segurou a mão dela, e ela sentiu a vibração do sentimento que não
tinha sido expresso nos lábios dele.
– Lily, posso te ajudar? – ele indagou.
Ela olhou para ele com carinho.
– Você se lembra do que disse para mim uma vez? Que só poderia me
ajudar me amando? Bem, você me amou por um tempo. E isto me ajudou.
Isto sempre me ajudou. Mas o momento passou, e eu deixei escapar. E
agora precisamos seguir em frente. Adeus.
Ela pousou a outra mão sobre a dele, e eles se entreolharam com uma
solenidade carinhosa, como se estivessem na presença da morte. Havia algo
verdadeiro entre eles – o amor que ela tinha matado nele e que não poderia
mais ressuscitar. Mas algo mais sobrevivera entre eles, e vibrou dentro dela
como uma chama intermitente: era o amor que o amor dele tinha
despertado, a paixão da alma dela pela dele.
Diante disso tudo pareceu pequeno e distante para ela. Agora ela
compreendia que não poderia seguir adiante e deixar a sua velha persona
com ele: que está persona na verdade só existia na presença dele, mas que
ela deveria continuar sendo sua.
Selden segurou a mão dela, examinando-a com um estranho
pressentimento. O aspecto externo da situação tinha desparecido para ele
quase tanto quanto para ela: ele sentia que este era um daqueles momentos
raros quando o véu dos rostos é erguido quando as pessoas estão passando.
– Lily – disse ele num sussurro –, não fale assim. Não posso permitir
que saia antes que me dizer o que pretende fazer. As coisas podem mudar,
mas elas não passam. Você nunca sairá da minha vida.
Ela olhou nos olhos dele de um modo iluminado.
– Não – disse. – Estou vendo isso agora. Vamos continuar amigos.
Assim me sentirei segura, aconteça o que acontecer.
– Aconteça o que acontecer? O que você quer dizer com isso? O que
vai acontecer?
Ela virou rapidamente e caminhava na direção da lareira.
– Agora nada, exceto que estou com muito frio, e que antes de ir
embora você poderia acender o fogo para mim.
Ela se ajoelhou no tapete diante da lareira, esticando as mãos sobre as
brasas. Surpreso pela súbita mudança de tom, mecanicamente ele pegou
algumas toras da cesta e jogou no fogo. Quando o fez, notou quão finas as
mãos dela pareciam contra a luz das chamas que se erguiam. Viu também,
sob os tecidos sobrando do vestido, o quanto as curvas do corpo tinham
diminuído; e muito depois ele se lembrou de como o jogo vermelho das
chamas destacou os buracos das narinas, e intensificou a sombras escuras
entre os ossos pronunciados das faces e os olhos. Ela ficou ajoelhada ali
durante alguns minutos em silêncio; um silêncio que ele não ousou romper.
Quando ela se levantou ele percebeu que ela tinha tirado algo de dentro do
vestido e jogado no fogo; mas naquele momento ele não notou o gesto. Sua
mente parecia estar em transe, e ele ainda procurava uma palavra para
quebrar o feitiço. Ela se aproximou dele e pousou as mãos em seus ombros.
– Adeus – disse ela, e quando ele se inclinou para frente ela tocou a
testa dele com os lábios.
Capítulo 13
Os postes já estavam acesos, mas a chuva tinha parado, e a luz tinha
surgido no céu ao alto outra vez. Lily andava sem prestar atenção por onde
passava. Ainda caminhava sob o efeito entorpecente que surge nos
momentos decisivos da vida. Mas gradualmente a leveza foi se dissipando e
ela começou a sentir a dureza do calçamento sob os pés. O cansaço voltou
com força redobrada, e por um momento ela achou que não conseguiria dar
mais um passo. Ela estava na esquina da Rua Quarenta com a Quinta
Avenida quando se lembrou de que o Parque Bryant tinha bancos onde
poderia descansar.
O lugar melancolicamente agradável estava praticamente deserto
quando ela entrou, e sentou em um banco vazio, iluminado por um poste. O
calor do fogo tinha dissipado de suas veias, e ela disse a si mesma que não
poderia ficar sentada por muito tempo naquela umidade penetrante que
subia do asfalto molhado. Mas suas forças pareciam ter se esgotado num
último grande esforço, e ela estava entregue ao vazio que se segue após um
desperdício indesejado de energia. Além do mais, o que mais a esperava em
casa? Nada além do silêncio do seu quarto triste – aquele silêncio da noite
capaz de irritar mais os nervos do que os barulhos mais estridentes: isso, e o
frasco de cloral ao lado da sua cama. A lembrança do cloral foi a única luz
na perspectiva sombria: ela já podia sentir a sedutora sensação roubando
seus sentidos. Mas estava preocupada com a noção de que ele estava
perdendo o efeito – não ousaria recorrer a ele tão cedo. Ultimamente o sono
por ele proporcionado vinha sendo mais quebrado e menos profundo; havia
noites em que tinha a sensação de que flutuava consciente. E se o efeito da
droga começasse a falhar gradualmente, como diziam que acontecia com
todos os narcóticos? Ela lembrou que o farmacêutico alertara contra o
aumento da dose; e ela já tinha ouvido falar sobre os efeitos colaterais
inconstantes e imprevisíveis da droga. Seu medo de passar uma noite sem
dormir era tão grande que ela resolveu ficar mais um pouco, na esperança
de que o cansaço pudesse ajudar a reforçar o efeito cada vez mais restrito
do cloral.
A noite tinha chegado, e o ronronar do trânsito na rua Quarenta e dois
cessado. À medida que a escuridão pousava sobre a praça os poucos
ocupantes dos bancos levantaram e se foram; mas vez ou outra uma figura
errante, passava correndo indo para casa, cruzando o caminho onde Lily
estava sentada, agigantando-se escura por um momento sob o círculo
branco da luz do poste. Um ou dois destes transeuntes diminuiu o passo
para olhar curioso para a figura solitária; mas ela nem percebeu que estava
sendo observada.
De repente, ela notou que um desses transeuntes sem rosto ficou
parado entre sua linha de visão e o asfalto reluzente; e ao erguer os olhos
ela viu uma moça inclinando sobre ela.
– Com licença, você não está bem? Minha nossa, é Miss Bart! –
exclamou uma voz que soou familiar.
Lily olhou para cima. A falante era uma jovem humildemente vestida
com uma trouxa embaixo do braço. Seu rosto tinha o ar distinto de
insalubridade que a saúde precária e o excesso de trabalho são capazes de
produzir, mas sua beleza comum se salvava por conta das curvas fortes e
generosas dos lábios.
– Você não se lembra de mim – ela continuou, radiante por ter
reconhecido, – mas eu a reconheceria em qualquer lugar, tenho pensado
tanto em você. Acho que todas as minhas companheiras sabem seu nome de
cor. Eu era uma das moças do clube da Miss Farish; você me ajudou a ir
para o campo quando tive uma doença pulmonar. Meu nome é Nettie
Struther. Naquela época eu me chamava Nettie Crane, mas acho que
também não vai se lembrar.
Sim: Lily estava começando se lembrar. O episódio do oportuno
salvamento de Nettie Crane de uma doença foi o incidente mais
recompensador da ligação que ela tivera com o trabalho de caridade de
Gerty. Ela tinha conseguido meios para enviar a moça para uma clínica nas
montanhas: neste momento ela lembrou com ironia que o dinheiro que
usara para bancar o tratamento tinha sido o de Gus Trenor.
Ela tentou responder, assegurar a outra que ela não tinha se esquecido;
mas sua voz falhou no esforço, e ela foi tomada por uma grande onda de
cansaço físico. Nettie Struther, com uma exclamação de surpresa, sentou e
passou um braço malvestido por trás das costas dela.
– Você não parece bem, Miss Bart. Recoste em mim um pouco até que
se sinta melhor.
Lily sentiu suas forças voltando aos poucos, vindo da pressão do
braço que a amparava.
– Só estou cansada, não é nada – ela arrumou voz para dizer, mas em
seguida, quando fitou os olhos da companheira que emitam o apelo tímido,
adicionou quase involuntariamente: – Tenho andado muito infeliz, passando
por muita dificuldade.
– Você em dificuldade? Sempre a imaginei numa situação muito
superior, onde tudo era grandioso. Às vezes, quando me sentia muito mal, e
ficava pensando porque as coisas foram feitas assim neste mundo, eu
costumava imaginar que você estava se divertindo, de alguma maneira, e
isto parecia mostrar que havia alguma justiça. Mas não fique sentada aqui
por muito mais tempo; está muito úmido. Não está se sentindo melhor para
poder andar?
– Sim, sim; preciso ir para casa – murmurou Lily, levantando-se.
Seus olhos pousaram admirados na figura humilde ao seu lado. Ela
conhecera Nettie Crane como uma das vítimas desalentadas do excesso de
trabalho e da anemia; um dos fragmentos supérfluos da vida destinado a ser
varrido prematuramente para aquela pilha de lixo social do qual Lily tanto
temia. Mas o afago frágil de Nettie Struther agora parecia emitir esperança
e energia: seja lá qual fosse o destino que o futuro reservava, ela não iria ser
jogada na pilha de refugo sem lutar.
– Estou muito feliz em vê-la – continuou Lily, pondo um sorriso nos
lábios trêmulos. – Agora será a minha vez de imaginar que você está feliz, e
assim o mundo vai parecer um lugar menos injusto.
– Oh, mas não posso deixá-la nesta situação. Você não está bem para
ir para casa sozinha. E também não posso acompanhá-la! – lamentou Nettie
Struther ao se lembrar. – Sabe, meu marido trabalha no turno da noite, ele é
motorista, e a amiga que está cuidando do meu bebê precisa ir para casa
para preparar o jantar do marido dela, as sete. Não contei que eu tive um
bebê, contei? Ela vai completar quatro meses depois de amanhã, e olhando
para ela ninguém diz que já fui doente. Eu queria muito que você a visse,
Miss Bart; moramos nesta rua mesmo, são apenas três quarteirões de
distância – ela ergueu os olhos tentadores para o rosto de Lily, e então
adicionou num rompante de coragem: – O que acha de ir para casa comigo
e me esperar enquanto dou jantar para o bebê? A nossa cozinha é bem
quentinha, e você pode descansar lá, e assim que ela dormir eu a levarei
para casa.
De fato, estava quente na cozinha, onde, quando o fósforo de Nettie
Struther fez uma chama saltar do bico de gás sobre a mesa, revelando-se
para Lily extraordinariamente pequena e quase que miraculosamente limpa.
O fogo brilhava entre os flancos polidos do fogão de ferro, e próximo a ele
ficava um berço onde um bebê estava sentadinho, lutando impaciente contra
o sono.
Depois de comemorar apaixonadamente o reencontro com a filhinha,
e se desculpar numa linguagem balbuciada pela demora, Nettie colocou o
bebê de volta no berço e convidou timidamente Miss Bart para se sentar na
cadeira de balanço próximo ao fogão.
– Temos uma sala também – explicou ela com um orgulho perdoável
–, mas acho que aqui está mais quente, e não quero deixá-la sozinha
enquanto dou a mamadeira ao bebê.
Ao receber a resposta de Lily de que ela preferia o aconchego do calor
da cozinha, Mrs. Struther começou a preparar a mamadeira, que pousou
delicadamente nos lábios impacientes do bebê; e enquanto o alimento era
ingerido com avidez, ela sentou com um semblante satisfeito ao lado da
visitante.
– Tem certeza de que não quer que eu esquente um pouco de café para
você, Miss Bart? Sobrou um pouco de leite fresco do bebê. Bem, talvez,
prefira ficar sentadinha aí e descansar um pouco. É muito bom receber sua
visita. Pensei tanto nisso que mal consigo acreditar que está acontecendo.
Falei para George várias vezes: ‘Queria tanto que Miss Bart me visse agora’
e eu costumava ver seu nome nos jornais, e ficávamos falando sobre o que
você estava fazendo, e líamos as descrições dos vestidos que você usava.
Mas faz tempo que não vejo seu nome, e achei que você pudesse estar
doente, e fiquei tão preocupada que George disse que eu também acabaria
ficando doente, de tanta preocupação.
Seus lábios se partiram num sorriso reminiscente. – Bem, não posso
ficar doente outra vez, essa é a verdade: a última crise quase acabou
comigo. Quando me mandou para a clínica daquela vez pensei que não
voltaria viva, e não estava muito preocupada com isso. Mas eu nem
imaginava que teria George e o bebê.
Ela parou para ajeitar a mamadeira na boca da criança.
– Meu amor, deixe de ser afoita! Está brava porque a mamãe atrasou o
seu jantar? Marry Anto’nette; esse foi o nome que escolhi para ela: por
causa da rainha francesa daquela peça que encenaram no parque. Falei para
George que a atriz me lembrava de você, e que o nome é chique. Nunca
imaginei que fosse me casar, sabe, e não conseguiria continuar trabalhando
para me sustentar sozinha.
Ela retomou, e ao ver encorajamento nos olhos de Lily, continuou,
com um rubor surgindo sob a pele anêmica:
– Sabe, eu não estava apenas doente daquela vez que me mandou para
longe; eu estava muito infeliz também. Conheci um cavalheiro no lugar
onde eu trabalhava, não sei se lembra de que eu era datilógrafa em uma
firma muito importante, e então, achei que fôssemos nos casar. Já
estávamos namorando firme há seis meses e ele me deu o anel de
casamento da mãe dele. Mas presumo que ele era muito para mim; ele
viajava para a firma, e conhecia muita gente da sociedade. Garotas da classe
trabalhadora não são protegidas do modo como você fez por mim, e elas
nem sempre sabem se cuidar sozinhas. Eu não sabia de nada, e quase morri
quando ele me abandonou e deixou um bilhete apenas…
– Foi nisso que fiquei doente; pensei que era o fim. Acho que teria
sido se você não tivesse me mandando para longe. Mas quando percebi que
estava melhorando comecei a criar coragem, apesar de tudo. E então,
quando voltei para casa, George apareceu e me pediu em casamento. No
começo achei que não poderia, pois fomos criados juntos, e eu sabia que ele
sabia sobre o que tinha acontecido comigo. Mas depois de um tempo
comecei a ver que aquilo facilitava as coisas. Eu não teria conseguido
contar para outro homem, e nunca me casaria sem contar; mas se George
quisesse muito ficar comigo tanto quanto eu queria ficar com ele, não vi por
que não deveria recomeçar novamente, e foi o que fiz.
A força da vitória reluziu quando ela ergueu o rosto radiante da
criança estava no seu colo.
– Mas, me perdoe, eu não pretendia ficar falando assim sobre mim,
com você sentada aí, parecendo tão cansada. É que é tão bom tê-la aqui,
vendo o quanto me ajudou – o bebê tinha se acomodado satisfeito, e Mrs.
Struther levantou com cuidado para colocar a mamadeira de lado. Então
parou diante de Miss Bart.
– Eu gostaria de poder ajudá-la, mas suponho que não tem nada que
eu possa fazer – murmurou melancólica.
Lily, em vez de responder, levantou com um sorriso e estendeu os
braços, e a mãe, compreendendo o gesto, depositou a criança sobre eles.
O bebê, sentindo que estava sendo afastada do seu porto seguro, fez
um movimento instintivo de resistência; mas as influências calmantes da
digestão prevaleceram, e Lily sentiu o peso delicado se aconchegando em
seu seio. A confiança da criança de que estava em um lugar seguro
despertou nela uma sensação boa de calor e de retorno à vida, e ela se
inclinou sobre o bebê, encantada com o tom rosado das bochechinhas, a
limpidez dos olhos, os movimentos involuntários dos dedinhos abrindo e
fechando. A princípio o fardo em seus braços parecia tão leve quando uma
nuvem cor-de-rosa ou uma trouxinha largada, mas à medida que continuou
segurando o peso foi aumentando, afundando, e causando uma estranha
sensação de fraqueza, como se a criança estivesse penetrando nela e se
fundindo ao seu corpo.
Ela olhou para cima e viu os olhos de Nettie sobre ela com ternura e
exultação.
– Não seria maravilhoso se ela crescesse e se transformasse em uma
mulher igual a você? Claro que ela nunca será, mas as mães sempre sonham
alto para seus filhos.
Lily segurou a criança mais perto por um momento e a devolveu para
os braços da mãe.
– Oh, é melhor não. É melhor eu não a visitar com muita frequência!
– disse com um sorriso; e então, resistindo a oferta insistente de Mrs.
Struther para acompanhá-la até em casa, e reiterando a promessa de que
voltaria logo para conhecer George e rever o bebê, ela saiu pela porta da
cozinha e desceu sozinha a escada.
Quando chegou à rua percebeu que se sentia mais forte e mais feliz: o
pequeno acontecimento tinha feito bem. Era a primeira vez que constatava
um resultado concreto do seu raro momento de caridade, e a sensação de
surpresa diante da camaradagem humana acabou com o frio mortal do seu
coração.
Só depois que entrou pela sua porta que sentiu uma solidão profunda.
Já passava das sete, e a luz e os odores vindos do subsolo deixavam claro
que o jantar estava sendo servido. Ela subiu apressada para seu quarto,
ascendeu o lampião a gás, e começou se trocar. Bastava de frescuras, ela
não ia mais ficar sem comer porque o ambiente tornava a comida
intragável. Uma vez que estava destinada a viver numa pensão, ela
precisava aprender a se adaptar as condições da vida. Mesmo assim, ficou
feliz quando, ao descer para o refeitório iluminado e quentinho, o jantar já
estava quase acabando.
Em seu quarto novamente, foi acometida por uma necessidade
repentina de fazer algo. Ela passara semanas mergulhada num estado de
apatia e indiferença tal que não tinha coragem nem mesmo para arrumar
suas coisas, mas agora examinava minuciosamente o que tinha dentro das
gavetas e armários. Ainda restavam alguns vestidos bonitos –
remanescentes da sua fase de esplendor, da época do Sabrina e de Londres,
mas quando se viu obrigada a dispensar a criada ela deu à mulher boa parte
do seu guarda-roupa. Os vestidos que restavam, apesar de terem perdido o
ar de novidade, ainda guardavam as longas linhas exatas, a leveza e o
volume conferido pelo toque de um grande artista, e enquanto os espalhava
por cima da cama as cenas em que cada um tinha sido usado surgiam
vívidas diante dela. Cada prega escondia uma associação: cada movimento
de renda ou vislumbre de um bordado era como um registro do passado. Ela
ficou surpresa em descobrir o quanto a atmosfera da sua antiga vida a
envolvia. Mas, afinal, era a vida para a qual ela tinha sido feita: desde seu
caráter tinha sido cuidadosamente direcionado para este fim, todos seus
interesses e atividades tinham sido moldados para girar em torno disso. Ela
era como uma roseira rara cultivada para ser exposta, uma planta da qual
cada botão tinha sido extirpado, exceto a flor principal da sua beleza.
Por último, ela tirou do fundo do baú um amontoado de pregas
brancas que penderam disformes sobre seu braço. Era o vestido de
Reynolds que ela tinha usado no Tableaux realizado na casa dos Bry. Foi
impossível para ela se desfazer deste, mas ela nunca mais olhara para ele
desde aquela noite, e enquanto sacudia as longas pregas delgadas elas
exalavam um perfume de lírios que foi como um sopro vindo da fonte
cercada de flores onde ela ficara com Lawrence Selden e renunciara ao seu
destino. Ela guardou de volta um a um, cada um levava junto um raio de
luz, uma risada, um pouco das margens risadas do prazer. Ainda estava
muito emocionada, e cada fagulha do passado despertara um tremor que se
espalhara por todo seu corpo.
Ela tinha acabado de fechar o baú sobre as pregas brancas do vestido
de Reynolds quando ouviu uma batida à porta, e a mão vermelha da criada
irlandesa entregou uma carta. Aproximando-a da luz, Lily leu com surpresa
o remetente no envelope. Era uma carta comercial do escritório dos
testamenteiros da sua tia, e ela se perguntou o que fizera com que
rompessem o silêncio antes da data marcada. Ela abriu o envelope e um
cheque caiu no chão. Enquanto se abaixava para apanhá-lo, o sangue subiu
para seu rosto. No cheque constava a quantia exata da sua parte da herança
de Mrs. Peniston, e a carta que o acompanhava explicava que os executores,
por terem conseguido acertar tudo mais rápido do que o imaginado, tinham
decidido antecipar a data fixada para o pagamento da herança.
Lily sentou ao lado da escrivaninha aos pés da sua cama, e abrindo o
cheque, leu e releu os DEZ MIL DÓLARES escritos por extenso com uma
caligrafia firme. Dez meses antes o montante representava a mais pura
penúria; mas neste intervalo de tempo seus valores tinham mudado, e agora
vislumbres de riqueza saltavam de cada floreio da caneta. Enquanto olhava
para o cheque, sua imaginação foi invadida por uma série de visões, e um
tempo depois ela levantou a tampa da escrivaninha e guardou a fórmula
mágica. Era mais fácil pensar sem ter de olhar para aqueles números
dançando diante de seus olhos; e ela pensou muito antes de dormir.
Ela abriu seu talão de cheques, e se pôs a calculara ansiosamente
assim como fizera naquela noite em Bellomont quando decidiu se casar
com Percy Gryce. A pobreza simplifica os cálculos, e agora foi muito mais
fácil verificar a sua situação financeira; mas ela ainda não tinha aprendido a
controlar o dinheiro, e durante sua fase de transição do luxo no Emporium
ela ainda se deixou levar por hábitos extravagantes que comprometeram sua
situação instável. Após uma análise cuidadosa do seu saldo, e das contas a
pagar, foi constatado que, depois de tudo pago, só restaria uma quantia que
mal daria para viver por três ou quatro meses; e depois disso, se continuasse
vivendo como agora, sem que entrasse mais dinheiro, todos os gastos extras
teriam de ser reduzidos ao máximo. Ela cobriu os olhos com um tremor, e
se imaginou à beira de uma vida de privações como aquela que a figura
infeliz de Miss Silverton estava levando.
Entretanto, não era mais a pobreza material que mais a atemorizava.
Ela tinha uma sensação de empobrecimento profundo – de uma miséria
interior que crescia à medida que os bens matérias iam se tornando
insignificantes. Realmente era muito ruim ser pobre – com uma perspectiva
de chegar à meia-idade ansiosa, levada aos poucos pela economia e
sacrifícios a uma absorção gradual da existência nula e coletiva de uma
pensão. Mas havia algo mais miserável do que isto – era o aperto da solidão
em seu coração, a sensação de ter sido deslocada como um organismo cujas
raízes foram arrancadas do lugar pela correnteza desvairada dos anos. Esta
era a sensação que ela sentia, neste momento – a sensação de que era um
ser sem raízes e efêmero, uma gotinha sobre a superfície agitada da
existência, sem nada onde seus pobres tentáculos pudessem se agarrar antes
de ser engolida pela maré assustadora. E ao olhar para trás, ela se deu conta
de que nunca tivera um relacionamento verdadeiro na vida. Seus pais
também não tinham raízes, seguiam de acordo com a direção que os ventos
da moda sopravam, sem uma existência pessoal para protegê-los das
mudanças dos ventos. Ela crescera sem se apegar a nenhum lugar: não
havia um centro de devoção, lembranças afetivas, onde seu coração pudesse
recorrer e de lá tirar forças para si mesma e carinho pelos outros. De um
jeito ou de outro, as lembranças aos poucos acumuladas seguem correndo
nas veias – seja na imagem concreta de uma casa antiga repleta de
lembranças visuais, ou na concepção de uma casa que não foi construída
pelas mãos do homem, mas feita de paixões e lealdades herdadas – elas têm
o mesmo poder de ampliar e aprofundar a existência individual, de conectá-
la através de elos misteriosos de igualdade à luta humana pela
sobrevivência.
Tal visão de vida solidária nunca tinha ocorrido para Lily. Ela tinha
uma vaga noção por meio dos impulsos cegos do instinto de acasalamento;
mas esta tinha sido colocada em cheque pelas influências desagregadoras
do meio social ao qual estava inserida. Todos os homens e mulheres que ela
conhecia pareciam moléculas de átomos girando uma para cada lado em
uma espécie de dança com uma força centrípeta violenta: seus primeiros
lampejos de continuidade da vida tinham ocorrido naquela noite na cozinha
de Nettie Struther.
A pobre trabalhadora que tinha encontrado forças para juntar os
pedaços da sua vida, e construído um abrigo com eles, pareceu para Lily ter
encontrado o sentido da vida. Era uma vida miserável, no limite sombrio da
pobreza, com poucas margens para a doença ou infortúnios, e tinha a
permanência audaciosa e frágil de um ninho de passarinho construído na
beira de um penhasco – um mero feixe de folhas e gravetos, mas tão bem
consolidados que as vidas a eles confiadas podem oscilar em segurança
sobre o abismo.
Sim, mas era preciso dois para construir o ninho; a fé do homem
assim como a coragem da mulher. Lily se lembrou das palavras de Nettie:
Eu sabia que ele sabia sobre o que tinha acontecido comigo. A fé que o
marido dela tinha nela possibilitou a sua renovação – é tão fácil para uma
mulher se transformar naquilo que o homem que ela ama acredita que ela
seja! Por duas vezes Selden esteve pronto para depositar sua fé em Lily
Bart; mas a terceira provação foi muito difícil para ele conseguir transpor.
Foi a qualidade do amor dele que impossibilitou seu renascimento. Se
tivesse sido apenas uma questão de compatibilidade sanguínea, o poder da
beleza dela teria reavivado este amor. Mas o fato de ser algo profundo, de
ser algo inextricavelmente ligado a hábitos herdados de ideias e
sentimentos, fez com que se tornasse impossível fazer com que voltasse a
crescer assim como o é para uma planta que foi arrancada pela raiz do seu
canteiro. Selden tinha dado o melhor de si para ela; mas ele, assim como
ela, era incapaz de fazer um retorno acrítico a estados anteriores de
sentimentos.
Ainda restava, como ela confessara a ele, a lembrança edificante da fé
que ele tinha nela; mas ela ainda não tinha atingido aquela idade em que
uma mulher é capaz de viver das lembranças apenas. Quando tomou em
seus braços a filha de Nettie Struther as correntes congeladas da juventude
derreteram e correram quentes pelas suas veias: a velha fome de vida se
apoderou dela, e todo seu ser clamou pela sua parcela de satisfação pessoal.
Sim – ela ainda sonhava com a felicidade, e o vislumbre desta fez com que
tudo o mais parecesse insignificante. Ela tinha deixado escapar cada uma
das pequenas possibilidades que surgiram, e agora percebeu não lhe restava
nada além do vazio da renúncia.
Estava ficando tarde, e mais uma vez ela foi acometida por um vazio
imenso. Não era a sensação de privação do sono, mas um verdadeiro
cansaço de ficar acordada, uma lucidez da mente contra a qual todas as
possibilidades de um futuro eram ofuscadas por uma sombra gigante. Ela
ficou apavorada com a clareza da visão; tinha a sensação de que rompera o
bendito véu que separa a intenção da ação. Havia o cheque na sua
escrivaninha, por exemplo, que ela pretendia usar para quitar sua dívida
com Trenor; mas ela previa que pela manhã acabaria desistindo disso, e aos
poucos iria acabar aceitando a ideia de continuar devendo. A ideia a
apavorava – ela temia despencar do auge do seu último momento com
Lawrence Selden. Mas como poderia confiar em si mesma para se manter
firme? Conhecia a força dos impulsos opostos, sentia as mãos do hábito
arrastando-a de volta para o seu destino novamente. Ela sentiu uma vontade
imensa de prolongar, de eternizar, a elevação momentânea do seu espírito.
Se ao menos a vida pudesse acabar agora – acabar com esta visão trágica,
mas ao mesmo tempo doce das possibilidades perdidas, que despertou nela
uma sensação de carinho por tudo que ela tinha amado e aberto mão neste
mundo!
Ela estendeu a mão de repente, e tirando o cheque de dentro da
escrivaninha, colocou-o dentro de um envelope que endereçou ao seu
banco. Em seguida, fez outro cheque para Trenor, colocou dentro de outro
envelope endereçado a ele, sem nenhuma palavra acompanhando, e
depositou os dois envelopes, um ao lado do outro em cima da mesa. Depois
disso, continuou sentada à mesa, separando alguns papéis e escrevendo, até
o silêncio intenso da casa lembrá-la de que já era tarde. O barulho de rodas
já tinha cessado na rua, e o estrondo do “elevado” vinha apenas a longos
intervalos através do profundo silêncio anormal. Na misteriosa separação
noturna de todos os sinais externos da vida, ela se sentiu estranhamente
conformada com seu destino. A sensação colocou seu cérebro para
funcionar, e ela tentou deter a consciência pressionando as mãos sobre os
olhos. Mas o silêncio terrível e o vazio pareciam simbolizar seu futuro – era
como se a casa, a rua, o mundo estivessem todos vazios, e ela era a única
pessoa consciente um universo sem vida.
Mas ela estava à beira do delírio… nunca tinha chegado tão perto do
limite vertiginoso do irreal. Tudo que queria era dormir – ela lembrou que
já fazia duas noites que não fechava os olhos. O frasco estava ao lado da
cama, esperando para derramar seu encanto. Ela levantou e se trocou
apressada, ansiando pelo conforto do travesseiro. Estava tão cansada que
achou que fosse pegar no sono num segundo; mas assim que deitou, mais
uma vez, cada nervo despertou atento. Era como se uma luz intensa
estivesse acesa dentro da sua cabeça, e seu pobre ser angustiado se encolhia
e se cobria, sem saber onde se esconder.
Não imaginara que a insônia pudesse se prolongar tanto: todo seu
passado se reencenava em milhares de pontos distintos de consciência.
Onde estava a droga capaz de aplacar esta legião de nervosos insurgentes?
A sensação de cansaço era doce comparada a esta tormenta de atividades
incessantes; mas o cansaço a abandonara como se um estimulante cruel
tivesse sido injetado em suas veias.
Ela podia suportar – sim, ela podia suportar isso; mas que forças
restariam para o dia seguinte? A perspectiva tinha desaparecido – o dia
seguinte pressionava, e no encalço dele os dias que viriam depois – eles
rondavam igual a uma multidão enfurecida. Ela precisava fazer com que
eles se calassem por algumas horas; ela precisava tomar um chá de sumiço.
Ela estendeu o braço, e pingou as gotas calmantes em um copo; mas
enquanto o fazia, ela sabia que elas seriam inúteis contra a lucidez
sobrenatural do seu cérebro. Fazia tempo que já tinha aumentado a dose no
limite máximo, mas nesta noite ela sentiu que teria de aumentar ainda mais.
Sabia que estaria correndo um grande risco ao fazer isso – não tinha se
esquecido do aviso do farmacêutico. Se o sono viesse, seria um sono sem
despertar. Mas as chances de isso acontecer eram de uma em cem: o efeito
da droga era imprevisível, e a adição de algumas gotas à dose normal não
iria fazer nada além de lhe dar aquilo que ela buscava desesperadamente…
Na verdade, ela não pensou muito a respeito – a necessidade física do
sono era sua única sensação verdadeira. Sua mente fugia dos pensamentos
assim como os olhos fogem instintivamente do brilho da luz – a escuridão,
a escuridão era o que ela queria a qualquer custo. Ela se ergueu na cama e
engoliu o conteúdo do copo; então soprou a vela e deitou.
Ficou bem quietinha, esperando com um prazer sensual os primeiros
efeitos soporíferos. Sabia de antemão como eles viriam: a cessação gradual
do tumulto interior, a aproximação suave da placidez, como se uma mão
invisível executasse passes de mágica sobre ela na escuridão. A própria
lentidão e a hesitação dos efeitos aumentavam o fascínio: era delicioso se
debruçar e penetrar no abismo escuro da inconsciência. Nesta noite a droga
parecia estar funcionando mais lentamente do que de costume: cada pulsar
apaixonado precisava ser aplacado um a um, e demorou até que ela sentisse
que eles tinham acalmado, como se fossem sentinelas adormecendo em seus
pontos. Mas aos poucos a sensação e entrega total tomou conta, e ela se
perguntou languida o que mesmo a deixara tão agitada e inquieta. Neste
momento não havia motivos para agitação – ela tinha retomado sua visão
normal da vida. Não haveria nenhuma dificuldade no dia seguinte: ela
estava certa de que teria forças para encarar. Quase não se lembrava mais
do que estava com medo de encarar, mas a incerteza não a perturbava mais.
Ela estivera infeliz, mas agora estava feliz – tinha se sentido sozinha, mas
agora a sensação de solidão tinha desaparecido.
Ela se espreguiçou e virou de lado, e enquanto o fez, de repente ela
compreendeu porque não se sentia mais só. Era estranho – mas a criança de
Nettie Struther estava em seus braços: ela sentia a pressão da cabecinha
contra o seu ombro. Ela não fazia ideia de como a criança tinha vindo parar
ali, mas não ficou muito surpresa com o fato, sentia apenas o tremor
penetrante de calor e prazer. Ela se ajeitou melhor, dobrando o braço para
acomodar a cabecinha redonda, e respirando baixinho para não perturbar o
sono do bebê.
Enquanto estava deitada ali ela disse a si mesma que tinha uma coisa
que ela precisava contar para Selden, alguma palavra que ela tinha
encontrado que poderia esclarecer as coisas entre eles. Ela tentou repetir a
palavra, que vagava nas profundezas dos seus pensamentos – estava com
medo de não se lembrar quando acordasse; e se ao menos conseguisse se
lembrar disso e dizer para ele, ela tinha certeza de que tudo ficaria bem.
Lentamente a ideia da palavra desapareceu, e o sono começou a
envolvê-la. Ela lutou contra ele, sentindo que precisava ficar acordada por
causa do bebê; mas até mesmo esta sensação foi aos poucos se perdendo em
uma sensação indistinta de paz sonolenta, que, de repente, foi interrompida
bruscamente por um lampejo sombrio de solidão e terror.
Ela acordou novamente, com frio e tremendo de medo: por um
momento parecia que tinha perdido a criança que estava segurando. Mas
não – ela tinha se enganado – a pressão suave do corpinho ainda estava
aconchegada contra o seu: a recuperação do calor fluiu por todo seu corpo
mais uma vez, e ela cedeu, se entregou a sensação e dormiu.
Capítulo 14
O dia amanheceu ameno e ensolarado, com uma promessa de verão
no ar. A luz do sol banhava alegremente a rua de Lily, suavizando a fachada
cheia de bolhas, reluzindo nos corrimões sem pintura dos degraus da
entrada, e atingindo as glórias prismáticas das vidraças da sua janela escura.
Quando o dia coincide com o nosso humor é de perder o fôlego; e
Selden, que andava apressado pela rua alheio a esqualidez das suas
confidências matinais, de repente foi acometido por uma nova sensação de
aventura. Ele tinha saído da sua zona de conforto e se aventurado nos mares
inexplorados da emoção; todas as antigas cautelas e medidas preventivas
tinham sido deixadas para trás, e seu curso agora seria moldado por novos
recomeços.
Esse curso, por enquanto, o levara somente para a pensão de Miss
Bart, mas a fachada humilde de repente se transformou no limiar nunca
antes transposto. À medida que se aproximava ele olhava para a fileira
tripla de janelas ao alto, pensando infantilmente qual seria a dela. Eram
nove horas, e a casa, sendo ocupadas por trabalhadoras, já dava sinais de
movimento da rua. Ele se lembrou depois de que apenas uma cortina estava
fechada. Notou também que havia um vasinho de amor-perfeito em um dos
peitoris, e na hora achou que aquela janela só podia ser a dela: foi inevitável
para ele ligá-la ao único toque de beleza naquele cenário miserável.
Nove horas eram cedo para uma visita, mas Selden tinha deixado de
lado as convenções. Ele só sabia que precisava ver Lily Bart – tinha
encontrado a palavra que pretendia dizer para ela, e mal podia esperar para
dizer. Era estranho que ela não tivesse vindo em seus lábios antes – que ele
a tivesse deixado escapar na tarde anterior antes que ele tivesse conseguido
falar. Mas o que importava, agora que um novo dia tinha chegado? Aquela
não era uma palavra para o crepúsculo, mas para a manhã.
Selden subiu os degraus ansioso e tocou a sineta; e apesar de estar tão
concentrado em si mesmo, ficou surpreso quando a porta foi aberta de
imediato. Ficou ainda mais surpreso em ver, quando entrou, que ela tinha
sido aberta por Gerty Farish – e que atrás dela, num borrão indistinto
agitavam-se outras figuras.
– Lawrence! – exclamou Gery, num tom de voz estranho, – como
você conseguiu chegar tão rápido? – e a mão trêmula que ela estendeu
causou um aperto no seu coração.
Uma voz ao fundo disse que o médico desceria dentro de um minuto –
e que ninguém deveria subir. Mais alguém exclamou: – Foi a misericórdia
divina… – então Selden sentiu que Gerty segurava gentilmente a sua mão, e
que os dois teriam de suportar juntos a subida.
Eles subiram os três lances de escada em silêncio, e caminharam pelo
corredor até a porta mais próxima. Gerty abriu a porta, e Selden entrou
depois dela. Apesar de a veneziana estar fechada, a irresistível luz do sol
banhava o quarto de dourado, e sob esta luz Selden viu uma cama estreita
colada a parede, e sobre a cama, com as mãos imóveis e o rosto
irreconhecivelmente calmo, o semblante de Lily Bart.
Cada batida do seu coração negava ardentemente que aquela fosse a
verdadeira Lily. A verdadeira Lily recostara quente em seu peito poucas
horas antes – o que ele tinha a ver com aquele rosto estranho e sereno que,
pela primeira vez, não empalidecera e nem se alegrara com sua chegada?
Gerty, que também estava estranhamente tranquila, com o
autocontrole consciente de alguém que já tinha atenuado muitas dores,
estava ao lado da cama, falando calmamente, como se estivesse
transmitindo uma mensagem final.
– O médico encontrou um frasco de cloral. Ela vinha dormindo mal
há muito tempo, e deve ter tomado mais do que o indicado, sem querer…
Não há dúvida quanto a isso, não há dúvida, ele foi muito gentil. Falei para
que você e eu gostaríamos de ficar sozinhos com ela, para ajeitar as coisas
dela antes que mais alguém chegasse. Sei que é isto que ela gostaria.
Selden mal ouviu o que ela tinha dito. Ele ficou olhando para o rosto
adormecido que parecia jazer como uma delicada máscara impalpável sobre
os traços de vida que ele conhecia. Ele sentia que a verdadeira Lily ainda
estava ali, bem perto dele, apesar de estar invisível e inacessível; e a
fragilidade da barreira entre eles o enganava com uma sensação de
impotência. Nunca existira nada além de uma barreira impalpável entre eles
– e mesmo assim ele lutara para se manter afastado dela! E agora, embora
ela parecesse mais frágil e tênue do que nunca, de repente, ela tinha
enrijecido a ponto de se tornar intransponível, e mesmo que ele apostasse
sua vida seria em vão.
Ele caiu de joelhos ao lado da cama, mas um toque de Gerty o
despertou. Ele olhou para cima, e quando seus olhos se encontraram ele
ficou encantado com a luz extraordinária que o rosto da sua prima emanava.
– Você sabe o que o médico foi fazer? Ele prometeu que não haverá
problemas, mas claro que é necessário tomar as devidas providências. E
pedi para ele que nos desse um tempo para ajeitarmos as coisas dela
primeiro…
Ele assentiu, e ela olhou ao redor do quartinho vazio.
– Não vai demorar muito – ela concluiu.
– Não. Não vai demorar muito – ele concordou.
Ela segurou a mão dele mais um tempo, e então, após uma última
olhada para a cama, saiu andando silenciosamente em direção à porta. No
limiar ela parou e adicionou:
– Estarei lá embaixo, caso precise de mim.
Selden se levantou para detê-la.
– Mas por que você está saindo? Ela teria desejado…
Gerty meneou a cabeça com um sorriso.
– Não; isto é o que ela teria desejado…
E enquanto ela falava uma luz rompeu a tristeza petrificante de
Selden, e ele enxergou com clareza as entrelinhas ocultas do amor.
A porta fechou atrás de Gerty, e ele ficou sozinho com a adormecida
imóvel na cama. Seu primeiro impulso foi de voltar para o lado dela, cair de
joelhos, e recostar a cabeça agitada contra a face serena sobre o travesseiro.
Eles nunca tinham ficado em paz juntos, só os dois; e agora ele se sentia
atraído pelas misteriosas profundezas estranhas da tranquilidade dela.
Mas ele se lembrou do aviso de Gerty – sabia que, apesar de o tempo
ter parado dentro daquele quarto, seus pés corriam implacáveis em direção
à porta. Gerty tinha lhe dado aquela meia hora divina, e ele precisa usá-la
de acordo com a vontade dela.
Ele virou e olhou ao redor, obrigando-se a recuperar a consciência das
outras coisas. Havia poucos móveis no quarto. A penteadeira ordinária
estava coberta por uma tolha de renda, e em cima desta, algumas caixas de
tampa dourada e frascos, uma almofada cor-de-rosa de alfinetes, uma
bandeja de espelho com algumas presilhas de tartaruga – ele recuou diante
da intimidade pungente destas bugigangas, e da superfície vazia do espelho
acima delas.
Aqueles eram os únicos traços de luxo, de apego aos mínimos
detalhes do cuidado pessoal, que mostrava o quanto devia ter custado a ela
as outras renúncias. Não havia outro sinal pessoal dela no quarto, tirando,
talvez, a disposição criteriosa dos poucos móveis: um lavatório, duas
cadeiras, uma pequena escrivaninha e um criado-mudo ao lado da cama.
Sobre o criado-mudo estava o frasco vazio e um copo, e ele desviou os
olhos destes também.
A escrivaninha estava fechada, mas sobre o tampo inclinado havia
duas cartas, aos quais ele pegou. Uma estava endereçada a um banco, e
como estava lacrada e selada, Selden, após um momento de hesitação,
deixou de lado. A outra estava endereçada a Gus Trenor; e a tampa do
envelope ainda estava aberta.
A tentação o apunhalou como uma faca. Ele cambaleou, firmando-se
na mesa. Por que ela tinha escrito para Trenor – escrito, supostamente, logo
depois que eles tinham se despedido na tarde do dia anterior? O pensamento
apagou a lembrança daquela última hora, zombou da palavra que ele tinha
vindo falar, e contaminou até mesmo o silêncio conciliador em que ela caiu.
Ele se viu retomando todas as incertezas horrendas das quais imaginara que
tinha conseguido se livrar para sempre. Afinal, o que ele sabia sobre a vida
dela? Apenas o que ela tinha escolhido mostrar para ele, e de acordo com a
noção de mundo, isso era muito pouco! Que direito – a carta em sua mão
parecia perguntar – que direito ele tinha de invadir a privacidade dela pelo
portão que a morte tinha deixado aberto? Seu coração respondeu que era
com o direito da última hora que eles tinham passado juntos, a hora quando
ela mesma tinha colocado a chave na não dele. Sim, mas e se a carta tivesse
sido escrita para Trenor depois disso?
Ele a soltou com repugnância, e cerrando os lábios, retomou com
afinco o que precisava fazer. Afinal, isto ia ser fácil de fazer, agora que a
seu envolvimento pessoal tinha sido anulado.
Ele levantou a tampa da escrivaninha, e dentro viu um talão de
cheques e alguns maços de notas e cartas, organizados com uma precisão
que caracterizava todos os hábitos pessoais dela. Ele deu uma olhada nas
cartas primeiro, pois esta era a parte mais difícil do trabalho. Eram poucas e
sem muita importância, mas entre elas ele encontrou, com um estranho
aperto no coração, o bilhete que ele tinha escrito para ela um dia depois da
festa na casa dos Bry.
– Quando posso lhe fazer uma visita? – suas próprias palavras o
sobrepujaram ao perceber o modo covarde como ele fugira dela no
momento crucial. Sim, ele sempre teve medo do seu destino, mas era muito
honesto para negar sua covardia agora, afinal todas as suas antigas dúvidas
não tinham voltado à tona novamente com a simples visão do nome de
Trenor?
Ele colocou cuidadosamente o bilhete no seu porta-cartões, e guardou
como se fosse algo precioso pelo simples fato de ela ter tocado nele; então,
ciente do tempo que se esgotava, ele continuou examinando os papéis.
Para sua surpresa, descobriu que todas as notas tinham sido pagas;
não havia uma conta sem pagar entre elas. Abriu então o talão de cheques, e
viu que, na noite anterior, tinha sido anotada a entrada de um cheque de dez
mil dólares dos executares de Mrs. Peniston. A herança tinha sido paga
antes do que Gerty o fizera imaginar que seria. Mas, ao virar uma ou duas
páginas, ele descobriu surpreso que, apesar da entrada recente, restavam
apenas alguns dólares de saldo. Uma passada de olhos nos canhotos dos
últimos cheques, todos com a data do dia anterior, mostrou que em torno de
quatro ou cinco mil dólares da herança tinham sido usados para pagar as
contas, enquanto o restante tinha sido destinado a um cheque apenas, feito,
junto com os outros, para Charles Augustus Trenor.
Selden colocou o talão sobre a escrivaninha, e sentou sobre a cadeira
ao lado. Apoiou os cotovelos sobre ela, e escondeu o rosto entre as mãos.
As águas amargas da vida o envolveram, e o gosto estéril ficou em seus
lábios. Será que o cheque para Trenor explicava ou aumentava ainda mais o
mistério? A princípio sua mente se recusava a funcionar – ele só conseguia
pensar na sujeira que poderia significar uma transação deste tipo entre um
homem como Trenor e uma moça como Lily Bart. Então, aos poucos, sua
visão conturbada foi clareando, pistas antigas e rumores foram voltando, e
apesar das insinuações que ele mesmo temia constatar, surgiu uma
explicação para o mistério. Era verdade, então, que ela tinha pegado
dinheiro emprestado de Trenor; assim como também era verdade, de acordo
como conteúdo da escrivaninha, que a dívida tinha sido intolerável para ela,
e que na primeira oportunidade ela tratou de se livrar, apesar de o ato a ter
deixado cara a cara com a mais pura pobreza.
Isso era tudo que ele sabia – tudo que podia esperar para desvendar a
história. Os lábios emudecidos no travesseiro se recusavam a confirmar isso
– a menos que tivessem insinuado muito mais no beijo que ela tinha dado
na sua testa. Sim, agora ele era capaz de enxergar naquela despedida tudo
que seu coração almejava encontrar lá; ele conseguiu até mesmo tirar
coragem disso para não se culpar por não ter aproveitado a oportunidade
que tivera.
Ele percebeu que todas as condições da vida tinham conspirado para
afastá-los; uma vez que seu próprio distanciamento das influências externas
que nela oscilavam tinham servido para elevar o nível da sua exigência
espiritual, e tornado mais difícil para ele viver e amar sem ressalvas. Mas ao
menos ele a amara – esteve disposto a arriscar seu futuro em nome da fé
que tinha nela – e se o momento estava destinado a passar diante deles antes
que eles conseguissem agarrá-los, agora ele via que isto os salvara de
arruinarem suas vidas.
Foi esse momento de amor, esta vitória fugaz sobre eles mesmos, que
os livrara da atrofia e da extinção; que, a partir dela, tinha atingindo-o em
cada luta contra a influência do meio em que ela estava inserida, e nele,
mantivera viva a fé que agora o atraía penitente e reconciliador para perto
dela.
Ele se ajoelhou ao lado da cama e se inclinou sobre ela, aproveitando
ao máximo este último momento; e no silêncio que se passou entre eles, a
palavra que esclareceu tudo.

FIM
FICHA CATALOGRÁFICA

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Texto adaptado à nova ortografia da Língua Portuguesa,
Decreto n° 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Direção geral: Chirlei Wandekoken


Direção de arte: Eduardo Barbarioli
Tradução: Silvia M. C. Rezende
Revisão: Francisca Magalhães
Colaboraram na revisão: Tamires de Carvalho e Enza Said
Pintura da capa: Giovanni Boldini

W553c Wharton, Edith, 1862-1937.


A casa da alegria / Edith Wharton .
Vitória, ES : Pedrazul Editora, 2021.

Título original: The House of Mirth

1. Literatura americana.
2. Ficção.
3. Romantismo
I. Título.
II. M. C. Rezende, Silvia.
CDD – 813

Reservados todos os direitos desta tradução e produção.


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[1]
- A Viagem da Vida é uma série de pinturas feitas pelo americano Thomas Cole, em 1842,
representando simbolicamente as quatro estações da vida humana: infância, juventude, idade
adulta e velhice. Após a morte do pintor, James Smillie reproduziu os quatros em gravuras, que
caíram no gosto popular.
[2]
- Expressão francesa que significa pintura viva. Trata-se de uma representação feita por
modelos ou atores de uma obra pictórica já existente ou inédita.

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