Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
No final do ano de 2016, em uma reunião de pesquisa, foi discutido o texto Reflexiones
sobre la violencia [5], do teórico político John Keane. Diante do problema intelectual de
pensar a violência do século XX a partir de teorias clássicas, o autor busca analisar as visões
cânones acerca da violência política e confrontá-las com a experiência até então ímpar que
esse tempo apresentou. Keane procura argumentar que, para além da “parte democrática e
pacífica” do mundo, há uma “zona onde reina a anarquia violenta”, que parece escapar à
monopolização da violência legítima de Estado. Aqui, a “civilização” e a “estabilidade” são
constantemente solapadas por golpes, guerras e repressões violentas.
Frente a tal problema, achou-se conveniente refletir um pouco mais sobre a questão da
civilização, na tentativa de melhor compreender o modo pelo qual esse conceito pode ser
relacionado com o de violência. Dando destaque à interlocução com Norbert Elias,
especialmente estabelecida por Keane na secção El proceso de civilización, buscou-se ampliar
a discussão que o autor traz em seu texto. Esse sociólogo alemão, cuja produção teórica se
insere no século XX, desenvolveu uma teoria sobre processos civilizadores, que, de uma
maneira geral, representam a alteração do comportamento humano tanto pelo controle social,
quanto pelo autocontrole individual.
Lançada à investigação sobre a sociedade europeia, a teoria eliasiana destaca no
magnum opus do autor, O Processo Civilizador [2], uma transformação ocorrida entre os
séculos XII e XVIII no habitus europeu que marginalizou gestos, palavras e sentimentos, que
foram aos poucos sendo considerados violentos. Segundo Elias, esse “processo” não pode ser
desvinculado da centralização do Estado Moderno, através da monopolização fiscal e da
violência legítima, nem do aumento e da diferenciação das funções sociais, levando à
ampliação da interdependência entre os indivíduos e ao maior rigor exigido nas relações
sociais. Nestas, as explosões emocionais que incluem a violência, seriam mais controladas
diante das constantes tensões da vida social.
Assim, depois de reunidas algumas conclusões acerca da teoria de Georges Sorel –
pesquisada anteriormente – viu-se por bem realizar uma pesquisa sobre obra de Norbert Elias,
buscando nela contribuições à história e delimitações conceituais da violência. Ainda em
estágio inicial, esse percurso já conta com o estudo dos dois volumes de O Processo
Civilizador [2], bem como do livro A Sociedade de Corte [1] do mesmo autor. Além disso, foi
feito um levantamento biográfico e outro bibliográfico de Elias, auxiliados por comentadores
e pelo próprio teórico na edição intitulada Elias por ele mesmo [3].
Alguns dos resultados obtidos foram apresentados em intervenções nas reuniões
quinzenais da pesquisa, bem como no “Seminário Especial em Teoria, Historiografia e
História Intelectual”, com o tema “Civilização e Violência”, ministrado pelo orientador na
Pós-Graduação. No que se refere à pesquisa extra individual, foi elaborada uma planilha que
ordenou a bibliografia da pesquisa Conceitos de Violência Política levantada até o momento,
com cerca de 500 entradas, sendo metade desse montante colocada por mim.
Departamento de História
Objetivos e justificativa
Através da análise da teoria de Norbert Elias, cujas obras já estudadas foram produzidas
na Europa durante a década de 1930, este trabalho objetiva contribuir para a hipótese da
pesquisa intitulada Conceitos de Violência Política: a Teoria Política e a Primeira Guerra
Mundial. Esta pretende argumentar que as experiências vividas no início do século XX
alteraram uma autorreferência humana produzida pela modernidade europeia, que supunha
viver um processo civilizatório capaz de marginalizar o uso da violência para a resolução de
conflitos políticos. O estudo da teoria eliasiana em questão almeja inserir a visão de um autor
sobre como se deu a produção de tal autorreferência e auxiliar a compreensão acerca da
participação da violência nesse processo, assim como fomentar as leituras de civilização no
curso da referida pesquisa.
Além disso, como pode ser observado, a presente investigação situa-se na produção
teórica europeia do século XX. Os trabalhos de Elias aqui mobilizados foram elaborados no
entre guerras e tratam de uma “sociologia histórica” que pretende estudar o conceito de
civilização como uma “autoconsciência” ocidental. Nas investigações do autor, a violência
aparece como uma experiência marginalizada por essa “autorreferência” entre os séculos XII
e XVIII. Hipoteticamente falando, parece que Elias quer resgatar os estudos sobre o conceito
de civilização em meio à sua crítica – proposta, por exemplo, por Sigmund Freud – diante
espetacularização da violência produzida pela contemporaneidade de sua escrita.
Nesse sentido, justifica-se a introdução da teoria de Norbert Elias no percurso da
pesquisa proposta. Isso não apenas com o limitado estudo que já se apresenta, mas também
com os trabalhos posteriores de Elias, onde ele parece querer continuar a discussão acerca dos
conceitos de civilização e violência em temporalidades mais próximas do seu tempo. Espera-
se poder dar sequência a esta investigação com essas obras para que se possa ampliar o debate
sobre tais conceitos, sem perder de vista a relevância deste para a nossa contemporaneidade.
Metodologia
De modo geral, o caráter metodológico desta pesquisa está em consonância com o da
chamada história dos conceitos. Essa forma de pensar a história se interessa pela observância
sincrônica e diacrônica do uso dos termos em textos e teorias encarados como fontes numa
determinada conjuntura. Através da significação atribuída aos conceitos por seus atores, pode-
se chegar a uma melhor compreensão da experiência contemporânea ao seu emprego,
respeitando as circunstâncias em que foram formulados e evitando anacronismos e/ou falhas
interpretativas.
A metodologia empregada para a apreensão inicial, ainda em curso, da teoria de Norbert
Elias sobre o processo civilizador e o estabelecimento de sua relação com o tema da violência
consiste na leitura de suas obras e de suas principais fontes documentais, na leitura dos
críticos e analistas de sua produção, levantamento bibliográfico do autor, esboço biográfico
intelectual do mesmo, pesquisa das interlocuções presentes nos textos de Elias e/ou nos de
seus comentadores (com destaque para Sigmund Freud, Max Weber e Georg Simmel).
Segue um breve resumo do tratamento já obtido no curso deste ano de pesquisa, seu
atual estágio e as previsões de trabalho:
No prefácio, Elias delimita o tema fundamental de seu trabalho, a saber, “os tipos de
comportamento considerados típicos do homem civilizado ocidental” [ELIAS, 1994, p. 13], e
formula o problema em questão a partir do que ele chama de “lei sociogenética”. Por ela, não
se pode compreender a “psicogênese” individual sem que a “sociogênese” da “civilização”
seja levada em consideração. Isso porque os indivíduos passam em sua curta história “através
de alguns dos processos que a sociedade experimentou em sua longa história” [ELIAS, 1994,
p. 15]. Assim, Elias justifica a sua investigação trazendo a questão de O Processo Civilizador:
“Aqui, tenta-se revelar algo dos processos históricos concretos que, desde o tempo
em que o exercício da força era privilégio de um pequeno número de guerreiros
rivais, gradualmente impeliu a sociedade para essa centralização e monopolização
do uso da violência física e de seus instrumentos.” [ELIAS, 1994, p. 17].
“Nesta área emocional - a do teatro das colisões hostis entre homens -, ocorreram,
como em todas as outras, as mesmas transformações históricas. Não importando em
que ponto se situa a Idade Media nessa transformação, bastará estudar aqui o padrão
de sua classe governante secular, os guerreiros, como ponto de partida, a fim de
ilustrar o padrão geral desse desenvolvimento. A liberação das emoções em batalha
durante a Idade Media não era, talvez, tão desinibida como no período anterior das
Grandes Migrações. Mas era bastante franca e desinibida, em comparação com a
medida dos tempos modernos. Neste último, a crueldade e a alegria com a destruição
e o tormento de outrem, tal como a prova de superioridade física, foram colocadas
sob um controle social cada vez mais forte, amparado na organização estatal. Tosas
essas formas de prazer, limitadas por ameaças de desagrado, gradualmente vieram a
se expressar apenas indiretamente, em uma forma "refinada". E só em épocas de
sublevação social ou quando o controle social e mais frouxo (como, por exemplo,
em regiões coloniais) elas se manifestam mais direta e livremente, menos
controladas pela vergonha e a repugnância.” [ELIAS, 1994, p. 191].
“Até a época em que o controle dos instrumentos de violência física - armas e tropas
- passou a ser altamente centralizado, as tensões sociais explodiam repetidamente
em ações belicosas. Determinados grupos sociais, comunidades de artesãos e seus
senhores feudais, cidades e cavaleiros, enfrentavam-se como centros de poder que -
o que só Estados faziam mais tarde - teriam que sempre estar dispostos a resolver
Departamento de História
pela força das armas suas divergências de interesses. Os temores despertados nessa
estrutura de tensões sociais ainda podiam ser liberados fácil e frequentemente pelo
apoio militar e pela força física direta. Com a gradual consolidação dos monop6lios
de poder e a crescente interdependência funcional entre nobreza e burguesia, tudo
isso mudou. As tensões [sic] se abrandaram. Só em raras ocasiões eram resolvidas
pela violência física. Por isso mesmo, manifestavam-se segundo uma pressão
constante, que cada membro individual da nobreza teria que absorver pessoalmente.
Com essa transformação nos relacionamentos, os temores sociais deixaram de
parecer chamas que rebentam de repente, ardem com intensidade e logo se
extinguem, mas apenas para ressurgirem com a mesma rapidez, tomando-se, em vez
disso, uma espécie de fogo de monturo, cujas chamas não se veem e raramente
irrompem a vista de todos.” [ELIAS, 1994, p. 70].
Assim, como pode ser observado, a violência ocupa um lugar especial na análise de
Elias sobre “o processo civilizador”. A presente obra funcionou e funciona como a base para a
pesquisa da teoria eliasiana, uma vez que a sua argumentação nas demais produções do autor
parece levar seus conceitos para estudos posteriores.
“[..] O que hoje em dia aparece como luxo, numa consideração retrospectiva, não é
nada supérfluo numa sociedade assim estruturada [...]. Numa sociedade em que cada
manifestação pessoal tem um valor socialmente representativo , os esforços em
busca de prestígio e ostentação por parte das camadas mais altas constituem uma
necessidade se pode fugir. Trata-se de um instrumento indispensável à
autoafirmação social, especialmente quando - como é o caso da sociedade de corte –
todos os participantes estão envolvidos numa batalha ou competição por status e
prestígio. Um duque tem que construir uma casa de maneira que expresse: sou um
duque e não um conde. O mesmo vale para todos os aspectos do seu estilo de vida.
[...] Um duque que não mora da maneira como um duque deve morar , e que
portanto não pode mais cumprir as obrigações sociais que seu título supõe,
praticamente deixa de ser um duque.” [ELIAS, 2001, p. 83].
Norbert Elias por ele mesmo [3], Dossiê Norbert Elias [8] & Norbert Elias: A Política e a
História [4]
A leitura Norbert Elias por ele mesmo deu sequência à pesquisa. A validade desta obra
está na composição do retrato biográfico intelectual do autor, importante para inseri-lo em seu
tempo e verificar as interlocuções que estabelece. Consiste em uma longa entrevista e cinco
notas biográficas sobre o que o escritor “aprendeu”, onde ele fala sobre a sua infância,
juventude, judeidade, seus mestres, a formação de seu pensamento, além da recepção tardia de
sua obra – que, para alguns de seus comentadores, será fundamental para as escolhas que
Elias toma em sua teoria.
O Dossiê Norbert Elias consiste no resultado de seminários que foram realizados no
Brasil por ocasião do centenário de Norbert Elias e reúne artigos de antropólogos e sociólogos
relevantes para pensar a teoria do autor e, por isso é inserida aqui. A primeira, Heloísa Pontes,
argumenta que a metodologia científica de Elias possui um caráter inovador, interdisciplinar e
que rompe com preceitos rígidos da ciência social, por exemplo, acerca das explicações micro
e macrossociológicas, ambas presentes no autor. Depois, Frederico Neiburg realiza um artigo
de caráter fundamental a esta pesquisa na medida em que trabalha com o conceito de
violência em Elias. Para ele, à revelia das concepções “negativas” da violência, conceituada
em oposição à pacificação, Elias propõe uma “análise sociologicamente positiva da
violência”, que é circunscrita na teoria de modo a produzir conhecimento sobre a sociedade.
Jessé Souza produz em Dossiê Norbert Elias um artigo que compara Elias e Weber
apontando que ambas as teorias leem processos no ocidente que caminham para o controle
dos afetos e dos “sentimentos humanos”, embora o segundo dedica-se ao debate intercultural
enquanto o segundo não reflete a especificidade ocidental por oposição a outras culturas. O
sociólogo Leopoldo Waizbort, organizador do dossiê, defende que a teoria eliasiana tem seus
fundamentos metodológicos derivados da sociologia de Georg Simmel, na medida em que
analisa processos de interdependência social entendo-o como um conjunto de relações entre
as “partes” e o “todo”, a unidade. Ao entender que Elias elabora uma “sociologia da
concorrência”, o artigo auxilia a presente pesquisa. Sergio Miceli argumenta ao fim do Dossiê
que Elias “revoluciona” a sociologia primeiro renovando a agenda clássica dos “pais
Departamento de História
Considerações finais
A presente pesquisa permitiu uma melhor compreensão de como a violência legítima
fora banida do habitus europeu através de um processo civilizador, tal como ele fora
entendido pelo sociólogo alemão Norbert Elias. De acordo com este, ao longo dos séculos XII
e XVIII, a formação do Estado e o aumento da interdependência social favoreceram essa
exclusão, na medida em que mecanismos de coerção e de autocontrole do comportamento
foram sendo desenvolvidos. Além disso, este trabalho pode ampliar o debate conceitual
acerca do tema da civilização, sendo esta entendida aqui como aquilo que expressa a
consciência que o Ocidente tem de si mesmo. É de interesse prosseguir na pesquisa da teoria
eliasiana, através da análise de outros trabalhos do autor focando, sobretudo, nos chamados
“processos descivilizadores”.
Referências
1 - ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 312 p.
2 - ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 2 vols. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 584 p.
3 - ELIAS, Norbert. Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 166 p.
Departamento de História