Você está na página 1de 6

Vívian Matias dos Santos

Universidade Federal de Pernambuco


NOTAS DESOBEDIENTES: DECOLONIALIDADE E A CONTRIBUIÇÃO PARA A
CRÍTICA FEMINISTA À CIÊNCIA

Descolonial ou decolonial? Sobre colonialismo e colonialidade


Nos diálogos iniciais com as primeiras leituras no campo decolonial, percebi que em
alguns escritos produzidos por intelectuais que integram o grupo M/C, ao serem
traduzidos para a língua portuguesa, encontra-se a expressão "descolonial" como
aparente sinônimo de "decolonial". O que pude observar é que não há um consenso. No
contexto latino-americano, por exemplo, é mais comum o uso da expressão "descolonial"
nas produções argentinas5. Assim, logo nas primeiras aproximações, o decolonial
demarca uma posição de disputa epistemológica e, enquanto movimento, não é unívoco.

Como se diferencia "descolonial" e "decolonial"? Primeiramente, é relevante pontuar que


as diferenciações postas por estes termos articulam-se como teóricas e políticas. O
decolonial encontra substância no compromisso de adensar a compreensão de que o
processo de colonização ultrapassa os âmbitos econômico e político, penetrando
profundamente a existência dos povos colonizados mesmo após “o colonialismo”
propriamente dito ter se esgotado em seus territórios.

O decolonial seria a contraposição à “colonialidade”, enquanto o descolonial seria uma


contraposição ao “colonialismo”, já que o termo descolonización é utilizado para se referir
ao processo histórico de ascensão dos Estados-nação após terem fim as administrações
coloniais, como o fazem Castro Gómez e Grosfoguel (2007) e Walsh (2009). O que
estes autores afirmam é que mesmo com a descolonização, permanece a colonialidade.

Decolonialidade e a contribuição à crítica feminista

Considero importante ressaltar que a racionalidade europeia foi não apenas elaborada
"no contexto de, mas como parte de uma estrutura de poder que implicava a dominação
colonial europeia sobre o restante do mundo" (Quijano, 1992, p. 444). A racionalidade do
empreendimento europeu colonial alicerça-se e é também alicerçante na/da lógica
dicotômica moderna, cuja dicotomia central, conforme María Lugones (2014), é 'Humano
x Não humano'. Aqui, dicotomizar não significa apenas diferenciar, mas marcar distinções
hierarquizantes.

Com a feminista decolonial María Lugones (2014), pude entender que, ainda hoje, a
lógica categorial dicotômica é o ponto central para o pensamento "capitalista e colonial
moderno" sobre raça, gênero e sexualidade. A pensadora complexifica a noção de
colonialidade de Quijano ao identificar a existência do que ela denomina "Sistema
Moderno Colonial de Gênero" como sistema binário, racializado, heteronormativo e
capitalista.

Para Lugones, é indispensável compreender que, na dicotomia Humano x Não humano,


havia um modelo de humanidade: homem/mulher, branco/a, europeu/ia, civilizado/a,
burguês/burguesa. Se a "dicotomia hierárquica como uma marca do humano também
tornou-se uma ferramenta normativa para condenar os/as colonizados/as" (Lugones,
2014, p. 936), não se trata apenas de estabelecer "tipos ideais", mas de normatizar
existências. Normatizar, pressupõe padronizar, disciplinar, controlar, verbos que se
conjugam na concretude da vida por meio de violências e até aniquilamento. Entendendo
estas especificidades, pude perceber o gênero como invenção colonial organicamente
vinculada à racialização sendo, portanto, indissociáveis.

Como reflexo da pluralidade e das disputas que permeiam os feminismos, são diversas as
abordagens e dissensos que cercam a compreensão sobre a colonialidade do gênero.
Numa leitura muito alinhada a de María Lugones (2014), Oyèrónké Oyěwùmí (2004, p. 1)
defende que "gênero e categorias raciais surgiram durante essa época como dois eixos
fundamentais ao longo dos quais as pessoas foram exploradas, e sociedades,
estratificadas". Ou seja, gênero seria uma construção da modernidade colonial.

Lugones (2014), Oyěwùmí (2004) e Segato (2012), embora não haja consenso a
respeito do gênero como construção derivada apenas da intrusão colonial,
aparentemente, é unânime entre estas autoras a compreensão de que a violência das
relações patriarcais vivenciada hoje pelos povos afro-americanos traz as marcas do
legado colonial10, sendo o gênero aspecto intrínseco à colonialidade. Ademais,
resguardadas tais distinções, o pensamento das três feministas aponta nos feminismos
hegemônicos a incapacidade de enfrentar o cisheterossexismo e o racismo, não sendo
"nem eficaz nem oportuna a liderança do feminismo eurocêntrico" (Segato, 2012, p. 116).
No campo das epistemologias não hegemônicas, o feminismo decolonial de Lugones vai
ao encontro da proposta interseccional das feministas negras 11: não se pode compreender
a discriminação de gênero sem perceber a indissociabilidade entre este e raça no
contexto capitalista e, logo, classe social. Aliás, sem o empreendimento colonial europeu
racializado, o modo de produção capitalista não teria tido as condições para acumulação
primitiva que lhe foi condição histórica. Hoje, a colonialidade é inerente ao capitalismo,
quando "asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la colonialidad
global . . . De este modo, preferimos hablar del ‘sistema-mundo europeo/euro-
norteamericano capitalista/patriarcal moderno/colonial’ (Grosfoguel, 2005) y no sólo del
‘sistema-mundo capitalista’" (Castro-Gómez & Grosfoguel, 2007, 13).
Assim, por meio do feminismo decolonial de Lugones, percebemos que as contraposições
ao pós-colonial parecem se converter numa necessária coalizão político-epistêmica entre
os pensamentos produzidos pelas resistências negra e indígenas. Situada no campo
epistêmico não hegemônico, Lugones, então, (embora se desloque dos feminismos de cor
para os decoloniais) dialoga com linhas de construção teórico-política que perpassam
também pelos feminismos negros, tal como o pensamento de Patrícia Hill Collins (1997),
que compreende raça, classe, gênero e sexualidade como elementos da estrutura social,
como legado colonial.

Rumo a um feminismo descolonial/ María Lugones - María Lugones foi uma socióloga,
professora, feminista e ativista argentina, radicada nos Estados Unidos. Era professora de
literatura comparada e estudos femininos da Universidade de Binghamton, em Nova
Iorque. María estudava e teorizava sobre as variadas formas de resistência de várias
formas de opressão

Copyright ã 2014 by Revista


Estudos Feministas.
Artigo originalmente publicado na
revista Hypatia, v. 25, n. 4, 2010.
Traduzido ao português com o consentimento
da autora.
A ideia central do texto é sobre desconstruir a mentalidade em relação a mulher,
que não pode ser generalizada, nos processos de lutas e oportunidades. Para
entender esse conceito que na visão de Maria Lugones é complexo, no início do
artigo Lugones faz uma contextualização sobre a colonização, busca definir alguns
conceitos tidos naquele tempo, primeiro Lugones, desmistifica o conceito de
modernidade colonial, seguindo a linha de alguns autores, ela defini como não
moderno, e no decorrer do texto Lugones evidencia outros conceitos, como
humano e não humano, mulher e homem. Por fim, Lugones faz alguns
questionamentos em relação a essa temática, e mostra formas de resistir as
diferenças coloniais. Fiz algumas marcações das falas de Lugones:

A modernidade organiza o mundo ontologicamente


em termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis.
A crítica contemporânea ao universalismo feminista feita por
mulheres de cor e do terceiro mundo centra-se na reivindicação
de que a intersecção entre raça, classe, sexualidade
e gênero vai além das categorias da modernidade. Se mulher
e negro são termos para categorias homogêneas, atomizadas
e separáveis, então sua intersecção mostra-nos a ausência
das mulheres negras – e não sua presença. Assim, ver mulheres
não brancas é ir além da lógica “categorial”.
Proponho o
sistema moderno colonial de gênero como uma lente através
da qual aprofundar a teorização da lógica opressiva da
modernidade colonial, seu uso de dicotomias hierárquicas e
de lógica categorial. (Pg 935).
Maria Lugones defini não moderno o sistema capitalista, e cita alguns autores para
validar a definição, como Juan Ricardo Aparicio e Mario Blaser.

Colonialidade do gênero

Maria Lugones nesse subtítulo faz uma contextualização da colonização da América e do


Caribe, para evidenciar o conceito de gênero (Sendo que era apenas homem ou mulher),
e também explicar quem era humano e não humano na modernidade colonial.
Quem era os não humanos?
Os povos
indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as
eram classificados/as como espécies não humanas – como
animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens

Quem era os humanos?


O homem
europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/
agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um
ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e
razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como
seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e
capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e
por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu
burguês.

Neste trabalho, quero imaginar como pensar


sobre interações íntimas e cotidianas que resistem à diferença
colonial. Quando penso em intimidade aqui, não estou
pensando exclusivamente nem principalmente sobre relações
sexuais. Estou pensando na vida social entretecida entre
pessoas que não estão atuando como representativas ou
autoridades. (pág. 936).

Mostra o tempo que pesquisa que é o da colonização da América:


Mesmo que nesse tempo a compreensão
do sexo não fosse dimórfica, os animais eram diferenciados
como machos e fêmeas, sendo o macho a perfeição, a
fêmea a inversão e deformação do macho.3 Hermafroditas,
sodomitas, viragos e os/as colonizados/as, todos eram
entendidos como aberrações da perfeição masculina. (pág. 937)

Proponho interpretar, através


da perspectiva civilizadora, os machos colonizados não
humanos como julgados a partir da compreensão normativa
do “homem”, o ser humano por excelência. Fêmeas eram
julgadas do ponto de vista da compreensão normativa
como “mulheres”, a inversão humana de homens.4 Desse
ponto de vista, pessoas colonizadas tornaram-se machos
e fêmeas.

O que é importante para mim aqui é que se percebia o sexo


existindo isoladamente na caracterização de colonizados/as. (pág. 938)

Uso o termo colonialidade seguindo a análise de


Aníbal Quijano. A análise de Quijano fornece-nos uma compreensão
histórica da inseparabilidade da racialização e da
exploração capitalista6 como constitutiva do sistema de poder
capitalista que se ancorou na colonização das Américas.

Ao
usar o termo colonialidade, minha intenção é nomear não
somente uma classificação de povos em termos de
colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo
de redução ativa das pessoas, a desumanização que as
torna aptas para a classificação, o processo de sujeitificação
e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres
humanos. Isso contrasta fortemente com o processo de
conversão que constitui a missão de cristianização. (pág. 939)

Teorizando a resistência/descolonializando
o gênero
A
sugestão é não buscar uma construção não colonizada de
gênero nas organizações indígenas do social. Tal coisa não
existe; “gênero” não viaja para fora da modernidade colonial.
Logo, a resistência à colonialidade do gênero é historicamente
complexa. (pág. 939)
Descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis.
É decretar uma crítica da opressão de gênero racializada,
colonial e capitalista heterossexualizada visando uma
transformação vivida do social. (pág. 949).

Definição de feminismo:
o feminismo
não fornece apenas uma narrativa da opressão de mulheres.
Vai além da opressão ao fornecer materiais que permitem
às mulheres compreender sua situação sem sucumbir a ela. (pág. 949).

Definições do título:
Chamo a análise da opressão de gênero racializada
capitalista de “colonialidade do gênero”. Chamo a
possibilidade de superar a colonialidade do gênero de
“feminismo descolonial”. (pág. 941).

é necessário que tenhamos muito cuidado com o uso dos


termos mulher e homem e que os coloquemos entre colchetes
quando necessário ao tecer a lógica do lócus fraturado,
sem causar o desaparecimento das fontes sociais que se
tecem nas respostas de resistência. Se apenas urdimos homem
e mulher no próprio tecido que constitui o ente em
relação à resistência, apagamos a própria resistência.
Somente ao colocá-los entre colchetes podemos apreciar a
lógica diferente que organiza o social na resposta de resistência. (pág. 943)

Certamente não estou defendendo não ler, ou não


“ver” a imposição das dicotomias humano/não humano, homem/
mulher, ou macho/fêmea na construção da vida cotidiana,
como se isso fosse possível. Fazer isso seria esconder a
colonialidade do gênero e apagaria a própria possibilidade
se sentir – ler – o tenso habitar a diferença colonial, bem como
as respostas a partir daí. Ao marcar a tradução colonial de
chachawarmi como homem/mulher, estou ciente do uso de
homem e mulher na vida cotidiana das comunidades bolivianas,
incluindo o discurso inter-racial. O êxito da complexa
normatização de gênero, introduzida com a colonização na
constituição da colonialidade do gênero, tornou esta tradução
colonial um assunto cotidiano, mas a resistência à colonialidade
de gênero é também vivida linguisticamente na
tensão da ferida colonial. O apagamento político, a tensão
vivida do linguagismo (languaging)20 – de se mover entre
modos de viver na linguagem – entre chachawarmi e homem/
mulher constitui a lealdade à colonialidade de gênero
ao apagar a história de resistência a partir da diferença
colonial. A utjaña de Filomena Miranda não é um viver no
passado, é apenas o modo de viver chachawarmi. A
possibilidade de utjaña, hoje, depende, em parte, de vidas
vividas na tensão linguageira da diferença colonial. (pág. 945)

Diferença colonial
Estou propondo um pensamento de fronteira feminista,
onde a liminaridade da fronteira é um solo, um espaço,
uma fronteira, para usar o termo de Gloria Anzaldúa, não
apenas uma fenda, não uma repetição infinita de hierarquias
dicotômicas entre espectros do humano desalmados. (pág. 947)

Frequentemente no trabalho de Mignolo, a diferença


colonial é invocada em níveis outros que subjetivo/intersubjetivo.
Mas quando ele a utiliza para caracterizar o “pensamento
de fronteira”, conforme a interpretação que faz de
Anzaldúa, ele a concebe exercitando a diferença colonial.
Ao fazer isto, ele entende o lócus de Anzaldúa como fraturado.
A leitura que eu quero efetuar vê a colonialidade de gênero
e rejeição, resistência e resposta. Se adapta à sua própria
negociação sempre de maneira concreta, desde dentro, por
assim dizer. (pág. 947)
Lendo o lócus fraturado

O que estou propondo ao trabalhar rumo a um feminismo


descolonial é, como pessoas que resistem à colonialidade
do gênero na diferença colonial, aprendermos umas sobre
as outras sem necessariamente termos acesso privilegiado
aos mundos de sentidos dos quais surge a resistência à
colonialidade. Ou seja, a tarefa da feminista descolonial
inicia-se com ela vendo a diferença colonial e enfaticamente
resistindo ao seu próprio hábito epistemológico de apagála.
Ao vê-la, ela vê o mundo renovado e então exige de si
mesma largar seu encantamento com “mulher”, o universal,
para começar a aprender sobre as outras que resistem à
diferença colonial. (pág.948)

Estamos nos movendo em um tempo de encruzilhadas, de vermos umas às outras na


diferença colonial construindo
uma nova sujeita de uma nova geopolítica feminista
de saber e amar. (pág. 951)

Você também pode gostar