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UNIVESIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Instituto de Geociências
Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia

Trabalho final da Disciplina Território, Autonomia e Pensamento Decolonial

André Fernandes de Caldas

Agosto de 2021
INTRODUÇÃO

O presente artigo nasce como fruto da disciplina Território, Autonomia e


Pensamento Decolonial do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, ministrado pelos professores Marcelo Câmara Argenta e
Dilermano Catteneo. Tem por objetivo fazer um apanhado geral do conteúdo ministrado
no decorrer da disciplina, além de trazer apontamentos, reflexões e questionamentos a
respeito dos temas abordados.

O texto seguirá o programa estipulado na exposição do conteúdo previsto. Far-se-á


breve introdução ao pensamento decolonial e sua relação com a Geografia. Em seguida
discorrerá sobre diversos temas necessários à compreensão do desdobramento do
pensamento decolonial sobre a produção científica não só da geografia, mas também de
outros saberes em diálogo seja no campo científico, seja fora dele, em correlação não
hierárquica. A finalidade aqui não é definir lógicas verticais e hierarquizantes de poder
entre os diferentes saberes, mas sim partir de uma maior horizontalidade que nos permita
construir um viés dialógico entre as diferentes fronteiras do pensamento.

Embora a opção tenha sido por seguir a estrutura da ementa do programa, no


decorrer do texto serão apontadas questões e críticas que vão além do conteúdo
ministrado em classe. Não necessariamente o texto ficará restrito à lógica da ementa,
mas optou-se por esta última como forma de manter uma linha narrativa mais coesa com
os objetivos do programa.
Geografia e Pensamento Decolonial

O pensamento decolonial surge como uma resposta ao pensamento eurocêntrico


predominante na produção do conhecimento mundial. De origem nos países latino-
americanos e africanos, surge como uma forma de libertar do campo do conhecimento o
subjugo ao chamado pensamento ocidental ou cultura ocidental.

Um dos marcos iniciais para o surgimento do pensamento decolonial como o


conhecemos atualmente está na obra do sociólogo Aníbal Quijano em colaboração com o
sociólogo e historiador econômico estado-unidense Immanuel Wallerstein. Em
decorrência de suas trajetórias interligadas aos estudos da Teoria da Dependência da
década de 70, Quijano formula o conceito de “Colonialidade do Poder” e Wallerstein
formula sua “Teoria do Sistema-Mundo”.

São essas as bases que irão fundamentar a origem do Grupo Modernidade /


Colonialidade, segundo Santiago Castro-Gómez e Ramón Grossfoguel (2007). Deste
grupo fizeram parte diversos pensadores das mais diversas áreas do conhecimento que
primam pela defesa de que o pensamento colonial não terminou após os movimentos de
independência e formação dos Estados-Nação, na América-Latina, África e Ásia, durante
os séculos XVIII, XIX e XX, mas adquiriu novas características ao atravessar a
modernidade e entrar na pós-modernidade não mais como uma colonialidade moderna,
mas uma colonialidade global.

Outra ideia defendida é a de que o pensamento colonial eurocêntrico não é um


fruto do capitalismo, um desdobramento do modus operandi do sistema de acumulação,
mas sim um de seus fatores constitutivos. O pensamento colonial foi fundamental para
que o capitalismo atingisse seu grau evolutivo e chegasse a sua forma sistêmica-mundial,
conforme a teoria de Wallerstein. Na verdade, esse sistema-mundo só se tornou global
por se tratar de um sistema-mundo colonial.
O colonialismo é visto também como elemento fundante da modernidade e após a
guerra fria, se inicia o seu processo em escala global, ao contrário da ideia de que a
colonialidade haveria terminado com a formação dos Estados-Nação e com o fim das
administrações coloniais na dinâmica centro-periferia. Critica-se assim, formulações
teóricas, pós-modernas inclusive, que defendem o mito da descolonização ou que
desvincula o mundo da colonialidade.

A hierarquização étnico-racial estaria por trás dessa hierarquização que dita a


dinâmica centro-periférica no bojo do sistema-mundo colonial nas mais diversas esferas;
seja em termos culturais, econômicos, étnicos, epistêmicos de sexualidade, e de gênero.

Contra ese trasfondo, es pertinente insistir que, sin desprenderse de la prisión del
eurocentrismo como perspectiva y conocimiento, y em este caso específico, em la
prisión del dualismo entre “cuerpo” y “no-cuerpo”, no puede llegarse lejos em la
lucha por liberarse de modo definitivo de la idea de raza y del racismo. Ni de la
otra forma de la colinealidad del poder, las relaciones de dominación entre
géneros. (QUIJANO, 2000, p.44).

O pensamento decolonial viria então na direção de não somente fazer uma crítica
ao eurocentrismo hegemônico e hierarquizante presente no domínio cognitivo e linguístico
e que traz consigo toda uma violência seja material ou simbólica que subjuga e
menospreza outras formas de vida. Traz consigo uma necessidade de pensar desde a
ótica dos “debaixo”. É uma crítica para além da inevitabilidade do capitalismo. Segundo,
Grosfoguel (2005): “De este modo, preferimos hablar del ´sistema-mundo europeo / euro-
norteamericano capitalista / patriarcal moderno colonial´ y no sólo del ´sistema – mundo
capitalista’”.

Outras correntes de pensamento compartilham uma visão crítica a respeito da


colonialidade do poder, tais quais as análises do sistema-mundo e as correntes de
estudos pós-coloniais. De alguma forma se complementam em suas trajetórias
epistêmicas.

A teoria do sistema-mundo moderno e sua análise da divisão internacional do


trabalho, através do conceito de Geocultura, faz uma tentativa de expor os papéis
hegemônicos das ideologias globais no processo de construção de um imaginário de
mundo pelas classes dominantes. Cria-se a lógica imagética que irá construir
simbolicamente os discursos de dominação por parte das grandes potências capitalistas.
Sin duda, lo que I. Wallerstein llama la geo-cultura es el componente del
imaginario del mundo moderno / colonial que use universaliza, y lo hace no sólo
em nombre de la misión civilizadora al mundo no europeo, sino que relega el siglo
XVI al pasado y con ello el Sur de Europa. (Mignolo, 2000).

No entanto, faltaria na perspectiva decolonial, a incorporação da questão colonial


ao conceito de Geocultura, conforme explicita Mignolo (2000).

Es decir, Wallerstein describe como geocultura del sistema-mundo moderno el


imaginario hegemónico y deja de lado tanto las contribuciones desde la diferencia
colonial como desde la diferencia imperial: la emergencia del hemisferio occidental
el el horizonte de la colonialidad. (MIGNOLO, 2000).

A questão racial em sua dimensão simbólica “escapa” do conceito de Geocultura e


que dentro do pensamento decolonial seria um constitutivo do processo de acumulação
do capital desde o século XVI.

Já os estudos pós-coloniais dão ênfase no chamado “discurso colonial” ou o


“discurso sobre o outro”. A dimensão cultural se sobressai a esta corrente que dialoga em
sua preponderância com a Literatura, História, Filosofia e Antropologia. O campo da
semiótica seria de fundamental importância na configuração das relações econômico-
políticas do sistema capitalista e a disputa de discursos e narrativas estaria na luta pelo
controle dos códigos semióticos e da linguagem.

Los estudios culturales y socioculturales han pasado por alto que no es posible
entender el capitalismo global sin tener em cuenta el modo como los 'discursos
raciales' organizan a la población del mundo em una división internacional del
trabajo que tiene directas implicaciones económicas: las 'razas superiores' ocupan
las posiciones mejor remuneradas, mientras que las 'inferiores ejercen los trabajos
más coercitivos y peor remunerados (CASTRO-GOMEZ e GROSFOGUEL, 2007,
pg. 20).

Diríamos que as duas perspectivas se complementam de alguma forma, porém


cada uma a sua maneira peca pelo risco ao caírem tanto em um reducionismo
econômico, no caso da teoria do sistema-mundo moderno, quanto num reducionismo
cultural, no caso dos estudos pós-coloniais.
Sistema-Mundo Moderno Estudos Pós-coloniais
Acumulação do Capital Discursos Coloniais
Divisão Internacional do Trabalho Agenciamento Cultural dos Sujeitos
Estrutura econômica Sujeito / Signos e Significados
Ciências Sociais / Ciências Políticas / Literatura / História / Filosofia / Antropologia
Economia

Para o grupo modernidade / colonialidade, os processos da economia-


política se complementam à cultura, porém trazem consigo a necessidade de se dar um
passo adiante. Parte do ponto inicial de que há uma estrutura étnico-racial que
fundamenta o capitalismo desde o século XVI com a incorporação de novos territórios por
parte dos impérios de Portugal e Espanha e que, todavia, ainda não foi descolonizado.

Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad
que complemente la descolonización, llevada a cabo em los siglos XIX y XX. Al
contrario de esa descolonización, que no se puede reducir a un acontecimiento
jurídico-político (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2007).

O pensamento decolonial traz consigo a necessidade de uma mudança de


linguagem que dê voz a outras epistemes, outros saberes e outros fazeres políticos que
não os pautados na linguagem hegemônica eurocêntrica. É desmontar a hierarquização
de uma 'rede global de poder' que dita as agendas políticas, econômicas e culturais de
'cima para baixo'' e incorporar o conhecimento subalterno. É realizar, conforme Nelson
Maldonado-Torres (2006), um 'giro decolonial'. Assumir esse 'giro' é fazer uma mudança
radical nas instituições fundantes do sistema-mundo moderno colonial.

A expressão 'giro descolonial' é uma forma sintética de nomear uma inflexão


epistêmica, ética e política nas ciências sociais latino-americanas que coloca o
nosso passado colonial como ponto de partida para pensarmos a especificidade
de nossas sociedades. (CRUZ; 2017).

Chama atenção aqui o conceito de pensamento heterárquico, um sistema de


pensamento não hierárquico articulado em rede, onde os mais diversos saberes
constituintes de heterarquias complexas que se influenciam mutuamente respeitando
suas tradições, epistemes, cosmovisões. Cada uma dessas heterarquias em articulação
como alternativa à homogeneização capitalista, respeitando suas distintas temporalidade
e espacialidades.

Necesitamos entrar em diálogo con formas no occidentales de conocimiento que


ven el mundo como una totalidad em la que todo está relacionado con todo, pero
también con las nuevas teorías de la complejidad. En pocas palabras:
necesitamos avanzar hacia lo que el sociólogo griego Kryiakos Kontopoulos
denominó pensamiento heterárquico (1993). (CASTRO-GÓMEZ e
GROSFOGUEL, 2007).

Outra contribuição significativa para a construção alternativa de visão de mundo


não hierárquica pode ser encontrada no conceito de 'Hermenêutica Diatópica' de
Boaventura de Souza Santos (2003).

[…] A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada


cultura, por mais forres que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a
que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez
que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da
hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objetivo
inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de
incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com
um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu caráter diatópico (SOUZA
SANTOS, 2003).

Já vimos que a colonialidade, na perspectiva decolonial, deve ser vista como


elemento fundante da modernidade. E por trás desta concepção moderna, seja sob viés
Cartesiano, seja hegeliano, o tempo é pensado em escalaras evolutivas, visão esta
respaldada pela ideologia do progresso. Acontece que para haver uma etapa evolutiva
máxima, deve haver também uma etapa mais “atrasada” e nisso surgem as classificações
bizarras que colocam qualquer organização social diferente da sociedade moderno-
burguesa capitalista como resquícios temporais de um passado “bárbaro”.

A simples ideia de progresso e desenvolvimento se torna lógica impositiva de uma


temporalidade ocidentalista-europeia com a tarefa de acelerar o processo de “civilização”
dos 'não-desenvolvidos'. Cria-se um metarrelato embasado pelas ciências sociais de que
há uma escalada do primitivo ao moderno, onde o racionalismo se torna o ápice da etapa
evolutiva do homem. A sociedade industrial conduz através da economia, da estatística,
do Estado, e das classes sociais o ritmo temporal, numa metanarrativa historicista, onde o
auge do desenvolvimento nos leva à globalização como a conhecemos hoje. O racional
se torna global. A produtividade e maximização dos lucros dita a lógica espaço-temporal
de nossos tempos à custa da discriminação, exploração e destruição dos corpos que não
seguem e recusam a seguir o ritmo necrófilo do sistema-mundo colonial.

A etno-racialidade e os diferentes gêneros, criam essa quebra de lógica moderno-


colonial ao trazer formas diferenciadas de apropriação do espaço e do tempo. R-existem
ao seu próprio modo às negações de suas culturas e de suas cosmovisões reivindicando
seu lugar de existência na contemporaneidade. Como bem explicita Cruz ao citar Massey
(2005):

Para superarmos essas narrativas coloniais, precisamos repensar a forma como


concebemos o tempo, o espaço e as diferenças, pois na estrutura dessas
narrativas está sempre implícita certa forma de conceber o tempo-espaço (…) que
tem dois efeitos perversos: o primeiro é a supressão da multiplicidade
contemporânea do espaço, e o segundo a redução da temporalidade a um único
tempo (MASSEY, 2005; apud. CRUZ, 2017).

A possível incorporação do pensamento heterárquico conforme visto anteriormente


e proposto por Kryiakos Kontopoulos pela Geografia pode ser vislumbrado nas propostas
de Massey de pensar o espaço como esfera da possibilidade da existência da
multiplicidade de formas de apropriação e vivência do espaço. Isso pode nos trazer novas
perspectivas para uma narrativa decolonial.

Nesse sentido, o espaço deve ser entendido como: “uma simultaneidade de


histórias inacabadas, o espaço como um momento dentro de uma multiplicidade
de trajetórias. Se o tempo é a dimensão da mudança, o espçao é a dimensão da
multiplicidade contemporânea” (MASSEY, 2005; apud. CRUZ, 2017)

O conceito de território, por exemplo, nos permite compreender melhor essa


multiplicidade de formas de se apropriar do espaço. As narrativas hegemônicas, por mais
poderosas que possam parecer, sempre esbarram no fazer político do outro subjugado. A
expansão do colonialismo não é pacífico e se faz dominante o tempo todo, e em todos os
lugares. A disputa é constante e manifesta nos territórios de r-existência conforme Porto-
Gonçalves (2017): “Por isso, o que se tem é R-Existência, posto que não se reage
simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo preexiste e é a partir dessa existência
que se R-Existe. Existo, logo resisto”.
Para além da narrativa da inevitabilidade da ideologia do progresso, existe sim,
territorializados diversas possibilidades de mundo em constante processo em devir. A
história não se faz linear, mas em perfil rizomático, assim como o espaço se faz múltiplo e
em múltiplas territorialidades.

[…] Território é espaço apropriado, espaço feito coisa própria, enfim, território é
instituido por sujeitos e grupos sociais que se afirmam por meio dele. Assim, há
sempre, território e territorialidade por meio de processos sociais de
territorialização. Num mesmo território, há, sempre, múltiplas territorialidades.
(PORTO-GONÇALVES, 2017).

Diversos são os movimentos sociais latino-americanos que nos alertam que sua
luta não é por terra, mas sim por território. É como fazer se materializar no espaço seus
saberes, suas formas de ser em sua dinâmica própria, com seus valores, signos e
significados próprios. Não se trata de destruir o Estado-Nação, esse grande
dominador/explorador do território-estado, fruto maior da modernidade, mas sim, garantir
que as múltiplas-territorialidades sejam respeitadas, assim como as relações de saber-
poder particulares de suas gestões. Questões relacionadas a autonomia e auto-gestão
desses territórios se faz pertinente, como bem adverte, Carlos Walter Porto-Gonçalves:

Há ainda, muitas outras lutas emancipatórias com forte conteúdo de autonomia e


que sinalizam para outras territorialidades, como o indicam o Cabildo Abierto,
nascido da Guerra del Água em Cochabamba no ano 2000; as comunidades de
vecinos, (operários e indígenas sub-urbanizados que mantém relações de
reciprocidade) de La Paz e El Alto; as Juntas de Bom Governo dos Caracoles
Zapatistas; as organizações de base distrital e comunitária dos indígenas e
camponeses equatorianos (CONAIE e Pachakutik); o indigenato do Chapare, na
Bolívia, que emerge na luta contra a erradicação da coca, e assim em confronto
aberto contra o imperialismo; entre os piqueteros argentinos.” (PORTO-
GONÇALVES, 2017).

Ainda, assim, Carlos Walter Porto-Gonçalves nos alerta quanto ao que chama de
'autonomias débeis'. Apesar do reconhecimento de territórios destinados aos povos
subalternos em diversos países latino-americanos (afro descentes, indígenas e outras
populações socioculturamente subalternas), há uma frágil base legal que os mantém
suscetíveis à intervenção do Estado Territorial. Isso ficou muito claro este ano no Brasil
com as chamadas ações do Marco Temporal julgadas pelo Supremo Tribunal Federal
neste ano de 2021. Embora em 1988 nossa constituição tenha consagrado os direitos dos
povos originários sobre seus territórios, há uma constante ameaça de perda destes
direitos o que faz crer que a questão territorial não seja exercida de fato, mas sim
concedidas a eles.

O que talvez para a geografia seja um desafio atualmente é poder fazer uma
autoavaliação epistemológica, começar a buscar compreender como outros saberes
dialogam com seus conceitos-chave. Suas próprias compreensões sobre espaço e
território, por exemplo. Nas palavras de Arturo Escobar (2015): realizar uma “ontologia
política do território”. Para o autor estamos no meio de uma “luta ontológica” frente ao
projeto globalizador neoliberal do sistema-mundo colonial em defesa de outros modelos
de vida que constituem um pluriverso: “um mundo onde caibam muitos mundos”.

Nesse sentido caberia à geografia um olhar atento quanto às estratégias de luta


pela consolidação desses territórios. Estratégias vinculadas à promoção de saberes e
práticas tradicionais, fortalecimento de organizações étnico-territoriais, projetos
alternativos de uso e manjo de recursos naturais, lutas pela igualdade de gêneros em
defesa da vida.

O exercício de autonomia desses movimentos e comunidades põe em questão o


modelo civilizatório moderno/colonial, buscando evidenciar diferentes cosmovisões numa
dimensão mais profunda, uma dimensão ontológica. Estamos falando aqui de reivindicar
formas de ser e pertencer no espaço que por si só podem nos proporcionar alternativas à
crise social e ecológica que vivemos. Mais ainda, nos permite construir uma perspectiva
mais integral da realidade superando dicotomias que enraizaram o pensamento moderno
em binômios redutivos, simplificadores e porque não, perigosos: Matéria/Espírito,
Homem/Natureza, Bem/Mal, Desenvolvido/Subdesenvolvido.

El territorio se concibe como más que una base material para la reproducción de la
comunidad humana y sus prácticas. Para poder captar ese algo más, el atender a
las diferencias ontológicas es crucial. Cuando se está hablando de la montaña, o
una laguna o rio, como ancestro o como entidad viva, se está referenciando una
relación social, no una relación de sujeto a objeto. (ESCOBAR, 2015, pg.96).

As possibilidades de leitura das dinâmicas territoriais através da uma abordagem


político ontológica, ainda segundo Arturo Escobar (2005), perpassa por discussões que
seriam muito pertinentes ao estudo do território pela geografia. Território enquanto:
 Produção de conhecimento e estratégias de vida.
 Espaço biofísico e epistemológico onde a vida se faz mundo de forma integral
unindo fatores humanos e não-humanos, orgânicos e não-orgânicos, e o espiritual.
 Autonomia enquanto conceito chave para a prática político ontológica.
 Múltiplas alternativas de desenvolvimento e de criação de outras possibilidades
econômicas.
 Territórios não-estáticos em constante processo de negociação permitindo diálogos
interculturais e diferentes possibilidades históricas e geográficas viáveis.

Cabe uma pertinente reflexão a respeito do que chamamos de autonomia. Como


qualquer ideia, devemos estar sempre aptos a lidar com contradições inerentes ao uso de
qualquer conceito e por isso devemos sempre tentar nos referenciar para evitar confusões
quanto à apropriação das ideias. Neste sentido, que se deve delinear os limites do que
conceitualmente podemos caracterizar ‘autonomia, principalmente porque hoje, vemos o
neoliberalismo globalizante reivindicar para si o direito de que certas instituições se
tornem autônomas frente ao Estado.

Autonomia também é comumente pauta de reinvindicações de grupos nacionalistas e


fundamentalistas que em justificativa de ruptura com o Estado democrático, se faz valer
da violência física ou simbólica, como meio para territorializar suas práticas de controle de
recursos e da população. No entanto, partiremos do pressuposto de que liberdade,
democracia e autonomia estão profundamente interligadas. Vamos, portanto, dar
destaque à abordagem que o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis faz do conceito
de autonomia.
A liberdade numa sociedade autônoma, exprime-se por estas duas leis
fundamentais: sem a participação igualitária na tomada de decisões não haverá
execução, sem participação igualitária no estabelecimento da lei, não haverá lei.
Uma coletividade autônoma tem por divisa e por autodefinição: nós somos aqueles
cuja lei é dar a nós mesmos as nossas próprias leis (CASTORIADIS, 1983, p.22).

É, portanto, a autonomia para o autor um processo em constante construção onde


aqueles que dela participam o fazem de forma direta e não intermediada por outrem.
Exige-se da esfera pública a participação direta e inalienável como forma de exercício de
seu poder de decisões. Contudo, não podemos cair no erro de crer que haja uma ruptura
total com as diferentes escalas desta mesma esfera pública. Não se trata aqui da
individualização da autonomia, mas sim numa autonomia coletiva, onde o princípio de
autodeterminação só possui sentido no exercício do diálogo com o outro. É garantir
territorializar-se frente múltiplas territorialidades.

A autonomia como defendida pelos Zapatistas e pelos povos indígenas do México é


um exemplo notório dessa luta pelo poder de manter a nível local a manutenção do
controle cultural e político de seu território frente a centralização do poder nas mãos do
Estado.

Ao contrário da tendência integracionista do indigenismo de Estado, essa perspectiva


não é a de garantir somente o reconhecimento jurídico dos direitos dos indígenas. É
conforme Fábio Márcio Alkmin:

Dessa maneira, embora a autonomia reivindicada pelos povos indígenas no


México varie conforme as particularidades de cada grupo étnico ou região, no
enfoque aqui abordado ela pode ser entendida, de maneira geral, como um
distinto regime jurídico-territorial no qual, mediante a descentralização política das
instituições estatais – o que inclui os aparatos administrativos, mas não se reduz a
elas -, as populações indígenas possam deliberar por si próprias assuntos
pertinentes a sua existência, controlando, destarte, as condições sociais
econômicas, políticas e culturais de sua reprodução como comunidade étnica.
Nesse sentido, a autonomia territorial seria um rearranjo político e geográfico do
federalismo estatal, de forma a propiciar os meios às sociedades indígenas para o
exercício concreto de sua autodeterminação. (ALCKMIN, 2015, p.118; apud.
SANCHÉZ, 1999, p.111).

Seguindo ainda essa linha de raciocínio, Díaz-Polanco (1997) estabelece quatro


elementos essenciais para que haja essa possibilidade de construção desse exercício
concreto de autodeterminação:

 Base político-territorial de aplicação do regime autonômico.

 Jurisdição própria para exercício do governo e da justiça

 Governo autônomo ou autogoverno participante da organização político-

administrativa da federação

 Competências e faculdades próprias que permitam a descentralização política.


Conclusão

Ao longo de toda a disciplina Território, Autonomia e Pensamento Decolonial,


chega-se à conclusão de que há um enorme percurso para que a Geografia e
outros campos do conhecimento científico possam se “desatar” das amarras
epistemológicas centradas na tradição moderno/colonial de matriz eurocêntrica. No
entanto, desafiantes e instigantes também são os horizontes da contribuição da
própria geografia para que se estabeleça dialogicamente uma construção
epistemológica que reconheça de forma verticalizada e heterárquica, diferentes
cosmovisões, diferentes olhares e representações dos povos que tanto sofreram
com o processo colonial. A construção de “epistemologias do Sul” (SOUZA
SANTOS, 2003).

Conforme nos apresenta de forma bem didática, o professor Valter Carmo Cruz
(2017), muitos são os desafios para que nós geógrafos consigamos elaborar um
projeto de decolonização da própria geografia. Entre esses desafios, ele explicita:

1. Construir um pensamento decolonial enraizado nas especificidades e


singularidades da formação socioespacial brasileira.

2. Construção de um pensamento decolonial que efetivamente realize um giro


espacial/territorial assim como se faz necessário da mesma forma que se
realize um giro decolonial

3. Diálogo com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas

4. Construir uma leitura multiescalar que ajude na compreensão da


colonialidade do poder e do saber.

5. Criação de novas metodologias de investigação que possa partir de


diferentes propostas epistemológicas dos mais diversos saberes em luta.

6. Construção de uma estética decolonial

7. Propostas de descolonização pedagógica, ou seja pensar pedagogias


decoloniais.
De forma resumida, esses apontamentos são bastante significativos para pensar os
rumos da geografia. Há, portanto, uma nova forma de se propor a atuação do
geógrafo: buscar de forma engajada estabelecer a interlocução com comunidades e
povos subalternizados não na perspectiva de se estabelecer uma relação sujeito-
objeto, tão cara ao paradigma científico moderno. Não se trata de produzir estudos de
caso que irão render artigos acadêmicos publicados, mas estabelecer diálogos com
outros saberes reconhecendo seu protagonismo, reconhecer o outro através do seu
próprio discurso, seu ‘topoi’, como diria Boaventura de Sousa Santos (2003).
Referências Bibliográficas

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