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RESUMO
Falar sobre quilombo nos obriga a refletir sobre algumas consequências da diáspora
forçada, cuja espiral de violência se edificou quando a moral colonial alojou
compulsoriamente o significante “negro” em uma “categoria racial biologicamente
constituída”, destituindo-o de todo o seu encaixe histórico, cultural e político, como
acentua Hall (2006). Essa investida faz parte da codificação das diferenças entre
dominadores e subalternizados na ideia de raça, o que a literatura decolonial demarca
como “colonialidade do poder”, definidora dos papéis e lugares na estrutura global de
controle do trabalho. Compreender quilombo sob o prisma decolonial é uma das vertentes
de uma encruzilhada, aqui proposta, interceptada pelas ideias de “amefricanidade”, de
Lélia Gonzalez, e de “territórios de liberdade”, de Beatriz do Nascimento, autoras
feministas negras brasileiras. Neste artigo, evocamos a noção de encruzilhada, suscitada
pela pesquisadora angolana Geri Augusto, para a constituição de um crivo entre vertentes
epistêmicas distintas para discutir a ideia de quilombo como uma categoria política.
1. Introdução
3 Em seu livro Afrocentricity: the theory of social change (Afrocentricidade: a teoria de mudança social), de 1980,
Molefi Kete Asante elabora essa proposta teórica e epistemológica, em que a África é referenciada como o lugar da
centralidade negro-africana-diaspórica e consiste todo tipo de “pensamento, prática e perspectiva que percebe os
africanos como sujeitos e agentes de fenômenos, atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus
próprios interesses humanos” (2009, p. 93).
4 Agô significa “licença” em Yorubá.
5 Como lembra Rufino (2016), Enugbajiró é o título de Exu que o referenda como a boca do universo ou boca
coletiva. “A este princípio está implicado as potências enquanto realizador das transformações radicais, das
comunicações e das continuidades” (Ver mais em RUFINO, Luiz. 2016. Exu e a pedagogia das encruzilhadas in
https://www.academia.edu/32012934/EXU_E_A_PEDAGOGIA_DAS_ENCRUZILHADAS_Luiz_Rufino-_PPGAS-
MN_UFRJ?auto=download).
2.1. O quilombo como agência amefricana
6 Juntamente com esses autores, Lélia Gonzalez funda o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, em 1977. A
psicanálise foi um dos componentes da sua formação intelectual e militante, ao lado de sua inserção em
cosmogonias de matriz africana, através do Candomblé.
7 Cedric Robinson, por exemplo, já havia cunhado o termo racial capitalism, publicizado, em 1983, a partir de seu
livro Black Marxism: the Making of the Black Radical Tradition.
O racismo, portanto, desencadeador das “feridas coloniais”, será a própria
contingência do que autora cunhou como amefricanidade. Ela ainda distingue duas
“faces” do racismo, que a despeito de se diferenciarem enquanto “táticas” têm o mesmo
objetivo: a “exploração/opressão” (1988, p. 72). O primeiro tipo, o racismo aberto, seria
característico das colonizações protagonizadas por sociedades de origem anglo-saxônica,
germânica ou holandesa, cuja articulação ideológica aloca o signo “negro” à ascendência,
ou seja, “negra é a pessoa que tem sangue negro nas veias” (GONZALEZ, 1988, p. 72).
Essa face do racismo não tolera a miscigenação, apesar de, como bem lembra a autora, o
estupro e a exploração sexual da mulher negra terem sido sempre um fato. No entanto, a
expressão desse racismo ganha uma institucionalidade objetiva, segregadora dos grupos
não-brancos, como foi a doutrina do “apartheid”, na África do Sul.
8 A autora se sintoniza de forma tempestiva, na década de 1980, com as lentes de Wayne Chandler
(1987), que reposiciona a presença africana na história da civilização ocidental através do protagonismo
“mouro”, adjetivo racializado por conta de sua a origem negra, e de Martin Bernal e seu trabalho seminal
Black Athena (1987), onde o autor remonta a África na origem da cultura grega.
hierarquização e dominação racial. Lélia Gonzalez pontua as especificidades desse tipo
de racismo, manifesto, por consequência da colonização, na América Latina:
9 Esses são nomes que se convencioram a chamar as insurgências contra a escravidão em diversas sociedades
originadas do colonialismo na América e onde se pode identificar estratégias de resistência com base em “formas
alternativas de organização social livre” (GONZALEZ, 1988, p. 79).
10 É preciso externar aqui o pesar sobre a interrupção do protagonismo de Beatriz do Nascimento: o seu
desbravamento sobre o tema quilombo na academia foi estancado pela misoginia e racismo, e o legado de sua
reconceitualização de quilombo apagado pelo racismo e patriarcado acadêmico. Beatriz do Nascimento foi
assassinada em 1995, no Rio de Janeiro, ao defender uma amiga de seu companheiro violento. Sua morte trágica
está entre outras na perpetuação da tragédia que acomete as mulheres negras desde que seus corpos foram
racializados e objetificados pelo colonialismo.
11 A despeito de ser um longo projeto, inacabado, esse foi o nome dado por Beatriz Nascimento ao seu trabalho de
conclusão da pós-graduação lato sensu em História, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1981.
historiografia moderna, ganha a qualidade de “aberta”, estando mais próximo à proposta
de quebra do continuum histórico elaborada por Walter Benjamin (1986), em que se torna
possível a ressignificação do passado e a implosão das narrativas dos “vencedores”.
Está aí, portanto, a conexão íntima da concepção de quilombo de Beatriz Nascimento
com a categoria de amefricanidade.
Várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço
que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando nesse momento. Eu
tenho a direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação,
dentro desse nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco. (…) Meu espaço é
o meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou” (1989
apud RATTS, 2009, p. 59).
“Sem Exu, o sistema se paralisa”, como bem lembra Luz (2008, p. 30). Por isso a
metáfora da encruzilhada, regida por essa potência representada pelo Orixá responsável
pelas “vias de circulação e pela energia promotora de movimento” e sem o qual “não
haveria o processo do existir” (LUZ, 2008, p. 30), é acionada aqui em diversos sentidos:
um, de que as construções reflexivas aqui ofertadas estão em aberto; outro para deixar
claro de que a contingência é dinâmica e nela se forjam as atualizações das agências;
num terceiro sentido, de que as noções e categorias mobilizadas nesse trabalho estão em
consonância com o próprio sentido de encruzilhada; e num quarto sentido, de que a
encruzilhada engendra uma potência transformadora e subversiva.
As leituras e construções epistêmicas afrocentradas de Lélia Gonzalez e Beatriz do
Nascimento evocam fortemente os sentidos da encruzilhada. A categoria de
amefricanidade, pensada a partir da contingência, permitindo, assim, olhar a agência
amefricana nas suas atualizações, nas negociações das rotas pelos sujeitos racializados,
explorados e mesmo tornados “descartáveis” pelo empreedimento da colonialidade; assim
como a ressignificação do quilombo como tema fundamental para se pensar o
desmantelamento do sistema de opressão do Estado-Nação, tornam possível pensar o
próprio quilombo como uma encruzilhada em si, em que ele se revela como uma potência
política, como uma agência que se atualiza em reação à atualização da colonialidade.
4. Bibliografia
LUZ, M. A., 2008. Cultura negra em tempos pós-modernos [online]. 3rd ed. Salvador:
EDUFBA, 181 p. ISBN 978-85-232-0531-7 <http://books.scielo.org>.