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O BRASIL NO JARDIM DAS AFLIÇÕES: O PENSAMENTO ANTI-POLÍTICO DE

OLAVO DE CARVALHO

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira1

Introdução

Nos últimos anos, em meio ao processo político que conduziu Jair Bolsonaro à presidência
da República, Olavo de Carvalho, embora tenha produzido suas principais obras ao longo dos anos
1990, aparece como figura intelectual de destaque, tendo influenciado decisivamente na escolha de
alguns ministros do atual governo. Diante disso, analisar o pensamento político de Olavo de
Carvalho, bem como seus projetos políticos, é fundamental para a compreensão da ascensão das
direitas no Brasil e de parte do bolsonarismo. 2 Nesse sentido, esse trabalho tem como objetivo
demonstrar como as leituras e interpretações acerca do Brasil produzidas por Olavo de Carvalho
partem de uma experiência temporal reacionária que, incapaz de vivenciar a historicidade
característica da modernidade, propõe uma espécie de restauração cultural que pretende inserir o
Brasil dentro de uma cultura Ocidental considerada pelo autor como permanente, universal e
atemporal. Para tanto, recortaremos como fonte histórica algumas das principais obras do autor
produzidas ao longo dos anos 1990, nas quais ele desenvolve os elementos basilares de seu
pensamento político.
Conforme aponta Christian Edward Cyril Lynch (2019), há alguns temas e problemas
recorrentes no pensamento político brasileiro que decorrem da condição atrasada e periférica do
país. Sob o signo do atraso, os intelectuais brasileiros procuraram refletir, a partir de diferentes
matrizes teóricas e políticas, acerca das debilidades de nossa modernização, buscando,
concomitantemente, elaborar um diagnóstico do passado e propor um projeto político que fosse
capaz de romper com as heranças desse passado:

Partindo de uma situação de desconforto com o presente nacional, em comparação ao dos


países cêntricos, julgados modelares, o pensamento político brasileiro desdobra seu esforço
analítico em dois momentos sucessivos. No primeiro, de caráter sociológico, compreendem-se
as causas do atraso presente, pelo estudo das características de nossa formação nacional, quase
sempre negativamente valoradas: escravidão, despotismo, herança ibérica, mestiçagem,
latifúndio, monarquia, catolicismo. Se o passado é geralmente visto como inexistente ou

1
Doutor em história e cultura pela Unesp – Franca. Autor dos livros “Em um rabo de foguete: trauma e cultura política
em Ferreira Gullar” e “A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do Cárcere”.
2
Apesar de completamente imbricados, é preciso vislumbrar as diferenças entre Olavo de Carvalho e o bolsonarismo.
Consideramos que as reflexões intelectuais de Carvalho constituem uma base importante do fenômeno bolsonarista,
mas operam de modo independente e autônomo.
problemático, em função da má formação social, pode-se, porém, alimentar otimismo em
relação ao futuro, entendido como um tempo de superação daqueles percalços e do gozo das
vantagens reservadas ao país em virtude da opulência e da grandeza de seu território.
(LYNCH, 2019, p. 21)

A reflexão de Lynch indica que a formação do pensamento político brasileiro é marcada por
uma determinada dimensão temporal, na qual o presente aparece, simultaneamente, como sinal do
atraso em virtude dos diversos problemas vivenciados pela formação nacional e como momento
decisivo que anuncia a possibilidade de um futuro que deve nos afastar dessa pesada herança. Essa
dimensão temporal, por outro lado, se relaciona com aspectos traumáticos oriundos dos processos
de conquista e colonização vivenciados pela América Latina.
O trauma, na definição de Márcio Selgimann-Silva (2008) é decorrente de eventos do
passado que, não sendo elaborados, se presentificam. Todavia, como demonstram Fabiana Fredrigo
e Libertad Borges Bittencourt (2014), as expressões dos traumas na América Latina não conduzem
a uma visão fechada do futuro. Na perspectiva das autoras, essas experiências violentas que
atravessam as histórias do continente retroalimentam perspectivas utópicas, de modo que, apesar do
passado aparecer como um peso, a América ainda figura como um lugar do vir a ser. Nesse sentido,
as construções intelectuais produzidas pelo pensamento brasileiro, embora considerem o passado
como um fardo, apontam para a busca de um outro futuro.
Portanto, há nesses intelectuais brasileiros uma determinada tensão entre campo de
experiência e horizonte de expectativa, fundada, concomitantemente, por essa expressão traumática
e pela busca da modernidade, marcada não somente pela superação do passado, mas também pela
tentativa de aproximação dos países cêntricos. Nessa busca pela modernidade brasileira, o presente
aparece como uma possibilidade de afastamento das experiências do passado rumo a um horizonte
de expectativa afastado daquelas experiências.
Na contramão da modernidade e, consequentemente, de parte significativa do pensamento
político brasileiro, a obra de Olavo de Carvalho nos revela uma outra experiência temporal, na qual
o presente é vivenciado como decadência e, por isso, deve se reintegrar a um dado passado,
marcado por valores universais e atemporais. Em sua leitura, o Brasil, na medida em que passa a
existir em plena modernidade, nunca pode viver os valores eternos produzidos, sobretudo, na
Antiguidade e no Medievo. Por isso, em vez de se integrar na busca pela modernidade e pelo futuro,
o pensamento político de Olavo de Carvalho pretende inserir o Brasil no passado, rompendo com a
decadência do tempo presente.
O Brasil no jardim das aflições

A construção dessa visão reacionária do Brasil se inicia no começo dos anos 1990 com a
publicação de a “A Nova Era e a revolução cultural: Fritjot Capra e Antonio Gramsci 3”. Nesse
trabalho, Carvalho (2014) preocupa-se com as formas de decadência da cultura ocidental que,
perdendo suas características universais e transcendentais terminam por se guiar pelas esferas
ideológicas:

Filosofias que recuam da especulação teorética para a proposição de ações práticas são
filosofias da decadência; marcam as épocas em que os homens já não conseguem compreender
o mundo e passam a agitar-se para escapar de um mundo incompreensível. (...) E assim
prossegue a história do pensamento Ocidental, numa pulsação entre o empenho da
compreensão teorética e a queda no ceticismo praticista. O fundo comum de onde emergem o
positivismo, o marxismo e o neotomismo é a dissolução do racionalismo clássico, levado a um
beco sem saída pela crítica kantiana e que tem no idealismo alemão o seu canto de cisne.
Positivismo, marxismo e neotomismo são as filosofias de uma época que não tem filosofia
nenhuma; de uma época que anseia por transformar o mundo na medida mesma em que é
incapaz de desempenhar o esforço teorético necessário para compreendê-lo. (CARVALHO,
2014, p. 70-71)

Apesar das amplas divergências e da diversidade das perspectivas teóricas das filosofias
citadas acima, Olavo de Carvalho as aproxima a partir de um fundo comum, que ignora e dilui todas
as suas especificidades. Isso ocorre porque o autor compreende uma unidade na formação dessas
filosofias. Em sua leitura, todas são formadas a partir de um viés ideológico que relativiza a verdade
e afirma a necessidade da intervenção humana para a transformação da realidade. Completamente
contrário a décima primeira tese de Feuerbach formulada por Marx (2007) na qual o filósofo
alemão afirma que “os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é
transformá-lo” (MARX, 2007, p. 29), Carvalho inverte seus pressupostos, postulando que a função
da filosofia é apenas a compreensão do mundo, fora de qualquer intervenção humana que o
modifique.
Essa rejeição das ideologias características da modernidade revela uma recusa da própria
modernidade. O presente e suas filosofias apresentam sua decadência em razão de uma
historicidade que estabelece a possibilidade de transformar da realidade a partir da ação humana.
Diante desse cenário de decadência, trata-se, para Olavo de Carvalho, de escapar das armadilhas
ideológicas, retomando uma reflexão de caráter individual que seja capaz de retomar a esfera
transcendental eliminada pelo mundo moderno.
3
Em outro trabalho desenvolvemos de modo mais detalhado as perspectivas teóricas desse livro, procurando explicar a
ideia de gramscismo presente em Olavo de Carvalho. Para consultar o trabalho basta consultar. OLIVEIRA, Marcus
Vinícius Furtado da Silva. Gramsci no jardim das aflições. Anais do VIII Encontro de Pesquisa em História. Belo
Horizonte: UFMG, 2019, disponível no link: https://api.ephisufmg.com.br/annals/capa-mesclado-compactado.pdf.
Acesso em 26/05/2020
Em virtude isso, o autor pensa seu trabalho fora das ideologias. Às ideologias, marcadas por
uma perspectiva coletivista de intervenção mundo, Olavo de Carvalho opõe tradições filosóficas
marcadas por uma profunda religiosidade. As verdades universais e transcendentais são somente
acessíveis ao indivíduo em sua meditação interior, afirmando, em prefácio escrito posteriormente a
publicação original da obra, que “quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando
a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza das forças antinaturais, ou
infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário exterior da História”.
(CARVALHO, 2014, p. 12)
Portanto, acreditando combater em nome das verdades espirituais recônditas na alma
humana, Olavo de Carvalho percebe o avanço da modernidade como o avanço de uma forma
maléfica, que afasta o homem de sua interioridade inerente. Portador dessa verdade iluminadora, o
filósofo, ao anunciar aos homens sua própria decadência, sente-se um pregador solitário no deserto.
Pensando com Elide Rugai Bastos e Walquíria Leão (1999), podemos afirmar que Olavo de
Carvalho estabelece uma determinada leitura da moralidade do compromisso que caracteriza os
intelectuais em diversas épocas. Em sua versão, o compromisso, distante das noções
contemporâneas de Zola ou Sartre, se ancora um profundo sentimento religioso que reage
desesperadamente ao desencantamento do mundo. Diante de um mundo que se perde
completamente, Carvalho pretende iluminar os homens, incapazes de perceberem sua própria
condição.
Isso ocorre, na leitura do autor, porque as ideologias, em suas várias versões, se infiltraram
nos diversos meios de comunicação, realizando, assim, um longo processo de dominação
psicológica inexorável. Conforme compreende todas as ideologias a partir de um mesmo
denominador comum, esse processo de dominação assume proporções imensuráveis, tornando-se
um grande movimento conspiratório de forças malignas que querem aprofundar esse afastamento do
homem de si mesmo. Nesse cenário, as ideias de esquerda se apresentam como as mais perigosas
em razão de seu caráter amplamente historicista e transformador da realidade.
Assim como não distingue as várias correntes ideológicas, Olavo de Carvalho também é
incapaz de perceber quaisquer nuances nas tradições políticas de esquerda, que aparecem
vinculadas a um forte sentimento anti-comunista. Essa incapacidade se torna evidente nas
interpretações construídas acerca de Antonio Gramsci. Na perspectiva do autor, o político e
intelectual sardo aparece como uma possibilidade de espraiamento do comunismo por todo o
mundo. A estratégia gramsciana, nesse ponto diversa daquela de Lenin, consiste na recusa da luta
armada como forma de tomada do poder, de modo que, para atingir seus objetivos, os gramscianos
se infiltrariam nos meios culturais para, uma vez dentro desses meios, propagar as mensagens
comunistas.
A nova estratégia de revolução cultural, termo ausente do léxico gramsciano, é ainda mais
grave que anterior. Nessa revolução, os inimigos não se mostram às claras, mas se encontram
encobertos e disfarçados para operam um grande esquema de dominação. Para além de um
maniqueísmo evidente, a análise de Olavo de Carvalho ignora as diferenças entre o pensamento
gramsciano e o bolchevique e, ainda, produz uma leitura totalmente equivocada que transforma o
conceito de hegemonia em uma simples estratégia de dominação psicológica.
Esse receio de uma ameaça comunista que se desenvolve em nível mundial mostra fortes
traços da cultura política anti-comunista brasileira, conforme demonstra Rodrigo Patto Sá Motta
(2002). Ao analisar o anti-comunismo brasileiro, Motta percebe a recorrência de algumas
representações que mostram os comunistas como traidores da nação ou como ameaça aos valores
tradicionais e à civilização. Não fortuitamente, os comunistas eram frequentemente representados
com punhais em suas mãos ou mesmo como animais peçonhentos. Carvalho, ao afirmar a estratégia
de revolução gramsciana, se aproxima dessa representação dos comunistas como seres ameaçadores
que se escondem nos meios culturais e preparam subterraneamente seus golpes contra a civilização.
A argumentação em torno da decadência da cultura ocidental e da ascensão das ideologias é,
na perspectiva de Carvalho, um fenômeno de proporções mundiais. Diante disso, é preciso perceber
como o Brasil se insere dentro desse Ocidente decaído, demonstrando como essa leitura global se
articula a uma leitura específica da história do Brasil, focada, sobretudo, na ditadura militar e na
transição para o regime democrático, que agrava o desespero do autor diante da iminência de uma
revolução comunista:

A geração que, derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao poder pela
luta armada e se dedicou, em silêncio, a uma revisão da estratégia, à luz dos ensinamentos de
Antonio Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo ostensivo para
ampliar a margem de alianças; foi renunciar à pureza dos esquemas ideológicos aparentes para
ganhar eficiência na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do combate político direto para a
zona mais profunda da sabotagem psicológica. (...) A conversão formal ou informal, consciente
ou inconsciente da intelectualidade de esquerda à estratégia de Antonio Gramsci é o fato mais
relevante da História nacional dos últimos trinta anos. É nela, bem como em outros fatores
concordantes e convergentes, que se deve buscar a origem das mutações psicológicas de
alcance incalculável que lançam o Brasil numa situação claramente pré-revolucionária, que até
o momento só dois observadores, além do autor desse livro, souberam analisar, e aliás mui
discretamente. (CARVALHO, 2014, p. 22-23)

A ditadura militar brasileira aparece para o autor como um dos momentos mais relevantes
para o avanço do comunismo no Brasil. A derrota da luta armada, distante de significar a contenção
dos comunistas, torna-se, na verdade, a possibilidade do avanço da luta comunista, ainda que a
partir de outra estratégia. Isso ocorre porque a derrota das propostas de revolução armada conduziu
os comunistas a uma aproximação do pensamento de Antonio Gramsci. Com essa conversão, as
esquerdas brasileiras abandonam as armas e se passam a se concentrar em mecanismos de
dominação psicológica.
Tal argumentação traz implicações sérias para a compreensão da Nova República. Os
militares justificam o golpe no governo de João Goulart em torno do combate ao comunismo.
Todavia, no ocaso da ditadura militar, Olavo de Carvalho pretende apontar que o objetivo principal
da ditadura não foi cumprido. Mais ainda, os militares terminaram por agravar o problema, uma vez
que não souberam combater os comunistas em seus novos espaços de atuação, como nas
universidades e na mídia. Nesse sentido, a crítica de Carvalho ao regime militar não é ao seu
autoritarismo ou exceção, mas a incapacidade dos militares na realização integral de sua violência
em relação ao comunismo.
Em virtude disso, o desespero de Carvalho se avoluma na Nova República. Em sua leitura, o
contexto democrático representa, na verdade, a possibilidade de triunfo dos comunistas brasileiros
que souberam derrotar os militares por outros meios não armados. Por isso, Carvalho vaticina que o
Brasil vive, no início dos anos 1990, uma atmosfera pré-revolucionária, amplamente ignorada por
quase todos. Ainda que cite em nota dois outros intelectuais que denunciam esse problema,
Fernando Henrique Cardoso e Oliveiros da Silva Ferreira, o autor se coloca como aquele capaz de
conduzir essa denúncia mais assertivamente, uma vez que os demais tratariam esse assunto de
forma discreta.
Em trabalho posterior, publicado em 1995, Carvalho (2015) amplia suas reflexões em torno
da história do Ocidente, operando uma leitura de longuíssima duração, que se prolonga do final da
Antiguidade ao Brasil dos anos 1990. O episódio que deflagra a escrita do livro ocorre em 1990
durante uma conferência no MASP proferida por José Américo Motta Pessanha sobre a ética em
Epicuro. O relato do autor, apesar de longo, é muito significativo para a compreensão da obra:

Digo então que o miolo destas páginas redigi numa só noite de maio de 1990, sob o impacto da
aversão que haviam despertado em mim as palavras de José Américo Motta Pessanha, ouvidas
horas antes numa conferência sobre Epicuro no ciclo de Ética que a Secretaria Municipal de
Cultura promovia no Museu de Arte de São Paulo. Isto projetará talvez a imagem de um
fanático, a espumar de cólera ante a opinião adversária. Mas não foi nada disto. O que
Pessanha suscitara em mim não fora uma discordância, fanática ou razoável, indignada ou
mansa. Fora uma perturbação da alma, uma decepção, uma tristeza desesperançada, uma
agitação soturna carregada de maus presságios. Meras opiniões não produzem este efeito. O
título prometia “delícias”, mas ali eu só encontrara pesares e aflições. O Jardim de Epicuro
parecia-se estranhamente com o Jardim das Oliveiras. (...) Eu saíra dali em estado de estupor,
sem crer no que acabara de presenciar. Em casa, tentado adormecer, via em alucinações as
poltronas do MASP lotadas de zumbis sem olhos. Saltava da cama com a cabeça fervilhando.
Tudo o que a plateia não quisera ver parecia ter se condensado no meu subconsciente, exigindo
vir à tona. Querendo ou não, eu me tornara o sintoma denunciador de uma neurose coletiva.
(CARVALHO, 2015, p. 27-28)

Nesse relato, o autor mostra-se chocado com os rumos que a palestra de Pessanha tomou
naquela noite de maio. A conferência sobre a ética em Epicuro detona a urgência da escrita desse
livro que, não fortuitamente, é nomeado como o “Jardim das Afições”. Aquilo que os outros viram
como as delícias do pensamento de Epicuro, foram vivenciadas por Carvalho como profunda
angústia. As páginas iniciais do livro são, portanto, escritas nesse estado de alucinação e torpor, no
qual o autor delira com uma plateia de zumbis. A imagem, apesar de um tanto caricata, é simbólica
dessa solidão experimentada pelo autor. Sendo, em sua visão, o único naquela conferência a não se
seduzir pelas palavras de Pessanha, Carvalho se coloca novamente acima da multidão, como o
profeta que denuncia, agora em tons ainda mais dramáticos e pesados, aquilo que chama de uma
neurose coletiva.
Tomado por essas sensações, a análise de Carvalho, embora deflagrada por um evento no
tempo presente, termina por remontar ao passado longínquo, no qual Epicuro produziu sua filosofia.
Essa remontagem do presente ao passado, em saltos temporais alongados demonstra a largura do
jardim das aflições montado por Olavo de Carvalho. Ao se referir a filosofia de Epicuro, ainda na
Antiguidade, o autor pretende marcar o início das aflições no mundo Ocidental, conectando-as,
novamente sem qualquer distinção, com a conferência de Pessanha proferida em 1990. Nesses
termos, o jardim das aflições é composto das várias flores que se acumulam ao longo desses séculos
de decadência da cultura Ocidental.
Diante disso, é preciso pensar como a filosofia de Epicuro se apresenta como o momento da
queda, uma espécie de pecado original que se reproduzirá quase que permanentemente dentro do
Ocidente, afetando, evidentemente, a cultura e a política brasileiras. Epicuro (2002) produz suas
principais reflexões no final do século IV a.C no contexto do helenismo. Seu célebre jardim
marcava a construção de uma escola pautada na busca da felicidade diante das agruras do mundo.
Para tanto, era essencial que os homens soubessem bem viver, afastando-se dos males, como a dor e
o medo.
Um dos males que mais afeta os homens, na perspectiva epicureia, é a morte. Diante da
morte, os homens desejam ardentemente prolongar suas vidas, o que, para o filósofo se apresenta
como um erro. Mais que procurar alongar sua vida ao infinito ou rumo a imortalidade, os homens
precisam vencer o medo da morte. Por isso, Epicuro pede aos indivíduos que se acostumem com a
ideia de que a morte “não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é
justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós
proporciona a fruição de uma vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando
o desejo de imortalidade.” (EPICURO, 2002, p. 27)
Tais reflexões de Epicuro, sobretudo aquelas focadas na rejeição do infinito e da
imortalidade, são amplamente rechaçadas por Olavo de Carvalho. O jardim de Epicuro, tratado por
Pessanha como um jardim das delícias, aparece como aflição, uma vez que, para Carvalho, essa
filosofia, iniciadora do materialismo, proporciona o afastamento dos homens de sua própria vida,
convidando-os a se inebriarem nas meditações evasivas de Epicuro.

Não deixa de ser irônico que o epicurismo tenha entrado no vocabulário popular como
sinônimo de gozo sibarítico. Ele não é nada disto. É um diletantismo trágico, que se compraz
na derrota do homem, premido entre a força cega do desejo e a força cega da fatalidade
exterior que o frustra eternamente. O que essa concepção nos descreve é um mundo caótico,
absurdo, onde átomos e homens buscam em vão escapar da dor perseguindo a miragem de um
prazer impossível, que só redobra os sofrimentos. O único refúgio é a meditação resignada,
entre os muros do jardim. Mas o que lá dentro aguarda o meditante é uma conclusão
inescapável: a certeza da morte, sem qualquer esperança de outra vida. Só resta então
embelezar a imagem da morte, fazer a apologia do esquecimento. A mensagem final do
epicurismo é, rigorosamente, o nada. (CARVALHO, 2015, p. 129-130)

A partir do excerto podemos notar como a busca pelo prazer e do gozo é tratada por Olavo
de Carvalho como uma adesão ao niilismo. Ao buscarem prazer na evasão de suas dores e
sofrimentos os homens incorrem em uma ilusão que, na perspectiva do autor, terminam por celebrar
a morte e o nada. Além disso, é preciso perceber como o problema do gozo está intimamente
conectado com o do materialismo ou da perda de uma dimensão transcendental vislumbrada no
pensamento de Epicuro. A ideia de recusar o medo da morte se associa a aceitação do nada, que
parece a Carvalho como a rejeição de uma esfera religiosa que possa prometer a certeza de uma
outra vida. Um mundo sem a promessa de ressurreição ou mesmo da eternidade se mostra absurdo e
amplamente intolerável para o autor que, frente a privação das sensações causadas pela morte,
deseja restaurar um sentimento de eternidade que garanta real segurança aos homens. O conforto e o
gozo não são deste mundo.
Operando outro salto temporal gigantesco, Olavo de Carvalho pretende demonstrar como os
problemas anunciados pela filosofia epicureia perduram e se manifestam, mesmo que
inconscientemente no pensamento de Marx. Em primeiro lugar, essa aproximação, praticamente
fora do tempo, entre os dois filósofos ocorre em razão da tese de doutoramento de Marx, que trata
de Epicuro e Demócrito. Além disso, o autor percebe em Marx a continuidade e o aprofundamento
do princípio materialista inaugurado na Antiguidade por Epicuro, de modo que o historicismo
marxista se apresenta como um aprofundamento das aflições iniciadas outrora.
Se a procura pela felicidade implicava em uma recusa ou evasão do mundo em razão da
aceitação do nada, a filosofia marxiana também incorre no mesmo problema ao se centralizar no
conceito de praxis. Na perspectiva olavista, a ideia de praxis recusa toda contemplação teorética do
mundo, impedindo que os homens desenvolvam um real conhecimento ontológico da realidade. Isso
ocorre porque, na praxis, os objetos não são encarados como fins, mas apenas como meios. Nesses
termos, a centralidade da praxis torna o pensamento de Marx uma teoria da ação que busca formas
para a transformação do mundo. Assim como na obra anterior, Carvalho recorre a uma inversão da
décima primeira tese sobre Feuerbach para afirmar a primazia da dimensão teorética sobre a prática.
Esses saltos temporais se concluem onde se iniciaram, na conferência de Pessanha. Assim, o
percurso desse jardim das aflições parte do estupor das falas de Pessanha sobre a ética e rumam em
direção a Antiguidade de Epicuro, saltando para os oitocentos de Marx para se findar no
entendimento completo e aprofundado da fala do conferencista. Encerrando sua percepção
praticamente a-histórica da tradição materialista, Carvalho afirma:

Uma vez unidos Marx e Epicuro pelos santos laços do ódio à inteligência teorética e do
primado do interesse prático, Pessanha começa a fazer sentido. No reino das ilusões, não há
nenhuma hostilidade essencial entre o interesse pessoal e o interesse coletivo: numa mesma
alma podem conviver em harmonia o evasionismo epicurista e o utopismo socialista, unidos na
luta comum contra o princípio do conhecimento objetivo e no empenho comum de substituir a
realidade em vez de compreendê-la. (CARVALHO, 2015, p. 158)

Portanto, ao percorrer todo o raciocínio dessa parte do jardim das aflições, podemos
perceber, em primeiro lugar, as razões das sensações sentidas pelo autor naquela noite de maio.
Pessanha deflagrou em Carvalho a vivência imediata e simultânea das aflições que se acumularam
entre Epicuro e Marx. O presente se vinculou completamente ao passado, praticamente
desaparecendo diante das agruras que se acumularam ao longo tempo. Diante disso, é preciso
compreender como essas aflições se vinculam a outras questões para além do materialismo daqueles
filósofos.
Noutras partes do livro, Carvalho estabelece uma outra argumentação em torno da história
do Ocidente vinculada a perda da religiosidade. Novamente, o cenário da queda é anterior ao
mundo contemporâneo, que ocorre no momento em que sentido religioso da busca pela verdade
passa a ser substituído pelo culto a outros deuses. Nesse contexto, os novos deuses, o tempo e o
espaço, tornam-se absolutos, retirando o homem de seu caminho rumo ao conhecimento da
divindade. Nesses termos, a história Ocidental torna-se precisamente a tentativa dos homens em
erigirem tais deuses em substituição das verdades esotéricas:

O deus histórico-cósmico, do deus de Motta Pessanha, já passou duas vezes pela História
Ocidental. Da primeira vez, personificou-se em César, o deus-imperador. Da segunda, tomou o
nome de gnosticismo, o cadáver da religião imperial a empestear os vapores da sua
decomposição os seis primeiros séculos do Cristianismo. Chegada, porém, a consumação do
prazo histórico, a profecia de Motta Pessanha anuncia, sobre o túmulo de Cristo, a ressurreição
de César. (CARVALHO, 2015, p. 238)

As imagens de César e Cristo são as chaves essenciais para se compreender essa outra parte
do jardim das aflições. Cristo aparece como aquele cuja verdade deve ser buscada pelos homens,
desligados de todas as funções terrenas. O caminho para Cristo e, consequentemente, para a
verdade, recusa a política e todas as suas instituições. A busca é por um Império ou por um reino
que não seja deste mundo. César, pelo contrário, encarna o desejo imperial e a primazia dos poderes
temporais e também políticos sobre o esoterismo espiritual. Ao se personificar como deus-
imperador, pela primeira vez na história, o absoluto decai em detrimento da divinização do tempo e
do espaço. Desse momento em diante, a história do Ocidente se mostra como uma tautologia da
ressurreição de César.
Em substituição a essa força espiritual decaída, Olavo de Carvalho percebe que as grandes
forças políticas e ideológicas do Ocidente se caracterizam pela tentativa de ressuscitar o Império
perdido de César. Com isso, os fenômenos históricos que originam o mundo contemporâneo, como
renascimento, iluminismo, revoluções burguesas e até mesmo o surgimento do capitalismo são
compreendidos a partir dessa mesma chave leitura. Epicuro, Marx e Gramsci, portanto, não
representam a totalidade das aflições, mas apenas algumas de suas flores mais danosas.
Essa leitura, produzida no início dos anos 1990, traz consequências importantes para o modo
como são consideradas as novas formas de organização política engendradas pelo fim da Guerra
Fria. Carvalho certamente celebra o fim do comunismo, tratado como um dos mais graves artifícios
diabólicos do Ocidente, mas, por outro lado, a vitória do capitalismo, ou mesmo da supremacia dos
Estados Unidos se configuram como problemas na medida em que servem também aos desígnios do
Império:

O que está em jogo no mundo não é portanto um mero conflito entre ideologias, mas sim a
possibilidade de sobrevivência espiritual da humanidade num mundo onde todas as opções
ideológicas díspares e antagônicas se uniram num pacto entre inimigos para varrer da face da
Terra o legado das antigas religiões – pelo ao menos das três grandes religiões do grupo
abrahâmico –, de cujo crédito essas ideologias se alimentam parasitariamente. A total
laicização do Estado imperial trouxe consigo a laicização de todos os conflitos, o rebaixamento
de todas as religiões e de todos os valores civilizacionais, a degradação de todos os motivos
pelos quais os homens vivem e morrem. Quem enxerga, hoje, que um século de conflito entre
socialismo e capitalismo terminou pela ascensão do Império mundial onde elementos socialista
e capitalistas foram absorvidos e superados na ideologia do Estado leigo, compreende que o
fim do dualismo ideológico, sendo uma realidade, não tem efetivamente o sentido que lhe deu
Daniel Bell, mas sim o da entronização de uma espécie de super-ideologia – a “metade
desvitalizada” do corpo cristão – que não encontra concorrentes hoje no mundo senão outras
duas religiões igualmente desespiritualizadas e rebaixadas à condição de ideologias.
(CARVALHO, 2015, p. 392

A partir dessa reflexão, Olavo de Carvalho coloca a Nova Ordem Mundial na esteira da
decadência do Ocidente. A vitória do capitalismo, nesses termos, não significa nada além de mais
uma vitória do império sobre o legado das grandes religiões antigas. Diante disso, é preciso
perceber que a contradição basilar no pensamento do autor não se dá entre ideologias, mas
precisamente entre as ideologias e as religiões. Ao fixar o debate nesses termos, todas as ideologias
tornam-se únicas, de modo que suas distinções não interessam. As divergências entre capitalistas e
socialistas são um falso problema, uma vez que o núcleo do problema é que ambos representam
ideologias que visam ao fortalecimento de um Estado laico que aprofunda o distanciamento do
homem de sua dimensão religiosa, fazendo com que se aprofundem a deificação do tempo e do
espaço que se prologam desde tempos longínquos.
Apesar da envergadura de seu desespero, o autor ainda vislumbra um saída. Certamente, a
saída não poderá jamais ser ideológica, mas sim religiosa. Nenhum Estado, regime político ou
ideologia podem oferecer legitimidade ao mundo dos homens, uma vez que sempre partem de uma
perspectiva relativa acerca da verdade. Diante disso, Olavo de Carvalho afirma que “o reino do
Espírito, que pretendo habitar, não é deste mundo, e ele é a única coisa necessária, a única que faz
com que a vida seja digna de ser vivida”. (CARVALHO, 2015, p. 394)
A comparação entre Cristo e César, bem como a citação de que seu reino não é deste mundo,
ao se remeterem diretamente a leitura bíblica, marcam um posição do autor diante das questões
temporais. Ao afirmar que pretende habitar um reino que não é deste mundo, Olavo de Carvalho
reforça categoricamente a ideia que o mundo espiritual, além de ser maior que o temporal, deve
também governá-lo. Diante dessa busca pela eternidade das verdades espirituais, aquilo que é
terreno adquire significado secundário. A história e a política, nessa configuração, são úteis apenas
na medida em que possam conduzir os homens para esse reino espiritual.
Portanto, pensando essa definição do jardim das aflições, é possível pensar como os modelos
de legitimidade social são elaborados por Carvalho na contramão da modernidade. Para Claude
Lefort (1991), o regime político que se instaura com a modernidade é profundamente histórico. Isso
ocorre porque, nesse regime político democrático, inaugurado a partir de uma sociedade de
indivíduos, o poder se mostra como um lugar simbolicamente vazio, não podendo ser
permanentemente ocupado por nenhuma força política. Deste modo, não havendo qualquer
legitimidade absoluta ou apriorística do poder, este se encontra aberto aos diversos conflitos que se
desenvolvem no âmbito da sociedade. Em virtude isso, Lefort define o regime político democrático,
característica essencial da modernidade ocidental, como uma forma de instituição dos conflitos.
Nesse sentido, a existência desse espaço simbolicamente vazio, em si, não se configura como um
problema, uma vez que essa formação política é conflituosa por excelência.
Os riscos de totalitarismo ocorrem no momento em que alguma força política pretende ocupar
permanentemente esse espaço vazio. Ao ocupá-lo, a força política totalitária trabalha em torno da
abolição dos conflitos, e consequentemente pelo fim do próprio regime democrático, oferecendo
uma imagem a-histórica e imóvel da própria sociedade, na qual a pluralidade característica dessa
sociedade de indivíduos é também suprimida. Apesar de reagir contra o regime político moderno, as
forças totalitárias se originam também dentro dessa mesma modernidade, sendo, na perspectiva de
Lefort, uma realização negativa da própria modernidade.
Não se trata aqui de afirmar o caráter totalitário da filosofia de Olavo de Carvalho, mas de
demonstrar como seu reacionarismo, nascido dentro da modernidade, trabalha por um espécie de
restauração cultural contrária ao historicismo, lido pelo autor como uma construção histórica
decadente de longa duração. Essa restauração, marcada por um profundo sentimento religioso,
ambiciona a salvação por meio da mitigação da queda. A perda da religiosidade e de suas verdades
universais aparecem no pensamento de Carvalho como uma espécie de pecado original que se
acumula e se adensa ao longo do tempo. A história se comporta como uma tautologia do pecado que
aguarda pela salvação.
Nesse amplo jardim das aflições a angústia com a perda da eternidade é um tema recorrente.
Em razão disso, podemos refletir essa angústia a partir de Kierkegaard. A leitura kierkegaardiana
(2015) em torno da angústia está atrelada a uma leitura da gênese bíblica, mais precisamente do
momento da queda. Adão e Eva, uma vez no paraíso eram inocentes e não conheciam o bem e o
mal. Todavia, as possibilidades de angústia pairam sobre o paraíso. De frente ao fruto do
conhecimento do bem e do mal Adão e Eva experimentam a vertigem da liberdade, que se
manifesta nos impasses das escolhas do homem. Nesse sentido, a angústia, na perspectiva de
Kierkegaard adentra ao mundo dos homens no momento de sua própria queda, de modo que toda a
humanidade, a partir de então, aparece coligada a esse pecado original. Doravante, todos os pecados
são apenas quantitativos. Apesar de liberdade e angústia estarem relacionadas, Kierkegaard não
afirma a necessidade imediata de supressão da liberdade. Ao contrário, antes do salto de fé e do
início da dogmática religiosa, o homem precisa vivenciar as potências de sua própria angústia.
Diante de um tempo e do espaço, Olavo de Carvalho não vislumbra nenhuma possibilidade de
liberdade. Nos impasses das escolhas, e também das angústias da liberdade de ação dos homens no
tempo, Carvalho impõe sua recusa e procura o refúgio dessa angústia em uma dimensão espiritual
na qual o tempo é suprimido em torno da eternidade. Na expectativa de um reino que não é deste
mundo, Carvalho reage contra o seu imenso jardim das aflições e, nessa reação motivada pela
angústia e pelo desespero, exibe uma experiência abertamente reacionária do tempo:

A mente reacionária é uma mente naufragada. Onde os outros veem o rio do tempo fluindo
como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso passando à deriva. Ele é um
exilado do tempo. O revolucionário vê o futuro radioso que os outros não são capazes de ver, e
com isto se exalta. O reacionário, imune às mentiras modernas, vê o passado em todo seu
esplendor, e também se sente exaltado. Sente-se em mais forte posição que o adversário por se
julgar guardião do que de fato aconteceu, e não profeta do que poderia ser. (...) A
combatividade de sua nostalgia é o que torna o reacionário uma figura tipicamente moderna, e
não tradicional. (LILLA, 2018, p. 12)

A definição de Lilla acerca da mente reacionária é brilhante. A argumentação em torno do


jardim das aflições marca precisamente um momento da queda, e consequentemente, o momento no
qual esse paraíso se destroça, fluindo irresistivelmente por quase toda a história do Ocidente. Nesse
sentido, essa vivência reacionária do tempo é uma das bases fundamentais do pensamento de Olavo
de Carvalho, sendo responsável por guiar suas análises acerca da luta entre o espiritual e o temporal
que se desenrola no Ocidente.
Portanto, em O Jardim das Aflições, o autor amplia consideravelmente as discussões iniciadas
em A Nova Era e a Revolução Cultural. No primeiro, a perspectiva dessa significação reacionária
do tempo ordenada pela busca de uma dimensão espiritual perdida está anunciada. No segundo,
essa argumentação é conectada com uma longuíssima, e muitas vezes completamente desconexa,
narrativa da história ocidental, na qual o presente, no caso a conferência de Pessanha, revela uma
história de destroços do paraíso que se condensam em uma supressão do tempo.
Nessas obras, é possível vislumbrar alguns aspectos das funções do Brasil dentro dessa
narrativa Ocidental. Todavia, nesses dois livros, a cultura brasileira ainda tem pouco destaque. Esse
enfoque nacional aparece com mais evidência em outra obras, também publicadas ao longo dos
anos 1990, que são O Imbecil Coletivo, uma coletânea de ensaios publicados sobretudo na imprensa
da época e O futuro do pensamento brasileiro, outra coletânea de textos na qual o autor se dedica a
examinar as condições da intelectualidade brasileira.
Em o Imbecil Coletivo, Carvalho (2018) retoma as teses dos livros anteriores no sentido de
demonstrar como a intelectualidade brasileira, inspirada pelas ideias gramscianas ou por outras
ideologias, forma um intelectual coletivo responsável pela imbecilização da sociedade brasileira.
Esse intelectual coletivo, ao controlar os meios culturais, além de trabalhar pelo decaimento da
cultura nacional, também impede o desenvolvimento de outras ideias divergentes. Novamente,
Carvalho se coloca como um exemplar único dentro da intelectualidade, capaz de denunciar esses
problemas e apontar para a sua resolução:

A função de O imbecil coletivo na coleção é bastante explícita e foi declarada no prefácio:


descrever, mediante exemplos, a extensão e a gravidade de um estado de coisas – atual e
brasileiro – do qual A nova era dera o alarma e cuja precisa localização no conjunto da
evolução das ideias no mundo fora diagnosticada em O jardim das aflições. O sentido da série
é, portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da história das
ideias do Ocidente, num período que vai de Epicuro até a “Nova Retórica” de Chaim
Pelerelman. Que eu saiba, ninguém fez antes um esforço de pensar o Brasil nessa escala. Meus
únicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mário Vieira de Mello e Gilberto Freyre,
o primeiro com a tetralogia iniciada com O processo civilizatório, o segundo com
Desenvolvimento e cultura, o terceiro com sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, por
diferenças essenciais: Ribeiro emprega uma escala muito maior, que começa no homem de
Neanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso território desde o prisma de
determinada ciência empírica, a antropologia, e fundado numa base filosófica
decepcionantemente estreita, que é o marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito mais
envergadura filosófica, não se aventura a remontar para trás do período da Revolução Francesa,
com algumas incursões ocasionais até o Renascimento e a Reforma. Quanto a Gilberto, o ciclo
que lhe interessa é o que se inicia com as grandes navegações. De modo geral, os estudiosos da
identidade brasileira deram por pressuposto que, tendo entrado na História no período chamado
“moderno”, o Brasil não tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo.
Estou, portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu favor o temível mérito da
originalidade. (CARVALHO, 2018, p. 27-28)
Apesar de longa, a citação revela com nitidez as intenções do autor. O núcleo central dessa
argumentação é situar o Brasil dentro da narrativa elaborada nas obras anteriores, ampliando a
escala temporal para a compreensão do país. É interessante notar as críticas que o autor traça em
relação aos três intelectuais que quase conseguiram pensar o Brasil nessa escala temporal tão longa.
Darcy Ribeiro, embora amplie totalmente sua escala, é criticado por utilizar a ideologia marxista, ao
passo que Vieira de Mello e Gilberto Freyre são criticados em razão da timidez de seus olhares para
o Brasil, que não conseguem recuar para períodos anteriores a modernidade. Nesse sentido, Olavo
de Carvalho pretende situar a cultura brasileira dentro do seu jardim das aflições. Para tanto,
precisa, em primeiro lugar, combater a intelectualidade brasileira em sua constante busca pela
modernidade e pela importação de ideologias estrangeiras. Em segundo, precisa também encaixar o
Brasil em sua busca pela eternidade em combate contra a afirmação do poder temporal.
Apesar de exibir pretensões grandiloquentes, os artigos dispostos na obra são curtos e não
apresentam as conexões com a tese central da obra. Resta ao leitor, observando as miudezas da
inteligência nacional, produzir o sentido da narrativa, inserindo os artigos dentro da teoria. Esse
acúmulo de artigos torna o livro extenuante e repetitivo. Se em O jardim das aflições nos perdemos
no desespero de uma narrativa ziguezagueante, em O imbecil coletivo, vemos a repetição dos
mesmos temas e preocupações ao longo de 40 artigos, contando os publicados na edição original,
mais outros 40 adicionados como suplemento.
Nesses artigos, a tentativa de demonstrar a necessidade de inserção do Brasil nas grandes
formas culturais atemporais aparece como uma crítica da intelectualidade, sobretudo aquela se
forma no contexto da Revolução Francesa. Para Olavo de Carvalho, o problema dos intelectuais
está conectado às suas próprias origens e formas de organização no mundo contemporâneo. A
República das Letras, em sua leitura, é encarada como uma elite intelectual que pretende falar em
nome da opinião pública. Esse início de intelectual coletivo, uma espécie de gramscismo sem
Gramsci, mostra um declínio do debate intelectual, uma vez que os posicionamentos nas discussões
eram produzidos, de acordo com Carvalho, não de acordo com um debate teórico, mas a partir dos
gritos e do peso de uma opinião coletiva. No mundo que se configurou após a Revolução Francesa,
esse intelectual coletivo representado pela República das Letras amplia consideravelmente suas
funções, de modo que as universidades e outros espaços culturais, como a mídia, são dominados por
esses intelectuais que, por sua vez, criam obstáculos para que outras reflexões, produzidas no
exterior do grupo, possam fluir pela sociedade.
Na Europa, nas sociedades que puderam vivenciar as grandes realizações culturais da
Antiguidade e do Medievo, a situação do Imbecil Coletivo é amenizada, uma vez que esses
resquícios das cultura pré-modernas ainda podem ser vivenciados. No entanto, no Brasil e nos
países colonizados, o contexto é outro. Nascidos após a Revolução Francesa, tais países não foram
capazes de se integrar aos pilares da civilização Ocidental, de modo que ser intelectual, nesses
países, não é “adquirir certos conhecimentos e demonstrar capacidade em certos gêneros de
investigação ou criação, mas ser aceito em determinados meios, falar em determinado tom, adquirir
determinados trejeitos em que se reconheça a identidade de casta.” (CARVALHO, 2018, p. 71)
Esse comportamento dos intelectuais brasileiros traz consigo uma interpretação sobre o
modo pelo qual esse grupo social se comporta em países periféricos e colonizados. Assim como
grande parte do pensamento político brasileiro, Olavo de Carvalho expõe os dilemas da condição de
uma intelectualidade periférica que mostra sintomas de atraso em relação aos países cêntricos. O
nascimento do Brasil revela que nossas raízes intelectuais e culturas são decadentes, uma vez que
nos originamos dentro de um Ocidente em crise. Nesses termos, o atraso brasileiro figura em seu
pensamento a partir da ideia que a cultura brasileira não foi capaz de se integrar nas grandes
realizações atemporais do Ocidente.
É interessante notar como esse dilema do atraso se mostra anti-modernizador. Em parte do
pensamento político brasileiro, o atraso conduz a propostas modernizantes que visam diluir o peso
do passado. Os traumas da colonização retroalimentam as utopias de um vir a ser. Contudo, em
Olavo de Carvalho, o signo do atraso não conduz a busca por um futuro moderno, mas, contrário,
persegue o passado. A superação de nosso atraso diz respeito às possibilidades de retorno a uma
cultura que jamais pudemos viver em razão do contexto histórico em que surgimos enquanto nação.
Paradoxalmente, estamos atrasados para o passado.
Incapazes de vivenciar esse passado brilhante, os intelectuais brasileiros, por sua vez, não
poderiam tecer reflexões significativas, mas apenas seguir as modas ditadas pelos centros culturais
dos Estados Unidos e da Europa. Nesse sentido, a crítica do autor pretende marcar que a adaptação
e atualização do pensamento brasileiro em relação ao que tem sido produzido nos países cêntricos é
mais um sinal do atraso de nossa intelectualidade. Atualização é, nessa perspectiva, um sintoma que
impede o imbecil coletivo de procurar por aquilo que é realmente significativo. Por isso, afirma que
o pensamento avançou “movido pelo intuito de alcançar a verdade; só no Brasil parece acreditar
que o objetivo do pensamento é alcançar a atualidade. Essa mania já não basta para nos colocar
numa posição subalterna e periférica, da qual nenhum ‘avanço’ poderá jamais nos fazer sair?”
(CARVALHO, 2018, p. 183)
Esse cenário de atraso da intelectualidade brasileira, na perspectiva do autor, se agrava
durante a Nova República. Além desse intelectual coletivo ter efetivado seu domínio dos meios
culturais nacionais, a própria Constituição de 1988, em sua definição de cultura, contribui para esse
afastamento das bases da cultura ocidental, ao afirmar uma visão antropológica e nacionalista da
cultura. Para Carvalho, essa visão antropológica é problemática na medida em que, ao tratar as
culturas por si mesmas fora de uma dimensão hierárquica, os valores e significados das culturas são
irremediavelmente perdidos. Nessa perspectiva, Carvalho ataca diretamente as cultura africana e
seus desdobramentos no Brasil, afirmando que a contribuição dos negros ao país é apenas material e
não cultural.
Além disso, essa visão acerca da cultura dos intelectuais coletivos incorre em uma busca das
especificidades nacionais. Isso significa que, apesar de criticar a importação das modas intelectuais
estrangeiras, Olavo de Carvalho não vislumbra a possibilidade de construção de uma cultural
nacional. Trabalhar para a construção de uma cultura especificamente nacional termina por acentuar
a debilidade intelectual do país, uma vez que essa busca pelo particular distancia ainda mais o
Brasil dos valores universais:

O conflito de muitas décadas entre apego às raízes nacionais e desejo de renovação pela
absorção da influência estrangeira não tem solução no nível em que se coloca e deve
simplesmente sair do rol das nossas prioridades intelectuais. Pode ser, no entanto,
simplesmente superado se, em vez de copiarmos (ou rejeitarmos) os modelos estrangeiros do
dia, nos ocuparmos de absorver os valores permanentes, universais, de épocas mais afastadas.
Homero, Platão, Aristóteles, Lao-Tsé e Confúcio, Dante e o Tasso, Rumi e Al-Ghazali, Villon
e Cervantes, Shakespeare e Milton, Goethe e Schelling não pertencem a Paris ou Nova York.
Será que já os absorvemos o bastante para podermos sentir a urgência de acompanhar (ou
rejeitar xenofobicamente) a produção atual dos “grandes centros”? Para superar uma atualidade
medíocre, dizia Goethe, é necessário fixar-se naquilo que jamais teve atualidade. (...) É
necessário mudar o eixo das nossas preocupações, e muda-lo para cima, na direção do
universal. Uma cultura inteiramente presa ao “reino deste mundo” nada tem a oferecer ao povo
senão lamentações miseráveis e protestos histriônicos. (CARVALHO, 2018, p. 138-139)

Portanto, uma das ideias centrais do pensamento político brasileiro, que diz respeito a busca
pela nacionalidade estrangeira, deve, na perspectiva do autor, ser superada em detrimento da
absorção daquilo que nomeia como valores permanentes e universais. Apesar da presença de
autores asiáticos, que reforçam a dimensão mística e esotérica presente nesse pensamento, a maioria
dos autores é europeia. Há, portanto uma contradição a ser resolvida pelo autor. Por um lado, há
uma crítica a importação das ideias estrangeiras, enquanto, por outro, todos os autores citados como
bases de uma alta cultura são estrangeiros. Para Carvalho, essa contradição se resolve na medida em
que tais autores não representam suas próprias nacionalidades, mas sim uma reflexão de caráter
universal. Nesse sentido, a busca por esses valores permanentes e universais dissolve as ideias de
nação e nacionalidade. Em vez de procurar a si mesma, o sentido da produção cultural brasileira
deve destinar-se para o alto, rumo aos universais.
Nessa perspectiva, aquele dilema da condição periférica ou mesmo os traumas advindos das
colonizações e conquistas, são relidos por Olavo de Carvalho em chave reacionária. Na condição de
país periférico e atrasado, o autor propõe uma aproximação do Brasil em relação aos países que,
contrária a busca pela modernidade, anula o país em relação a cultura de seus colonizadores.
Superar o atraso, nessa leitura, significa equiparar o Brasil às grandes obras da alta cultura
ocidental. Todavia, essa equiparação não ocorre a partir da elevação da cultura nacional, mas da
dissolução de sua particularidade na universalidade ocidental.
Tal definição de cultura nacional coloca Olavo de Carvalho como uma espécie de anti-
Oswald de Andrade. No Manifesto Antropófago, publicado em 1928, Oswald de Andrade (1972)
afirma que a antropofagia é aquilo que nos une e marca um dilema existencial do brasileiro em sua
condição periférica ao deglutir o ser ou não de Shakespeare no célebre “tupi or not tupi”. Com isso,
a cultura brasileira se relaciona com a cultura europeia e mundial a partir da deglutição
antropofágica daquilo que nos acomete. Esse ser no mundo, em vez de isolar-se, toma o mundo para
si e o ressignifica, tornando-se síntese entre o moderno e o arcaico, o presente e o passado. Em
razão disso, o Manifesto Antropófago constrói uma nova temporalidade nacional. Em vez de datar a
publicação do texto a partir da cronologia ocidental clássica, marcada pelo advento de Cristo,
Oswald de Andrade estabelece que a cena primordial de nossa história é a deglutição do Bispo
Sardinha. Isso implica em uma leitura da história do Brasil na qual os tabus, construções de poder
sacralizadas, são desconstruídos.
Na direção oposta da antropofagia, Olavo de Carvalho recusa um modo de ser e estar no
mundo caraterístico da cultura brasileira. Nossa integração ao Ocidente aparece em sua obra como a
nossa própria desintegração, fechando o Brasil a multiplicidade de culturas, sobretudo populares,
que conformam a complexidade brasileira e que aparecem em um esforço de síntese na obra de
Oswald de Andrade. Em vez de buscar uma temporalidade característica para o Brasil, Carvalho
propõe a supressão de nosso próprio tempo em um recuo impossível para um momento histórico
impossível de ser vivenciado no país.
Na contramão e defendendo o impossível, Olavo de Carvalho afirma sua solidão frente a
intelectualidade brasileira, sempre considerada como um imbecil coletivo. Diante disso, tais
intelectuais aparecem em chave conspiratória, como forças maléficas que impedem a aproximação
do Brasil dos grandes valores espirituais. Em um desses momentos em que mistura desespero e
fervor religioso, o autor afirma que o imbecil coletivo “continua falando por mil línguas, e nem eu
nem um exército de escribas teríamos fôlego para registrar uma fração sequer de sua produção,
diariamente estampada nos jornais como um ar de respeitabilidade que raia a beatitude”.
(CARVALHO, 2018, p. 369)
Em outra obra, O futuro do pensamento brasileiro, que finaliza nossa discussão, Olavo de
Carvalho (2016) amplia ainda essa análise sobre o Brasil inaugurada em O imbecil coletivo. Nesse
livro, há um conjunto de textos que objetivam compreender o nosso lugar no mundo a partir de um
método histórico criado pelo autor intitulado de retroprojeção histórica. A obra se inicia afirmando
que não há nada mais desprezível do que ser um homem do seu próprio tempo. Isso ocorre porque,
na visão do autor, participar de seu próprio tempo evidencia, em primeiro lugar, uma restrição do
papel de um indivíduo na cultura e, em segundo e mais importante, revela que a concepção histórica
dominante se baseia naquilo que nomeia de cronocentrismo, isto é, a centralidade do tempo
histórico. Assim, contrário a perspectiva de fixar o tempo como aspecto central do método
histórico, a retroprojeção histórica de Olavo de Carvalho pretende fazer com que o presente seja
lido pelo passado, ou que o presente se torne objetivo e o passado, por sua vez, torne-se o sujeito da
produção histórica:

Um “passado vivente”, por justa e precisa que pudesse ser sua imagem segundo o historiador
mais agudo e escrupuloso, não seria no entanto propriamente vivente na simples leitura que
dele fizéssemos; para ser vivente de fato e de direito, ele teria de fazer sua própria leitura de
nós – sua leitura de nossas leituras dele. O caráter vivente do passado se encontra menos no
realismo de sua imagem, por mais completa e fiel, do que na sua capacidade de ver – e nos
fazer ver – a nossa imagem. Onde os melhores historiadores conseguiram fazer o passado vir a
nós, restaria a tarefa de nos levar até ele, de nos submeter ao seu exame. Sabemos muito desse
passado. Resta-nos conhecer o que ele sabia de nós, o que ela sabe de nós. Em suma, nossa
preocupação de objetividade é algo mais que um simples desejo de reificação do passado, não
se trata só de saber o que pensamos de Platão ou de Descartes, mas também o que Platão e
Descartes teriam pensado de nós. O historiador deve tornar-se objeto, o historiado sujeito. Esse
método funda-se no pressuposto de que todo pensamento ou ato humano não tem sentido senão
no quadro de um futuro projetado, desejado ou temido, e de que por isto é sempre possível
julgar o presente ante um tribunal dos tempos passados, tal como um adulto se põe em
julgamento ante o tribunal de seus sonhos de infância e de seus projetos de juventude, e por
eles mede quase que infalivelmente seu fracasso ou sucesso. (CARVALHO, 2016. p. 89)

A crítica ao historicismo e seu desejo de reviver o passado no presente conduz a uma


interpretação de um passado vivente no qual o presente é interpretado pelo passado. Nesses termos,
a objetividade do historiador diz respeito a tornar-se objeto diante dos autores do passado que, com
sua autoridade atemporal, podem fornecer os modos pelos quais devemos viver o nosso presente.
Com isso, a crítica ao cronocentrismo conduz a um deslocamento do presente do centro da narrativa
histórica, ocupado agora pelo brilho de um passado eterno.
As incongruências desse método são evidentes e o tornam impossível. Ao tornar o presente e
o historiador como objetos do passado, Olavo de Carvalho anula por completo o método histórico.
O passado, exatamente por ser passado, é, em si, inexistente e pode somente ganhar um outro tipo
de existência a partir de suas mediações pelo presente. Por outro lado, afirmar o passado como
sujeito é somente possível dentro de uma leitura que desconsidera totalmente as especificidades dos
tempos históricos e que, por isso, inviabiliza qualquer ideia de anacronismo. Portanto, tal método
histórico, além de anti-historicista é anti-histórico por excelência. É, paradoxalmente, um método
histórico contrário a historicidade, que ambiciona a supratemporalidade ou mesmo a
atemporalidade.
Diante disso, a cultura brasileira, que como anunciado anteriormente, deve despir-se de suas
intenções nacionais, precisa romper com essa centralidade do tempo, de modo que seus intelectuais
possam produzir obras que elevem nossa cultura a essa dimensão supratemporal. Na análise de
Carvalho, os males da nossa formação nacional nos impedem de atingir esse objetivo. Além do fato
de termos nascido em um tempo errado, o autor afirma a Independência como momento crucial
desse afastamento. Nossa independência, ao não ter sido feita em nome de valores universais,
configurou-se apenas como um rompimento dos laços com o colonizador, ao contrário da
independência dos Estados Unidos que traz consigo a universalidade da liberdade de consciência.
Em virtude disso, a intelectualidade brasileira baseou-se sempre na persecução de princípios
particulares. Nessa obra, embora Carvalho amenize o tom e afirme a importância dessa
particularidade, também ressalta que sua busca é relevante somente para os brasileiros. Apesar
disso, as críticas a Constituição de 1988 e sua concepção antropológica de cultura são reiteradas,
marcando a necessidade de que o Brasil a substitua por uma outra, marcada por uma definição
erudita e valorativa, que seja capaz de hierarquizar as diferentes culturas.
Nesse cenário cultural, apenas quatro intelectuais brasileiros, ainda que de modo disperso,
foram capazes de se elevarem a universalidade. Estes, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria
Carpeaux, Miguel Reale e Gilberto Freyre, são fruto do desenvolvimento do gênio individual
brasileiro e, por isso, abrem caminhos para a superação dos particularismos e das concepções
antropológicas de nossa cultura. Assim, o futuro do pensamento brasileiro, se é que há algum
vislumbrado por Olavo de Carvalho, deve seguir as fendas abertas por esses quatros intelectuais,
promovendo essa elevação de nosso pensamento aos altos patamares que cultura mundial.

Considerações finais

Portanto, percorremos esse longo e angustiante caminho pelo jardim das aflições de Olavo
de Carvalho. Ao longo de nossas análises pretendemos demonstrar como a leitura do autor em torno
do Brasil e de seu atraso partem de uma experiência temporal reacionária que, ao recusar a
modernidade, pretende integrar o Brasil a uma dimensão espiritual ligada às grandes realizações da
cultura ocidental, com algumas variações ligadas a espiritualidade oriental. Na mente naufragada de
Olavo de Carvalho, para nos utilizarmos dos termos de Mark Lilla, os dilemas centrais do
pensamento político brasileiro, que dizem respeito a nossa condição periférica e traumatizada, são
fixados em uma perspectiva profundamente anti-modernizadora que, mais do que anular a
modernidade, deseja suprimir a própria nacionalidade, integrando-a a uma dimensão atemporal, na
qual o tempo presente e as ações humanas, e logo a política, são também suprimidas.
O tema da perda das tradições e o desejo de conservação de determinados aspectos do
passado são temas essenciais do pensamento conservador, como demonstra, por exemplo Roger
Scruton (2018). Para o filósofo ser conservador implica em um temperamento que valoriza aquilo
que é permanente e, por isso, cuida para que as transformações históricas não destruam esses
valores que ancoram as sociedades. Apesar dessa melancolia gerada pela modernidade, Scruton
afirma a necessidade de impedir os prantos. Isso ocorre porque o mundo, ao mesmo tempo que
anuncia suas tragédias, também oferece mecanismos para que os homens resistam e consigam viver.
A arte e belo, grandes meditações sobre a perda, se configuram como possibilidades da vida
conservadora no presente.
Deste modo, o conservadorismo, por mais apego que nutra ao passado e procure mitigar as
perdas, ainda é capaz de vivenciar o presente e admitir o fluxo do tempo. Por outro lado, o
reacionarismo de Olavo de Carvalho é incapaz a salvação no presente. Mesmo que vislumbre a
integração a uma alta cultura, esta se encontra naquele passado atemporal que é amplamente
ignorado pelos homens. Assim, aquele pranto contido por Scruton, torna-se desespero e busca de
refúgio em Olavo de Carvalho.
De alguma maneira, o conservadorismo se mostra como uma filosofia do impossível, uma
vez que sua origem sempre remete a uma reação àquilo que se perdeu ou está na iminência de
extinguir. Contudo, em Olavo de Carvalho, essa busca por aquilo que se perdeu tece milhares de
páginas que, ao final, revelam resultados tímidos e impossíveis objetivos. Nessa filosofia
impossível, que traz consigo a supressão da história, do tempo, da política, a única saída é uma forte
conversão religiosa, solitária e individual.
Nessa perspectiva, não há também possibilidade de pensar um país ou mesmo alguma
atuação política, uma vez que, um pensamento calcado na persecução de uma espiritualidade
esotérica e individual pode adentrar na política somente na medida em que se anula a própria
política. Uma hegemonia desse projeto significaria não apenas uma perspectiva de restauração da
cultura em todos os seus âmbitos, mas também o desparecimento das aporias e dos conflitos que
sustentam o regime político democrático na modernidade.4
Acreditamos que dificilmente um projeto político tão eivado em paradoxos possa se efetivar
na cultura brasileira. Contudo, isso não significa que as ideias de Olavo de Carvalho, ou mesmo um
certo olavismo, não sejam possíveis no debate público e político no Brasil. Algumas iniciativas
culturais, que pretendem construir outra hegemonia política no país, mostram alguns indícios de
4
Por fim, é preciso concluir afirmando que esse trabalho é apenas uma aproximação inicial da obra de Olavo
de Carvalho. Recortamos aqui apenas um período da obra do autor, tomando como fontes quatro obras significativas de
seu pensamento filosófico publicadas nos anos 1990. Com isso, pretendemos também estabelecer uma série de outros
problemas que não puderam ser desenvolvidos nesse texto. Se por um lado, nosso esforço se deu na direção de extrair e
analisar uma espécie de substância filosófica, histórica e política de Olavo de Carvalho, por outro, não pudemos abordar
um problema essencial, que diz respeito ao modo como essas ideias são divulgadas, sobretudo na internet, ou mesmo
como essas ideias são recebidas por aqueles que assistem aos vídeos ou mesmo leem os textos de Carvalho. Além
desses, é também preciso investigar as relações entre esse reacionarismo e o bolsonarismo, bem como as razões pelas
quais tais ideias adquiriram tanto espaço no Brasil a partir, ao menos de 2013.
como essa influência pode ocorrer, como a própria vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, que embora
não dependa das ideias de Carvalho, efetivou forte interlocução com esse autor, ou mesmo em
inciativas como a produtora de vídeos Brasil Paralelo. Mesmo que não postas em sua integralidade,
a influência representa ameaça para a democracia brasileira. Nesse Brasil desejado por Olavo de
Carvalho as aflições são inteiramente nossas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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