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A “EXPERIÊNCIA CHILENA” E O TEMPO DA POLÍTICA

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira1

Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção


passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e
expectativas vivenciadas no presente, de modo que, revisitar um livro pode se tornar a
descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas
várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar,
cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo:
a experiência chilena”, publicado por Alberto Aggio em 1993, marcando suas
potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.
Em 1970, a coalização da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como
presidente do Chile. Tal eleição representava, não somente para o Chile, mas para as
esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a
construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que
implicava na produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das
esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia
e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção
dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução
e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada a modernidade
política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao
menos desde a primeira metade do século XX com a ativação da participação das
massas na política e a construção de um consenso democrático.
Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as
ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que
havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução
passiva chilena, a coalização política vitoriosa, em determinados momentos, procurou,
sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações
históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.
Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da
sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado.

1
Doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.
Nessa nova configuração política trata-se de, por meio das relações de força que
caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da
revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é
marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói um novo
significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem
ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura
democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa
grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia
possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de
tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura
– pactada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via
democrática”.
Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência
para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar
seus fracassos ou mesmo para reconstruir a oportunidade perdida para a construção do
socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena
dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a
necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das
políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia enquanto perspectiva
civilizacional capaz de garantir transformações históricas sem a perda das liberdades e
das individualidades.
Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da
história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o
presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas anti-
políticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como
um momento condensado no tempo e, ao mesmo tempo, compreender que o
enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e
multidirecional, na qual, devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do
presente.

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