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CHARGE
Democrática
P O L I T I C A
O Congresso Nacional
sob escrutínio ARTIGO
Antonio Carlos Medeiros O que se pode
EDITORIAL PÁG. 12 esperar de uma CPI
O dia seguinte Arlindo Fernando de Oliveira
PÁG. 4 PÁG. 14
SUMÁRIO
REPORTAGEM ESPECIAL
Foto: Tania Rego/ Agencia Brasil
ARTIGO
A construção de um
Já é 2022 na internet personagem PÁG. 37
Sergio Denicoli André Amado
PÁG. 25 PÁG. 37
Desfile de blindados na Esplanada: com ameaça de golpe e uso da imagem das Forças Armadas, Bolsonaro tenta retirar o
foco dos principais problemas do país
IMPERFEIÇÃO DA NATUREZA
de militares nas ações políticas de governo,
potencializou a questão. Somou-se a esse
inconveniente, posturas contestáveis dos ou-
tros Poderes da República. O Legislativo, com HUMANA”
tendência mesquinha de enxergar os inte-
resses paroquiais, e o Judiciário, em suposta (LIDDELL HART)
“
cruzada moralizadora, que ultrapassa o senso
cotidiano de equidade. Formou-se um torve-
linho de opiniões divergentes, desamparadas
No Dia do Soldado, o general Paulo Sérgio Nogueira, Comandante do Exército, discursou que militares
devem inspirar paz, liberdade e democracia
“ A PREDOMINÂNCIA
EGOÍSTA DE QUALQUER
de conhecimento qualificado, que anuvia
grupos da sociedade.
Tomando por base o trabalho do
professor Samuel Huntington, O Soldado e
o Estado (BIBLIEX, 2016), abordarei aspectos
das relações entre civis e militares, contextu-
DOS FATORES FISSURA A alizados para o Brasil contemporâneo. Para
fins de enquadramento, o livro foi publicado
ESTRUTURA, OFENDENDO em 1957, período alcunhado de Guerra Fria,
no qual a incômoda ascensão da União Sovi-
A ESTABILIDADE ética se projetava sobre a águia americana.
A incompreensão da sociedade,
DA NAÇÃO. O QUE, diante da obrigação do profissional das ar-
mas em ser pragmático, perenizou-se com o
CONVENHAMOS, NÃO correr dos tempos modernos. O militar é o
mais pacifista dos integrantes de uma comu-
SE ESPERA EM nidade. Suas experiências o fazem conhecer
a desgraça final dos conflitos humanos e os
UM PAÍS MADURO efeitos deletérios para a sociedade. Justifica-
-se seu pessimismo.
DEMOCRATICAMENTE
“
Ele tem o dever de se posicionar publica-
mente sobre fatos que afetem a missão da
organização e o desempenho profissional. O
verdadeiro comandante, vestido da couraça
O
Brasil não é para principiantes. tória. Uma tradição que ensejou embates
Quantas vezes já se leu ou ouviu inclinados tanto à conciliação quanto ao
essa frase, atribuída a Antonio rechaço a ela. Um paradoxo nem sempre
Carlos Jobim? Frequentemente, percebido nas disputas políticas e cultu-
ela é mencionada para atestar a dificulda- rais que se desenrolam no presente. Pen-
de de se compreender o país. Está presen- sar o Brasil nunca foi apenas um exercício
te em quase todos os exercícios de revisão acadêmico ou intelectual. Trata-se de um
das principais interpretações sobre a for- debate que alimenta, o tempo todo, pro-
mação histórica brasileira. Comunidades jetos que visam ao futuro do país.
de cientistas sociais se dedicam, recor- O Brasil, seguramente, não é para
rentemente, a pensar e repensar os intér- principiantes. Contudo, não seria absurdo
pretes do país, em encontros científicos, pensar, ultrapassando o senso comum,
seminários e antologias de ensaios, sem que tal asseveração poderia ser aplicada
chegarem a conclusões mais definitivas. a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da
Como se sabe, as interpretações China ao México, do Afeganistão à Bolí-
sobre o Brasil compõem uma tradição de via, apenas para mencionar alguns exem-
enorme multiplicidade em suas aborda- plos. Em todos eles, há incógnitas a se-
gens, nada uniforme e harmônica, pro- rem decifradas, e seus problemas atuais
duzida em diversos momentos da sua his- não são nada simples, como temos visto.
“
lugar no mundo
“
A equalização ao tempo dos contem-
porâneos não poderá ser sequer vislum-
brada, caso não se reconheça que a vida
social e política, a economia e os valores
civilizatórios são hoje História global. Se-
“
deriva supõe a recusa à adoção da estra- produzindo “nova situação de exclusão ou,
no mínimo, de diferenciação, entre os mem-
bros iluminados da intelligentsia e aqueles
que, mesmo formando uma grande parte do
país, são, segundo esse olhar, analfabetos
O BRASIL MODERNO
políticos, ignorantes religiosos, facilmente
manipuláveis e/ou pouco conhecedores da
própria história”**.
DISPUTAS INTELECTUAIS
canções no final dos anos 1980. Décadas à
frente, ainda perplexos, somos nós que inda-
gamos: que país é esse que entronizou Bol-
HEGEMONIA NO
de uma história que precisa ser decifrada.
Não pode ser visto como um parêntesis. Ele
já estava aí, mas não foi percebido em sua
‘REVOLUÇÃO PASSIVA’,
dadeiramente, apenas apertando os botões
da urna eletrônica, embora esse seja um
passo necessário e imprescindível.
DE PARADOXOS,
e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan,
1997, p. 10.
INCOMPLETUDES
“
SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
ALBERTO AGGIO
A
sociedade brasileira mantém povo, nem o Senado da República opera
avaliação negativa dos políti- bem para representar o território, isto é,
cos e do Congresso Nacional. os estados. Os deputados federais viraram
O acordo político do governo “vereadores federais”. E os senadores, ao
Bolsonaro com o Centrão estimulou o pro- deixarem de ter papel apenas revisor, tor-
tagonismo do Congresso. Mas contribuiu naram-se um misto de deputados e vere-
para a avaliação negativa dos políticos. O adores. As funções precípuas da Câmara e
acordo resultou no aumento vertiginoso do Senado estão apequenadas e desvirtu-
das emendas de parlamentares e dos fun- adas. Embora eles tenham muito poder, o
dos partidário e eleitoral. varejo político desorganiza a possibilidade
Tudo somado, o Orçamento da União de de atuação estratégica e efetiva. Predomina
2022 destinará em torno de R$ 40 bilhões a pequena política do clientelismo, do cor-
aos partidos e aos parlamentares. A socie- porativismo, do varejo, dos arranjos, e tudo
dade reage. E joga, outra vez, luz sobre o mais que a opinião pública condena. Tudo
desempenho e a imagem do Congresso. O funciona para a manutenção e renovação
que esperar dele? A crise ética ainda é re- dos mandatos dos parlamentares. Pouco de
sultante da nossa herança patrimonialista? grande política. Muito da pequena políti-
Nosso sistema híbrido de governo - presi- ca. São necessárias reformas políticas que
dencialista-parlamentarista – exauriu-se? O resgatem o papel da Câmara como repre-
pacto social da Constituição de 1988 che- sentante direta dos cidadãos, e o papel do
gou ao fim? Senado como casa revisora representante
A questão central é que nem a Câma- dos estados.
ra Federal representa adequadamente o O Senado trabalha como se fosse uma
“
Congresso e fazer avançar a democracia
brasileira. Seguem, aqui, de forma esque-
mática e como contribuição ao debate, al-
gumas propostas factíveis.
Primeiro, enquanto se discute se o Brasil
vai ou não implantar o sistema distrital mis- AS REFORMAS POLÍTICAS
to, é possível melhorar a representatividade
do sistema eleitoral brasileiro pela simples QUE ESTÃO EM PAUTA
alteração do sistema de redistribuição de
sobras, mudando-se do sistema D´Hondt NÃO VÃO CONTRIBUIR
para o sistema Saint-League, caso as coli-
gações voltem a ser permitidas. O Saint-Le- PARA O RESGATE DO
ague aumenta o denominador do cálculo
da distribuição de sobras, estimulando os CONGRESSO NACIONAL.
pequenos partidos a concorrerem sozinhos
às eleições. SÃO RETROCESSOS
DEMOCRÁTICOS
“
Segundo, a melhoria da representativi-
dade passa, também, pela adequada repre-
sentação dos estados. Isso pode acontecer
se a redistribuição do número de vagas
destinadas a cada estado, na Câmara Fe-
deral, devolver o valor do índice de Gini ao SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
patamar de 1950, ou seja, à escala próxima
ao intervalo entre .24 e .35. Isso tornaria ANTÔNIO C. DE MEDEIROS
mais proporcional e legítima a formação da
S
ão recorrentes os questionamentos bunal Federal, o requerimento de uma CPI
quando alguma casa legislativa institui subscrito por um terço da Casa Legislativa,
uma comissão parlamentar de inqué- cria a comissão, e deve implicar sua instalação,
rito, a CPI. Um deles é sobre se a Comissão desde que fundado em fato determinado e
vai produzir os resultados que dela se espera por prazo certo. Como enfatizou o STF, pela
ou se “vai dar em pizza”. É tema legítimo e voz do Ministro Celso de Mello:
vale a pena comentar. O Congresso Nacional, Preenchidos os requisitos constitucio-
suas Casas, assim como as instituições do Po- nais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a cria-
der Legislativo dos estados e municípios têm ção da Comissão Parlamentar de Inqué-
três funções básicas: legislar, fiscalizar o Poder rito, que não depende, por isso mesmo,
Executivo e servir de espaço para o debate pú- da vontade aquiescente da maioria le-
blico. A primeira função é a definida pelo seu gislativa. Atendidas tais exigências (CF,
nome: “Poder Legislativo” e as demais lhe são art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da
vinculadas. Casa Legislativa, adotar os procedimen-
As comissões existem para dar funcio- tos subsequentes e necessários à efeti-
nalidade à Casa, a organização do trabalho va instalação da CPI, não se revestindo
parlamentar em comissões se dá por razões de legitimação constitucional o ato que
práticas. E, numa democracia, cabe a quem busca submeter, ao Plenário da Casa
venceu as eleições, a maioria, governar. E à legislativa, quer por intermédio de for-
minoria cumpre fazer oposição. Assim, as CPIs mulação de Questão de Ordem, quer
são a expressão constitucional do direito e do mediante interposição de recurso ou
dever da minoria. utilização de qualquer outro meio regi-
Por isso, como reiterou o Supremo Tri- mental, a criação de qualquer comissão
E
ntrevistado especial da edição de se- propriamente dita - e todos aqui somos da
tembro da Revista Política Democrá- época da urna de lona, da cédula de papel,
tica Online, o cientista político Jairo e nos lembramos de como era difícil contro-
Nicolau critica duramente os ataques lar as fraudes, mesas sendo arranjadas para
contínuos do presidente da República à urna facilitar que certas forças políticas compare-
eletrônica - e ao processo eleitoral brasileiro cessem para encobrir o comparecimento de
-, considerada por ele como um dos proces- uma pessoa, votar no lugar de outra. E, na
sos de votação mais eficientes do mundo. hora da apuração, quando todas as cédu-
"A urna eletrônica foi um grande passo las eram depositadas sobre mesas situadas
para aperfeiçoar o processo de votação no em ginásios esportivos. Pegava-se um uma
Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o
corrupção como na adulteração da vontade nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali,
do eleitor no momento da votação e, claro, na hora de transformar os votos contados
depois na contagem dos votos", avalia. para os boletins de urna, ninguém detinha
De acordo com o professor titular as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral
da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante muitos anos e acompanhei as apu-
(UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documen- rações e lembro bem de alguns casos.
tação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/ Esse tipo de fraude terminou com a urna
FGV), estima-se que a militância do presi- eletrônica. Além da urna eletrônica, temos
dente da República na suspeição do voto hoje também um cadastro nacional de elei-
digital possa ter contaminado cerca de um tores, de que pouca gente fala, que é che-
terço do eleitorado. "O estrago é tão lasti- cado periodicamente para evitar duplicação
mável como irreversível. Poderá ser um perí- de entrada de eleitores. Dispomos ainda
odo grande de desconfiança, de crises polí- da leitura biométrica da identificação dos
ticas graves", lamenta. eleitores que exclui qualquer possibilidade
Mestre e doutor em Ciências Políti- de termos um eleitor inscrito em mais de
cas no Iuperj, com pós-doutorado na Univer- uma sessão eleitoral ou uma pessoa votan-
sidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, do em nome da outra. A urna eletrônica é,
Jairo é autor de vários livros sobre a política assim, um sucesso tanto contra a corrupção
brasileira, como História do Voto no Brasil. como na adulteração da vontade do eleitor
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Siste- no momento da votação e, claro, depois na
mas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, contagem dos votos.
2004. O último deles, publicado já duran- Subsistem algumas denúncias no atual
te a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: processo eleitoral, como as de compra de
Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em votos, vale dizer, a influência política de al-
2018”. guns segmentos das elites sobre eleitores
Na entrevista à Revista Política De- mais vulneráveis em certas áreas do Brasil.
“
mocrática Online, Jairo Nicolau também Isso não está mapeado, mas, de fato, ocor-
comenta termas como o sistema político
brasileiro, reforma política, fragmentação
partidária e processo eleitoral, entre outros.
Confira, a seguir, os principais trechos:
“
Jairo Nicolau (JN):Dei ênfase à redu-
ção das fraudes, não a seu banimento. Até ELEITORES
pouco tempo, as fraudes aconteciam em
dois momentos. No momento da votação
“
políticos. Vejamos a questão do voto dis-
trital. Sabemos que, por essa via, partidos
de opinião praticamente desapareceriam.
Ninguém espera um cálculo político absur-
do desse tipo. Defende-se, também, a re- protegeria os deputados que tem manda-
presentação proporcional. Será apenas para to. Lembrem-se que, na última eleição, por
proteger os interesses de minoriais? Difícil exemplo, partidos, como o PP, o Progressis-
dizer. Em toda eleição tem um pouco de ta, deram muito mais dinheiro para quem
malícia, de auto-interesse, o que não é ne- tinha mandato, tentando atraí-los para
cessariamente ruim. suas legendas. Chegou-se a prometer dois
É o que tem acontecido, e aconteceu milhões e meio por candidato. Ou seja, o
primeiro com o fundo eleitoral. Quando os partido não lança candidato à presidência,
deputados e senadores criaram, em 2015, economiza e, com as sobras, celebra as bar-
o fundo eleitoral, perceberam que seria es- ganhas. Apoiavam-se em propostas subs-
tratégico para a sobrevivência política. O tantivas, republicanas, de melhor servir à
dinheiro da campanha viria, sobretudo, do cidadania? Não, prevalecia a ideia clássica
fundo; só faltava criar regras para proteger que move os deputados: o interesse de pes-
quem já tinha mandato. Na confecção do soas, de políticos, nada a ver com os interes-
fundo, foram muito generosos consigo mes- ses dos partidos.
mos. Os partidos maiores ficaram com mui-
to mais dinheiro do que os menores. Como Reformas desse tipo, que chamo de ego-
era uma primeira eleição com o fundo, não ísmo extremado, haverão de conduzir ao
custava ter deixado uma parte maior para desaparecimento de partidos, que se ato-
distribuir para os pequenos partidos. Mas, mizariam e se fragmentariam ante a ânsia
não, eles concentraram o dinheiro do fun- incontida dos políticos de sobreviverem
do. abraçandos mandatos, avessos a tudo que
Para proteger a elite política da incerteza possa soar republicano, orgânico, de inte-
da recondução eleitoral, cresceram as pers- resse público.
pectivas do chamado Distritão, proposta Não devemos esquecer que, em 2017,
agora derrotada na Câmara. Na visão dos houve reforma profunda das regras eleito-
políticos - tenho muitas dúvidas se eles es- rais: acabou-se com a coligação e criou-se
tavam corretos nessa análise – o Distritão um sistema de cláusula de desempenho que
“
no debate nacional, com algumas exce-
ções? Muito pouco. A cláusula de desem-
penho não foi mexida, vai manter-se a mes-
“
aquilo ali foi um arrastão ocasional
carona a partidos menores. Daí porque eu
achar que o congresso de 2022 vai ser mais
compacto do que o atual. Claro, não vamos
chegar ao modelo inglês, com dois grandes
partidos e alguns partidos pequenininhos.
Nossa fragmentação é tão alta que vamos
levar muito tempo para voltar, por exemplo, foi um arrastão ocasional. Eu apostaria, in-
ao que éramos na década de 90, com oito tuitivamente, é uma aposta só de conver-
ou dez partidos. Isso só não aconteceu em sa fiada, vamos dizer assim, que uma boa
2018 por uma razão puramente contingen- parte, sei lá, 60%, 70% dos deputados do
te, o arrastão bolsonarista. Caso contrário, PSL não se reelegem mais, eles entraram ali
o DEM, PSDB e MDB teriam bancadas mais e vão sumir como surgiram. Para mim, 22
expressivas com 50, 60 deputados cada um. será o momento de compactação política.
Quer dizer, o que o Bolsonaro fez em Mas, de novo, não vai ser a compactação
2018, com aquele desempenho impressio- como conhecemos na década de 90, mas
nante no primeiro turno, que se traduziu tampouco vamos repetir esse modelo de hi-
numa bancada gigantesca de deputados, perpulverização de 2018.
ajudou, digamos assim, a quebrar um pa-
drão, mas isso, para mim, não continua. RPD: Sabemos que nosso sistema
Nem sempre há eleições extraordinárias. eleitoral nas eleições proporcionais não
Vimos muitas eleições depois da redemo- é um sistema frequente no mundo. Nor-
cratização, e só em uma, um partido, fez o malmente, quem adota o sistema pro-
estrago. Se a gente olhar e comparar o que porcional adota o sistema com alguma
aconteceu com o maior partido do Brasil, forma de fechamento ou pré-ordena-
o Partido dos Trabalhadores, para chegar a mento das listas. Dado que nós temos
50 deputados, o PT passou por umas cinco uma certa singularidade nesse ponto,
eleições. Teve oito em 82, dobrou para 16 quais seriam, do ponto de vista dos
em 86, foi para 30 e poucos em 90, che- eleitores, os principais problemas que
gou em torno de 50 em 94. Quer dizer, o esse sistema acarreta para nós?
partido levou uma década e meia ou duas JN: Para mim, o maior efeito desse siste-
décadas para chegar a 50 deputados, e o ma é que tem muitas formas de organizar-
PSL numa eleição chegou a isso. Isso nunca -se a representação proporcional. O que há
tinha acontecido. em comum entre os vários países que usam
O surgimento do PSL trouxe um elemento a representação proporcional é o princípio
ainda de fragmentação. Agora, o PSL, não de que cada partido lança uma lista de no-
é à toa que ele está buscando uma aliança mes. Se a gente for na Polônia, na Bulgária,
com outro partido, porque eles estão per- em Portugal, na Espanha, qualquer país do
cebendo que ali de baixo não tem nada, mundo que usa a representação propor-
é oco. O partido não tem nome, aquilo ali cional, o fundamento é: lance uma lista de
“
nomes, o voto dessa lista vai ser contado votação. A urna eletrônica, em que pesem
e nós vamos distribuir as cadeiras propor- todas as virtudes que identifiquei, não ajuda
cionalmente segundo o volume de votos de passar para o eleitor a sensação que ele está
cada lista. Isso é o que há de comum. Em votando numa lista e não num nome. Se eu
Portugal, por exemplo, o eleitor não vota tivesse, por exemplo, um eleitor peruano
em nomes, porque a lista já vem prontinha que usa o sistema brasileiro de lista aberta,
de casa. Digamos que se no Brasil o sistema ele tem uma cédula grandona com o nome
português fosse adotado, nós chegaríamos de todos os candidatos e as listas. Ele vai lá
na seção eleitoral, olharíamos a ordem dos e marca um nomezinho na cédula, com to-
nomes. Primeiro lugar, candidato fulano, dos os candidatos. Claro, no Brasil não daria
beltrano, ciclano. Assim funciona em Por- porque são 400, 500 candidatos. Mas, se
tugal, de modo de que na hora que se olha fossem 80, na época da cédula de papel,
para a cédula, só marca um xis onde está você faz uma cédula peruana, grandona,
seu partido. Como a gente votava para com retratinho, você vai lá e escolhe o re-
presidente no Brasil na época da cédula de tratinho, você está votando no nome. No
papel, é uma cédula portuguesa para de- Brasil, a gente não tem isso. Então, respon-
putados: aparecem o símbolo do partido e dendo a sua pergunta, eu acho que o maior
o nome. A marcação do lado indica que se problema que eu vejo na lista aberta é que
comprou o pacote, não se está escolhendo o papel do político individual é muito gran-
um nome. de. E como os Estados cresceram muito em
O que temos no Brasil é um sistema cuja tamanho, a população ficou muito grande
ênfase no nome no candidato é muito forte. e a sociedade brasileira, mais complexa, a
Costumo dizer que isso é agravado para os política ficou mais democrática, os interes-
eleitores comuns pelo próprio processo de ses atomizados da sociedade começaram a
“
adotar o lugar da política, dos partidos, de
uma maneira, fazendo uma ligação direta,
que não existia no passado. Claro que sem-
pre houve padre, um radialista, um artista
APERFEIÇOAMENTO DE UM FIM
o que eu percebo, recentemente, é que
com essa mudança da sociedade brasileira,
DA COLIGAÇÃO E UM AUMENTO
o atalho entre celebridades, lideranças da
sociedade civil e a política, tanto para bem
DOS 2% DA CLÁUSULA DE
quanto para mal, ficou muito curtinho, fi-
cou muito rápido.
DESEMPENHO
A bancada do PSL é isto, não é? São 50
“
personalidades, raríssimos políticos de car-
reira ali, são pouquíssimos. Isso aparece com
interesses econômicos, empresários que no
passado faziam lobby, tinham amigos na
política, começaram a se meter com política.
Não estou falando de grandes empresários,
do presidente da CNI, não, eu estou falando
de empresários locais, dono de uma trans- sa, mas ele ficava na franja do sistema po-
portadora, um pecuarista que resolve ele lítico, ele era em menor número. Agora, o
mesmo entrar na política. Interesses, claro, Brasil mudou, o sistema eleitoral é o mesmo.
do outro lado, sindicais. Não mais interesses Esse atalho é feito em ligação direta. Como
religiosos, a gente não está falando de um a gente fazia no passado, ligava o carro em
líder religioso nacional, a gente está falando ligação direta, você não tem chave, não tem
de um pastor de uma igreja pequena, de intermediação, isso me preocupa.
uma região do Rio de Janeiro, o sujeito vai Para mim, mesmo uma reforma política,
direto. É um pastor de uma igreja rural, não no que a gente está falando aqui de com-
tem atalho, ele entra num partido um ano pactação, vai melhorar um pouco a inteligi-
antes da eleição, se elege federal. Ele é re- bilidade do sistema, ele vai ficar um pouco
presentante de quem? Ele é simplesmente o mais arrumado, mas essa questão mais fun-
intermediador em Brasília entre os interesses da, do hiperparticularismo dominando a po-
da igreja e dos moradores lá da região dele. lítica, que tem a ver com a lista aberta – cla-
ro, você pode botar uma lista fechada e não
RPD: A fragmentação está relaciona- resolver esse problema –, que a lista aberta
da ao sistema? A falta de transparência agrava esse problema eu não tenho dúvi-
e de inteligibilidade para os próprios da. Isso veio para ficar, ou seja, o legislativo
eleitores está relacionada com isso? O brasileiro está muito pulverizado não só em
que fazer para poder avançar na solu- termos partidários, mas do particularismo
ção dessas questões? dos interesses locais, interesses pontuais. A
JN: Acho que de certa maneira não tem gente vê uma campanha para deputado, eu
como tirar a responsabilidade do sistema lembro que, no ano passado, tinha um su-
proporcional de lista aberta combinando jeito que era representante dos porteiros do
com a mudança que o país passou. Quando Rio de Janeiro, ele queria voto como repre-
a elite política era mais fechada, ela resolvia sentantes dos porteiros e trabalhadores nos
bem isso. Digamos, colocava os quadros, prédios. “Eu quero representá-los em Brasí-
pensando até recentemente, no PSDB, nos lia”. Veja, não é mais o interesse territorial,
partidos que fizeram a constituinte. Você ti- é o hiperinteresse. Isso realmente me preo-
nha uma elite parlamentar que controlava a cupa, e eu não sei como a gente tem como
política e às vezes aparecia uma figura des- mudar isso. Porque depois que a gente co-
loca essas pessoas no Legislativo, aí que elas pode se eleger. Quer dizer, você quebra um
não vão querer um sistema de lista fechada, pouco, dá uma flexibilidade, por isso este
porque elas provavelmente vão ficar na ra- modelo se chama lista flexível, à lista. Mas
beira da lista, não é mesmo? É um modo de tudo isso pode ser discutido num ambien-
reprodução que é difícil quebrar nesse caso. te em que, primeiro, a gente acabou com
as coligações, tem uma certa compactação
RPD: Devidamente autorizado por sua partidária e fique um ambiente melhor para
experiência na academia e nos corredo- conversar. Nesse ambiente, agora, desse
res da política, que proposta gostaria atomismo que a gente conversou, eu acho
de ver vitoriosa nas mudanças que se melhor não mexer em nada. 2022, com as
insinuam na área eleitoral? mesmas regras de 2018, com aperfeiço-
JN: Para ser totalmente honesto, e diante amento de um fim da coligação e um au-
dessas propostas, eu diria nenhuma. Nesse mento dos 2% da cláusula de desempenho.
momento, era melhor deixar do jeito que
está. A gente fez a reforma em 2017, ela SAIBA MAIS SOBRE O ENTREVISTADO
não foi experimentada, eu acho que foi
uma reforma que tem mais acertos do que
JAIRO NICOLAU
erros. Talvez num momento dois, digamos,
a partir da próxima legislatura eleita não
com essa excepcionalidade que foi a eleição SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
de 2018, nós possamos começar a discutir,
não sei se nessa seguinte ou na outra, talvez CAETANO ARAÚJO
uma forma de dar um pouco mais de con-
tenção partidária a essa lista aberta brasilei-
SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
ra. Talvez dando aos partidos mecanismos
de ordenar a lista, como se faz em Portugal,
ou até um formato que é usado em alguns ARLINDO OLIVEIRA
países europeus, que eu gosto, particular-
mente, que é o seguinte: você fecha a lista,
mas dá ao eleitor a opção, caso ele queira, SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
de votar num nome específico. Com isso,
caso um nome tenha algum destaque, ele ANDRÉ AMADO
Já é 2022 na internet
Bolsonaristas e lulistas já deram início não-oficial à campanha eleitoral para 2022 e estão praticamente sozinhos
no campo virtual de batalha que é, atualmente, a principal arena da disputa
N
ão se engane com o calendário O curioso desse contexto é que o ano
eleitoral oficial. Nas redes sociais, eleitoral realmente começou, mas não para
2022 já se iniciou. Os candidatos todos. Bolsonaro e Lula já estão confortavel-
mais atentos estão atuando na mente em campanha, abarcando 82,9% do
velocidade das fibras óticas. Mesmo porque, total das menções aos presidenciáveis, no
como a internet é fragmentada em bolhas, o Twitter, segundo dados da AP Exata Inteligên-
período de campanha determinado pelo TSE cia Digital, medidos em agosto. O presiden-
é extremamente curto para alavancar uma te conta com uma fatia maior de menções,
candidatura. Muito diferente dos nostálgi- atingindo 54%, ao passo que o ex-presidente
cos anos analógicos, quando a sociedade era alcança 28,2% das menções.
pautada pelos jornais, rádios e TV, e o horário Os demais pré-candidatos têm participa-
eleitoral gratuito marcava de fato o início da ções residuais. Vez ou outra conseguem po-
disputa. lemizar algum tema e aparecem um pouco
Perfil de Bolsonaro no Twitter: presidente abarca 62% de menções negativas na rede social, contra
60% do petista
MEDIDOS EM AGOSTO
resse, o presidente deixa em segundo plano
questões como a inflação galopante, a crise
“ HOJE, A TERCEIRA
AP Exata, 60% das menções a Lula no Twit-
ter são negativas. Índice muito próximo do
de Bolsonaro, que abarca 62% de menções
negativas.
Teoricamente, haveria espaço para uma
terceira via. No entanto, para que o eleitor
escolha um caminho novo, é preciso que ele
enxergue a estrada. E o problema do chama-
VIA É FATALMENTE
do “centro” é que os nomes que se apresen-
tam não estão sendo vistos como alternativas
capazes de romper a polarização.
COMPOSTA POR
O mais curioso é que, dominando quase
que a totalidade das conversações nas redes,
petistas e bolsonaristas dominam também as
É PRECISO
ainda patina nesse sentido. Tem buscado ocu-
par espaços de rua e já marcou uma manifes-
tação para o dia 12 de setembro. Mas ainda
SE LIBERTAR
não entendeu que lideranças abstratas não
significam muita coisa. É preciso se libertar
das amarras partidárias, das articulações em
PARTIDÁRIAS, DAS
com dificuldades em alcançar os reais prota-
gonistas do processo.
Desde que a internet se consolidou como
ARTICULAÇÕES EM
o principal meio de debate político, os que
não perceberam a mudança e se focam em
cartas de protesto divulgadas pela imprensa
E FOCAR NA
processo a olhos vistos. Internet é “tiro, por-
rada e bomba”, mas há ciência por trás, e o
mapa da mina são os dados. Lula e Bolsonaro
ARENA REDE
sabem disso, por isso, avançaram um ano à
frente dos concorrentes.
“
SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
SERGIO DENICOLI
Efeitos da pandemia da Covid-19, na economia do país, levaram ao empobrecimento dos mais pobres e ao
enriquecimento dos mais ricos, avalia Valdir Oliveira
A
“
economia é cíclica. Ela responde aos
movimentos da vida. E os movimentos
dessa pandemia, consequência da crise sani-
tária que estamos vivenciando, contribuíram
para reforçar a já forte concentração de renda
O CRESCIMENTO ECONÔMICO
no Brasil, com a exclusão produtiva de muitos
brasileiros.
E A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
Os pequenos negócios foram vítimas de FORAM PERDIDOS PELOS
IMPACTOS DA CRISE QUE
seus limites de sobrevivência, e as ajudas na
política compensatória, de complementação
de renda, os excluíram, deixando-os sem con-
dições de trabalho e de renda. As políticas VIVEMOS, POTENCIALIZADOS
de socorro por meio de crédito de fomento
foram direcionadas para os que conseguiram
PELO DESTEMPERO DO MOMENTO
se manter com um cadastro limpo, já que os
caminhos foram trilhados para os bancos, e
POLÍTICO EM QUE AS DISPUTAS
estes não podem fugir das regras do sistema
financeiro, que não permite acesso aos que
IDEOLÓGICAS SE SOBREPÕEM
têm restrições cadastrais impostas pelo mer- À PAUTA DE SOBREVIVÊNCIA DO
POVO BRASILEIRO
cado. De forma simples, é essa a fotografia do
“
momento, após um ano e meio de pandemia,
cujo resultado foi o empobrecimento dos mais
pobres e o enriquecimento dos mais ricos. A
estabilidade econômica, o crescimento e a dis-
“ AS SOLUÇÕES SAÍRAM DO
CAMPO ECONÔMICO OU DA
paralelamente com intervenções estatais no
socorro dos excluídos.
Na última década, tivemos a ascensão e
queda de um governo de esquerda que ini-
ciou um descontrole nas contas públicas. Esse
SAÚDE, E PASSARAM PARA O caminho levou o ambiente político a ser du-
ramente atingido pela credibilidade de seus
CAMPO IDEOLÓGICO E POLÍTICO. protagonistas, levando o país a um sentimen-
to de anarquia, em que a desqualificação das
ENTRAMOS NA TEMPESTADE instituições e seus representantes substituiu as
sugestões de solução à crise. Esse ambiente
PERFEITA favoreceu o nascimento de uma proposta li-
“
beral, de redução do Estado. A pauta era in-
verter a lógica do Estado para fortalecer as re-
alidades municipais e enfraquecer o comando
central, o chamado de Menos Brasília e Mais
tribuição de renda das últimas décadas foram Brasil.
perdidos em dois anos pandêmicos e de ex- Foi nesse momento que entramos na pan-
tremos políticos, nos quais faltou a empatia demia. A crise sanitária levou, inicialmente, à
de lideranças que os fizessem sentir a dor de paralisia econômica dos pequenos negócios
seus liderados. e à perda de renda da base da pirâmide. A
O período que antecedeu o Plano Real era atividade econômica estagnou-se. O ambien-
de um Brasil de hiperinflação e de planos eco- te político acirrou disputas, nas quais líderes
nômicos recheados de populismo, mas sem trocaram a empatia com seus liderados por
efetividade de suas propostas econômicas. As influências ideológicas ou de retórica constru-
contas públicas vinham de um descontrole, ída para o caos. As soluções saíram do cam-
desde a construção de Brasília até fortes en- po econômico ou da saúde, e passaram para
dividamentos públicos oriundos de estratégia o campo ideológico e político. Entramos na
estatizante dos governos militares. Esse cená- tempestade perfeita.
rio trazia a perda de renda dos mais pobres, Os indicadores de desemprego e inflação,
com o esgotamento da capacidade de investi- somados ao descontrole das contas públicas,
mento estatal, levando a uma profunda crise, nos remetem ao início da chamada Nova Re-
debelada apenas pelo Plano Real, que atacou pública. O crescimento econômico e a distri-
a doença crônica da inflação e do desequilíbrio buição de renda foram perdidos pelos impac-
das contas públicas. A solução econômica só tos da crise que vivemos, potencializados pelo
se tornou possível por conta de um ambiente destempero do momento político em que as
político equilibrado, que fortaleceu a demo- disputas ideológicas se sobrepõem à pauta de
cracia, preparando o Brasil para a construção sobrevivência do povo brasileiro. O aprendi-
de um modelo de desenvolvimento inclusivo e zado das últimas décadas nos ensinou que a
com distribuição de renda. retomada da economia precisará do equilíbrio
A transição proposta pelo Plano Real foi no ambiente político, com o fortalecimento
permeada de ações paralelas no intuito de da democracia. Serão necessárias medidas de
ajustar a economia e socorrer os excluídos, intervenção do Estado para a inclusão dos
empobrecidos, fossem pessoas físicas ou ju- brasileiros excluídos com alternativa de crédi-
rídicas. Soluções de crédito fora do sistema to e complemento de políticas compensató-
financeiro foram se multiplicando com alter- rias. Mas o custo dessa intervenção deverá ser
nativas de microcrédito ou mesmo de atua- acompanhado de um projeto de organização
ção do varejo em sua ampliação do acesso das contas públicas. Só assim retomaremos o
ao crédito daqueles que não cumpriam as caminho do desenvolvimento com a distribui-
exigências do sistema. A busca pela formali- ção de renda que colocará o Brasil, novamen-
zação de informais, por meio da solução do te, na rota do desenvolvimento.
Microempreendedor Individual (MEI), que deu
condições para que o sistema pudesse enxer- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
gar aqueles que estavam produzindo à mar-
gem do sistema, foi outro passo importante VALDIR OLIVEIRA
para que os ajustes econômicos convivessem
Foto: Reprodução
Judiciário sinaliza caminhos alternativos ao propor teto para pagamento de
precatórios em uma medida similar à proposta do Executivo, mas dispensando a
necessidade de uma PEC
O
orçamento federal será atingi- das despesas discricionárias. Isso quer
do em cheio por um meteoro dizer que a conta de precatórios a ser
na forma de precatórios, e um paga pelo Governo equivale a um novo
míssil precisa destruí-lo, antes orçamento discricionário. Para quem
do vultoso impacto fiscal. Foi dessa forma não sabe, despesas discricionárias são
que o Ministério da Economia anunciou aquelas que podem ser cortadas no cur-
um passivo de R$ 90 bilhões em 2022, to prazo, diferentemente daquelas ditas
valor bem superior aos R$ 55 bilhões do obrigatórias (Previdência Social e salários
ano corrente. Ato contínuo, o Gover- de funcionários públicos, por exemplo).
no apresentou solução heterodoxa para E precatórios nada mais são do que títu-
destruir o tal meteoro: uma Proposta de los emitidos pelo Governo para atestar a
Emenda Constitucional – a PEC 23 – para obrigação de se pagar uma quantia de
parcelar pagamentos de precatórios aci- valores a pessoas, ou empresas, que ga-
ma de determinado valor, criando moda- nharam na justiça o direito de receber do
lidade de ajuste fiscal do tipo “devo, não poder público um quinhão de recursos: é
nego, pago quando puder”. Análise me- uma dívida do Estado.
nos ligeira das entranhas da proposta re- Sabe-se também que, desde 2016, vi-
vela negligências e boa dose de irrespon- gora na Administração Pública Federal re-
sabilidade fiscal por parte das lideranças gra fiscal que impede o crescimento das
do Poder executivo, que parecem apostar despesas públicas a taxas superiores à da
na legalização de pedaladas fiscais para inflação. Tal regra é conhecida como Teto
enfrentar as eleições no ano que vem. de Gastos. Matematicamente, é fácil de-
Para começar, é importante reconhecer monstrar que o Governo não consegui-
o tamanho do meteoro anunciado pela rá quitar as dívidas com precatórios sem
equipe econômica. O Poder Executivo comprometer o funcionamento da má-
conta com R$ 95 bilhões para manter quina pública. Isso porque não há espaço
programas governamentais – as chama- fiscal para acomodar tantas despesas no
“A ESTRATÉGIA É
mesmo orçamento.
Diante desse dilema – pagar precató-
rios ou manter em operação a máquina
pública -, o Governo encaminhou para o
Congresso a PEC 23 com objetivo de par-
celar o pagamento dos precatórios devi-
CLARA: POSTERGAR
dos. A estratégia é clara: postergar o pa-
gamento de despesas obrigatórias para
não efetuar cortes no orçamento discri-
cionário em magnitudes que paralisariam
a máquina pública. Pode-se dizer que tal O PAGAMENTO
DE DESPESAS
medida envolve negligências e irrespon-
sabilidade fiscal.
Negligência porque não fica claro,
nessa barafunda, o motivo pelo qual os
relatórios oficiais do Governo não iden-
tificaram no radar a chegada deste me-
OBRIGATÓRIAS,
teoro na forma de precatórios. O anexo
de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orça- PARA NÃO
EFETUAR CORTES
mentárias (LDO), por exemplo, não traz
análises prévias sobre o crescimento side-
ral das despesas com precatórios e seus
impactos no financiamento das políticas
públicas. É impensável imaginar esse
tipo de negligência em uma empresa
NO ORÇAMENTO
privada de grande porte; porém, é ain-
da mais espantoso o Ministro da Econo- DISCRICIONÁRIO EM
MAGNITUDES QUE
mia - acostumado a lidar com riscos no
mercado financeiro - não ter farejado o
aerólito fiscal a tempo. Ou se o fez, não
deu a devida importância à transparência
de eventos que podem afetar o equilíbrio
das contas públicas.
PARALISARIAM A
A essa negligência soma-se também
MÁQUINA PÚBLICA
“
boa dose de irresponsabilidade fiscal. O
parcelamento de precatórios se resume
a uma medida que esconde a situação
real das contas públicas, na medida em
que posterga o pagamento de despesas
obrigatórias. Esse tipo de prática lembra dade de PEC. No entanto, a participação
as pedaladas fiscais praticadas nas elei- do Congresso Nacional será fundamental
ções de 2014: atos ilegais que serviram para trazer segurança jurídica. Uma so-
para gerar resultados fiscais fictícios. Se lução poderia ser desenhada no sentido
aprovada a PEC 23, do jeito que foi apre- de excluir do Teto de Gastos o excesso de
sentada pelo Governo, manobras fiscais gastos com precatórios, fortalecendo-se
estariam sendo constitucionalizadas, si- a governança em torno da gestão fiscal e
nalizando que o Governo Federal não sentenças judiciais. O parcelamento deve
honra as dívidas com precatórios, que ser evitado a todo custo, pois não se trata
nada mais são do que obrigações finan- de um meteoro no país das pedaladas.
ceiras decorrentes de sentenças judiciais.
De todo modo, o Poder Judiciário vem
sinalizando caminhos alternativos ao pro- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
por teto para pagamento de precatórios
- medida similar à proposta do Poder LEONARDO RIBEIRO
Executivo, mas que dispensaria a necessi-
Do prenúncio à nova
tragédia: caso Cinemateca
confirma descaso com cultura
Incêndio mostra, na prática, reflexos da postura de Bolsonaro com o setor
no país
32
SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO
32 2021
CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM ESPECIAL
Dois anos e dez meses separaram o pre- dos ao cinema. O fogo fez parte do teto do
núncio do risco de mais descaso com a galpão desabar, e o prédio foi interditado.
cultura no Brasil e a tragédia do recente No entanto, a sede da Cinemateca esta-
incêndio que destruiu parte da Cinemate- va fechada desde agosto de 2020, quan-
ca Brasileira, cujos prejuízos, ainda imensu- do o secretário especial da Cultura, Mário
ráveis, são alvo de novas investigações do Frias, tomou as chaves do local com escolta
Ministério Público Federal (MPF), em São
Paulo. Instituições e representantes do se-
Desmonte da cultura ficou “mais visível, mais latente” durante o governo Bolsonaro, avalia
Bartolomeu Rodrigues
A construção de um personagem
André Amado analisa, em seu artigo, como se constrói personagens fortes, inspiradores e
impactantes, capazes de levar os leitores a viverem histórias inesquecíveis
Foto: Reprodução/Wilhelm Marstrand (1810-1873)
Foto: Reprodução
Para Milan Kundera, Dom Quixote “é quase impensável como ser vivo e, no entanto, em nossa memória,
que personagem é mais vivo do que ele?”
P “
eguei ao acaso I’ll Walk Alone, de
Mary Higgins Clark, para ler. Ato
sem pensar. A autora já publicou
mais de 30 títulos, muitos dos
quais frequentadores de listas de bes-
t-sellers, duas razões que, em geral, le-
RAY BRADBURY
vam-me a descartar a escolha. Acontece
que, num primeiro exame, logo nos agra- (1920-2012): “MEUS
decimentos, deparei-me com a seguinte
declaração:
Cheguei ao final, o que quer
PERSONAGENS ESCREVEM
dizer que a história foi contada, a jor-
nada, concluída, e as pessoas, que no A HISTÓRIA PARA MIM.
ELES ME DIZEM O QUE
ano passado não passavam de produto
de minha imaginação, viveram a vida
que escolhi para elas, ou, melhor di-
zendo, que elas escolheram para elas
mesmas. QUEREM, E EU LHES DIGO
Clark acabava de desmontar meus pre-
PARA IR EM FRENTE
“
conceitos contra livros de produção em mas-
sa, preconceitos que, de resto, não faziam o
menor sentido para quem, como eu, era ad-
mirador habitual de Michael Connelly e John
Foto:Reprodução/Eugène Guiraud/Louvre
de sucesso. Enfim, na beirada de uma estante,
não são raras demonstrações de incoerência.
Fascinou-me que, em uma frase, Clark
expusesse um dos dilemas centrais dos ro-
mancistas: alimentar a autonomia dos per-
sonagens de suas histórias, ou, ao contrário,
controlar, até mesmo, a respiração deles. Em
uma palavra, confessaria Ray Bradbury (1920-
2012): “Meus personagens escrevem a histó-
ria para mim. Eles me dizem o que querem,
e eu lhes digo para ir em frente. Acompanho
seus movimentos, datilografando o texto à
medida que eles correm ao encontro do des-
tino”. Já Vladimir Nabokov (1899-1977) de-
cretaria: “Se eu quiser que meus personagens
atravessem uma rua, eles atravessam e pon-
to!”
Por sorte, a riqueza dessa discussão re-
jeita posições extremadas. Gustave Flaubert
(1821-1880), a quem se atribui um dos pilares
da literatura ocidental, diria: “O escritor tem
de atuar como Deus: está em todas as par-
tes, mas nunca é visível”. Ernest Hemingway
(1899-1961), outro grande nome da galeria
de escritores, centraria o debate: “Ao escrever
uma novela, o escritor deve criar um ser vivo,
não pessoas com personagens”. Era a pista de
que precisava Milan Kundera (1929-...) para
afirmar: “O personagem não é a simulação de
um ser vivo. É um ser imaginário… Dom Qui-
xote é quase impensável como ser vivo e, no
entanto, em nossa memória, que personagem
Gustave Flaubert: “O escritor tem de atuar como Deus. Está em
é mais vivo do que ele?”
todas as partes, mas nunca é visível”
Duas outras referências me enchem as
“
medidas. A primeira, atribuída a Michelange-
lo: Não faço esculturas, apenas retiro o exces-
so de pedras. A outra, de um escritor japonês,
“
tela branca é o que haverá de emergir. Olhan-
do mais atentamente, descubro várias possi- ERNEST HEMINGWAY
bilidades, que se cristalizam perfeitamente
em como devo prosseguir. Este é de fato meu
momento de prazer. O momento em que a
existência e não-existência se reconciliam”. SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
Quem sabe não seja esta a melhor ma-
neira de se construir um personagem: recon- ANDRÉ AMADO
ciliar o que queremos que ele seja e o que ele
mesmo pretende ser?
Milhares de cubanos participaram dos protestos contra o governo de Miguel Diaz-Canel, marcado pelas crises
do novo coronavírus e econômica sem precedentes
O
livro reúne fragmentos da vida
e obra de trinta e três mulheres
que foram silenciadas, de uma
forma ou de outra, pelo siste-
ma patriarcal. Esse silenciamento deu-se e,
infelizmente, ainda se dá de modo físico,
emocional e psicológico. Os paradigmas da
“DECLARAÇÕES MARCAM A EXISTÊNCIA
DE UM REGIME ANCILOSADO, REFÉM
DE SEUS PRÓPRIOS PRESSUPOSTOS
inferioridade feminina estão alinhavados à
incapacidade e à fragilidade da mulher, são POLÍTICOS, MAS QUE AINDA É CAPAZ
DE DESPERTAR APOIOS APAIXONADOS
modelos pré-estabelecidos que brotaram de
raízes muito profundas, um sentimento de
“
pecado e certo aspecto profano. Há um peso
extra na existência da mulher, cujos degraus
“autorizados” pelo masculino para uma re-
Foto: Cubadebate
Ilustração retrata Maria Firmina dos Reis,
primeira mulher negra a escrever um
romance antiescravagista, muito antes do
Movimento Abolicionista
“
assim como o homem, para ser o que desejar.
A ausência dos feitos e das produções femini-
nas, nas páginas oficiais da história, anula seu
“
Aspásia de Mileto, pensadora independente
que viveu na Grécia Antiga e que foi o gran-
de amor do estadista Péricles. Passa pelo Ja-
pão medieval e divulga sobre a maior obra do
A RETÓRICA HEROICA
ano 1000: Monogatari Genji, da romancista
Sikibu Murasaki, que conta a vida de Hikaru
DA REVOLUÇÃO
Genji, filho do imperador. Visita Christine de
Pizan, na França, escritora que viveu de seu
CONVIVEU COM AS
talento, não sem dor nem luta e, devido à
violência contra a mulher, idealizou um lugar
DIFICULDADES INTERNAS
de paz, admiração e respeito ao feminino,
um lugar sem a misoginia da corte do Rei
E AS NECESSIDADES
Carlos V, do século XV, e assim, nasce La Cité
de Dames, em 1405.
DE POSICIONAMENTO
O livro narra, de forma crítica, a dor fe-
minina devido à exclusão, à violência, à ine-
POLÍTICO NO INTRINCADO
xistência, à subserviência e ao silenciamento,
exemplificando essa condição com a vida
“
Zetkin, Simone de Beauvoir, Karen Blixen, as
irmãs Brontë, Jane Austen, Hilda Hilst, Maria
Quitéria, Svetlana Aleksiévitch, Emily Dickin-
son, Florbela Espanca, Agnès Varda, Edith
Wharton, Clarice Lispector, Virgínia Woolf,
Cecília Meireles, Mary Shelley, Chimamanda
Ngozi Adichie e muitas outras. A obra dia-
conhecimento. loga, ainda, com a poeta indiana Rupi Kaur;
E, no anonimato, viveu Maria Firmina dos com Lilith e Eva; com a imperatriz Maria Le-
Reis, professora e escritora maranhense, que opoldina e Sissi, a rainha da Áustria; com a
se sustentou com o suor de seu trabalho escritora Alice Walker; a pintora Artemisia
e ainda fundou a primeira Escola Mista de Gentileschi; Lady Diana e Rosa Luxemburgo.
sua cidade, além de ter sido silenciada pelo Trata-se de uma bela homenagem a mu-
sistema, pois é uma ilustre desconhecida - lheres que conseguiram soltar as amarras,
teve sua etnia modificada, porque, em seu que não aceitaram um destino marcado a
livro Úrsula, de 1859, (também fora do circui- ferro e fogo, à custa, em alguns casos, de
to editorial), a imagem estampada na capa suas próprias vidas.
é de uma mulher branca. Ela foi a primeira
mulher negra a escrever um romance anties-
cravagista, muito antes do Movimento Aboli-
cionista que mobilizou a sociedade brasileira, [1] AGGIO, Alberto. A teoria pura da revo-
por volta de 1870, alcançando a Abolição da lução. SP: O Estado da Arte, 2021. Disponí-
Escravatura somente em 1880, ou seja, 11 vel em: https://estadodaarte.estadao.com.br/
anos antes da luta a favor dos escravos, e 21 teoria-pura-revolucao-aggio-hd/
anos antes da Abolição - propriamente dita. [2] MISKULIN, Silvia Cezar. Os Intelectu-
Ela foi pioneira em tudo. Mas, afinal, quem ais Cubanos a Política Cultural da Revolução
conhece essa escritora prógona? Quem (1961-1973). SP: Alameda, 2009.
leu Úrsula? [3] HILB, Claudia. Silêncio Cuba: a esquer-
Quantos gritos as mulheres deram na li- da democrática diante do regime da Revolu-
nha da história e, por isso, foram emudeci- ção Cubana. SP: Paz e Terra, 2010.
das? Ao mesmo tempo em que a jornalista
as ressuscita, uma a uma, denuncia a misogi-
nia contra elas, desde a extinção do sistema SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
matriarcal. A Incrível Lenda da Inferioridade
tece as histórias dessas mulheres maravilho- MARCUS VINÍCIUS F. DA SILVA
sas, em ordem cronológica, a começar por
Leni Riefenstahl (D) em foto com Hitler: função política dos filmes de
propaganda do partido nazista e, também, de Olympia é inseparável da
estética específica e inovadora, de Riefenstahl
A
poesia e a política são demais realizado do “alto” de seus vinte anos, até
para um só homem. Com essa o sofisticado e desconstruído A Idade da Ter-
frase, Paulo Martins, protagonis- ra (1980), seu último filme, a obra do cineas-
ta de Terra em Transe, espécie de ta foi evoluindo em progressão geométrica.
alter-ego de Glauber Rocha, jogava na cara Ou seria poética? Partiu do experimentalis-
dos brasileiros os sentimentos de exaustão e mo puro, influenciado pelos neoconcretos
decepção que agonizavam sua alma. O ano com os quais convivia quando de passagem
era 1967 e o país ainda aprendia a conviver por aquela Montmartre tupiniquim que era
com a ditadura militar, mal sabendo que o a Zona Sul do Rio de Janeiro na virada dos
pior estava por vir… anos 60.
Glauber Rocha, baiano de Vitória da Con- Passou pelo neorrealismo com seu primeiro
quista, entrou para a História como um dos longa, Barravento (1962). Bebeu da fonte
maiores e mais polêmicos cineastas brasilei- do romance realista brasileiro dos anos 30,
ros. Com “uma câmera na mão e uma ideia mesclando-o com a cultura popular brasilei-
na cabeça”[1], ele fez poesia e política ao ra em seu fantástico (meu preferido) Deus e
longo dos 42 anos que duraram sua cur- o Diabo na Terra do Sol (1964). Tudo isso
ta existência. Desde seu primeiríssimo Pá- sem nunca deixar de lado as lições de Eisens-
tio (1959), curta-metragem experimental tein, de quem era fã confesso. O resultado
“
dessa antropofagia oswaldiana foi a criação
de um Cinema Novo, original e revolucioná-
rio, movimento que alçou a cinematografia
brasileira aos píncaros da glória, revelando
que um país de terceiro mundo também era
HÁ 40 ANOS, NAQUELE 22
capaz de fazer cinema de qualidade, mes-
mo com os parcos recursos disponíveis. De
DE AGOSTO DE 1981, UM
repente, nossos filmes passaram a participar
e a concorrer a prêmios nos principais festi-
DOS MAIORES CINEASTAS
vais europeus e latino-americanos, sendo, ao BRASILEIRO PARTIU,
DEIXANDO ÓRFÃOS SEUS
mesmo tempo, legitimados pela intelligent-
sia brasileira.
Apesar de peça fundamental dessa con-
quista, Glauber nunca foi uma unanimida- FILHOS DE SANGUE E
de, tendo sido criticado por muitos em fun-
ção de sua personalidade autêntica, mística
TAMBÉM TODA UMA
e aparentemente contraditória. Até hoje, há GERAÇÃO DE CINÉFILOS E
“
os que ainda discutam e rechacem suas ati-
tudes. De fato, o cineasta criou alvoroços,
como no curta Di-Glaluber (1977), quando
CINEASTAS
adentrou o enterro de Di Cavalcanti, filman-
do-o no caixão sem autorização da família.
Gerou também grandes comoções, como na e também toda uma geração de cinéfilos e
estreia de Deus e o Diabo, dias antes do gol- cineastas que sabia enxergar genialidade e
pe militar, deixando a plateia estarrecida pela brilhantismo por detrás daquelas cabeleiras,
originalidade, ousadia e beleza de um filme obras e frases revoltas. Uma morte prema-
que trazia a cultura popular nordestina para tura que privou nosso país e nossa gente
a telona. Uma alegoria que partia da histó- de muitas reflexões, manifestos e protes-
ria real do cangaço para lançar uma profecia tos que hoje se fazem tão importantes. Um
revolucionária: “o sertão vai virar mar e o brasileiro orgulhoso de sua terra, ateu cria-
mar vai virar sertão”. Comprou ainda brigas do por uma mãe protestante e um pai cató-
homéricas, como quando, com seu Terra em lico, admirador do candomblé e da estética
Transe, desagradou a gregos e troianos, ou barroca. Um “profeta alado”, como bem o
melhor, a cariocas, paulistas e baianos, sen- definiu Paulo Emílio Sales Gomes. Um cine-
do condenado pela direita e pela esquerda, asta-pensador que, sem ter o corpo fechado
e até por alguns de seus companheiros de de Lampião, morreu por excesso de política
luta pela descolonização do cinema brasilei- e poesia. Ah,Paulo-Glauber-Rocha-Martins,
ro. Camaradas que ficaram ainda mais re- que falta você faz!
voltados, quando o cineasta decidiu elogiar Em tempos olímpicos, a história de Leni
Golbery do Couto e Silva, um dos mentores Riefenstahl me parece bastante apropriada
do golpe de 64. Ou então quando apertou a para refletirmos sobre, até que ponto, a ex-
mão de Figueiredo em Sintra. celência da arte (ou do esporte) pode se so-
Glauber – ou Gabiru para os bem chegados brepor aos direitos humanos fundamentais.
–, definitivamente não tinha a pretensão de Seria possível (e justo) separar o artista (ou o
agradar maiorias, nem minorias. Era coeren- atleta) do ser humano? A obra, da ideologia
te apenas com suas próprias ideias e com de quem o faz? A estética, da ética?
suas tradições e não-tradições. No começo
dos anos 80, desgostoso com o rumo que [1] Frase criada a partir de uma conversa com
tomava seu país e praticamente abandona- Paulo Cezar Saraceni, que lhe explicava como se
do por seus antigos companheiros, o cineas- fazia cinema moderno.
ta, já autoexilado do Brasil, foi buscar abrigo
um pouco mais longe, em outro plano. Há SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
40 anos, naquele 22 de agosto de 1981,
um dos maiores cineastas brasileiro par- LILIA LUSTOSA
tiu, deixando órfãos seus filhos de sangue
Giocondo - O Ilustre Clandestino” ajuda a resgatar uma personalidade política de grande importância
para a história da luta pela democracia no Brasil
J
á está disponível no NOW o documen- Segundo o diretor Vladimir Carvalho, o do-
tário “Giocondo - O Ilustre Clandes- cumentário levou dois anos para ser realiza-
tino”, do veterano cineasta Vladimir do: “assumi a produção desse filme e fiquei
Carvalho, um dos mais representati- dois anos ralando. É um perfil em segunda-
vos documentaristas brasileiros. Narra a vida -mão, porque é visto pelos raros contempo-
de Giocondo Dias, histórico militante do Par- râneos do Giocondo Dias”, disse o cineasta,
tido Comunista Brasileiro (PCB). em entrevista para a “Agência Brasília”, em
O filme mostra a participação de Giocondo 2019, quando o longa foi exibido no encer-
em momentos decisivos da política dos co- ramento do Festival de Brasília.
munistas: o levante militar de 1935, no Rio De fato, o filme se vale muito do depoi-
Grande do Norte, do qual foi o principal líder; mento de quem conviveu com Giocondo. E
o breve período da legalidade pós-Segunda isso tem uma razão de ser. Cuidadoso, sem-
Guerra (1945/47), quando o PCB elegeu 14 pre atuando com extrema discrição, é natural
deputados federais e 1 senador (Luiz Carlos que não exista quase nada de imagens de ar-
Prestes); a luta contra a ditadura e a política quivos dos tempos em que Giocondo atuava
de frente democrática contra o regime militar na clandestinidade.
fascista, em divergência com as forças de es- É por meio de um mosaico de entrevistas
querda que defendiam a resistência armada; com ex-companheiros de organização que
a campanha pela legalidade do PCB, nos anos emerge a figura de um dedicado militante
de 1980. comunista, rígido nas normas de segurança,
A trajetória de Giocondo se confunde com mas doce e gentil no convívio pessoal.
a própria história do velho Partidão. Cabo Em um emocionado depoimento, sua filha,
Dias, como era conhecido por sua patente Ana Maria Dias, fala dos encontros esporádi-
militar, viveu a maior parte da existência na cos com o pai, sempre cercados de extrema
clandestinidade, a serviço da causa em que cautela para não comprometer a segurança.
acreditava. Não é para qualquer um. É preci- Uma situação difícil para os dois. Não é fácil
so a fibra dos fortes e a abnegação dos con- abdicar do convívio familiar.
victos para suportar, durante tanto tempo, as Dois momentos se destacam no documen-
privações de uma vida clandestina. tário: o primeiro, é o perfil que Jorge Ama-
www.fundacaoastrojildo.com.br