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SUMÁRIO

Foto: Fernando Lemos/ Agencia O Globo


PÁG. 44

CHARGE
Democrática
P O L I T I C A

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado


PÁG. 5

Edição nº 35 - Setembro 2021


ARTIGO
Relações entre civis
e militares, uma
reflexão
Otávio do Rêgo Barros
PÁG. 6

"Que país é esse?" Entrevista Especial


Alberto Aggio Jairo Nicolau
PÁG. 9 PÁG. 16

O Congresso Nacional
sob escrutínio ARTIGO
Antonio Carlos Medeiros O que se pode
EDITORIAL PÁG. 12 esperar de uma CPI
O dia seguinte Arlindo Fernando de Oliveira
PÁG. 4 PÁG. 14
SUMÁRIO

REPORTAGEM ESPECIAL
Foto: Tania Rego/ Agencia Brasil

Do prenúncio à nova tragédia: caso Cinemateca confirma descaso com cultura


Cleomar Almeida
PÁG. 32

ARTIGO
A construção de um
Já é 2022 na internet personagem PÁG. 37
Sergio Denicoli André Amado
PÁG. 25 PÁG. 37

Retomada da economia A poética política de


na tempestade perfeita Glauber
Valdir Oliveira Lilia Lustosa
PÁG. 28 PÁG. 42

Um meteoro no país Giocondo, um comunista


das pedaladas abnegado e gentil
Henrique Brandão
Leonardo Ribeiro
PÁG. 44
PÁG. 30

O que resta ainda por


dizer sobre Cuba?
Marcus Vinícius F. da Silva Oliveira
PÁG. 39
EXPEDIENTE Editorial
Diretor O dia seguinte
André Amado
Alimentada por declarações sucessivas do Presidente da República
Editor e alguns de seus fiéis seguidores, a expectativa do que acontecerá
Paulo Jacinto
em 7 de setembro domina o debate político. Afinal, cidadãos são
Secretário de Redação/Reportagem convocados para protagonizar um momento de virada, capaz de
Cleomar Almeida conduzir os Poderes Legislativo e Judiciário a seus “devidos” lugares.
Suporte/tecnologia Alguns dos chamados difundidos nas redes sociais apelam, inclusive,
Washington Reis para a ruptura institucional, o escape do quadrado da Constituição,
se as reivindicações dos manifestantes não forem consideradas. 
Logística
Thaise Castro A radicalização verbal das convocatórias governistas deve ser en-
tendida como uma tentativa desesperada de reverter um cenário
Departamento Financeiro
completamente desfavorável. A crise econômica e os trabalhos da
Gustavo Loiola
Comissão Parlamentar de Inquérito atuam simultaneamente para
Conselho editorial destruir a aprovação do governo junto ao eleitorado. A progressão
Caetano Araújo, Francisco Almeida e Luiz Sérgio da crise e a publicidade das responsabilidades dos governantes sobre
Henriques ela fortalecem a hipótese de abreviação do mandato presidencial. O
Revisão, Projeto Gráfico e Poder Judiciário já montou seu alçapão, cinco inquéritos em curso
Diagramação que podem concluir pela perda de mandato ou pela inelegibilidade
G3 Comunicação do primeiro mandatário. No Poder Legislativo, prevalece, até agora,
_________________________ a opção pela espera, a aposta nas eleições como via preferencial de
substituição do governo. 
As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista
Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos Na verdade, desde os tempos dos trezentos que se revelaram
autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista. trinta, as manifestações governistas têm demonstrado extrema di-
_________________________
ficuldade em trazer pessoas para as ruas. O esforço de mobilização,
contudo, parece agora mais robusto. Religiosos fundamentalistas,
Colaboradores agricultores imediatistas, adoradores das armas de fogo, autoritá-
rios de todos os quadrantes dão mostras de estar empenhados em
Cultura, C&T
André Amado, Ciro Marcondes, Dora Kaufman, Eneida Queiroz,
ocupar as ruas no dia sete, principalmente em São Paulo e Brasília. 
Gledson Vinicius, Henrique Brandão, Ivan Acciolly, Ivan Alves,
João Batista de Andrade, Jorio Dauster, José Carlos Monteiro,
Avaliar previamente o grau de sucesso que esse movimento pode
Lilia Lustosa, Marcelo Aguiar, Marcia Gomes, Martin C. Feijó, Rui alcançar é tarefa difícil. No entanto, os indicadores do êxito, na
Fabiano, Sergio Denicoli, Sergio Vellozo Lucas
Economia
perspectiva dos organizadores são evidentes. Qualquer fatia a mais
André Eduardo Fernandes & André Borges, Benito Salomão, César
Vasquez, Elena Landau, Evandro Millet, Guilherme Mendes, Jorge
de manifestantes nas ruas será usada como argumento contrário à
Caldeira, Jorge Jatobá, José Luiz Oreiro, Leandro Machado, Luiz queda da popularidade do governo junto ao eleitorado. O número,
Paulo Velloso Lucas, Maria Amélia Enriques, Nelson Tavares, Paulo
Ferracioli, Pedro Nery, Sergio Buarque, Sergio Vale o volume, o impacto visual das imagens que ocuparão a mídia, por-
Justiça tanto, importam.  
Arlindo Fernandes de Oliveira, Cláudio Oliveira, Eros Grau, Gilvan
Cavalcanti de Melo, João Trindade, Juliana Magalhães de Oliveira,
Manoel Martins Júnior, Marcus Vinicius F. da Silva Oliveira, Mario
Importa também, a julgar pelo tom agressivo de algumas das con-
Martins Júnior, Murilo Gaspardo vocatórias, o grau de desordem que a manifestação será capaz de
Política
Alba Zaluar, Alberto Aggio, Ana Maria Miranda, Andrei Meireles,
provocar. A relação é direta: quanto maior o tumulto, maior a fragi-
Antonio Augusto de Queiroz, Caetano Araujo, Ciro Leichsenring, lidade de governadores e dos Poderes alvo da ira dos manifestantes.
Cleomar Almeida, Creomar Lima Carvalho de Souza, Cristovam
Buarque, Davi Emerich, Eduarda La Roque, Elimar Pinheiro Mais combustível, portanto, para as demandas de ordem, pela via
Nascimento, Henrique G. Herkenhoff, Hubert Alquéres & Tibério
Canuto, João Cezar de Castro Rocha
do fortalecimento dos poderes presidenciais. 
José Antonio Segato, Luiz Sergio Henriques, Marco Aurelio
Nogueira, Marco Marrafon, Marcos Sorrilha Pinheiro, Marcus A aposta é de alto risco, até porque deixa à vista de todos o custo
Vinicius Furtado, Mauro Oddo Nogueira, Murilo Gaspardo
Paulo Baía, Paulo Fábio Dantas, Raul de Almeida, Raul Jungmann,
da permanência do Presidente no cargo até o fim de seu mandato.
Ricardo Tavares, Roberto Freire, Rogério Baptistini Mendes, Vinicius Cabe às forças do campo democrático persistir na defesa das insti-
Müller
Política Externa/ Relações Internacionais
tuições, no trabalho de convergência, na construção de um acordo
Davisson Belém Lopes, Fernando E. Norman, Fernando Lyra amplo em torno da retirada do Presidente pelos caminhos previstos
Gianlucco Fiocco, Gilberto Saboia, Guilherme Casarões
Herman Chaimovitch, Hussein Kalout, Joan Del Alcázar na Constituição, na garantia das eleições de 2022, bem como no
José Augusto Lindgren Alves, José Vicente Pimentel, Leandro
Cosentino, Luiz Augusto Castro Neves, Ronaldo Sardenberg, respeito a seus resultados.
Rubens Barbosa, Rubens Ricupero
Saúde, sócio-política, meio ambiente
Adriana Novaes, Alexandre Strapasson, Almira Rodrigues, Anivaldo
Miranda, Babalaô Ivanir dos Santos, Bazileu Margarido, Gloria
Alvarez, Guilherme Accioly, Joaquim José Soares Neto, Lígia Bahia
Luiz Geraldo Piquet Carneiro, Luiz Santini & José Gomes
Temporão, Marco Santilli, Marina Silva, Pedro Scuro Neto,
Randolphe Rodrigues, Rodrigo Prando, Zulu Araújo
Revista Política Democrática
J. CAESAR

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 5


RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES, UMA REFLEXÃO  - OTÁVIO DO RÊGO BARROS
Foto: AP

Desfile de blindados na Esplanada: com ameaça de golpe e uso da imagem das Forças Armadas, Bolsonaro tenta retirar o
foco dos principais problemas do país

Relações entre civis e militares, uma reflexão


Cabe à sociedade a responsabilidade de garantir o papel das Forças Armadas,
fortalecendo-as como instrumento independente do Estado

V ivemos tempos sombrios com a falta


de ordenamento de nossa realidade.
Uma discussão sobre o papel das For-
ças Armadas se instalou para além dos muros
dos quartéis. 

“PARA ABOLIR A GUERRA
HÁ QUE REMOVER SUAS
CAUSAS QUE RESIDEM NA
A atuação imoderada do chefe do
Poder Executivo, a incentivar o envolvimento

IMPERFEIÇÃO DA NATUREZA
de militares nas ações políticas de governo,
potencializou a questão. Somou-se a esse
inconveniente, posturas contestáveis dos ou-
tros Poderes da República. O Legislativo, com HUMANA”
tendência mesquinha de enxergar os inte-
resses paroquiais, e o Judiciário, em suposta (LIDDELL HART)


cruzada moralizadora, que ultrapassa o senso
cotidiano de equidade. Formou-se um torve-
linho de opiniões divergentes, desamparadas

6 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


OTÁVIO DO RÊGO BARROS - RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES, UMA REFLEXÃO
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Marcos Correa/PR

No Dia do Soldado, o general Paulo Sérgio Nogueira, Comandante do Exército, discursou que militares
devem inspirar paz, liberdade e democracia

“ A PREDOMINÂNCIA
EGOÍSTA DE QUALQUER
de conhecimento qualificado, que anuvia
grupos da sociedade.
Tomando por base o trabalho do
professor Samuel Huntington,  O Soldado e
o Estado (BIBLIEX, 2016), abordarei aspectos
das relações entre civis e militares, contextu-
DOS FATORES FISSURA A alizados para o Brasil contemporâneo. Para
fins de enquadramento, o livro foi publicado
ESTRUTURA, OFENDENDO em 1957, período alcunhado de Guerra Fria,
no qual a incômoda ascensão da União Sovi-
A ESTABILIDADE ética se projetava sobre a águia americana. 
A incompreensão da sociedade,
DA NAÇÃO. O QUE, diante da obrigação do profissional das ar-
mas em ser pragmático, perenizou-se com o
CONVENHAMOS, NÃO correr dos tempos modernos. O militar é o
mais pacifista dos integrantes de uma comu-
SE ESPERA EM nidade. Suas experiências o fazem conhecer
a desgraça final dos conflitos humanos e os
UM PAÍS MADURO efeitos deletérios para a sociedade. Justifica-
-se seu pessimismo.  
DEMOCRATICAMENTE


Ele tem o dever de se posicionar publica-
mente sobre fatos que afetem a missão da
organização e o desempenho profissional. O
verdadeiro comandante, vestido da couraça

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 7


RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES, UMA REFLEXÃO  - OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS

envelhecida de homem das armas, jamais


permitirá que seu julgamento seja deformado
por conveniências políticas. 
A responsabilidade do militar peran-
te o Estado é de natureza tríplice. Exerce uma
função representativa, uma função consultiva
e uma função executiva. O ordenamento des-
sas relações é capital para a política de defesa
do país e procura consolidar um sistema de
pesos e contrapesos entre o civil e o militar,
sem sacrifício de valores sociais. Nos pratos
da balança se equilibram, em posições opos-
tas, o lícito interesse corporativo do militar e Questão dos militares na política foi potencializada pelo
o necessário controle pela sociedade em am- presidente da República, critica Rêgo Barros
biente democrático.  
Mais recentemente, o artigo 142
da CF/88, que elenca as missões “pétreas”
nas Forças Armadas, vem sofrendo ataques. dos fatores fissura a estrutura, ofendendo a
“Transitou em julgado, não cabe recursos”, estabilidade da nação. O que, convenhamos,
embora encontremos grupos defensores de não se espera em um país democraticamente
uma revisão sob um entendimento difuso de maduro.
um papel de poder moderador das Forças Ar- É crucial fortalecer a segurança das
madas, defendido em ambientes inelásticos, instituições sociais, econômicas e políticas
personalistas ou eivados de interesses políti- contra ameaças externas (das quais a médio
cos. Admito a necessidade de se reflexionar a prazo estamos libertos) e contenciosos inter-
missão constitucional das Forças, incorporan- nos (ardentes nos últimos tempos). Esses, a
do-se dinamismo modernizador ao conceito, meu ver, sem soluções a curto prazo.  
que aclare possíveis imperfeições no texto. Deixo-lhes uma reflexão: qual a na-
Não obstante, não se promovam modifica- tureza do corpo de militares que a sociedade
ções por contenciosos de momento.  deseja e pretende arcar? Enxuto e profissional
Voltemos à balança. Na disputa da- ou abrangente e social? Envolvido em política
queles interesses está o nó górdio das rela- ou abrigado dessas tentações?  
ções entre civis e militares. O grau em que Os cenários de guerra não são mais
eles entram em conflito depende das exi- westfaliano, quando se subordinavam à con-
gências de segurança externa e interna, e da frontação entre estados-nação. Agora, viceja
natureza e força dos valores incrustados na a “guerra de quarta geração”, sem fronteiras,
sociedade.  inimigos sem rosto e objetivos não palpáveis.
Entre nós,  Terra Brasilis, a disputa se amplia O centro de gravidade é a vontade de lutar, e
pelo afastamento da sociedade ao tema, qua- a opinião pública, genuína ou forjada. 
se uma irresponsabilidade. Poderíamos justi- Por tudo isso, cabe à sociedade a
ficar o desatino pelo baixo nível educacional intransferível responsabilidade de avaliar ade-
que se reflete na incompreensão dos assun- quações que possam ser necessárias ao papel
tos que envolvem as Forças Armadas.   das Forças Armadas. Protegê-las contra corsá-
Quem deveria assumir o papel de rios em busca de credibilidade. Fortalecê-las
ator principal da peça defesa nacional? O como instrumento independente do Estado,
povo brasileiro consciente! Mas, inconscien- peça importante da estabilidade interna e da
temente, ele transfere a responsabilidade de dissuasão externa, tão somente em nome do
conduzir a cena aos próprios militares.  povo brasileiro. 
A simbiose civil militar só se concreti- Paz e bem! 
za por meio de uma sólida obra de arte, que
os torne interdependentes. Os batentes da
ponte são a posição institucional dos milita- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
res, sua influência na sociedade, bem como
a natureza da ideologia dos grupos nomina- OTÁVIO S. DO RÊGO BARROS
dos. A predominância egoísta de qualquer

8 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


ALBERTO AGGIO- QUE PAÍS É ESSE?

"QUE PAÍS É ESSE?"


O Brasil sob o governo de Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa
ser decifrada, avalia o historiador Alberto Aggio. O país, seguramente, não é para
principiantes

Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real


Protesto contra Bolsonaro: Não será possível superar o Brasil de Bolsonaro apenas com o voto, mas será
um passo necessário e imprescindível, avalia Aggio

O
Brasil não é para principiantes. tória. Uma tradição que ensejou embates
Quantas vezes já se leu ou ouviu inclinados tanto à conciliação quanto ao
essa frase, atribuída a Antonio rechaço a ela. Um paradoxo nem sempre
Carlos Jobim? Frequentemente, percebido nas disputas políticas e cultu-
ela é mencionada para atestar a dificulda- rais que se desenrolam no presente. Pen-
de de se compreender o país. Está presen- sar o Brasil nunca foi apenas um exercício
te em quase todos os exercícios de revisão acadêmico ou intelectual. Trata-se de um
das principais interpretações sobre a for- debate que alimenta, o tempo todo, pro-
mação histórica brasileira. Comunidades jetos que visam ao futuro do país.
de cientistas sociais se dedicam, recor- O Brasil, seguramente, não é para
rentemente, a pensar e repensar os intér- principiantes. Contudo, não seria absurdo
pretes do país, em encontros científicos, pensar, ultrapassando o senso comum,
seminários e antologias de ensaios, sem que tal asseveração poderia ser aplicada
chegarem a conclusões mais definitivas.  a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da
Como se sabe, as interpretações China ao México, do Afeganistão à Bolí-
sobre o Brasil compõem uma tradição de via, apenas para mencionar alguns exem-
enorme multiplicidade em suas aborda- plos. Em todos eles, há incógnitas a se-
gens, nada uniforme e harmônica, pro- rem decifradas, e seus problemas atuais
duzida em diversos momentos da sua his- não são nada simples, como temos visto. 

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 9


QUE PAÍS É ESSE? - ALBERTO AGGIO
Foto:Maxwell Vilela/Jornalistas Livres

Protesto na Esplanada: Conceber o Brasil apenas como o país do


“jeitinho” ou da “gambiarra” é desacreditar a compreensão do seu


lugar no mundo

É preciso estabelecer, também,


um questionamento a respeito do exa-
gero de que o Brasil guarda uma excep-
cionalidade superlativamente distinta de É PRECISO ESTABELECER,
outras experiências históricas, com seus
maneirismos típicos dos quais o “jeiti- TAMBÉM, UM
nho” ou a “gambiarra” são incensa-
dos ad nauseum. Além de um ar de troça
e menosprezo, há nesse tipo de leitura
QUESTIONAMENTO A
uma soberba que visa desacreditar a ta-
refa do pensamento na compreensão do RESPEITO DO EXAGERO
país, bem como do seu lugar no mundo.
Essa forma de conceber o país é inútil e DE QUE O BRASIL GUARDA
improdutiva perante os desafios civiliza-
tórios que temos diante de uma mun-
dialização que se impõe a cada dia. Se o
UMA EXCEPCIONALIDADE
Brasil for apenas isso, estamos fritos. 
O realismo nos indica que, para SUPERLATIVAMENTE
pensar a experiência histórica brasileira,
isolando os esquemas sociológicos abs- DISTINTA DE OUTRAS
tratos, o exercício da comparação é vital.
EXPERIÊNCIAS HISTÓRICAS


A equalização ao tempo dos contem-
porâneos não poderá ser sequer vislum-
brada, caso não se reconheça que a vida
social e política, a economia e os valores
civilizatórios são hoje História global. Se-

10 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


ALBERTO AGGIO - QUE PAÍS É ESSE?
ria importante pensar intelectualmente o tégia de um “tempo exaltado” como so-
Brasil, por meio de uma análise capaz de lução dos nossos dilemas históricos, ao se
alocá-lo num quadro comum de proble- sugerir, como faz Luiz Werneck Vianna,
mas de natureza interdependente, entre a proposição de “exploração do transfor-
os quais se podem mencionar os desafios mismo ‘de registro positivo’” como a me-
da consolidação da democracia, da inser- lhor indicação para a compreensão dos
ção na globalização da defesa e afirma- “processos societais novos, na sociedade
ção da sustentabilidade ecológica.  brasileira, (...) depois da institucionaliza-
Embora não caiba dizer que exis- ção da democracia política, em meados
te uma linhagem do pensamento brasilei- dos anos 80”*.
ro seguindo essas indicações, há quem já
a percorra sob uma chave de leitura que Brasil Moderno
afirma, analiticamente, que a sobreposi- O Brasil moderno se fez em meio
ção, combinação e síntese entre a ma- às disputas intelectuais e políticas pela he-
triz ibérica e uma tradução particular do gemonia no andamento da sua “revolu-
americanismo deram ao país a morfolo- ção passiva”, uma história de paradoxos,
gia da sua formação social. A partir dessa contradições e incompletudes. Até mesmo
chave, o Brasil pode ser pensado concre- movimentos que buscaram caminho moder-
tamente, ainda que essa não seja uma ta- nizador e democrático, como foi o Moder-
refa exclusiva do pensamento social e de nismo de 100 anos atrás, vivenciaram isso
seus intelectuais. A complexidade que daí e, de acordo com Vinicius Müller, acabaram


deriva supõe a recusa à adoção da estra- produzindo “nova situação de exclusão ou,
no mínimo, de diferenciação, entre os mem-
bros iluminados da intelligentsia e aqueles
que, mesmo formando uma grande parte do
país, são, segundo esse olhar, analfabetos

O BRASIL MODERNO
políticos, ignorantes religiosos, facilmente
manipuláveis e/ou pouco conhecedores da
própria história”**. 

SE FEZ EM MEIO ÀS Que país é esse? Perguntava-se um


atormentado Renato Russo, numa de suas

DISPUTAS INTELECTUAIS
canções no final dos anos 1980. Décadas à
frente, ainda perplexos, somos nós que inda-
gamos: que país é esse que entronizou Bol-

E POLÍTICAS PELA sonaro? Não há como não reconhecer que


o Brasil sob Bolsonaro é sintoma evidente

HEGEMONIA NO
de uma história que precisa ser decifrada.
Não pode ser visto como um parêntesis. Ele
já estava aí, mas não foi percebido em sua

ANDAMENTO DA SUA barbárie e no seu espantoso espelhismo an-


tiglobalista. Não será possível superá-lo, ver-

‘REVOLUÇÃO PASSIVA’,
dadeiramente, apenas apertando os botões
da urna eletrônica, embora esse seja um
passo necessário e imprescindível. 

UMA HISTÓRIA [1] VIANNA, L. W. A revolução passiva – iberismo

DE PARADOXOS,
e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan,
1997, p. 10. 

CONTRADIÇÕES E [2] MÜLLER, V. A História como presente. Brasília:


FAP, 2020, p. 191-2. 

INCOMPLETUDES


SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR

ALBERTO AGGIO

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 11


O CONGRESSO NACIONAL SOB ESCRUTÍNIO - ANTÔNIO CARLOS DE MEDEIROS 

Foto: Roque de Sá / Agência Senado


Funções precípuas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal estão, atualmente, apequenadas e
desvirtuadas, avalia Medeiros

O Congresso Nacional sob escrutínio


Varejo político desvirtua o papel da Câmara dos Deputados, que não consegue
representar adequadamente o povo. O Senado da República, por sua vez, falha em atuar
na representação dos estados

A
sociedade brasileira mantém povo, nem o Senado da República opera
avaliação negativa dos políti- bem para representar o território, isto é,
cos e do Congresso Nacional. os estados. Os deputados federais viraram
O acordo político do governo “vereadores federais”. E os senadores, ao
Bolsonaro com o Centrão estimulou o pro- deixarem de ter papel apenas revisor, tor-
tagonismo do Congresso. Mas contribuiu naram-se um misto de deputados e vere-
para a avaliação negativa dos políticos. O adores. As funções precípuas da Câmara e
acordo resultou no aumento vertiginoso do Senado estão apequenadas e desvirtu-
das emendas de parlamentares e dos fun- adas. Embora eles tenham muito poder, o
dos partidário e eleitoral.  varejo político desorganiza a possibilidade
Tudo somado, o Orçamento da União de de atuação estratégica e efetiva. Predomina
2022 destinará em torno de R$ 40 bilhões a pequena política do clientelismo, do cor-
aos partidos e aos parlamentares. A socie- porativismo, do varejo, dos arranjos, e tudo
dade reage. E joga, outra vez, luz sobre o mais que a opinião pública condena. Tudo
desempenho e a imagem do Congresso. O funciona para a manutenção e renovação
que esperar dele? A crise ética ainda é re- dos mandatos dos parlamentares. Pouco de
sultante da nossa herança patrimonialista? grande política. Muito da pequena políti-
Nosso sistema híbrido de governo - presi- ca. São necessárias reformas políticas que
dencialista-parlamentarista – exauriu-se? O resgatem o papel da Câmara como repre-
pacto social da Constituição de 1988 che- sentante direta dos cidadãos, e o papel do
gou ao fim?  Senado como casa revisora representante
A questão central é que nem a Câma- dos estados. 
ra Federal representa adequadamente o O Senado trabalha como se fosse uma

12 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


ANTÔNIO CARLOS DE MEDEIROS - O CONGRESSO NACIONAL SOB ESCRUTÍNIO

Câmara dos Deputados. Já a Câmara, como Câmara Federal. 


fruto das anomalias criadas pelo Pacote de Simulei que limites mínimos e máximos
abril de 1977 e pela Constituição de 1988, de seis e setenta deputados por estado,
teve o número de vagas para estados, com respectivamente, permitiriam melhor equi-
população pequena, inflados artificialmen- líbrio, assumindo a proposta original da
te. Criou-se um problema estrutural de su- Comissão Afonso Arinos, na Constituinte
per-representação dos estados menores e de 1988, que reduzia para 420 o total de
sub-representação dos estados maiores. O deputados na Câmara. Com esses dados,
Pacote reduziu o poder político de São Pau- chega-se a um índice de Gini de .3347. 
lo e dos estados mais urbanizados. Alvejou Terceiro, é necessário promover a lim-
a democracia representativa.  peza da pauta de problemas da Câmara
As reformas políticas que estão em pauta Federal, retirando matérias regionais típicas
não vão contribuir para o resgate do Con- de assembleias legislativas estaduais, des-
gresso Nacional. São retrocessos democrá- de que não fira o princípio federalista. Isso
ticos. As questões que precisam ser ataca- pode ser feito por iniciativas infraconstitu-
das são de outra natureza – começando cionais e permitiriam a melhoria da quali-
pelo sistema híbrido de governo. O resgate dade da ação dos congressistas. 
da dimensão republicana da democracia Por último, é importante repaginar o
brasileira requer reformas que promovam formato do bicameralismo brasileiro, para
legitimidade na delegação e consensuali- a recuperação do equilíbrio bicameral. As
dade no exercício do poder. Com a atual regras atuais tornam o Senado uma Câma-
forma de funcionamento do Congresso, ra dos Deputados, deixando de ser apenas
não se produz nem legitimidade da repre- uma casa revisora e representante do terri-
sentação política (os políticos eleitos), nem tório, e não do povo. 
consensualidade no exercício do poder (go- O Congresso Nacional não cumpre bem as
vernança).  três grandes funções dos Parlamentos na de-
Sem incorrer num panpoliticismo que mocracia representativa: a iniciativa de leis; a
pretenda forjar a realidade à base de “gol- fiscalização do Executivo; e a formação e re-
pes de lei”, é necessário desencadear uma novação de elites e lideranças políticas. Essa
sequência de mudanças institucionais arti- baixa relevância, apesar de seu poder atual, é
culadas entre si, para resgatar o papel do disruptiva para a democracia brasileira.


Congresso e fazer avançar a democracia
brasileira. Seguem, aqui, de forma esque-
mática e como contribuição ao debate, al-
gumas propostas factíveis.  
Primeiro, enquanto se discute se o Brasil
vai ou não implantar o sistema distrital mis- AS REFORMAS POLÍTICAS
to, é possível melhorar a representatividade
do sistema eleitoral brasileiro pela simples QUE ESTÃO EM PAUTA
alteração do sistema de redistribuição de
sobras, mudando-se do sistema D´Hondt NÃO VÃO CONTRIBUIR
para o sistema Saint-League, caso as coli-
gações voltem a ser permitidas. O Saint-Le- PARA O RESGATE DO
ague aumenta o denominador do cálculo
da distribuição de sobras, estimulando os CONGRESSO NACIONAL.
pequenos partidos a concorrerem sozinhos
às eleições.  SÃO RETROCESSOS
DEMOCRÁTICOS


Segundo, a melhoria da representativi-
dade passa, também, pela adequada repre-
sentação dos estados. Isso pode acontecer
se a redistribuição do número de vagas
destinadas a cada estado, na Câmara Fe-
deral, devolver o valor do índice de Gini ao SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
patamar de 1950, ou seja, à escala próxima
ao intervalo entre .24 e .35. Isso tornaria ANTÔNIO C. DE MEDEIROS
mais proporcional e legítima a formação da

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 13


O QUE SE PODE ESPERAR DE UMA CPI - ARLINDO FERNANDES DE OLIVEIRA

Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado


Investigações da CPI da Pandemia no Senado têm mostrado as falhas, o negacionismo e o descaso do
governo Bolsonaro no combate à Covid

O que se pode esperar de uma CPI


CPIs têm o poder fiscalizatório sobre aquilo que tem a ver com o trato da
coisa pública. Algumas balançaram o país, como a do PC Farias, Anões do
Orçamento, Petrobras e a CPMI dos Correios

S
 
ão recorrentes os questionamentos bunal Federal, o requerimento de uma CPI
quando alguma casa legislativa institui subscrito por um terço da Casa Legislativa,
uma comissão parlamentar de inqué- cria a comissão, e deve implicar sua instalação,
rito, a CPI. Um deles é sobre se a Comissão desde que fundado em fato determinado e
vai produzir os resultados que dela se espera por prazo certo. Como enfatizou o STF, pela
ou se “vai dar em pizza”.  É tema legítimo e voz do Ministro Celso de Mello: 
vale a pena comentar. O Congresso Nacional,   Preenchidos os requisitos constitucio-
suas Casas, assim como as instituições do Po- nais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a cria-
der Legislativo dos estados e municípios têm ção da Comissão Parlamentar de Inqué-
três funções básicas: legislar, fiscalizar o Poder rito, que não depende, por isso mesmo,
Executivo e servir de espaço para o debate pú- da vontade aquiescente da maioria le-
blico. A primeira função é a definida pelo seu gislativa. Atendidas tais exigências (CF,
nome: “Poder Legislativo” e as demais lhe são art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da
vinculadas.   Casa Legislativa, adotar os procedimen-
As comissões existem para dar funcio- tos subsequentes e necessários à efeti-
nalidade à Casa, a organização do trabalho va instalação da CPI, não se revestindo
parlamentar em comissões se dá por razões de legitimação constitucional o ato que
práticas. E, numa democracia, cabe a quem busca submeter, ao Plenário da Casa
venceu as eleições, a maioria, governar. E à legislativa, quer por intermédio de for-
minoria cumpre fazer oposição. Assim, as CPIs mulação de Questão de Ordem, quer
são a expressão constitucional do direito e do mediante interposição de recurso ou
dever da minoria.  utilização de qualquer outro meio regi-
Por isso, como reiterou o Supremo Tri- mental, a criação de qualquer comissão

14 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


ARLINDO FERNANDES DE OLIVEIRA - O QUE SE PODE ESPERAR DE UMA CPI

Foto: José Cruz / Agência Brasil


Sessão do Congresso Nacional que instalou a CPMI dos Correios, que acabou investigando o
Mensalão do PT

parlamentar de inquérito. (...)."[1]  cabível,  a abertura de processo con-


Uma CPI dispõe de poderes seme- tra Senador ou Deputado Federal – ou
lhantes àqueles que as leis endereçam ao Po- outro agente político - quando o nome
der Judiciário, no momento da instrução pro- desse parlamentar estiver vinculado a
cessual penal. Por conta deles, e de seu natural fatos ou atos que possam implicar pre-
apelo mediático, é comum que se exija de uma juízo à imagem do Congresso Nacional,
CPI alcançar propósitos, alguns alheios à sua ou seja, sempre que ali se possa identi-
natureza, como colocar as pessoas investiga- ficar possível quebra do decoro parla-
das na cadeia ou aplicar as punições que são mentar; que interceda junto aos órgãos
de competência de outra instituição. Para co- responsáveis da Administração Pública
brar de nossos representantes que atuam em para  sustar as irregularidades e/ou
CPI as atitudes que constitucionalmente lhes práticas lesivas que suas investigações
compete, cabe recordar isso.   identifiquem; que  aponte ao Minis-
Para que a cidadania democrática c bre de tério Público os fatos que possam
uma CPI aquilo que ela pode e deve dar, o Re- caracterizar delitos ou prejuízos à
latório Final da Comissão Parlamentar Mista de Administração Pública para que esse
Inquérito dos Correios, que investigou o cha- órgão estatal possa promover a respon-
mado Mensalão, é didático:  sabilidade civil e penal correspondente;
“Os objetivos de uma CPI devem ser e que proponha modificações no ar-
claramente definidos e proclamados, cabouço legal e institucional, de for-
até para que não se estimulem ilusões, ma a contribuir para o aperfeiçoamento
e não se pretenda alcançar objetivos constante da democracia no país, evi-
que não lhes dizem respeito.  tando a reincidência no fato determina-
Pode-se exigir de uma CPI: que contri- do objeto de investigação.” 
bua para a transparência da Adminis-
tração Pública, à medida que revela, [1] MS 26.441, rel. min. Celso de Mello, julgamento
para a cidadania, fatos e circunstâncias em 25-4-2007, Plenário, DJE de 18-12-2009. 
que, de outra forma, não seriam de
conhecimento público; que, na qua-
lidade de órgão do Poder Legislativo,
possibilite  o exame crítico da legis- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
lação  aplicável ao caso sob investiga-
ção; que proponha à Casa respectiva ARLINDO F. DE OLIVEIRA
do Congresso Nacional, sempre que

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 15


Foto: Reprodução FGV
REPORTAGEM ESPECIAL - CLEOMAR ALMEIDA

ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU

'Urna eletrônica é motivo de orgulho, não


de polêmica'
Militância do presidente da República na suspeição do voto digital pode ter
contaminado cerca de um terço do eleitorado brasileiro, acredita o cientista
político Jairo Nicolau, entrevistado especial da edição de setembro da Revista
Política Democrática Online
Por Caetano Araujo, Arlindo Oliveira e André Amado

AGOSTO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 16


JAIRO NICOLAU - ENTREVISTA ESPECIAL

E
ntrevistado especial da edição de se- propriamente dita - e todos aqui somos da
tembro da Revista Política Democrá- época da urna de lona, da cédula de papel,
tica Online, o cientista político Jairo e nos lembramos de como era difícil contro-
Nicolau critica duramente os ataques lar as fraudes, mesas sendo arranjadas para
contínuos do presidente da República à urna facilitar que certas forças políticas compare-
eletrônica - e ao processo eleitoral brasileiro cessem para encobrir o comparecimento de
-, considerada por ele como um dos proces- uma pessoa, votar no lugar de outra. E, na
sos de votação mais eficientes do mundo. hora da apuração, quando todas as cédu-
"A urna eletrônica foi um grande passo las eram depositadas sobre mesas situadas
para aperfeiçoar o processo de votação no em ginásios esportivos. Pegava-se um uma
Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o
corrupção como na adulteração da vontade nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali,
do eleitor no momento da votação e, claro, na hora de transformar os votos contados
depois na contagem dos votos", avalia. para os boletins de urna, ninguém detinha
De acordo com o professor titular as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral
da Universidade Federal do Rio de Janeiro durante muitos anos e acompanhei as apu-
(UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documen- rações e lembro bem de alguns casos.
tação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/ Esse tipo de fraude terminou com a urna
FGV), estima-se que a militância do presi- eletrônica. Além da urna eletrônica, temos
dente da República na suspeição do voto hoje também um cadastro nacional de elei-
digital possa ter contaminado cerca de um tores, de que pouca gente fala, que é che-
terço do eleitorado. "O estrago é tão lasti- cado periodicamente para evitar duplicação
mável como irreversível. Poderá ser um perí- de entrada de eleitores. Dispomos ainda
odo grande de desconfiança, de crises polí- da leitura biométrica da identificação dos
ticas graves", lamenta. eleitores que exclui qualquer possibilidade
Mestre e doutor em Ciências Políti- de termos um eleitor inscrito em mais de
cas no Iuperj, com pós-doutorado na Univer- uma sessão eleitoral ou uma pessoa votan-
sidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, do em nome da outra. A urna eletrônica é,
Jairo é autor de vários livros sobre a política assim, um sucesso tanto contra a corrupção
brasileira, como História do Voto no Brasil. como na adulteração da vontade do eleitor
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Siste- no momento da votação e, claro, depois na
mas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, contagem dos votos.
2004. O último deles, publicado já duran- Subsistem algumas denúncias no atual
te a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: processo eleitoral, como as de compra de
Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em votos, vale dizer, a influência política de al-
2018”. guns segmentos das elites sobre eleitores
Na entrevista à Revista Política De- mais vulneráveis em certas áreas do Brasil.


mocrática Online, Jairo Nicolau também Isso não está mapeado, mas, de fato, ocor-
comenta termas como o sistema político
brasileiro, reforma política, fragmentação
partidária e processo eleitoral, entre outros.
Confira, a seguir, os principais trechos:

Revista Política Democrática Online


ALÉM DA URNA ELETRÔNICA, TEMOS HOJE
(RPD): Seu livro sobre a história do pro-
cesso eleitoral no Brasil louva nosso sis-
TAMBÉM UM CADASTRO NACIONAL DE
tema eleitoral por ser isento de fraudes.
Como avaliar os questionamentos que
ELEITORES, DE QUE POUCA GENTE FALA,
se têm levantado recentemente quanto
à inteireza do sistema de votação e, em
QUE É CHECADO PERIODICAMENTE PARA
particular, de apuração? EVITAR DUPLICAÇÃO DE ENTRADA DE


Jairo Nicolau (JN):​Dei ênfase à redu-
ção das fraudes, não a seu banimento. Até ELEITORES
pouco tempo, as fraudes aconteciam em
dois momentos. No momento da votação

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 17


ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU

Foto: Reprodução FGV


re. Ainda não contamos com um sistema de do pleito 22. Toda essa movimenta-
eleição semelhante a países com elevado ní- ção obedece ao receio dos deputados
vel de educação, como na Escandinávia, por de não se reelegerem reflete, de fato,
exemplo. Mas o que a urna eletrônica fez já a necessidade de aprimorar o sistema
foi uma grande conquista. Não se dispõem eleitoral? A seu juízo, que alterações se
de estatísticas confiáveis a respeito da con- justificariam para além dos interesses
fiabilidade das urnas eletrônicas. Estima-se da sobrevivência eleitoral de A, B ou C?
que a militância do presidente da República JN: m razão da regra de que qualquer
de suspeição do voto digital possa ter con- mudança eleitoral só vale depois de um ano
taminado cerca de um terço do eleitorado. de aprovada, os anos ímpares costumam
O estrago é tão lastimável como irreversível. acumular propostas várias de reforma das
Do nosso lado, dos democratas, das regras do processo de votação. Aprovou-se,
pessoas que acreditam que a urna foi um por exemplo, um calendário de entrada em
grande passo de aperfeiçoar o processo de vigor da cláusula de desempenho, ou seja,
votação no Brasil, resta sempre um movi- que os partidos devem ter uma votação mí-
mento de reação. Reação significa campa- nima em âmbito nacional para eleições para
nha, denunciar fake news. Mas o estrago a Câmara, para o partido ter, depois da elei-
já está feito, justo quando deveríamos estar ção, acesso a recursos importantes, como
celebrando o reconhecimento de um dos fundo partidário, tempo de televisão. Essa
processos de votação mais eficientes que regra já está em vigor, e a legislação prevê
conseguem traduzir a vontade do eleitor que ela vai aumentar até 2030. Ou seja, é
em preferência política do mundo. Diria até possível fazer reformas nas regras eleitorais
que, do ponto de vista da logística, é o me- necessariamente para entrar em vigor na
lhor do mundo. eleição seguinte.
E esse sistema foi colocado em xe- Mas o quadro que a gente tem hoje, pelo
que pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá menos desde 2014 sobretudo, é que, com
ser um período grande de desconfiança, algumas reformas, ficou claro que o intuito
de crises políticas graves. Continuo oti- dos deputados era muito mais de se preser-
mista com relação a nossa urna eletrô- var politicamente do que pensar algum tipo
nica e, agora, com o voto biométrico. de reforma mais generosa para o país, de
É, sem dúvida, motivo de orgulho, não aperfeiçoamento do sistema representativo.
de polêmica, para todos nós, brasileiros. Acompanho, há muito tempo, os debates
na Câmara e compreendo que a motiva-
RPD: Mais uma vez, estamos pre- ção dos deputados para reformas não ex-
senciando tentativas de alteração do clui sobrevivência política. Seria estranho
sistema eleitoral a pouco mais de ano imaginar-se partidos cometendo suicídios

18 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


JAIRO NICOLAU - ENTREVISTA ESPECIAL

Foto: Reprodução FGV


CONTINUO OTIMISTA COM
RELAÇÃO A NOSSA URNA
ELETRÔNICA E, AGORA, COM
O VOTO BIOMÉTRICO. É, SEM
DÚVIDA, MOTIVO DE ORGULHO,
NÃO DE POLÊMICA, PARA TODOS
NÓS, BRASILEIROS


políticos. Vejamos a questão do voto dis-
trital. Sabemos que, por essa via, partidos
de opinião praticamente desapareceriam.
Ninguém espera um cálculo político absur-
do desse tipo. Defende-se, também, a re- protegeria os deputados que tem manda-
presentação proporcional. Será apenas para to. Lembrem-se que, na última eleição, por
proteger os interesses de minoriais? Difícil exemplo, partidos, como o PP, o Progressis-
dizer. Em toda eleição tem um pouco de ta, deram muito mais dinheiro para quem
malícia, de auto-interesse, o que não é ne- tinha mandato, tentando atraí-los para
cessariamente ruim. suas legendas. Chegou-se a prometer dois
É o que tem acontecido, e aconteceu milhões e meio por candidato. Ou seja, o
primeiro com o fundo eleitoral. Quando os partido não lança candidato à presidência,
deputados e senadores criaram, em 2015, economiza e, com as sobras, celebra as bar-
o fundo eleitoral, perceberam que seria es- ganhas. Apoiavam-se em propostas subs-
tratégico para a sobrevivência política. O tantivas, republicanas, de melhor servir à
dinheiro da campanha viria, sobretudo, do cidadania? Não, prevalecia a ideia clássica
fundo; só faltava criar regras para proteger que move os deputados: o interesse de pes-
quem já tinha mandato. Na confecção do soas, de políticos, nada a ver com os interes-
fundo, foram muito generosos consigo mes- ses dos partidos.
mos. Os partidos maiores ficaram com mui-
to mais dinheiro do que os menores. Como Reformas desse tipo, que chamo de ego-
era uma primeira eleição com o fundo, não ísmo extremado, haverão de conduzir ao
custava ter deixado uma parte maior para desaparecimento de partidos, que se ato-
distribuir para os pequenos partidos. Mas, mizariam e se fragmentariam ante a ânsia
não, eles concentraram o dinheiro do fun- incontida dos políticos de sobreviverem
do. abraçandos mandatos, avessos a tudo que
Para proteger a elite política da incerteza possa soar republicano, orgânico, de inte-
da recondução eleitoral, cresceram as pers- resse público.
pectivas do chamado Distritão, proposta Não devemos esquecer que, em 2017,
agora derrotada na Câmara. Na visão dos houve reforma profunda das regras eleito-
políticos - tenho muitas dúvidas se eles es- rais: acabou-se com a coligação e criou-se
tavam corretos nessa análise – o Distritão um sistema de cláusula de desempenho que

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 19


ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU

Foto: Reprodução FGV


vai subindo até 2030. O mais curioso é que, tamanho grau de pulverização e fragmen-
até agora, não se testou numa eleição na- tação partidárias que, independentemente
cional o fim das coligações, muito embora do fim da coligação, iniciou-se um proces-
já conste da Constituição, o que um absur- so que se assemelha a uma onda. A onda
do, é demais. Tanto mais quando já se tenta foi ao máximo com a pulverização de par-
retirar da Carta Magna o que não foi testa- tidos pequenos. Não há congresso algum
do. O que é isso se não é auto interesse? Se no mundo que tenha o maior partido re-
há quatro anos era importante para o Brasil presentado com menos de 60 membros. Tal
acabar com as coligações, o que mudou hiperfragmentação é disfuncional. A cada
agora? votação na Câmara, tem-se de contar com
A meu ver, esse debate foi muito mal en- 26 indicações de lideranças. Viu-se isso no
caminhado, conjugado ainda com essa dis- processo de impeachment da Dilma. O elei-
cussão descabida sobre voto impresso. Com tor não consegue mais seguir um partido
base em minha experiência de estudar esse diante de tantas siglas. Os políticos não lo-
assunto há muito tempo, digo que nunca gram criar uma identidade com uma legen-
vi um debate tão ruim, tão mal feito, tão da, porque a confusão é total.
mal escrito, tão desalinhado como esse das
três comissões que o analisaram. É o sinal É ruim para o presidente. A própria pre-
dos dias, uma legislatura medíocre que se sidente Dilma mencionou que, na época do
meteu num tema que exige certa especiali- Fernando Henrique, do Lula, eles tinham
zação e que não poderia ter produzido ou- cinco, seis partidos na coalizão. No caso
tra coisa que não um resultado medíocre. dela, eram 14 ou mais.
Mas há uma razão que me parece fun-
RPD: Seu livro sobre o processo eleitoral damental para esse processo que eu estou
para a câmara foi publicado em 2017, apontando de encolhimento do quadro, de
meses antes da promulgação da emen- fragmentação, que é o dinheiro. Quer dizer,
da constitucional que proíbe coligação, não dá para pulverizar o dinheiro, a elite
e a possibilidade de adoção de uma política percebe que tem de concentrá-lo
cláusula de barreira de 1,5%, progressi- na mão de um número menor do que 26
va no tempo, que terminou sendo ado- forças políticas. Já algum movimento nes-
tada pela emenda de iniciativa do sena- sa direção. Alguns políticos do PSD falam
dor Ferraço. Acredita que a cláusula de de fusão com o PP e o PSL, que daria um
desempenho nessa década funcionará mega partido de direita, ultrapassando 100
com o propósito tal como foi imagina- deputados, pela primeira vez em mais de 20
da, isto é, de 2%, 2,5%, em 2026, e 3%, anos.
em 2030? O problema maior pode ser para as pe-
JN: Acho que sim. A gente chegou a quenas legendas. O que têm acrescentado

20 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


JAIRO NICOLAU - ENTREVISTA ESPECIAL


no debate nacional, com algumas exce-
ções? Muito pouco. A cláusula de desem-
penho não foi mexida, vai manter-se a mes-

O surgimento do PSL trouxe um


ma, então o que mexe com o dinheiro não
é a coligação, lembrando que a coligação

elemento ainda de fragmentação.


é uma decisão do político, o fato de ter a
norma não significa que, na prática, ela se

Agora, o PSL, não é à toa que ele


concretize. Na campanha de 1986, muito
poucos partidos se coligaram. O PT e o PSD,

está buscando uma aliança com


do Kassab, sempre se opuseram a coliga-
ções, e não será, agora, quando passam por

outro partido, porque eles estão


um bom momento político, que haverão de
rever sua posição de base.

percebendo que ali de baixo não tem


Tudo indica, portanto, que quem quer
coligar-se não tem cacife e quem não quer

nada, é oco. O partido não tem nome,


vai partir para atuações isoladas em alguns
Estados, decididos a não se prestar a dar


aquilo ali foi um arrastão ocasional
carona a partidos menores. Daí porque eu
achar que o congresso de 2022 vai ser mais
compacto do que o atual. Claro, não vamos
chegar ao modelo inglês, com dois grandes
partidos e alguns partidos pequenininhos.
Nossa fragmentação é tão alta que vamos
levar muito tempo para voltar, por exemplo, foi um arrastão ocasional. Eu apostaria, in-
ao que éramos na década de 90, com oito tuitivamente, é uma aposta só de conver-
ou dez partidos. Isso só não aconteceu em sa fiada, vamos dizer assim, que uma boa
2018 por uma razão puramente contingen- parte, sei lá, 60%, 70% dos deputados do
te, o arrastão bolsonarista. Caso contrário, PSL não se reelegem mais, eles entraram ali
o DEM, PSDB e MDB teriam bancadas mais e vão sumir como surgiram. Para mim, 22
expressivas com 50, 60 deputados cada um. será o momento de compactação política.
Quer dizer, o que o Bolsonaro fez em Mas, de novo, não vai ser a compactação
2018, com aquele desempenho impressio- como conhecemos na década de 90, mas
nante no primeiro turno, que se traduziu tampouco vamos repetir esse modelo de hi-
numa bancada gigantesca de deputados, perpulverização de 2018.
ajudou, digamos assim, a quebrar um pa-
drão, mas isso, para mim, não continua. RPD: Sabemos que nosso sistema
Nem sempre há eleições extraordinárias. eleitoral nas eleições proporcionais não
Vimos muitas eleições depois da redemo- é um sistema frequente no mundo. Nor-
cratização, e só em uma, um partido, fez o malmente, quem adota o sistema pro-
estrago. Se a gente olhar e comparar o que porcional adota o sistema com alguma
aconteceu com o maior partido do Brasil, forma de fechamento ou pré-ordena-
o Partido dos Trabalhadores, para chegar a mento das listas. Dado que nós temos
50 deputados, o PT passou por umas cinco uma certa singularidade nesse ponto,
eleições. Teve oito em 82, dobrou para 16 quais seriam, do ponto de vista dos
em 86, foi para 30 e poucos em 90, che- eleitores, os principais problemas que
gou em torno de 50 em 94. Quer dizer, o esse sistema acarreta para nós?
partido levou uma década e meia ou duas JN: Para mim, o maior efeito desse siste-
décadas para chegar a 50 deputados, e o ma é que tem muitas formas de organizar-
PSL numa eleição chegou a isso. Isso nunca -se a representação proporcional. O que há
tinha acontecido. em comum entre os vários países que usam
O surgimento do PSL trouxe um elemento a representação proporcional é o princípio
ainda de fragmentação. Agora, o PSL, não de que cada partido lança uma lista de no-
é à toa que ele está buscando uma aliança mes. Se a gente for na Polônia, na Bulgária,
com outro partido, porque eles estão per- em Portugal, na Espanha, qualquer país do
cebendo que ali de baixo não tem nada, mundo que usa a representação propor-
é oco. O partido não tem nome, aquilo ali cional, o fundamento é: lance uma lista de

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 21


ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU

Foto: Reprodução FGV


SEMPRE HOUVE PADRE, UM
RADIALISTA, UM ARTISTA DA
TELEVISÃO FAZENDO POLÍTI-
CA, LIDERANÇAS DA SOCIE-
DADE SEMPRE ENTRARAM
NA POLÍTICA DA VIDA


nomes, o voto dessa lista vai ser contado votação. A urna eletrônica, em que pesem
e nós vamos distribuir as cadeiras propor- todas as virtudes que identifiquei, não ajuda
cionalmente segundo o volume de votos de passar para o eleitor a sensação que ele está
cada lista. Isso é o que há de comum. Em votando numa lista e não num nome. Se eu
Portugal, por exemplo, o eleitor não vota tivesse, por exemplo, um eleitor peruano
em nomes, porque a lista já vem prontinha que usa o sistema brasileiro de lista aberta,
de casa. Digamos que se no Brasil o sistema ele tem uma cédula grandona com o nome
português fosse adotado, nós chegaríamos de todos os candidatos e as listas. Ele vai lá
na seção eleitoral, olharíamos a ordem dos e marca um nomezinho na cédula, com to-
nomes. Primeiro lugar, candidato fulano, dos os candidatos. Claro, no Brasil não daria
beltrano, ciclano. Assim funciona em Por- porque são 400, 500 candidatos. Mas, se
tugal, de modo de que na hora que se olha fossem 80, na época da cédula de papel,
para a cédula, só marca um xis onde está você faz uma cédula peruana, grandona,
seu partido. Como a gente votava para com retratinho, você vai lá e escolhe o re-
presidente no Brasil na época da cédula de tratinho, você está votando no nome. No
papel, é uma cédula portuguesa para de- Brasil, a gente não tem isso. Então, respon-
putados: aparecem o símbolo do partido e dendo a sua pergunta, eu acho que o maior
o nome. A marcação do lado indica que se problema que eu vejo na lista aberta é que
comprou o pacote, não se está escolhendo o papel do político individual é muito gran-
um nome. de. E como os Estados cresceram muito em
O que temos no Brasil é um sistema cuja tamanho, a população ficou muito grande
ênfase no nome no candidato é muito forte. e a sociedade brasileira, mais complexa, a
Costumo dizer que isso é agravado para os política ficou mais democrática, os interes-
eleitores comuns pelo próprio processo de ses atomizados da sociedade começaram a

22 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


JAIRO NICOLAU - ENTREVISTA ESPECIAL


adotar o lugar da política, dos partidos, de
uma maneira, fazendo uma ligação direta,
que não existia no passado. Claro que sem-
pre houve padre, um radialista, um artista

EU ACHO MELHOR NÃO MEXER


da televisão fazendo política, lideranças da
sociedade sempre entraram na política da

EM NADA. 2022, COM AS MES-


vida. Nem todo mundo precisa começar a
carreira política se filiando no diretório local,

MAS REGRAS DE 2018, COM


sendo vereador, depois deputado estadual.
Essa carreira, digamos linear, acontece, mas

APERFEIÇOAMENTO DE UM FIM
o que eu percebo, recentemente, é que
com essa mudança da sociedade brasileira,

DA COLIGAÇÃO E UM AUMENTO
o atalho entre celebridades, lideranças da
sociedade civil e a política, tanto para bem

DOS 2% DA CLÁUSULA DE
quanto para mal, ficou muito curtinho, fi-
cou muito rápido.

DESEMPENHO
A bancada do PSL é isto, não é? São 50


personalidades, raríssimos políticos de car-
reira ali, são pouquíssimos. Isso aparece com
interesses econômicos, empresários que no
passado faziam lobby, tinham amigos na
política, começaram a se meter com política.
Não estou falando de grandes empresários,
do presidente da CNI, não, eu estou falando
de empresários locais, dono de uma trans- sa, mas ele ficava na franja do sistema po-
portadora, um pecuarista que resolve ele lítico, ele era em menor número. Agora, o
mesmo entrar na política. Interesses, claro, Brasil mudou, o sistema eleitoral é o mesmo.
do outro lado, sindicais. Não mais interesses Esse atalho é feito em ligação direta. Como
religiosos, a gente não está falando de um a gente fazia no passado, ligava o carro em
líder religioso nacional, a gente está falando ligação direta, você não tem chave, não tem
de um pastor de uma igreja pequena, de intermediação, isso me preocupa.
uma região do Rio de Janeiro, o sujeito vai Para mim, mesmo uma reforma política,
direto. É um pastor de uma igreja rural, não no que a gente está falando aqui de com-
tem atalho, ele entra num partido um ano pactação, vai melhorar um pouco a inteligi-
antes da eleição, se elege federal. Ele é re- bilidade do sistema, ele vai ficar um pouco
presentante de quem? Ele é simplesmente o mais arrumado, mas essa questão mais fun-
intermediador em Brasília entre os interesses da, do hiperparticularismo dominando a po-
da igreja e dos moradores lá da região dele. lítica, que tem a ver com a lista aberta – cla-
ro, você pode botar uma lista fechada e não
RPD: A fragmentação está relaciona- resolver esse problema –, que a lista aberta
da ao sistema? A falta de transparência agrava esse problema eu não tenho dúvi-
e de inteligibilidade para os próprios da. Isso veio para ficar, ou seja, o legislativo
eleitores está relacionada com isso? O brasileiro está muito pulverizado não só em
que fazer para poder avançar na solu- termos partidários, mas do particularismo
ção dessas questões? dos interesses locais, interesses pontuais. A
JN: Acho que de certa maneira não tem gente vê uma campanha para deputado, eu
como tirar a responsabilidade do sistema lembro que, no ano passado, tinha um su-
proporcional de lista aberta combinando jeito que era representante dos porteiros do
com a mudança que o país passou. Quando Rio de Janeiro, ele queria voto como repre-
a elite política era mais fechada, ela resolvia sentantes dos porteiros e trabalhadores nos
bem isso. Digamos, colocava os quadros, prédios. “Eu quero representá-los em Brasí-
pensando até recentemente, no PSDB, nos lia”. Veja, não é mais o interesse territorial,
partidos que fizeram a constituinte. Você ti- é o hiperinteresse. Isso realmente me preo-
nha uma elite parlamentar que controlava a cupa, e eu não sei como a gente tem como
política e às vezes aparecia uma figura des- mudar isso. Porque depois que a gente co-

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 23


ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU
Foto: Reprodução FGV

loca essas pessoas no Legislativo, aí que elas pode se eleger. Quer dizer, você quebra um
não vão querer um sistema de lista fechada, pouco, dá uma flexibilidade, por isso este
porque elas provavelmente vão ficar na ra- modelo se chama lista flexível, à lista. Mas
beira da lista, não é mesmo? É um modo de tudo isso pode ser discutido num ambien-
reprodução que é difícil quebrar nesse caso. te em que, primeiro, a gente acabou com
as coligações, tem uma certa compactação
RPD: Devidamente autorizado por sua partidária e fique um ambiente melhor para
experiência na academia e nos corredo- conversar. Nesse ambiente, agora, desse
res da política, que proposta gostaria atomismo que a gente conversou, eu acho
de ver vitoriosa nas mudanças que se melhor não mexer em nada. 2022, com as
insinuam na área eleitoral? mesmas regras de 2018, com aperfeiço-
JN: Para ser totalmente honesto, e diante amento de um fim da coligação e um au-
dessas propostas, eu diria nenhuma. Nesse mento dos 2% da cláusula de desempenho.
momento, era melhor deixar do jeito que
está. A gente fez a reforma em 2017, ela SAIBA MAIS SOBRE O ENTREVISTADO
não foi experimentada, eu acho que foi
uma reforma que tem mais acertos do que
JAIRO NICOLAU
erros. Talvez num momento dois, digamos,
a partir da próxima legislatura eleita não
com essa excepcionalidade que foi a eleição SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
de 2018, nós possamos começar a discutir,
não sei se nessa seguinte ou na outra, talvez CAETANO ARAÚJO
uma forma de dar um pouco mais de con-
tenção partidária a essa lista aberta brasilei-
SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
ra. Talvez dando aos partidos mecanismos
de ordenar a lista, como se faz em Portugal,
ou até um formato que é usado em alguns ARLINDO OLIVEIRA
países europeus, que eu gosto, particular-
mente, que é o seguinte: você fecha a lista,
mas dá ao eleitor a opção, caso ele queira, SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
de votar num nome específico. Com isso,
caso um nome tenha algum destaque, ele ANDRÉ AMADO

24 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


JÁ É 2022 NA INTERNET - SERGIO DENICOLI
Foto: Reprodução

Foto: Elvis González/EFE


Perfil no Twitter do ex-presidente Lula reforça a polarização. Postagem ataca Bolsonaro por conta da
cobrança da bandeira vermelha na conta de luz

Já é 2022 na internet
Bolsonaristas e lulistas já deram início não-oficial à campanha eleitoral para 2022 e estão praticamente sozinhos
no campo virtual de batalha que é, atualmente, a principal arena da disputa

N
ão se engane com o calendário O curioso desse contexto é que o ano
eleitoral oficial. Nas redes sociais, eleitoral realmente começou, mas não para
2022 já se iniciou. Os candidatos todos. Bolsonaro e Lula já estão confortavel-
mais atentos estão atuando na mente em campanha, abarcando 82,9% do
velocidade das fibras óticas. Mesmo porque, total das menções aos presidenciáveis, no
como a internet é fragmentada em bolhas, o Twitter, segundo dados da AP Exata Inteligên-
período de campanha determinado pelo TSE cia Digital, medidos em agosto. O presiden-
é extremamente curto para alavancar uma te conta com uma fatia maior de menções,
candidatura. Muito diferente dos nostálgi- atingindo 54%, ao passo que o ex-presidente
cos anos analógicos, quando a sociedade era alcança 28,2% das menções. 
pautada pelos jornais, rádios e TV, e o horário Os demais pré-candidatos têm participa-
eleitoral gratuito marcava de fato o início da ções residuais. Vez ou outra conseguem po-
disputa.  lemizar algum tema e aparecem um pouco

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 25


JÁ É 2022 NA INTERNET - SERGIO DENICOLI
Foto: Reprodução

Perfil de Bolsonaro no Twitter: presidente abarca 62% de menções negativas na rede social, contra
60% do petista

mais, só que rapidamente voltam a uma ex-


pressividade de figurante. Estão nesse pata-
mar Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite,
Rodrigo Pacheco e Sérgio Moro. Os demais

BOLSONARO E
LULA JÁ ESTÃO
CONFORTAVELMENTE
nomes, até o momento, são redondamente
inexpressivos nas redes. 
Bolsonaristas e lulistas, portanto, estão
praticamente sozinhos no campo virtual de
batalha, que, hoje, é a principal arena da dis- EM CAMPANHA,
puta. Bolsonaro atua para desviar o foco dos
problemas reais do país e cria uma agenda ABARCANDO 82,9% DO
própria de temas, fazendo com que internau-
tas e a imprensa o sigam.   TOTAL DAS MENÇÕES
Assim, conseguiu transformar em amplo
debate nacional a questão do voto impresso AOS PRESIDENCIÁVEIS,
e, agora, coloca como prioridade na política
brasileira as decisões do Supremo Tribunal Fe- NO TWITTER, SEGUNDO
deral, apimentando a cortina de fumaça com
o pedido de  impeachment  do ministro Ale- DADOS DA AP EXATA
INTELIGÊNCIA DIGITAL,
xandre de Morais. É estratégico. Ao pautar a
nação de acordo com os temas de seu inte-

MEDIDOS EM AGOSTO
resse, o presidente deixa em segundo plano
questões como a inflação galopante, a crise

26 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


SERGIO DENICOLI - JÁ É 2022 NA INTERNET

energética e o desemprego. Se não agisse a ideia de pertencer a uma esquerda muito


proativamente, certamente seria engolido próxima do centro, também fecha o espaço
pela agenda baseada nos resultados negati- para críticas de que, aos 75 anos, já não teria
vos de setores importantes da gestão federal.  o vigor necessário para comandar o país. Ou
Já Lula evita a agenda ditada por bolsona- seja, mistura vitalidade e diplomacia. 
ristas e busca reforçar sua liderança pessoal, Mas, se as duas principais lideranças polí-
tentando se livrar da imagem de corrupto, ticas do país conseguem dar um banho nos
que o acompanha desde a Lava Jato. Tem adversários na internet, elas também sofrem
apelado para o lado emocional das redes e para ultrapassar barreiras e falar para além
busca passar imagem de vigor físico, mostran- dos convertidos. Romper a bolha de influên-
do as coxas e a jovem namorada, e também cia é algo extremamente difícil, uma vez que
esbanja sorrisos, banhos de mar e atitudes ambos apresentam rejeições bastante altas.
conciliadoras. Assim, além de tentar impor Também de acordo com dados, de agosto, da

“ HOJE, A TERCEIRA
AP Exata, 60% das menções a Lula no Twit-
ter são negativas. Índice muito próximo do
de Bolsonaro, que abarca 62% de menções
negativas. 
Teoricamente, haveria espaço para uma
terceira via. No entanto, para que o eleitor
escolha um caminho novo, é preciso que ele
enxergue a estrada. E o problema do chama-

VIA É FATALMENTE
do “centro” é que os nomes que se apresen-
tam não estão sendo vistos como alternativas
capazes de romper a polarização. 

COMPOSTA POR
O mais curioso é que, dominando quase
que a totalidade das conversações nas redes,
petistas e bolsonaristas dominam também as

RETARDATÁRIOS. ruas. Assim, tornam concreta a percepção de


que seus líderes têm apoio popular. O centro

É PRECISO
ainda patina nesse sentido. Tem buscado ocu-
par espaços de rua e já marcou uma manifes-
tação para o dia 12 de setembro. Mas ainda

SE LIBERTAR
não entendeu que lideranças abstratas não
significam muita coisa. É preciso se libertar
das amarras partidárias, das articulações em

DAS AMARRAS Brasília, e focar na arena rede. Hoje, a terceira


via é fatalmente composta por retardatários

PARTIDÁRIAS, DAS
com dificuldades em alcançar os reais prota-
gonistas do processo. 
Desde que a internet se consolidou como

ARTICULAÇÕES EM
o principal meio de debate político, os que
não perceberam a mudança e se focam em
cartas de protesto divulgadas pela imprensa

BRASÍLIA, e entrevistas metódicas, com palavras boni-


tas bem colocadas, estão sendo excluídos do

E FOCAR NA
processo a olhos vistos. Internet é “tiro, por-
rada e bomba”, mas há ciência por trás, e o
mapa da mina são os dados. Lula e Bolsonaro

ARENA REDE
sabem disso, por isso, avançaram um ano à
frente dos concorrentes.  


SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR

SERGIO DENICOLI 

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 27


RETOMADA DA ECONOMIA NA TEMPESTADE PERFEITA - VALDIR OLIVEIRA
Foto: Agência Brasil

Efeitos da pandemia da Covid-19, na economia do país, levaram ao empobrecimento dos mais pobres e ao
enriquecimento dos mais ricos, avalia Valdir Oliveira

Retomada da economia na tempestade perfeita


Após mais de um ano e meio de pandemia, equilíbrio no ambiente
político, com o fortalecimento da democracia, é item fundamental
para o país recuperar a estabilidade econômica e voltar a crescer

A

economia é cíclica. Ela responde aos
movimentos da vida. E os movimentos
dessa pandemia, consequência da crise sani-
tária que estamos vivenciando, contribuíram
para reforçar a já forte concentração de renda
O CRESCIMENTO ECONÔMICO
no Brasil, com a exclusão produtiva de muitos
brasileiros. 
E A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
  Os pequenos negócios foram vítimas de FORAM PERDIDOS PELOS
IMPACTOS DA CRISE QUE
seus limites de sobrevivência, e as ajudas na
política compensatória, de complementação
de renda, os excluíram, deixando-os sem con-
dições de trabalho e de renda. As políticas VIVEMOS, POTENCIALIZADOS
de socorro por meio de crédito de fomento
foram direcionadas para os que conseguiram
PELO DESTEMPERO DO MOMENTO
se manter com um cadastro limpo, já que os
caminhos foram trilhados para os bancos, e
POLÍTICO EM QUE AS DISPUTAS
estes não podem fugir das regras do sistema
financeiro, que não permite acesso aos que
IDEOLÓGICAS SE SOBREPÕEM
têm restrições cadastrais impostas pelo mer- À PAUTA DE SOBREVIVÊNCIA DO
POVO BRASILEIRO
cado. De forma simples, é essa a fotografia do


momento, após um ano e meio de pandemia,
cujo resultado foi o empobrecimento dos mais
pobres e o enriquecimento dos mais ricos. A
estabilidade econômica, o crescimento e a dis-

28 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


VALDIR OLIVEIRA - RETOMADA DA ECONOMIA NA TEMPESTADE PERFEITA

“ AS SOLUÇÕES SAÍRAM DO
CAMPO ECONÔMICO OU DA
paralelamente com intervenções estatais no
socorro dos excluídos. 
Na última década, tivemos a ascensão e
queda de um governo de esquerda que ini-
ciou um descontrole nas contas públicas. Esse
SAÚDE, E PASSARAM PARA O caminho levou o ambiente político a ser du-
ramente atingido pela credibilidade de seus
CAMPO IDEOLÓGICO E POLÍTICO. protagonistas, levando o país a um sentimen-
to de anarquia, em que a desqualificação das
ENTRAMOS NA TEMPESTADE instituições e seus representantes substituiu as
sugestões de solução à crise. Esse ambiente
PERFEITA favoreceu o nascimento de uma proposta li-


beral, de redução do Estado. A pauta era in-
verter a lógica do Estado para fortalecer as re-
alidades municipais e enfraquecer o comando
central, o chamado de Menos Brasília e Mais
tribuição de renda das últimas décadas foram Brasil. 
perdidos em dois anos pandêmicos e de ex-  Foi nesse momento que entramos na pan-
tremos políticos, nos quais faltou a empatia demia. A crise sanitária levou, inicialmente, à
de lideranças que os fizessem sentir a dor de paralisia econômica dos pequenos negócios
seus liderados.  e à perda de renda da base da pirâmide. A
 O período que antecedeu o Plano Real era atividade econômica estagnou-se. O ambien-
de um Brasil de hiperinflação e de planos eco- te político acirrou disputas, nas quais líderes
nômicos recheados de populismo, mas sem trocaram a empatia com seus liderados por
efetividade de suas propostas econômicas. As influências ideológicas ou de retórica constru-
contas públicas vinham de um descontrole, ída para o caos. As soluções saíram do cam-
desde a construção de Brasília até fortes en- po econômico ou da saúde, e passaram para
dividamentos públicos oriundos de estratégia o campo ideológico e político. Entramos na
estatizante dos governos militares. Esse cená- tempestade perfeita. 
rio trazia a perda de renda dos mais pobres,  Os indicadores de desemprego e inflação,
com o esgotamento da capacidade de investi- somados ao descontrole das contas públicas,
mento estatal, levando a uma profunda crise, nos remetem ao início da chamada Nova Re-
debelada apenas pelo Plano Real, que atacou pública. O crescimento econômico e a distri-
a doença crônica da inflação e do desequilíbrio buição de renda foram perdidos pelos impac-
das contas públicas. A solução econômica só tos da crise que vivemos, potencializados pelo
se tornou possível por conta de um ambiente destempero do momento político em que as
político equilibrado, que fortaleceu a demo- disputas ideológicas se sobrepõem à pauta de
cracia, preparando o Brasil para a construção sobrevivência do povo brasileiro. O aprendi-
de um modelo de desenvolvimento inclusivo e zado das últimas décadas nos ensinou que a
com distribuição de renda.  retomada da economia precisará do equilíbrio
A transição proposta pelo Plano Real foi no ambiente político, com o fortalecimento
permeada de ações paralelas no intuito de da democracia. Serão necessárias medidas de
ajustar a economia e socorrer os excluídos, intervenção do Estado para a inclusão dos
empobrecidos, fossem pessoas físicas ou ju- brasileiros excluídos com alternativa de crédi-
rídicas. Soluções de crédito fora do sistema to e complemento de políticas compensató-
financeiro foram se multiplicando com alter- rias. Mas o custo dessa intervenção deverá ser
nativas de microcrédito ou mesmo de atua- acompanhado de um projeto de organização
ção do varejo em sua ampliação do acesso das contas públicas. Só assim retomaremos o
ao crédito daqueles que não cumpriam as caminho do desenvolvimento com a distribui-
exigências do sistema. A busca pela formali- ção de renda que colocará o Brasil, novamen-
zação de informais, por meio da solução do te, na rota do desenvolvimento.
Microempreendedor Individual (MEI), que deu
condições para que o sistema pudesse enxer- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
gar aqueles que estavam produzindo à mar-
gem do sistema, foi outro passo importante VALDIR OLIVEIRA
para que os ajustes econômicos convivessem

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 29


UM METEORO NO PAÍS DAS PEDALADAS - LEONARDO RIBEIRO

Um meteoro no país das pedaladas


Bolsonaro aposta na legalização de pedaladas fiscais com a PEC 23, que traz mudanças
significativas sobre a forma de pagamento de precatórios pelo Governo Federal

Foto: Reprodução
Judiciário sinaliza caminhos alternativos ao propor teto para pagamento de
precatórios em uma medida similar à proposta do Executivo, mas dispensando a
necessidade de uma PEC

O
orçamento federal será atingi- das despesas discricionárias. Isso quer
do em cheio por um meteoro dizer que a conta de precatórios a ser
na forma de precatórios, e um paga pelo Governo equivale a um novo
míssil precisa destruí-lo, antes orçamento discricionário.    Para quem
do vultoso impacto fiscal. Foi dessa forma não sabe, despesas discricionárias são
que o Ministério da Economia anunciou aquelas que podem ser cortadas no cur-
um passivo de R$ 90 bilhões em 2022, to prazo, diferentemente daquelas ditas
valor bem superior aos R$ 55 bilhões do obrigatórias (Previdência Social e salários
ano corrente. Ato contínuo, o Gover- de funcionários públicos, por exemplo).
no apresentou solução heterodoxa para E precatórios nada mais são do que títu-
destruir o tal meteoro: uma Proposta de los emitidos pelo Governo para atestar a
Emenda Constitucional – a PEC 23 – para obrigação de se pagar uma quantia de
parcelar pagamentos de precatórios aci- valores a pessoas, ou empresas, que ga-
ma de determinado valor, criando moda- nharam na justiça o direito de receber do
lidade de ajuste fiscal do tipo “devo, não poder público um quinhão de recursos: é
nego, pago quando puder”. Análise me- uma dívida do Estado.  
nos ligeira das entranhas da proposta re- Sabe-se também que, desde 2016, vi-
vela negligências e boa dose de irrespon- gora na Administração Pública Federal re-
sabilidade fiscal por parte das lideranças gra fiscal que impede o crescimento das
do Poder executivo, que parecem apostar despesas públicas a taxas superiores à da
na legalização de pedaladas fiscais para inflação. Tal regra é conhecida como Teto
enfrentar as eleições no ano que vem.   de Gastos. Matematicamente, é fácil de-
Para começar, é importante reconhecer monstrar que o Governo não consegui-
o tamanho do meteoro anunciado pela rá quitar as dívidas com precatórios sem
equipe econômica. O Poder Executivo comprometer o funcionamento da má-
conta com R$ 95 bilhões para manter quina pública. Isso porque não há espaço
programas governamentais – as chama- fiscal para acomodar tantas despesas no

30 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


  LEONARDO RIBEIRO - UM METEORO NO PAÍS DAS PEDALADAS

“A ESTRATÉGIA É
mesmo orçamento.  
 Diante desse dilema – pagar precató-
rios ou manter em operação a máquina
pública -, o Governo encaminhou para o
Congresso a PEC 23 com objetivo de par-
celar o pagamento dos precatórios devi-

CLARA: POSTERGAR
dos. A estratégia é clara: postergar o pa-
gamento de despesas obrigatórias para
não efetuar cortes no orçamento discri-
cionário em magnitudes que paralisariam
a máquina pública. Pode-se dizer que tal O PAGAMENTO
DE DESPESAS
medida envolve negligências e irrespon-
sabilidade fiscal. 
Negligência porque não fica claro,
nessa barafunda, o motivo pelo qual os
relatórios oficiais do Governo não iden-
tificaram no radar a chegada deste me-
OBRIGATÓRIAS,
teoro na forma de precatórios. O anexo
de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orça- PARA NÃO
EFETUAR CORTES
mentárias (LDO), por exemplo, não traz
análises prévias sobre o crescimento side-
ral das despesas com precatórios e seus
impactos no financiamento das políticas
públicas.    É impensável imaginar esse
tipo de negligência em uma empresa
NO ORÇAMENTO
privada de grande porte; porém, é ain-
da mais espantoso o Ministro da Econo- DISCRICIONÁRIO EM
MAGNITUDES QUE
mia - acostumado a lidar com riscos no
mercado financeiro - não ter farejado o
aerólito fiscal a tempo. Ou se o fez, não
deu a devida importância à transparência
de eventos que podem afetar o equilíbrio
das contas públicas. 
PARALISARIAM A
  A essa negligência soma-se também
MÁQUINA PÚBLICA


boa dose de irresponsabilidade fiscal. O
parcelamento de precatórios se resume
a uma medida que esconde a situação
real das contas públicas, na medida em
que posterga o pagamento de despesas
obrigatórias. Esse tipo de prática lembra dade de PEC. No entanto, a participação
as pedaladas fiscais praticadas nas elei- do Congresso Nacional será fundamental
ções de 2014: atos ilegais que serviram para trazer segurança jurídica. Uma so-
para gerar resultados fiscais fictícios. Se lução poderia ser desenhada no sentido
aprovada a PEC 23, do jeito que foi apre- de excluir do Teto de Gastos o excesso de
sentada pelo Governo, manobras fiscais gastos com precatórios, fortalecendo-se
estariam sendo constitucionalizadas, si- a governança em torno da gestão fiscal e
nalizando que o Governo Federal não sentenças judiciais. O parcelamento deve
honra as dívidas com precatórios, que ser evitado a todo custo, pois não se trata
nada mais são do que obrigações finan- de um meteoro no país das pedaladas.
ceiras decorrentes de sentenças judiciais.  
De todo modo, o Poder Judiciário vem
sinalizando caminhos alternativos ao pro- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
por teto para pagamento de precatórios
- medida similar à proposta do Poder LEONARDO RIBEIRO
Executivo, mas que dispensaria a necessi-

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 31


CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM ESPECIAL
Foto: Divulgação/Jornalistas Livres

Do prenúncio à nova
tragédia: caso Cinemateca
confirma descaso com cultura
Incêndio mostra, na prática, reflexos da postura de Bolsonaro com o setor
no país

Por Cleomar Almeida

32
SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO
32 2021
CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM ESPECIAL

Foto: Divulgação/Jornalistas Livres


Crise na Cinemateca se arrasta desde a posse do presidente Bolsonaro. Com mais de 250 mil rolos de filmes,
instituição possui o mais rico acervo cinematográfico do país

Dois anos e dez meses separaram o pre- dos ao cinema.  O fogo fez parte do teto do
núncio do risco de mais descaso com a galpão desabar, e o prédio foi interditado.
cultura no Brasil e a tragédia do recente No entanto, a sede da Cinemateca esta-
incêndio que destruiu parte da Cinemate- va fechada desde agosto de 2020, quan-
ca Brasileira, cujos prejuízos, ainda imensu- do o secretário especial da Cultura, Mário
ráveis, são alvo de novas investigações do Frias, tomou as chaves do local com escolta
Ministério Público Federal (MPF), em São
Paulo. Instituições e representantes do se-

Foto: Foto: Arquivo pessoal


tor cultural cobram a responsabilização do
governo do presidente Jair Bolsonaro (sem
partido).
Em setembro de 2018, ainda candida-
to à presidência, Bolsonaro sinalizou com
seu descaso para a cultura, após o incêndio
que atingiu o Museu Nacional, no Rio de
Janeiro. “E daí?”, retrucou, na época, ao
ser questionado sobre o maior desastre que
arruinou o patrimônio científico e histórico
do país. “Já está feito, já pegou fogo, quer
que eu faça o quê?", respondeu à impren-
sa.
Depois de 15 dias do mais recente incên-
dio na história da Cinemateca brasileira, re-
gistrado em 29 de julho deste ano, o gover-
no Bolsonaro seguiu na ofensiva. No último
mês, anunciou demissões de técnicos da
instituição, que preserva o mais rico acervo “Incêndio foi criminoso, não porque
cinematográfico do país, com mais de 250 tenham botado fogo, mas pelo abandono
mil rolos de filmes e mais de 1 milhão de da Cinemateca”, critica o escritor e
roteiros, fotos, cartazes e livros relaciona- cineasta João Batista de Andrade

33 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


REPORTAGEM ESPECIAL - CLEOMAR ALMEIDA
Foto: CBMSP

Parte do acervo da Cinemateca destruído pelo incêndio


ocorrido em julho passado

policial. Agora, ele tornou-se alvo de uma o Ministério da Educação e a Associação


queixa-crime apresentada pela Comissão de Comunicação Educativa Roquette Pin-
de Cultura da Câmara dos Deputados por to (Acerp) chegou a ser suspenso porque
causa do incêndio, que também é investi- o governo não repassou nenhuma parcela
gado pela Polícia Federal. dos R$ 12 milhões previstos no orçamento
“O incêndio foi criminoso, não porque para a entidade gerir o local. Funcionários
tenham botado fogo, mas pelo abandono tiveram salários atrasados.
da Cinemateca, vítima do desejo político Diante da gravidade da situação, o MPF
de destruição da memória, da criatividade ajuizou, em julho do ano passado, ação ci-
e da crítica.  Arquivos de filmes são incen- vil pública e apontou que o grande proble-
diários na essência de suas materialidades, ma foi a má transição na gestão da Cine-
principalmente de filmes antigos, ainda em mateca, de 2019 para 2020: encerrou-se o
nitrato. Deixar a Cinemateca sem funcioná- contrato de gestão da Acerp sem a União
rios é um grande crime”, disse o escritor e se responsabilizar pela continuidade nos
cineasta João Batista de Andrade. trabalhos técnicos internos da Cinemate-
O cineasta ressaltou a “queda brutal nos ca, assumindo-os diretamente ou por ou-
investimentos culturais”. “No cinema, por tro ente gestor.
exemplo, há milhões de reais paralisados na Apesar de ter saído acordada em agosto
Ancine, a agência reguladora e financiado- do ano passado, após o Tribunal Regional
ra do cinema no Brasil.  Enquanto isso mui- Federal da 3ª Região (TRF-3) deferir recur-
tos filmes em produção estão paralisados e so do MPF, essa transição ainda está sendo
uma infinidade de projetos sem viabilidade implementada pela União. A promessa é
previsível. Destruir a cultura é um projeto de que seja firmado um novo contrato de
nefasto de poder. É o que estamos viven- gestão.
do”, criticou ele. O procurador da República Gustavo Tor-
res Soares avaliou a situação como preocu-
Cobrança pante e disse que “a Cinemateca Brasileira
Em 2020, por exemplo, o MPF cobrou corre sério e iminente risco de dano irrepa-
explicações da Secretaria Especial de Cultu- rável por omissão e abandono do governo
ra sobre a falta de repasses orçamentários federal”, responsável pela manutenção e
à Cinemateca Brasileira. O contrato entre preservação dela.

34 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


CLEOMAR-ALMEIDA
CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM
REPORTAGEM ESPECIALESPECIAL
Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília

Desmonte da cultura ficou “mais visível, mais latente” durante o governo Bolsonaro, avalia
Bartolomeu Rodrigues

“Infelizmente, também é público e no- O secretário de cultura do Governo do


tório que, nos últimos anos, em razão da Distrito Federal (GDF), Bartolomeu Rodri-
omissão na gestão de bens culturais, his- gues, afirmou que “o desmonte da cultura
tóricos e turísticos pelo Poder Público, a não é um fenômeno isolado do governo
sociedade brasileira sofreu a perda de inú- Bolsonaro”. “No governo Bolsonaro, isso
meros bens materiais e imateriais dessa ficou mais visível, mais latente. Ele extin-
natureza”, destacou o procurador da Re- guiu o Ministério da Cultura, e organiza-
pública. ções importantes estão hoje tecnicamente
impossibilitadas de fazer alguma coisa pela
“Política destruidora” cultura nacional”, observou, ao lembrar
Professor da Fundação Armando Alvares outros episódios de incêndio na Cinema-
Penteado e doutor em comunicação pela teca Brasileira.
Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Antes deste ano, o fogo já atingiu o local
Universidade de São Paulo (USP), Martin pelo menos outras quatro vezes: em 1957,
Cezar Feijó afirmou que “o caso da cine- 1969, 1982 e 2016, sempre perdendo en-
mateca é o mais flagrante de uma política tre 1.000 e 2.000 fitas em cada. No primei-
destruidora”. “A cultura representa a di- ro, quase todo o acervo foi perdido. O MPF
versidade inaceitável para um projeto que e a Polícia Federal ainda não finalizaram o
se pretende único: autoritarismo”, acen- levantamento exato do estrago provocado
tuou. pelo incêndio neste ano na cinemateca.  
“A cultura é sempre subversiva. Fazer A expectativa é de que os trabalhos se-
alusão à queima de livros do nazismo não é jam concluídos nos próximos meses. De-
desproposital nem retórica. Ela é concreta. pois disso, o MPF vai analisar se pedirá à
Estamos vivendo um desmonte da cultura, Justiça a responsabilização de possíveis
da política do audiovisual, da educação e culpados tanto no âmbito cível quanto na
da ciência”, acrescentou o professor. esfera criminal.

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 35


REPORTAGEM ESPECIAL - CLEOMAR ALMEIDA CLEOMAR ALMEIDA - REPORTAGEM ESPECIAL
Foto: Divulgação/Jornalistas Livres

Governo enfrenta críticas por


causa de novo edital
D
epois da inércia administrativa que das organizadoras de manifestações em fa-
levou ao incêndio na Cinemateca vor da cinemateca.
Brasileira, o governo federal lançou Em maio daquele ano, a direção da Asso-
edital para contratação de organi- ciação de Comunicação Educativa Roquet-
zação social habilitada a gerir o local que te Pinto (Acerp), que já chegou a ter repas-
tem o maior acervo cinematográfico do ses atrasados por parte do governo pela
país, pelo valor de R$ 10 milhões anuais. gestão da cinemateca, chegou à secretaria
A Associação Brasileira de Preservação Au- para tentar negociar um novo contrato, em
diovisual (ABPA) diz que o valor é menos do meio a um quebra-cabeças que colocou o
que a metade do necessário. local como moeda de troca em mesa de ne-
Presidente da Associação Brasileira de Pre- gociações.
servação Audiovisual, Débora Butruce já se Naquela época, a direção da Cinemateca
manifesta há anos contra o valor reservado foi prometida pelo presidente Jair Bolsona-
no orçamento do governo para manter as ro a Regina Duarte após sua demissão da
atividades. Segundo ela, o montante ade- Secretaria Especial da Cultura. A então se-
quado para executar bem todas as ativida- cretária sofreu semanas de fritura antes de
des no local é de R$22,5 milhões. ser demitida depois de ficar menos de três
As propostas poderão ser enviadas até o meses no cargo.
próximo dia 16, mas a publicação do re- A saída de Regina foi costurada pela depu-
sultado definitivo está prevista para 18 de tada federal Carla Zambelli, que chegou a
novembro. A Comissão Técnica é compos- dizer que a nomeação da atriz para a Ci-
ta por servidores da Secretaria Especial de nemateca dependeria só de questões bu-
Cultura, da Secretaria Nacional do Audiovi- rocráticas.
sual, da Agência Nacional do Cinema e do Com a hipótese de rompimento do contra-
Instituto Brasileiro de Museus, designados to de gestão atual e a falta de recursos e de
pela Secretaria Executiva do Ministério do um plano para a Cinemateca por parte da
Turismo. secretaria, o cargo prometido a Regina tem
Em 2020, o governo já havia sofrido críticas se revelado cada vez mais incerto.
após lançar proposta com valor de R$ 12
milhões anuais para a Cinemateca Brasilei- SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
ra. "Esse edital feito a toque de caixa nos
dá medo. Quem vai assumir isso aqui?", CLEOMAR ALMEIDA
disse a pesquisadora Eloá Chouzal, uma

36 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


ANDRÉ AMADO -  A CONSTRUÇÃO DE UM PERSONAGEM

A construção de um personagem 
André Amado analisa, em seu artigo, como se constrói personagens fortes, inspiradores e
impactantes, capazes de levar os leitores a viverem histórias inesquecíveis
Foto: Reprodução/Wilhelm Marstrand (1810-1873)

Foto: Reprodução
Para Milan Kundera, Dom Quixote “é quase impensável como ser vivo e, no entanto, em nossa memória,
que personagem é mais vivo do que ele?”

P “
eguei ao acaso I’ll Walk Alone, de
Mary Higgins Clark, para ler. Ato
sem pensar. A autora já publicou
mais de 30 títulos, muitos dos
quais frequentadores de listas de  bes-
t-sellers, duas razões que, em geral, le-
RAY BRADBURY
vam-me a descartar a escolha. Acontece
que, num primeiro exame, logo nos agra- (1920-2012): “MEUS
decimentos, deparei-me com a seguinte
declaração:
Cheguei ao final, o que quer
PERSONAGENS ESCREVEM
dizer que a história foi contada, a jor-
nada, concluída, e as pessoas, que no A HISTÓRIA PARA MIM.
ELES ME DIZEM O QUE
ano passado não passavam de produto
de minha imaginação, viveram a vida
que escolhi para elas, ou, melhor di-
zendo, que elas escolheram para elas
mesmas. QUEREM, E EU LHES DIGO
Clark acabava de desmontar meus pre-
PARA IR EM FRENTE


conceitos contra livros de produção em mas-
sa, preconceitos que, de resto, não faziam o
menor sentido para quem, como eu, era ad-
mirador habitual de Michael Connelly e John

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 37


A CONSTRUÇÃO DE UM PERSONAGEM - ANDRÉ AMADO

Grisham, ambos autores prolíferos de obras

Foto:Reprodução/Eugène Guiraud/Louvre
de sucesso. Enfim, na beirada de uma estante,
não são raras demonstrações de incoerência. 
Fascinou-me que, em uma frase, Clark
expusesse um dos dilemas centrais dos ro-
mancistas: alimentar a autonomia dos per-
sonagens de suas histórias, ou, ao contrário,
controlar, até mesmo, a respiração deles. Em
uma palavra, confessaria Ray Bradbury (1920-
2012): “Meus personagens escrevem a histó-
ria para mim. Eles me dizem o que querem,
e eu lhes digo para ir em frente. Acompanho
seus movimentos, datilografando o texto à
medida que eles correm ao encontro do des-
tino”. Já Vladimir Nabokov (1899-1977) de-
cretaria: “Se eu quiser que meus personagens
atravessem uma rua, eles atravessam e pon-
to!”
Por sorte, a riqueza dessa discussão re-
jeita posições extremadas. Gustave Flaubert
(1821-1880), a quem se atribui um dos pilares
da literatura ocidental, diria: “O escritor tem
de atuar como Deus: está em todas as par-
tes, mas nunca é visível”. Ernest Hemingway
(1899-1961), outro grande nome da galeria
de escritores, centraria o debate: “Ao escrever
uma novela, o escritor deve criar um ser vivo,
não pessoas com personagens”. Era a pista de
que precisava Milan Kundera (1929-...) para
afirmar: “O personagem não é a simulação de
um ser vivo. É um ser imaginário… Dom Qui-
xote é quase impensável como ser vivo e, no
entanto, em nossa memória, que personagem
Gustave Flaubert: “O escritor tem de atuar como Deus. Está em
é mais vivo do que ele?” 
todas as partes, mas nunca é visível”
Duas outras referências me enchem as


medidas. A primeira, atribuída a Michelange-
lo: Não faço esculturas, apenas retiro o exces-
so de pedras. A outra, de um escritor japonês,

“AO ESCREVER UMA NOVELA, O


por cujo Nobel em Literatura sigo torcendo.
Trata-se de Haruki Murakami, que assim se
expressou em  Killing Commendatore:  “Sem-
pre desfrutei o momento, cedo de manhã, em
que olho intensamente para a tela toda bran-
ESCRITOR DEVE CRIAR UM SER VIVO,
NÃO PESSOAS COM PERSONAGENS”
ca. Chamo-a de ‘Tela Zen’. Ainda não pintei
coisa alguma, mas é mais do que um mero
espaço em branco. O que se esconde naquela


tela branca é o que haverá de emergir. Olhan-
do mais atentamente, descubro várias possi- ERNEST HEMINGWAY
bilidades, que se cristalizam perfeitamente
em como devo prosseguir. Este é de fato meu
momento de prazer. O momento em que a
existência e não-existência se reconciliam”.  SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
Quem sabe não seja esta a melhor ma-
neira de se construir um personagem: recon- ANDRÉ AMADO
ciliar o que queremos que ele seja e o que ele
mesmo pretende ser?

38 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


O QUE RESTA AINDA POR DIZER SOBRE CUBA? - MARCUS VINÍCIUS FURTADO DA SILVA OLIVEIRA

O que resta ainda por dizer sobre Cuba?


Preso ao passado, regime revolucionário cubano é imagem da esquerda utópica que falha ao
enfrentar as questões políticas, econômicas e sociais dessas primeiras décadas do século XXI
Foto:Eliana Aponte/AP

Milhares de cubanos participaram dos protestos contra o governo de Miguel Diaz-Canel, marcado pelas crises
do novo coronavírus e econômica sem precedentes

O
livro reúne fragmentos da vida
e obra de trinta e três mulheres
que foram silenciadas, de uma
forma ou de outra, pelo siste-
ma patriarcal. Esse silenciamento deu-se e,
infelizmente, ainda se dá de modo físico,
emocional e psicológico. Os paradigmas da
“DECLARAÇÕES MARCAM A EXISTÊNCIA
DE UM REGIME ANCILOSADO, REFÉM
DE SEUS PRÓPRIOS PRESSUPOSTOS
inferioridade feminina estão alinhavados à
incapacidade e à fragilidade da mulher, são POLÍTICOS, MAS QUE AINDA É CAPAZ
DE DESPERTAR APOIOS APAIXONADOS
modelos pré-estabelecidos que brotaram de
raízes muito profundas, um sentimento de

EM TODA A AMÉRICA LATINA


insignificância que, até hoje, permeia o uni-
verso feminino, sempre preenchido de culpa,


pecado e certo aspecto profano. Há um peso
extra na existência da mulher, cujos degraus
“autorizados” pelo masculino para uma re-

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 39


O QUE RESTA AINDA POR DIZER SOBRE CUBA? - MARCUS VINÍCIUS FURTADO DA SILVA OLIVEIRA

Foto: Cubadebate
Ilustração retrata Maria Firmina dos Reis,
primeira mulher negra a escrever um
romance antiescravagista, muito antes do
Movimento Abolicionista

sumida e controlada ascensão vêm acompa-


nhados de intolerância, recriminação, restri-
ção e um fardo difícil de suportar. E, assim,
as mulheres ficaram sem registro, sem noto-
riedade, sem condição de ser e de existir por
elas mesmas. 
A importância das sufragistas, por exem-

DEFESA DA REVOLUÇÃO
CUBANA TRATA OS
plo, deve ser divulgada, comemorada e cul-
tuada com imensa gratidão, porque, hoje, a
mulher pode votar e envolver-se politicamen-
PROTESTOS CONTRA O
te, graças a elas, que lutaram e morreram por
esse direito. A história das sufragistas deve
DESABASTECIMENTO E A
ser mencionada de modo extensivo, e deve,
também, fazer parte da grade escolar, seja do
MOROSIDADE DA VACINAÇÃO
Ensino Médio, seja da Graduação. O que não
se pode aceitar mais é essa ausência, esse va-
COMO MANIFESTAÇÕES
zio do feminino nas sociedades. A mulher não
nasceu para ser esposa, filha cativa, mãe ou
DE ESPÍRITO
freira, necessariamente; ela veio ao mundo, CONTRARREVOLUCIONÁRIO


assim como o homem, para ser o que desejar.
A ausência dos feitos e das produções femini-
nas, nas páginas oficiais da história, anula seu

40 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


MARCUS VINÍCIUS FURTADO DA SILVA OLIVEIRA - O QUE RESTA AINDA POR DIZER SOBRE CUBA?


Aspásia de Mileto, pensadora independente
que viveu na Grécia Antiga e que foi o gran-
de amor do estadista Péricles. Passa pelo Ja-
pão medieval e divulga sobre a maior obra do

A RETÓRICA HEROICA
ano 1000: Monogatari Genji, da romancista
Sikibu Murasaki, que conta a vida de Hikaru

DA REVOLUÇÃO
Genji, filho do imperador. Visita Christine de
Pizan, na França, escritora que viveu de seu

CONVIVEU COM AS
talento, não sem dor nem luta e, devido à
violência contra a mulher, idealizou um lugar

DIFICULDADES INTERNAS
de paz, admiração e respeito ao feminino,
um lugar sem a misoginia da corte do Rei

E AS NECESSIDADES
Carlos V, do século XV, e assim, nasce La Cité
de Dames, em 1405.  

DE POSICIONAMENTO
O livro narra, de forma crítica, a dor fe-
minina devido à exclusão, à violência, à ine-

POLÍTICO NO INTRINCADO
xistência, à subserviência e ao silenciamento,
exemplificando essa condição com a vida

XADREZ DA GUERRA FRIA


de Gabrielle Colette, Camille Claudel, Clara


Zetkin, Simone de Beauvoir, Karen Blixen, as
irmãs Brontë, Jane Austen, Hilda Hilst, Maria
Quitéria, Svetlana Aleksiévitch, Emily Dickin-
son, Florbela Espanca, Agnès Varda, Edith
Wharton, Clarice Lispector, Virgínia Woolf,
Cecília Meireles, Mary Shelley, Chimamanda
Ngozi Adichie e muitas outras.  A obra dia-
conhecimento.  loga, ainda, com a poeta indiana Rupi Kaur;
E, no anonimato, viveu Maria Firmina dos com Lilith e Eva; com a imperatriz Maria Le-
Reis, professora e escritora maranhense, que opoldina e Sissi, a rainha da Áustria; com a
se sustentou com o suor de seu trabalho escritora Alice Walker; a pintora Artemisia
e ainda fundou a primeira Escola Mista de Gentileschi; Lady Diana e Rosa Luxemburgo.  
sua cidade, além de ter sido silenciada pelo Trata-se de uma bela homenagem a mu-
sistema, pois é uma ilustre desconhecida - lheres que conseguiram soltar as amarras,
teve sua etnia modificada, porque, em seu que não aceitaram um destino marcado a
livro Úrsula, de 1859, (também fora do circui- ferro e fogo, à custa, em alguns casos, de
to editorial), a imagem estampada na capa suas próprias vidas. 
é de uma mulher branca. Ela foi a primeira
mulher negra a escrever um romance anties-
cravagista, muito antes do Movimento Aboli-
cionista que mobilizou a sociedade brasileira, [1] AGGIO, Alberto. A teoria pura da revo-
por volta de 1870, alcançando a Abolição da lução. SP: O Estado da Arte, 2021. Disponí-
Escravatura somente em 1880, ou seja, 11 vel em: https://estadodaarte.estadao.com.br/
anos antes da luta a favor dos escravos, e 21 teoria-pura-revolucao-aggio-hd/ 
anos antes da Abolição - propriamente dita. [2]  MISKULIN, Silvia Cezar.  Os Intelectu-
Ela foi pioneira em tudo. Mas, afinal, quem ais Cubanos a Política Cultural da Revolução
conhece essa escritora prógona?    Quem (1961-1973). SP: Alameda, 2009. 
leu Úrsula?  [3] HILB, Claudia. Silêncio Cuba: a esquer-
Quantos gritos as mulheres deram na li- da democrática diante do regime da Revolu-
nha da história e, por isso, foram emudeci- ção Cubana. SP: Paz e Terra, 2010. 
das? Ao mesmo tempo em que a jornalista
as ressuscita, uma a uma, denuncia a misogi-
nia contra elas, desde a extinção do sistema SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
matriarcal.  A Incrível Lenda da Inferioridade
tece as histórias dessas mulheres maravilho- MARCUS VINÍCIUS F. DA SILVA
sas, em ordem cronológica, a começar por

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 41


A POÉTICA POLÍTICA DE GLAUBER - LILIA LUSTOSA

A poética política de Glauber


Morte do cineasta, que fez uma reviravolta nas artes para pensar o nacional-popular nos
anos 1960, completou 40 anos no último dia 22 de agosto
Foto: Reprodução

Leni Riefenstahl (D) em foto com Hitler: função política dos filmes de
propaganda do partido nazista e, também, de Olympia é inseparável da
estética específica e inovadora, de Riefenstahl

A
poesia e a política são demais realizado do “alto” de seus vinte anos, até
para um só homem. Com essa o sofisticado e desconstruído A Idade da Ter-
frase, Paulo Martins, protagonis- ra (1980), seu último filme, a obra do cineas-
ta de Terra em Transe, espécie de ta foi evoluindo em progressão geométrica.
alter-ego de Glauber Rocha, jogava na cara Ou seria poética? Partiu do experimentalis-
dos brasileiros os sentimentos de exaustão e mo puro, influenciado pelos neoconcretos
decepção que agonizavam sua alma. O ano com os quais convivia quando de passagem
era 1967 e o país ainda aprendia a conviver por aquela Montmartre tupiniquim que era
com a ditadura militar, mal sabendo que o a Zona Sul do Rio de Janeiro na virada dos
pior estava por vir…  anos 60.
Glauber Rocha, baiano de Vitória da Con- Passou pelo neorrealismo com seu primeiro
quista, entrou para a História como um dos longa,  Barravento  (1962). Bebeu da fonte
maiores e mais polêmicos cineastas brasilei- do romance realista brasileiro dos anos 30,
ros. Com “uma câmera na mão e uma ideia mesclando-o com a cultura popular brasilei-
na cabeça”[1], ele fez poesia e política  ao ra em seu fantástico (meu preferido) Deus e
longo  dos  42 anos  que duraram sua cur- o Diabo na Terra do Sol  (1964). Tudo isso
ta existência. Desde seu primeiríssimo  Pá- sem nunca deixar de lado as lições de Eisens-
tio  (1959), curta-metragem experimental tein, de quem era fã confesso. O resultado

42 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


LILIA LUSTOSA - A POÉTICA POLÍTICA DE GLAUBER


dessa antropofagia oswaldiana foi a criação
de um Cinema Novo, original e revolucioná-
rio, movimento que alçou a cinematografia
brasileira aos píncaros da glória, revelando
que um país de terceiro mundo também era
HÁ 40 ANOS, NAQUELE 22
capaz de fazer cinema de qualidade, mes-
mo com os parcos recursos disponíveis. De
DE AGOSTO DE 1981, UM
repente, nossos filmes passaram a participar
e a concorrer a prêmios nos principais festi-
DOS MAIORES CINEASTAS
vais europeus e latino-americanos, sendo, ao BRASILEIRO PARTIU,
DEIXANDO ÓRFÃOS SEUS
mesmo tempo, legitimados pela intelligent-
sia brasileira.  
Apesar de peça fundamental dessa con-
quista, Glauber nunca foi uma unanimida- FILHOS DE SANGUE E
de, tendo sido criticado por muitos em fun-
ção de sua personalidade autêntica, mística
TAMBÉM TODA UMA
e aparentemente contraditória. Até hoje, há GERAÇÃO DE CINÉFILOS E


os que ainda discutam e rechacem suas ati-
tudes. De fato, o cineasta criou alvoroços,
como no curta  Di-Glaluber  (1977), quando
CINEASTAS
adentrou o enterro de Di Cavalcanti, filman-
do-o no caixão sem autorização da família.
Gerou também grandes comoções, como na e também toda uma geração de cinéfilos e
estreia de Deus e o Diabo, dias antes do gol- cineastas que sabia enxergar genialidade e
pe militar, deixando a plateia estarrecida pela brilhantismo por detrás daquelas cabeleiras,
originalidade, ousadia e beleza de um filme obras e frases revoltas. Uma morte prema-
que trazia a cultura popular nordestina para tura que privou nosso país e nossa gente
a telona. Uma alegoria que partia da histó- de muitas reflexões, manifestos e  protes-
ria real do cangaço para lançar uma profecia tos que hoje se fazem tão importantes. Um
revolucionária: “o sertão vai virar mar e o brasileiro orgulhoso de sua terra, ateu cria-
mar vai virar sertão”. Comprou ainda brigas do por uma mãe protestante e um pai cató-
homéricas, como quando, com seu Terra em lico, admirador do candomblé e da estética
Transe, desagradou a gregos e troianos, ou barroca. Um “profeta alado”, como bem o
melhor, a cariocas, paulistas e baianos, sen- definiu Paulo Emílio Sales Gomes. Um cine-
do condenado pela direita e pela esquerda, asta-pensador que, sem ter o corpo fechado
e até por alguns de seus companheiros de de Lampião, morreu por excesso de política
luta pela descolonização do cinema brasilei- e poesia.  Ah,Paulo-Glauber-Rocha-Martins,
ro. Camaradas que ficaram ainda mais re- que falta você faz! 
voltados, quando o cineasta decidiu elogiar Em tempos olímpicos, a história de Leni
Golbery do Couto e Silva, um dos mentores Riefenstahl me parece bastante apropriada
do golpe de 64. Ou então quando apertou a para refletirmos sobre, até que ponto, a ex-
mão de Figueiredo em Sintra.  celência da arte (ou do esporte) pode se so-
Glauber – ou Gabiru para os bem chegados brepor aos direitos humanos fundamentais.
–, definitivamente não tinha a pretensão de Seria possível (e justo) separar o artista (ou o
agradar maiorias, nem minorias. Era coeren- atleta) do ser humano? A obra, da ideologia
te apenas com suas próprias ideias e com de quem o faz? A estética, da ética?
suas tradições e não-tradições. No começo
dos anos 80, desgostoso com o rumo que [1] Frase criada a partir de uma conversa com
tomava seu país e praticamente abandona- Paulo Cezar Saraceni, que lhe explicava como se
do por seus antigos companheiros, o cineas- fazia cinema moderno. 
ta, já autoexilado do Brasil, foi buscar abrigo
um pouco mais longe, em outro plano. Há SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
40 anos, naquele 22 de agosto de 1981,
um dos maiores cineastas brasileiro par- LILIA LUSTOSA 
tiu, deixando órfãos seus filhos de sangue

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 43


HENRIQUE BRANDÃO - GIOCONDO, UM COMUNISTA ABNEGADO E GENTIL
Foto: Fernando Lemos/O Globo

Giocondo - O Ilustre Clandestino” ajuda a resgatar uma personalidade política de grande importância
para a história da luta pela democracia no Brasil

Giocondo, um comunista abnegado e gentil


Documentário sobre o histórico militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), de Vladimir Carvalho, já está à disposição do grande público no
NOW, da NET

J
á está disponível no NOW o documen- Segundo o diretor Vladimir Carvalho, o do-
tário “Giocondo - O Ilustre Clandes- cumentário levou dois anos para ser realiza-
tino”, do veterano cineasta Vladimir do: “assumi a produção desse filme e fiquei
Carvalho, um dos mais representati- dois anos ralando. É um perfil em segunda-
vos documentaristas brasileiros. Narra a vida -mão, porque é visto pelos raros contempo-
de Giocondo Dias, histórico militante do Par- râneos do Giocondo Dias”, disse o cineasta,
tido Comunista Brasileiro (PCB).   em entrevista para a “Agência Brasília”, em
O filme mostra a participação de Giocondo 2019, quando o longa foi exibido no encer-
em momentos decisivos da política dos co- ramento do Festival de Brasília. 
munistas: o levante militar de 1935, no Rio De fato, o filme se vale muito do depoi-
Grande do Norte, do qual foi o principal líder; mento de quem conviveu com Giocondo. E
o breve período da legalidade pós-Segunda isso tem uma razão de ser. Cuidadoso, sem-
Guerra (1945/47), quando o PCB elegeu 14 pre atuando com extrema discrição, é natural
deputados federais e 1 senador (Luiz Carlos que não exista quase nada de imagens de ar-
Prestes); a luta contra a ditadura e a política quivos dos tempos em que Giocondo atuava
de frente democrática contra o regime militar na clandestinidade.  
fascista, em divergência com as forças de es- É por meio de um mosaico de entrevistas
querda que defendiam a resistência armada; com ex-companheiros de organização que
a campanha pela legalidade do PCB, nos anos emerge a figura de um dedicado militante
de 1980.     comunista, rígido nas normas de segurança,
A trajetória de Giocondo se confunde com mas doce e gentil no convívio pessoal.  
a própria história do velho Partidão. Cabo Em um emocionado depoimento, sua filha,
Dias, como era conhecido por sua patente Ana Maria Dias, fala dos encontros esporádi-
militar, viveu a maior parte da existência na cos com o pai, sempre cercados de extrema
clandestinidade, a serviço da causa em que cautela para não comprometer a segurança.
acreditava. Não é para qualquer um. É preci- Uma situação difícil para os dois. Não é fácil
so a fibra dos fortes e a abnegação dos con- abdicar do convívio familiar. 
victos para suportar, durante tanto tempo, as Dois momentos se destacam no documen-
privações de uma vida clandestina.   tário: o primeiro, é o perfil que Jorge Ama-

44 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021


GIOCONDO, UM COMUNISTA ABNEGADO E GENTIL - HENRIQUE BRANDÃO

Foto: Memória Globo

Vladimir Carvalho levou dois anos para concluir o documentário,


exibido pela primeira vez no encerramento do 52º Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro

do faz de Giocondo no livro “Navegação de Vários depoimentos expõem as divergên-


Cabotagem”, em que o trata por Neném – cias internas, no exílio, entre os membros do
apelido cunhado pela mãe de Giocondo – do Partidão. Nesse cenário, Giocondo se impõe
tempo em que ambos, nascidos na Bahia, por sua capacidade de dialogar, qualidade
agitavam as ruas de Salvador. É uma narrativa destacada por todos. Soube usá-la com ma-
carinhosa. Jorge Amado revela que um dos estria, construindo pontes entre as correntes
personagens de seu romance, “Tenda dos Mi- políticas do partido. Acabou sendo um dos
lagres”, foi inspirado no amigo comunista: “o formuladores e porta-voz da política de frente
coloquei em uma tribuna de comício durante ampla democrática, que o Partidão preconi-
a guerra, falando em nome dos trabalhado- zou na luta contra a ditadura. Sua habilidade
res”.  de ouvir os outros terminou por levá-lo à Se-
O outro trecho marcante do filme é a des- cretaria-Geral do PCB, em substituição a Luiz
crição, em detalhes, da retirada clandestina, Carlos Prestes. 
no auge da Ditadura Militar, de Giocondo do   “Giocondo – O Ilustre Desconhecido” é
Brasil. Prestes já estava em Moscou, desde o um filme importante, pois ajuda a resgatar
início dos anos de 1970. O cerco da repressão uma personalidade política que, por seus tra-
havia apertado sobre os dirigentes do PCB. ços pessoais, avesso aos holofotes, corria o
Muitos, inclusive, caíram e até hoje estão de- risco de permanecer na penumbra. 
saparecidos.   O PCB é a mais antiga organização comu-
Por sugestão de José Salles (membro do nista do país. Ano que vem, será o ano de seu
Comitê Central), que se encontrava na União centenário. Com certeza, Giocondo Dias será
Soviética, montou-se uma complexa opera- lembrado como uma das figuras decisivas na
ção que envolveu comunistas brasileiros e ar- construção da bela trajetória de lutas dos co-
gentinos, além de dirigentes da antiga URSS. munistas. 
Os depoimentos relatam em minúcias o vai
e vem dos procedimentos que acabaram por
levar Giocondo a Moscou, em 1976. Em todo SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
o processo, o cabo Dias manteve-se sereno
e disciplinado, preocupado com a segurança HENRIQUE BRANDÃO
dos demais envolvidos. 

SETEMBRO 2021 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA 45


ENDEREÇO: CLEOMAR ALMEIDA
Fundação Astrojildo Pereira - SEPN Secretário de redação
509, bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis Tel:. (61) 3011-9260 / 3011-9300
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46 REVISTA POLÍTICA DEMOCRÁTICA SETEMBRO 2021

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