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A ENCRUZILHADA DE ALLENDE: ENTRE A DEMOCRACIA E A

REPÚBLICA

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira1

Há 50 anos, em setembro de 1970, Salvador Allende era eleito presidente do


Chile pela Unidade Popular. Em meio às tensões políticas internas e externas, Allende
anunciava a novidade e o desafio da construção da via chilena para o socialismo que,
destoando dos demais processos revolucionários armados, pretendia transitar para o
socialismo a partir da ordem e das instituições democráticas. Conforme aponta Alberto
Aggio (2002), o êxito desse desafio implicava a produção de uma novíssima formulação
política capaz de conciliar o desejo de transformar profundamente a sociedade chilena e
a manutenção de seu ordenamento democrático. Todavia, no curto período do governo
Allende, essa novidade política enfrentou inúmeras contradições internas e não
floresceu. Nesse sentido, o presente trabalho pretende investigar as ambiguidades
presentes no conceito de democracia compartilhado por Allende e pela Unidade
Popular, no sentido de demonstrar como tal definição, condicionada por uma
perspectiva revolucionária, foi incapaz de conciliar-se com a república e a democracia
chilenas. Nessa cisão reside, entre outras tantas variáveis, a perda de legitimidade da
Unidade Popular. Para captar a existência dessas ambiguidades tomaremos como fontes
históricas alguns discursos proferidos por Allende durante seu período na presidência.
Em sua narrativa sobre a história da democracia, John Dunn (2016) marca que,
embora herança importante para a contemporaneidade, a democracia ateniense sofreu
diversas críticas. Aristóteles, na Política, afirma a democracia como um dos possíveis
governos em acordo com a natureza. Contudo, esse governo da multidão oferecia seus
riscos e poderia degenerar-se em uma tirania. Para evitar os riscos, era preciso criar
anteparos aos ímpetos da multidão. No mundo romano, apesar da forte influência grega,
a experiência de uma democracia direta tal qual a ateniense não se repetiu. Para os
romanos, a República, com suas instituições e sua aristocracias, constituía a
possibilidade de manutenção das fundações de Roma diante de seus inúmeros conflitos.
Com o fim da Antiguidade, o termo democracia praticamente desaparece do vocabulário
político europeu, sendo paulatinamente retomado no século XIII na península Itálica.

1
Pós-doutorando em História pela Unesp/Franca, mestre e doutor em História e cultura política pela
mesma instituição.
No entanto, para Dunn, a retomada decisiva do conceito de democracia ocorre
no século XVIII, no contexto das revoluções americana e francesa. Ao analisar essa
retomada, Dunn pretende marcar a diversidade dos significados e experiências políticas
produzidas nos Estados Unidos e na França. Na França, vinculada ao jacobinismo, a
democracia almeja a construção de uma sociedade igualitária que, desafiando uma
recém instaurada ordem egoísta, termina por impor a igualdade a partir do despotismo.
Ao contrário, a democracia elaborada nos Estados Unidos a partir das ideias dos
federalistas, conjugava a participação política com um princípio representativo
responsável por filtrar os ímpetos da multidão:

No lugar daquele perigoso projeto de nivelamento e homogeneização,


Madison oferece um modelo diferente que promete trazer a solução
para os males da democracia: “uma República, pela qual entendo um
Governo no qual o sistema de representação tem lugar”. Uma
república, no sentido de Madison, diferia de uma democracia pura de
várias formas. “Os dois grandes pontos de diferença entre uma
Democracia e uma República são, em primeiro lugar, a delegação do
governo, no último caso, a um pequeno número de cidadãos; depois,
um número maior de cidadãos e um maior território, sobre o qual se
pode estender”. (DUNN, John, 2016: 116-117)

A junção entre República e Democracia proposta por Madison visava


responder de maneira inovadora aos tradicionais dilemas que preocuparam os antigos. A
instituição da República, além de conferir um momento fundacional para os Estados
Unidos, pretendia contrabalancear a distribuição do poder político entre a União e os
estados. Isso implicava concepções de liberdade e igualdade diversas daquelas
propostas pelos revolucionários franceses. No arranjo político norte-americano, a
igualdade perde intensidade para conviver com uma liberdade adequada a um
ordenamento individualista.
No decorrer dos séculos XIX e XX, a tradição de governo misto inaugurada
nos Estados Unidos se prolonga por todo o Ocidente, ainda que com diferenças e
especificidades nacionais. Compreender esse percurso histórico da formação da
democracia na contemporaneidade contribui para a compreensão da envergadura dos
desafios enfrentados pela via chilena para o socialismo. Para Allende, não se tratava
apenas de transitar para o socialismo a partir da democracia, mas de transformar os
sentidos da democracia no Chile.
Em seus primeiros discursos proferidos entre setembro e novembro de 1970,
Allende (1973) afirmou sua vitória presidencial como o avanço de determinadas
tradições políticas chilenas. Ressaltando a continuidade da democracia e da república,
Allende buscava situar a via chilena na história nacional, de modo que, ao realizar a
liberdade do povo chileno, a transição proposta pela Unidade Popular realizaria a
segunda, e mais significativa, independência do Chile. Portanto, como na canção
entoada por Inti-Illimani, dessa vez não se tratava de apenas mudar o presidente.
Contudo, a tentativa de enraizamento nas tradições políticas republicanas e
democráticas encontrou seus limites na expectativa revolucionária que conduz os
discursos de Allende. Discursando por ocasião do primeiro ano de governo, Allende
apontou que a concretização da revolução chilena ocorreria por meio da superação da
democracia burguesa:

Mas quero insistir. Ninguém que conheça realmente a doutrina


marxista pode duvidar do caráter revolucionário do Governo Popular
chileno e do caminho que escolheu e segue. Não há revolução sem
transformação da estrutura social. Não há Governo Revolucionário
que não tenha obrigação de manter a ordem pública. Ambos
pressupostos se fundem em nosso governo. A ordem pública de um
Governo Revolucionário não é a ordem pública de uma democracia
burguesa. Nossa ordem pública está baseada na igualdade social e usa
persuasão como ferramenta. É essa a ordem que necessitamos para
mudar as estruturas. É a ordem do povo que se faz Governo, é a ordem
pública de um país revolucionário. (ALLENDE, 1973: 101) [Tradução
nossa]

Nesse discurso, o tempo da revolução entra em conflito com o tempo da


democracia. Respondendo aos críticos da via chilena, Allende reafirmou seu
pertencimento ao marxismo e a uma expectativa revolucionária que, para lograr êxito,
precisa revolver a ordem política e social preexistente. Ao estabelecer um contraponto
entre a democracia burguesa e a ordem pública do Governo Revolucionário, o discurso
de Allende retoma a noção marxista das instituições como desdobramentos políticos das
classes dominantes. Nessa leitura, a democracia aparece como forma política
responsável por garantir a dominação burguesa, não havendo, portanto, espaço para
transformações históricas dentro da ordem. A concepção de democracia defendida por
Allende se afasta decisivamente da tradição de um governo misto entre república e
democracia. Na medida em que pretende igualar povo e governo, Allende ultrapassa as
instituições republicanas e extrai a legitimidade para transformação da ordem do próprio
povo chileno.
Portanto, as concepções de Allende acerca da democracia criaram uma
contradição de difícil solução para o governo da Unidade Popular. Para além das
pressões pela radicalização do governo, da Guerra Fria ou mesmo da visita de Fidel
Castro, o desafio da criação de uma transição ao socialismo dentro das instituições
democráticas encontrou as ambiguidades do próprio conceito de democracia. Orientado
por uma perspectiva revolucionária da democracia, Allende almejou ser o Companheiro
Presidente que promoveria a ascensão do povo ao governo. Com isso, sua estratégia
política confrontava diretamente com as definições de política e democracia vigentes no
Chile, de modo que transitar para o socialismo via democracia significava também o
rompimento com uma determinada ordem democrática e republicana.
Meio século após o anúncio desse imenso desafio, não se trata de pontuar a
vitória determinante de um regime democrático ou sua inevitabilidade. Ao contrário, os
dilemas enfrentados por Allende podem contribuir para uma reflexão em torno dos
problemas das democracias no século XXI. Como atestou Pierre Rosanvallon (2017),
em virtude da complexidade das tramas sociais e do recrudescimento do individualismo,
as possibilidades de representatividade política se tornaram mais exíguas. Trata-se,
portanto, de enfrentar o desafio da conciliação da perpetuação do ordenamento
democrático e republicano com amplas possibilidades de representação da sociedade. A
partir de propostas e expectativas distintas, a encruzilhada enfrentada por Allende ainda
é nossa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. SP:


Annablume, 2ª edição, 2002.
DUNN, John. A história da democracia: um ensaio sobre a libertação do
povo. SP: Unifesp, 2016.
ROSANVALLON, Pierre. O parlamento dos invisíveis. SP: Annablume, 2017.

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