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A GRANDE BELEZA: A FORÇA DAS RAÍZES

Alguns dias de férias da tese significa também encontrar um tempo para outros
prazeres e para o exercício de outros tipos de escrita que não a acadêmica. Apesar disso,
decidi não me desligar inteiramente dos interesses acadêmicos e de meu objeto de
pesquisa, o intelectual italiano Antonio Gramsci. Por isso, antes de voltar às releituras de
Gramsci, que ocuparão boa parte do ano, resolvi fazer um breve mergulho na cultura
italiana a partir de seus escritores e diretores de cinema.
Nesse mergulho, que nem sequer beira qualquer profundidade, no fim de uma
madrugada revi A Grande Beleza, do diretor Paolo Sorrentino. O impacto foi avassalador,
bem maior que da primeira vez, também em uma dessas madrugadas de janeiro. O filme,
vencedor do Oscar de Melhor filme estrangeiro de 2014, narra o cotidiano do escritor Jep
Gambardella na cidade de Roma.
Gambardella, autor de um único e grandioso romance, acaba de completar 65
anos diante de um cenário que beira sua decomposição. Diante das festas e conversas
entediantes com grandes pretensões intelectuais e artísticas, regadas à performances
vazias, Roma aparece como uma personagem, ao mesmo tempo, maravilhosa e opressa.
A cidade, retratada entre o drama e a pureza, impõe sua beleza frente ao vazio desse
cotidiano.
Assim, após seu aniversário Jep é tomado por uma espécie de epifania. Aos 65
anos não se pode mais gastar o tempo como aquilo que não se quer fazer. As concessões
e os convites aceitos por cortesia não pertencem à uma vida que está se esgotando.
Todavia, as mortes de personagens mais jovens agravam o vazio experimentado por
Gambardella, que permanece há décadas sem escrever um romance, em busca da grande
beleza.
Diante disso, a força de perseguir de beleza é extraída precisamente daquilo que
aparenta ser mais fraco e decomposto. Em determinado momento, uma missionária de
quase 104 anos de idade, apreciadora da obra de Jep, anuncia sua vinda à Itália. A senhora,
encarada com ares de santidade pelos bajuladores à sua volta, pouco fala, ostentando o
olhar perdido de um corpo praticamente esgotado. A cada instante, parece que um suspiro
pode lhe tirar a vida.
Aqui, há uma aproximação delicada entre Jep e a missionária. Ambos vivem em
círculos sociais vazios e entediantes. Todavia, em uma de suas poucas falas, a missionária
revela a Jep o caminho para o reencontro da beleza. Ao indaga-lo sobre as razões de
jamais ter escrito um outro romance, Jep, que pela primeira vez responde com sinceridade
à pergunta, afirma estar procurando ainda pela grande beleza. Rodeada pela majestade de
vários flamingos que pousam na sacada de Jep, a missionária responde com outra
pergunta: “sabe por que eu como somente raízes? Porque raízes são importantes.” Nesse
momento, a missionária se volta novamente para os flamingos, sorri com poucos dentes
restantes na boca, e com um suspiro faz com que os flamingos revoem da sacada.
Nessa cena, o filme atinge seu ponto mais sublime. A fragilidade do corpo da
missionária abre espaço para a manifestação de sua força, que não provém da jovialidade
e tampouco se extingue nos estertores da velhice. A força e a potência que permitem
buscar a grande beleza que perpassa a vida se encontram na importância das raízes.
Esquecê-las significa perder-se nas agruras de um cotidiano oco, incapaz de perceber a
beleza submersa na própria vida. Com isso, Jep retorna ao seu passado, rememorando
suas raízes, os instantes em que a beleza irrompeu à superfície, de onde extraiu a força
para seu romance.
O passado, nessa perspectiva, ou mesmo a velhice, não significam decadência
ou anacronismo. Ao contrário, rememorar o passado se torna um evento poderoso capaz
de romper com a continuidade do vazio do presente, como coloca Walter Benjamin em
suas teses sobre o conceito de história. Pensar o passado por esse caminho é ainda mais
significativo dentro de Roma. Sorrentino explora a sobreposição dos tempos na cidade,
marcando como o passado convive com o presente dentro das cidades. Nesse sentido, as
raízes rememoradas podem não ser somente as de Jep, mas também às de Roma.
Assim, as memórias dos homens se misturam às memórias das cidades em que
habitamos. Nossas memórias individuais se entrelaçam aos espaços, se entrecortam com
as memórias coletivas produzidas no concreto. Rememorar, diante disso, não é um
exercício de preservação nostálgica do que irrecuperavelmente se foi, mas a retomada no
presente da potência daquilo que nos é essencial. Com isso, Sorrentino nos coloca, pela
figura de Jep Gambardella, prontos a caminhar por nossas cidades e vidas, em busca de
nossas grandes belezas. Que nossos romances comecem!

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