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OS PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA “A BELA E A

FERA”, ADAPTADA AO CINEMA

Luis Eduardo Menezes Melo

RESUMO: A infância é rodeada de histórias folclóricas, brincadeiras, músicas e filmes, que


alimentam a imaginação. Sempre fomos encantados pelas belas histórias fantásticas,
presentes nos filmes infantis, com princesas, vilões e mocinhos. A luz da Análise de
discurso, que pressupõe a não existência de discurso inocente, procuramos entender, a
partir do filme “A bela e a ferra”, que é tomado como objeto de análise, os discursos que
circulam nas narrativas infantis e são passados de forma subjetiva (considerando a não
subjetividade do sujeito) para os meninos e meninas. Sugerimos que nesses discursos há
uma intencionalidade pedagógica, uma vez que encontramos situações que envolvem,
sensibilizam, transformam, formam, firmam valores, sentimentos e posicionamentos para os
que assistem. Daí, a pertinência de trazer para a discussão a inserção das obras infantis na
formação das crianças.

Palavras–chave: Análise de discurso; Narrativas infantis; Valores sociais e morais.

SUMMARY: Childhood is surrounded by folk stories, plays, music and films, which nourish
the imagination. We have always been enchanted by the beautiful fantastic stories, present
in children's movies with princesses, villains and good guys. The light of the analysis of
discourse, which assumes that there is no innocent speech, we understand, from the movie
"Beauty and the iron," which is taken as the object of analysis, the discourses that circulate in
the children's narratives and are passed in order subjective (not considering the subjectivity
of the subject) for boys and girls. We suggest that these discourses there is a pedagogical
intention, once we find situations involving, sensitize, turn, form, firm values, feelings and
attitudes to those who attend. Hence, the relevance of bringing the discussion to the
inclusion of children's works in the training of children.

Keywords: Discourse analysis; children's narratives, social and moral values


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INTRODUÇÃO

Desde a infância, a maioria das pessoas começa a ter acesso aos contos
infantis. As histórias narradas nos contos envolvem, sensibilizam, transformam,
formam, firmam valores, sentimentos e posicionamentos em quem os lêem. O fato é
que, nas histórias infantis, existem significações que se mantém, porque há uma
“intenção” pedagogia nelas. Podemos entender melhor com a citação a seguir, em
que Bettelheim (2007) explicita a idéia de que a criança aprende se divertindo:

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas esclarece sobre si


própria e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece
tantos níveis distintos de significado e enriquece a sua existência de
tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à profusão e
diversidade das contribuições dadas por esses contos à vida da
criança.
(BRUNO BETTELHEIM, 2007, p.98)

Acreditamos que muitos valores e sentimentos chegam às pessoas e se


constituem como formações imaginárias através das narrativas infantis, porque as
narrativas mantêm-se na memória e manifestam-se no sujeito cada fez que ele
escuta ou lê uma das histórias. O sujeito sente, identifica-se com as formações
discursiva que se encontram instaladas nos discursos. É comum vermos adultos já
formados se reportarem às narrativas infantis como o “Patinho feio”, quando querem
fazer alguma comparação. Contudo, tal comparação surge a partir da identificação
do sujeito com a formação discursiva dominante, com um discurso pré-construído e
ideologicamente marcado pelos valores e sentimentos.
Há relatos de pessoas que afirmam ter sentido pena, dó, vontade de consolar,
de ajudar o “Patinho feio” quando escutaram ou leram o conto na infância. Ao
analisarmos essa postura, do ponto de vista da Análise de Discurso, podemos dizer
que tais sentimentos se manifestam porque essa pessoa é afetada pela ideologia da
formação discursiva dominante, ou seja, ao ter compaixão do feio, ela reconhece o
valor o belo.
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A ideologia é assimilada do meio social, de modo que, ao chegar à fase


adulta, a pessoa que, muitas vezes, se sente como o patinho feio, deparando-se
com outros patinhos feios em diversas situações, acredita que a atitude de
compaixão pelo feito é uma referência ao mundo ético-moral consciente e
inconsciente. Mas, visto do ponto de vista da Análise de Discurso, tal pessoa é,
antes de tudo, afetada pela ideologia dominante, que considera “o belo” aceitável e
abomina “o feio”.
As formações imaginárias que orientam a sociedade fazem crer que um filme
infantil deve, antes de tudo, primar pela função do entretenimento. No entanto, a
representação fílmica infantil nos incita a grandes discussões sobre os lugares
sociais a serem assumidos pelos indivíduos no meio social, posições que são
ideologicamente marcadas, que tratam de temas como: amizade, consciência
ecológica, família, valores que permitam a convivência social de uma forma
aceitável.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para desenvolver este trabalho, tomamos os dispositivos teóricos e práticos


da análise do discurso, pois permitem que sejam emitidos função de sujeito,
formação discursiva, formações ideológicas e gestos de interpretação sobre o
tema contos de fadas, mas, especificamente, a história da “A Bela e a fera”
adaptada para o filme.

Pêcheux (1997), em "Semântica e Discurso", afirma que o lugar do sujeito não


é vazio, sendo preenchido por aquilo que ele designa de forma-sujeito, ou sujeito
do saber de uma determinada Formação Discursiva (FD). É, então, pela forma-
sujeito que o sujeito do discurso se inscreve em uma determinada FD, com a qual
ele se identifica e que o constitui enquanto sujeito. E, conforme o que nos aponta
Pêcheux (op. cit), “a forma-sujeito tende a absorver-esquecer o interdiscurso no
intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o
interdiscurso aparece como o puro “já dito” do intradiscurso, no qual ele se articula
por “co-referência” (PÊCHEUX,1995,p.167). Assim, a forma-sujeito realiza a
incorporação-dissimulação dos elementos do interdiscurso, o que aponta para o
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efeito de unidade/evidência do sujeito. E é efeito porque essa unidade é apenas


imaginária

Ao tomarmos, por exemplo, o sujeito do discurso de a feiticeira e o príncipe é,


via forma-sujeito, que ela “vai” ao interdiscurso lá onde circulam tanto os saberes
da manifestação mítica quanto os do senso comum recorta, incorpora o que lhe
interessa desses diferentes saberes, identificando-se com a FD do discurso
midiático da Bela e a Fera e traz os enunciados pertencentes a esses saberes à
ordem intradiscursiva, linearizando-os no fio do discurso e materializando, assim,
um discurso que pretende divulgar ao leitor embora faça todos esses movimentos
inconscientemente, isto é, sem se dar conta disso.

E Pêcheux (1997) confirma esse caráter ilusório da forma-sujeito, ao retomar


essa noção na conclusão de “Semântica e Discurso”. Diz o autor: “A forma-sujeito
do discurso, na qual coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação e
produção de sentido, realiza o non-sens da produção do sujeito como causa de si
sob a forma da evidência primeira” (PÊCHEUX, 1997, p. 265 e 266), o que nos
aponta para algo que é bem conhecido na AD: o sentido só se produz pela relação
do sujeito com a forma-sujeito do saber e, conseqüentemente, pela identificação do
sujeito com uma determinada FD. Pêcheux (op. cit) chama de posição-sujeito a
relação de identificação entre o sujeito enunciador e o sujeito do saber (forma-
sujeito).

Orlandi, em seu artigo “Do sujeito na história e no simbólico” afirma que “o


sujeito, na análise de discurso, é posição entre outras, subjetivando-se na medida
mesmo em que se projeta de sua situação no mundo para sua posição no discurso”
(ORLANDI, 1999, p. 17). Diante desta reflexão a autora está se referindo aqui ao
lugar social/hitórico do sujeito que, ao se subjetivar, ocupa uma determinada
posição no discurso. Ainda nesse mesmo texto, a autora vai tratar do modo como a
“materialidade dos lugares dispõe a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a
resistência desses sujeitos constitui outras posições que vão materializar novos
lugares” (ORLANDI, 1999, p. 21). Outra vez, ela faz referência à passagem do
lugar histórico para a posição discursiva, ou seja, ao passar para a ordem do
discursivo, o sujeito já é tomado enquanto posição.

Assim, a relação do sujeito enunciador com o sujeito de saber e,


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conseqüentemente, com a posição-sujeito é deslocada para as relações de


identificação/determinação do lugar discursivo tanto com a forma-sujeito histórica
(ordem da constituição/do interdiscurso), quanto com a posição-sujeito (ordem da
formulação/do intradiscurso).

INDURSKY (2000, p. 77), ao caracterizar a forma-sujeito como dispersa e


fragmentada, afirma que “cada posição-sujeito representa diferentes modos de se
relacionar com a forma-sujeito”. Seguindo essa reflexão da autora e considerando
o modo como estou propondo que pensemos a função do lugar discursivo, eu diria
que cada lugar discursivo representa diferentes modos de se relacionar não só com
a forma-sujeito, mas também com as diferentes posições-sujeito que ele pode
abrigar. Abre-se espaço, portanto, para mais uma categoria de análise entre a
forma e a posição-sujeito do lugar discursivo.

Eni Orlandi afirma que o gesto do analista é determinado pelo dispositivo


teórico, enquanto o gesto do sujeito comum é determinado pelo dispositivo
ideológico. Sem esquecer que determinar significa ser constitutivo e não relação de
causa/efeito, muito menos mecânica Nos dois gestos termos mediação.Mas a
mediação da posição construída pelo analista não reflete, ao contrário, trabalha a
questão da alteridade.Na mediação do dispositivo ideológico, o sujeito está sob o
efeito do apagamento da alteridade(exterioridade, historicidade):daí a ilusão do
sentido lá, de sua evidência. Orlandi (2007, p. 84).

Pode-se observar esse processo de deslocamento ocorrendo com o príncipe


do conto analisado, onde não se inscreve em uma formação discursiva, mas entre
uma relação crítica com o conjunto complexo das formações.

2 ANÁLISE DO CORPUS

2.1 OS SENTIDOS QUE SE INSTALAM NA ABERTURA DA TRAMA

No efeito de construção de sentidos do filme “A Bela e a Fera”, em um gesto


de interpretação, observamos a existência de um jogo, no qual o enredo profundo
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encanta independente do idioma ou do tempo em que ocorre, porque há nele


sentidos que são universais. Há um caráter pleno, próprio dos contos de fada, que
trabalha em uma perspectiva filosófica, otimista. Valendo-se para isso de um
discurso pedagógico, próprio da filosofia. A sensação de satisfação torna-se maior
quando se atrela a todo encantamento da história as imagens, as cores, as formas e
os sons, diversos sistemas de signos, cujos

[...] sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do


homem com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em
processos de significação diversos: pintura, imagem, música,
escultura, escrita, etc. A matéria significante-e/ou a sua percepção –
afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele. (ORLANDI, 2007,
p.12)

Em se considerar que a matéria significante se apresenta em diversas


plasticidades, é preciso reconhecer sua pluralidade para se chegar aos processos
discursivos. No começa da narrativa, a apresentação do cenário e dos personagens
já permite identificar os diversos sistema de signos (verbal, musical, imagético e
plástico), que trabalham em harmonia para constitui os sentidos.
De modo que, no espaço de representação, o príncipe que se apresenta na
exterioridade como belo e poderoso (qualidades positivas), apresenta-se na
interioridade como mimado, egoísta e grosseiro (qualidades negativas). O conflito
que se estabelece na constituição do personagem permite que se verifique o
processo de individuação (1) do príncipe, quando se identifica com o lugar da
aparência. Ao negar ajuda a uma velha mendiga, o príncipe revela sua face interior
(o inconsciente). Logo em seguida, ele é surpreendido com a transformação da
mendiga em uma feiticeira.
A individualização é uma das formas de interpelação ideológica e produz efeitos
diversos nos processos de identificação dos sujeitos. Do processo de interpelação resulta a
forma-sujeito histórica, com sua materialidade. Interpelado pela ideologia, o sujeito
individualizado é um constructo resultante de um processo simbólico – a individualização.
Vejamos a cena:
Figura 01: O príncipe repugnado pela aparência da velha mendiga.
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(Imagem extraída do filme A Bela e a Fera)

Temos a partir daí, o desenvolvimento da ação propriamente dita. Em um


passo de mágica, a feiticeira promove a transmutação do ambiente, ou seja, os
seres vivos e objetos que compõem o cenário modificam suas naturezas, tornam-se
o seu outro, ou seja, o Belo transforma-se na Fera, os objetos inanimados tornam-se
animados.
Para chegarmos aos sentidos que se materializam na narrativa, seguimos os
passos de Orlandi (2007, p. 18), para quem:

A interpretação é um “gesto”, ou seja, é um ato no nível simbólico.


Sem esquecer que a palavra gesto, na perspectiva discursiva, serve
justamente para deslocar a noção de “ato” da perspectiva
pragmática; sem, no entanto,desconsiderá-la. Ela se dá porque o
espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o
silêncio. A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da
ideologia e é ”materializada” pela história.

Tomando com base o gesto da feiticeira na transformação dos personagens,


podemos dizer que uma “Lei Maior”, que funciona no nível do simbólico, faz com que
o feitiço revele o interior da Fera, trazendo para a exterioridade um ser que na sua
individuação apresenta-se como feio, grosseiro e rude. Transmite, de forma
representada, a ideia de interior (inconsciente), refletindo no exterior (consciente), no
comportamento humano. Nestas circunstâncias, a única coisa que traria a redenção
à Fera seria o amor manifestado de uma forma sincera. Diante disso, não podemos
perder de vista que:

[...] o sentido é sempre uma palavra, uma proposição por outra e


essa superposição, essa transferência (“meta-phora”) pela qual
elementos significantes passam a se confronta, de modo que se
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revestem de um sentido, não poderiam ser predeterminada por


propriedades (intrínsecas, eu diria) da língua. Isso seria admitir,
continua Pêcheux (idem), que os elementos significantes já estão,
enquanto tais, dotados de sentidos. Ora os sentidos só existem nas
relações de metáfora dos quais certa formação discursiva vem a ser
o lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões,
proposições recebem seus sentidos das formações discursivas nas
quais se inserem.
(ORLANDI, 2007, p.21)

Os elementos significantes adquirem sentidos de acordo com a formação


discursiva que o domina. Eles se valem do interdiscurso (que tem como
característica ser saturado), para, em um processo parafrástico, superpor ou refutar
a formação discursiva dominante. Nesse último caso, a memória discursiva (que tem
como característica ser falha) instala outra formação discursiva diferente da
dominante. Vejamos a seguir como os discursos se superpõem e, ao mesmo tempo,
questiona seus significados:

Figura02: Transformação da feiticeira.

(Imagem extraída do filme A Bela e a Fera)

A feiticeira é sempre “velha” feia, assim consta da formação discursiva


dominante. A experiência da feiticeira permite que se dirija ao príncipe com um
discurso, no qual aconselha a Fera não se deixar enganar pelas aparências.
Discurso que depois a Fera usa para tentar convencer a Bela de que há “algo mais”
além da aparência, e, assim, a formação discursiva dominante vai se mantendo.
A Fera apresenta-se como uma figura mítica, com características físicas de
diversos animais, tais como, porco do mato, leão e búfalo (animais selvagens),
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formação discursiva dominante. Mas o olhar enigmático, que transmite sinceridade,


faz com que as relações sejam consideradas complexas, porque a Fera, ao
descortinar a janela da alma, refuta a formação discursiva dominante, ou seja,
enxergar o homem que se encontra no interior do bicho, instala assim outra
formação discursiva diferente da dominante (um animal dócil).
Na interação, Bela teria que aprender a lidar com esse mundo mágico. Mas
sem esperanças, Fera diz: “Ela sempre verá em mim só um monstro...!”. O
narrador, no início do filme, deixa a seguinte pergunta no ar: “Quem seria capaz de
amar um monstro?”.

Figura 03: A Fera

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especial/)

Na constituição dos sentidos, o cenário acompanha o estado de ânimo dos


personagens. De modo que, antes da manifestação mítica, o castelo era reluzente,
gigantesco e celestial, com lindas imagens de anjos. As cores claras tomavam conta
do espaço e a luz do sol invadia o salão. Depois do feitiço, o espaço transforma-se
totalmente: as imagens tornam-se diabólicas, demoníacas. A ausência de luz faz
com que o ambiente torne-se nebuloso. Nesse espaço de representação, o castelo
apresenta-se como situado em uma tenebrosa floresta, obscura, cheia de lobos
famintos e morcegos.
Em um gesto de interpretação dizemos, com base de Orlandi (2007), que o
espaço simbólico é marcado pela incompletude, pela relação com o silêncio e a
interpretação é vestígio do possível. De modo que os criados antes do feitiço eram
considerados pelo príncipe como objetos, depois da transformação, tornaram-se
objetos animados. Dentre as personagens que se transformaram em objetos,
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encontramos Madame Samová (o bule) e seu filho Zip (uma xícara), dois amigos
Ornoz (o relógio) e Lumier (o castiçal). Aparecem também seres como o cachorro,
que se transforma em um banco de descanso para as pernas, o armário, o
espanador, as vassouras e louças.

Figura04: Lumier, Madame Samová e Ornoz.

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Bela, no filme, é filha única. Mora apenas com o pai. Em momento algum, há
referência à figura materna. Bela é uma mulher à frente do seu tempo. Ela entoa
canções cujo tema é a busca por algo mais, que a vida do interior não pode lhe dar.
Na aldeia, tudo para bela é sempre igual, monótono. A existência não tem sentido.

2.2 OS DISCURSOS QUE SE CRUZAM NO DESENLACE DA TRAMA

A partir do anseio de Bela em busca de “um mundo bem mais amplo, com
coisas lindas para ver...” é que ocorre o desenlace da história. Vejamos a seguir a
cena em que ela canta e dança em uma biblioteca:

Figura 05: Biblioteca.


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Na simbologia da cena, podemos observar a liberdade da personagem tanto
no movimento corporal quanto na formação das ideias que os livros podem lhe
proporcionar. É como se Bela estivesse apta subir os degraus da aprendizagem e
abraçar o mundo.
Ao demonstrar o interesse pelos livros, ela assume um discurso pedagógico
de incentivo à leitura. Mostra que os sentidos materializados nas histórias dos livros
conduzem os indivíduos, em um passo de mágica, para lugares distantes, onde
encontraremos príncipes encantados. No entanto, os hábitos de Bela não deixam de
causar estranheza aos moradores da aldeia, tendo em vista que a leitura não fazia
parte do universo feminino, era uma prática, puramente masculina. Daí, entoarem
uma canção na qual questiona os hábitos de Bela: “sonhadora criatura, tem mania
de leitura, é um enigma para nós a nossa Bela...”.
O tema da leitura volta a ficar em foco quando a Fera, na tentativa de
conquistar o coração da amada, faz uma surpresa: presenteia Bela com uma
gigantesca biblioteca. Diante dessa atitude, como era de se esperar, Bela fica
maravilhada e até ensina à Fera a reaprender o hábito da leitura. Do ponto de vista
discursivo, podemos dizer que Bela refuta os discursos da formação discursiva
dominante do século XIX, que ditam o que a mulher pode e deve fazer. Vejamos a
seguir a cena em que Bela conduz o trabalho da leitura para reintroduzir a Fera em
seu universo perdido:

Figura 06: A Bela e a Fera lendo.

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Bela representa a esperança para a Fera e para todos os moradores do


castelo. Caso o amor não florescesse, todos estariam fadados a passar o resto das
vidas experimentado suas naturezas opostas. Cabe ressaltar que o nome “Bela” faz
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alusão não só à beleza exterior, mas também aos valores, aos princípios, à conduta
ético/moral da jovem.
Observamos também na trama que o tema da valorização do idoso configura-
se no cuidado de Bela para com seu pai (idoso), oferecendo-se para ficar no lugar
do pai, libertando-o das garras da Fera.
Na trama, o pai de Bela era um inventor, trabalhava incansavelmente na
montagem de uma máquina de cortar lenha, queria concorrer a um prêmio em uma
feira de invenções. O prêmio seria para ele o início de uma nova vida. Por isso, o
idoso era tratado por Gaston (líder que ganhou notoriedade pela força física) e por
alguns moradores da aldeia como louco. Em um gesto de interpretação, dizemos
que temos, aqui, formações discursivas que se opõem: uma que defende o
desenvolvimento mecânico para facilitar a vida do homem no cotidiano; outra,
plantada na manutenção da tradição, que prima pela força física.
Gastom, personagem que se configura como um solteirão, arrogante e
convencido de sua beleza, é um caçador que domina as técnicas de empalhar
animais, para mantê-los como se estivessem vivos. Enfim, era um homem rude,
bruto e sem modéstia. O desejo dele era casar com Bela, mas censurava nela o
hábito da leitura. Entendia que o ato de ler poderia levá-la a ter ideias, o que era
inconcebível à mulher naquela circunstância. Gaston gostaria de fazer de Bela uma
espécie de animal empalhado, sem vida própria, mantida sob seu controle. Nos
processos discursivos, verificamos que se evidenciam nos discursos uma cultura de
dominação do homem sob a mulher, violência imposta pela sociedade patriarcal.
Para chegarmos a esse entendimento, seguimos os passos de Orlandi (2007,p. 67 e
68), quando ela diz que a interpretação:

[...] não é mero gesto de decodificação, de apreensão do sentido.


Também não é livre de determinações. Ela não pode ser qualquer
uma e não é igualmente distribuída na formação social. O que a
garante é a memória sob dois aspectos: a) a memória
institucionalizada,ou seja, o arquivo, o trabalho social da
interpretação em que se distingue quem tem e quem não tem direito
a ela; b) a memória constitutiva, ou seja, o interdiscurso, o trabalho
histórico da constituição da interpretação (o dizível, o responsável, o
saber discursivo).
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A interpretação não é um gesto vazio, ela deve ocorrer com base em sentidos
arquivados historicamente nas formulações, que se relacionam com as condições de
produção. Os enunciados trazem em si uma memória discursiva que permite a
emergência dos dizeres em uma determinada formação discursiva. Temos assim,
de um lado, Gaston como a representação de uma sociedade patriarcal que gestou
a guerra como forma de resolução dos conflitos e, de outro, Bela uma mulher
aparentemente frágil, mas muito determinada para aos costumes da época. Ao
sentir-se rejeitado por Bela, Gaston comete mais um ato de violência: coloca o pai
da donzela, já idoso, em um sanatório, prometendo somente voltar atrás depois do
“sim” de sua pretendente.

2.3 BELA: ENTRE A PRISÃO E A LIBERDADE

Presa no castelo, depois de ter ficado no lugar do pai, Bela vai à ala oeste,
lugar proibido, onde se encontra guardada a “rosa encantada”: símbolo do
desabrochar do sentimento. Depois de quebrado o encanto, as predições dizem que
se o amor entre Bela e Fera não florescer até a queda da última pétala, o feitiço que
tornou o príncipe uma Fera se perpetuaria na eternidade. A Fera, ao ver a invasão
do local proibido, expulsa Bela do castelo, encurralando-o na floresta tenebrosa,
repleta de lobos famintos. Mas vendo-a em perigo, a Fera arrepende-se e se arriscar
para salvá-la. A partir daí, eles começam a se entenderem. No ápice da fúria, o
“monstro” tem uma atitude que surpreende a todos, mostra que é capaz de sentir
amor pelo próximo. Inicia-se assim um entendimento, uma amizade que tende a
florescer. O lado “monstro” da Fera começa a perder força dando lugar um
sentimento dócil e sentimental, próprios dos seres sensíveis.

Figura 07: Alimentando os pássaros.


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(http://blogcafeliterario.blogspot.com/2010/06/sentimentos.html)

Cabe ressaltar que no primeiro “convite” que Fera faz a Bela, ele é agressivo
e arrogante que a deixa com medo e até com raiva dele. As outras personagens
que presenciam a cena tentam orientar a Fera, lembrando-lhe os bons modos,
buscando restabelecer os hábitos humanos que havia dentro dele e estavam
adormecidos. No segundo convite para jantar, o telespectador já percebe mudanças
no comportamento da Fera, depara-se com um ser carinhoso e educado. A
mudança de comportamento da fera toca o coração de Bela. Os dois se encontram
no salão, prontos para uma noite de gala, e ao descerem o primeiro vão de escadas,
se unem formando “um par”. Nesse encontro, percebe-se que os sentimentos estão
ascendendo.

Figura 08: Encontro na escadaria.

(http://jaguar.impacta.com.br/Domingo/21Paulista07/Aluno11/Daniela/M
arina/Instrutor/ultima%20aula/)

No momento em que eles começam a dançar, a Fera volta à postura de um


homem gentil e o olhar de Bela reconhece nele carinho, afeto e admiração, bem
diferente de como tudo começou. O salão do castelo, neste momento, torna-se lindo,
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iluminado e colorido. O lustre formaliza o ar romântico, enfim o castelo transforma-se


em um ambiente harmônica para contemplar o amor.

Figura 09: A valsa

(http://www.animatoons.com.br/a-bela-e-a-fera/a-bela-e-a-fera-artigo-
especial/)

A principal canção da trilha sonora e tema do filme é Beauty and the beast,
(na voz de Celine Dion e Peabo Bryson) chegou a ganhar uma versão em
português. No filme, a canção é interpretada por Madame Samová (o buli) na hora
da valsa para celebrar o jantar especial. A letra da canção, dentre outras coisas, diz
que os sentimentos mudam mesmo para quem não acredita que pode amar alguém
um dia e que esses sentimentos podem trazer novas sensações, doces emoções e
um novo prazer. A composição resume a história de amor entre os dois.
No início da narrativa, o narrador situa os telespectadores de que a duração
da rosa (cronômetro que limita o tempo de transformação interior da Fera, para
finalização do feitiço) seria de vinte um anos, quando cairia a sua última pétala. A
canção principal também faz uma alusão “às primaveras”: “E numa estação como a
primavera, sentimentos são como uma canção para a Bela e a Fera.” Além da rosa,
a Fera recebe também da feiticeira um espelho mágico, que seria sua única “janela”
para o mundo exterior. Tudo que pedisse para ser visualizado, o espelho lhe
mostraria.

Figura 10: O espelho mágico.


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(Imagem extraída do filme A Bela e a Fera)

Quando a Bela e a Fera estão “entrelaçados”, Fera mostra o espelho a Bela


para que ela pudesse ver o pai. A surpresa é que o pai de Bela estava muito
doente, a Fera sente-se na obrigação de libertar a jovem para que fosse cuidar do
pai. Na partida, cede-lhe o espelho mágico, para que pudesse olhar para trás,
lembrando-se dele. Neste momento, percebemos que a Fera demonstra afeto por,
falta somente a comprovação de reciprocidade para anular o feitiço, e, mesmo
assim, a Fera toma essa atitude, mais humana do que nunca.
Ao regressar, Bela encontrar o pai doente, internado em um sanatório de
loucos. Gaston havia simulado a loucura do velho como forma para conseguir rever
o amor de Bela: condicionou a liberdade do idoso ao consentimento de Bela para ser
sua esposa. Do ponto de vista discursivo, podemos dizer que a história aborda
neste momento o controle das relações de poder sobre aqueles que pensavam em
modificar a ordem das coisas.
Mas mesmo, assim, Bela tenta desfazer a armação de Gaston usando o
espelho como arma, provando a existência da Fera. Gaston inconformado com a
perda de Bela induz a comunidade da aldeia a um combate com a finalidade de
matar a Fera. Temos ai nesse momento uma demonstração da cultural patriarcal
que gestou as guerras como forma de resolução dos conflitos.
O momento de maior tensão é na invasão do castelo. Enquanto Fera,
desencantado pela ausência de Bela “se entrega”, e seus criados (os objetos)
preparam-se para o combate. Ao adentrar no castelo, aparentemente abandonado,
os moradores da aldeia armados são surpresos com o ataque da maioria dos seres
(aparentemente inanimado) que habitavam o castelo.

A interpretação é uma injunção. Face a qualquer objeto simbólico, o


sujeito se encontra na necessidade de “ dar “ sentido. O que é dar
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sentido?.Para o sujeito que fala, é construir sítios de significância


(delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação.

(ORLANDI, 2007,p.64)

Gaston, que estava junto com o grupo, seguiu direto à procura da Fera, mas
ao encontrá-lo, inicia uma série de ataques e agressões, recebidas pela Fera de
forma passível. Para Fera, a vida só teria sentido com o amor de Bela. Gaston
chega a questionar sua bondade e gentileza. Contudo, quando o embate parece ter
um fim, Bela retorna ao castelo, e Fera vê o sentido da sua vida voltar, montada em
um cavalo para salvá-lo.
Este fato foi crucial para Fera reagir, lutar pela vida. O combate termina
quando Gaston cai da torre do castelo, após ter findado uma faca na Fera. Nos
braços de Bela, há o momento tão esperado, o momento em que a Fera desfalece e
Bela deixa sua lágrima de amor verdadeiro cair sobre o rosto da Fera, pedindo para
que o mesmo não se vá, pois ela o amava. Assim, a última pétala da rosa encantada
cai. Quando todos acreditavam que havia chegado o fim ocorre a reciprocidade do
amor, os raios começam a cair do céu, o corpo de Fera começa a levitar, e inicia-se
a transformação. A Fera se transforma num belo príncipe. Bela não entende o
ocorrido, mas encontra a verdade no olhar do príncipe, porque das transformações,
algo que marcava a Fera para Bela era seu olhar (a janela da alma).

Num momento de plena magia, todos começam a retomar sua forma humana,
do buli ao castiçal. O encantamento invade o castelo, dessa vez, transformando-o
num espaço claro, reluzente e cheio de cores. Um fato marcante nas imagens é a
transformação das imagens diabólicas as quais configuram o castelo, em imagens
celestiais.

Figura 11: Um das estátuas do castelo.

(Imagem extraída do filme A Bela e a Fera)


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A canção tema do filme volta a tocar, e o par vive novamente o momento


marcante da dança no salão, agora, rodeado de todos os moradores. Todos, nesse
momento, com a quebra do feitiço, estão em suas formas humanas.

Figura 12: A valsa final.

(Imagem extraída do filme A Bela e a Fera)

E a canção finaliza a história dizendo novamente: “...e numa estação como a


primavera, sentimentos são como uma canção para a Bela e a Fera.”

CONCLUSÃO

Analisando os gestos de interpretação que é considerado como atos no


domínio simbólicos, pois intervém no real do sentido, sinalizados no processo
significativo do filme “A bela e a fera”. Onde muitos valores e sentimentos chegam
às pessoas e se constituem como formações imaginárias através das narrativas
infantis, porque as narrativas mantêm-se na memória e manifestam-se no sujeito
cada fez que ele escuta ou lê uma das histórias. O sujeito sente, identifica-se com as
formações discursiva que se encontram instaladas nos discursos.
Os filmes infantis são de extrema importância para a formação do imaginário
e/ou intelectual da criança. Neles os mesmos podem formar suas opiniões, trabalhar
com os preconceitos, sentimentos. Nos contos de fadas, podemos tratar sobre
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qualquer conteúdo, pois com o fantástico mundo das fantasias, nada fica “pesado”,
que não posso ser discutido. Com o filme “A bela e fera”, não é diferente, uma vez
que, são trabalhados vários valores, sociais, morais, sem perder o belo, o
fantasioso.
As concepções teóricas de BETTELHEIM, no Livro “A psicanálise dos Contos
de Fadas” explica através dos contos o impacto psicológico de situações em
acontecimentos onde envolvam a criança e de dar respostas comportamentais e
mostrando a visão infantil a cerca de determinados assuntos. Com essas relações,
ela tenta passar para a criança ensinamentos para as resoluções de problemas, seu
desenvolvimento com a inclusão da realidade que as rodeia, pois, ele transmite que
além de entreter a criança, os contos possuem princípios de importante relevância
para a mesma.
Através de um conto que aparentemente está cercado de imaginação, ou uma
história não real, onde predominam o maravilhoso podem estar, de modo disfarçado,
os sentimentos que cercam o interior da criança, como: esperteza, alegrias,
tristezas, egoismo, autroísmo. O filmel passa para a criança mensagens importantes
para sua vida, como nunca desistir perante os obstáculos por mais que no início
pareçam difíceis.
Dessa forma, a educação escolar tem um papel essencial como espaço de
práticas de relativação de tais mensagens, lugar onde estes discursos podem ser
(re) significados, vencendo ou, pelo menos, questionando. Os filmes que trazem
esses tipos de histórias não são, meramente, objetos determinados a divertir o
público infantil.
Essas histórias também podem ser refletidas como suporte cujo conteúdo
compreende crenças, ideologias e conceitos dos mais variados, pois se tratam de
produções culturais que trazem algum saber, que mostram características dos
contextos históricos , sociais e ideológico aos quais estão inseridos.
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REFERÊNCIAS:

ALVES, Rubem. "É brincando que se aprende". Folha de S. Paulo, São Paulo, 17


fev. 2002. [Caderno Sinapse]

AZEVEDO, Ricardo. Literatura infantil: origens, visões da infância e certos


traços populares. Disponível em http:// www.ricardoazevedo.com/artigo07.htm.
Acessado em 17-07-2005.

BETTLLHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1980.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura


fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

INDURSKY, Freda. Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da


noção de sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, Solange; RIGOLETTO,
Evandra; CAZARIN, Ercília (Orgs.). Práticas Discursivas e identitárias; Sujeito &
Língua. Porto Alegre, Nova Prova, PPG-Letras/UFRGS, 2008. (Col. Ensaios, 22).

ORLANDI, Eni Puccinelli. Do sujeito na história e no simbólico. Escritos nº 4.


Campinas, SP: publicação do Laboratório de Estudos Urbanos Nudecri/LABERURB,
maio, 1999, p. 17

ORLANDI, Eni Puccinelli: Interpretação, leitura, e efeitos do trabalho simbólico.


5.ed. Campinas,SP.Pontes Editores.2007.
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PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Trad. brasileira de Eni P. Orlandi [et al]. 3.ed. Campinas, SP. Editora da UNICAMP,
1997.

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