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CUIDAR E EDUCAR: A LUDICIDADE COMO PRINCÍPIO PEDAGÓGICO

Bruna Molisani – bmolisani@gmail.com


Tania Nhary – taninhary@gmail.com

RESUMO

Este texto em tela se propõe a (re)instaurar uma pedagogia da infância, no âmbito da


Educação Infantil, a partir do diálogo com as teorias da Sociologia da Infância e da
perspectiva histórico-cultural. Entendemos que a infância, como intensidade, é um
situar-se no mundo, um sair sempre do seu lugar para outros desconhecidos, inusitados,
inesperados, possibilitados também pelo prazer e desafios proporcionados pelos jogos e
brincadeiras que, necessariamente, envolvem a corporeidade. Logo, uma pedagogia da
infância sugere o reconhecimento de que as atividades lúdicas envolvam, por parte dos
pequenos, aprendizagens especiais como o desenvolvimento de autonomia, confiança,
cooperação, curiosidade, capacidade de elaborar questionamentos e críticas,
criatividade, formas de socialização e interações e o enriquecimento de múltiplas
linguagens. Nessa perspectiva, o cuidar e o educar se imbricam e se banham pela
ludicidade no contexto escolar e o corpoassume um lugar de centralidade. Baseadas
nesses pressupostos, apresentamos algumas reflexões a partir de pesquisa e atividades
desenvolvidas comestudantes do Curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de
Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com base em instrumentos
metodológicos como as narrativas das memórias de infância, linguagens artísticas —
formas de evocar imagens sobre a infância — e atividades de estágio
supervisionado,concluímos que há o reconhecimento, por parte desses graduandos, de
que o componente lúdico é uma característica da infância que contribui
significativamente para apropriação, a (re)produção e a (re)invenção do que os
pequenos apreendem do/no/com o mundo que habitam e que precisa ser entendido
como princípio pedagógico que oriente as ações na Educação Infantil.

Palavras-chave: Infância, Educar, Cuidar, Ludicidade, Corpo.

Onde quer que estejas, sê inteiramente uma criança


Johann Goethe

Introdução
Na atualidade, muito se tem falado, refletido e discutido sobre infância,
sobretudo no contexto da educação. Mas de que infância se fala? Partimos da ideia que
criança e infância são termos que se complementam, estão imbricados, mas que não
dizem exatamente a mesma coisa. Criança é o ser biológico, que cresce e se desenvolve,
logo, é uma etapa inicial da vida humana que opera segundo aspectos bio-psico-sócio-
culturais. Como infere Sarmento (2004), infância é um fenômeno social, é construção
sócio-cultural, é uma condição da experiência que faz parte do processo histórico vivido
por cada indivíduo, por cada criança, por isso há distintas infâncias. Como já
mencionava Charles Fourier, por volta de mil e oitocentos, “a infância está para além
das crianças” (apud SCHÉRER, 2009). O rastro epistemológico para esse entendimento
parte de diferentes áreas e contexto, mas aqui vamos priorizar a Sociologia da Infância e
a perspectiva histórico-cultural para falar de criança e práticas pedagógicas da Educação
Infantil. Logo, procuramos entender o tema ‘estudos da infância’ como uma
ressurgência e em sua horizontalidade, buscando na urdidura das teorias
produzidas,refletir sobrea formação e a ação de professores para esse segmento de
ensino. Não se trata, no entanto, de uma abordagem linear, mas uma abordagem que
escapa ao sentido de verticalidade, do pensamento sobre o devir-criança submetido a
uma única via, qual seja: a condição de estado preparatório para a vida adulta, ou, no
âmbito escolar, com caráter propedêutico de preparação para as séries iniciais seguintes
do ensino fundamental. Propomos olhar a criança com olhos de criança, recusando o
olhar redutor e adultocêntrico, buscando entender o ‘devir-criança’. Ponderamos, como
Deleuze e Guattari (1998), que a palavra devir deva assumir a forma ativa de um verbo,
potências de ações não lineares, não encadeadas pelo antes e o depois, mas marcadas
pelo espírito de aión, uma intensidade vivida no aqui e agora, sempre nova e renovável.
Falamos de uma criança encarnada. Assim, a partir das referências mencionadas,
propomos, aqui ‘falar de infâncias’, ‘entender a educação infantil’, pensar a ‘ludicidade’
e ‘refletir’ sobre formação de professores, respeitados os limites de espaço da escrita e o
lugar em que esse texto se insere, colocando em foco o sentido da ação das palavras
escolhidas e buscando fazer reverberar o pensamento de Goethe apresentado na
epígrafe: “sê inteiramente criança”.
Adotamos como heurísticas narrativas brincantes, diferentes expressões
artísticas com o objetivo de capturar as imagens das infâncias de sujeitos em formação e
atividades de estágio supervisionado realizadas no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FFP/UERJ.

Falando de Infâncias
Para tecermos algumas considerações sobre criança e infância, como já
mencionado, recorremos à Sociologia da Infância, uma área de conhecimento
relativamente nova que, de algum modo, nasceu da confluência de estudos educacionais
e sociológicos. Pensadores como Willian Corsaro, Manuel Jacinto Sarmento, Manuel
Pinto, JansQvortrup, dentre outros, se debruçaram sobre o tema com a intenção de
afirmar o lugar da infância na sociedade contemporânea. Não que tenham inaugurado o
tema, visto que desde o Iluminismo a infância já havia sido inventada (SCHÉRER,
2009), mas foi dado a ele um impulso considerável, fazendo com que a Sociologia, em
seus desdobramentos, abrisse um campo específico para se pensar e construir
conhecimento acerca dos pequenos em sociedade.
Ao longo dos séculos, diferentes olhares vêm se constituindo como um corolário
que remonta a noções de infância que variam em função de fatores históricos, sociais,
culturais e políticos de cada época. Logo, supomos que o lugar da infância na
contemporaneidade é um lugar de mudanças, visto que sua condição social vem se
alterando em grande escala frente a um mundo que vem mudando por conta de fatores
como a globalização, a pobreza, a exploração do trabalho infantil, as doenças, os
conflitos bélicos, a estrutura financeira, urbana e familiar. Fatores esses que colocam em
cena a concepção de infância que a modernidade instituiu.
O interesse pelo estudo do mundo dos pequenos na atualidade proporcionou o
crescimento de vários métodos, tanto os que capturam o cotidiano infantil quanto os que
capturam a contextualização da infância (CORSARO, 2011). Pensamos ser necessário
compreender os modos de vida dos pequenos para apreender seu cotidiano vivido
também no contexto escolar, pois sem contextualizar os aspectos sócio-estruturais,
familiares, culturais, psíquicos, afetivos e lúdicos do mundo dos pequenos, reduziríamos
nossa capacidade de compreendê-los, de escutá-los, de darmos-lhes voz e vez. Fazemos
isso balizados na ideia de Manuel Sarmento (apud DELGADO; MULLER, 2006) de
que há um “entre-lugar” que considera o espaço-tempo da criança numa dupla
perspectiva. Por um lado ela vive num sistema simbólico que administra seu espaço
social. Por outro, ela vive um processo rápido de transição inerente à sua condição de
criança. Lugar de ponto de interseção de culturas, de gerações, de modos de educar;
lugar híbrido, por si só, em que os pequenos produzem linguagens, códigos, lógicas,
protocolos, artefatos, ou seja, vivem o devir-criança. Esse é um lugar de fusão de
tempos (pela perspectiva geracional), de espaços (pelas inserções sócio-culturais), de
condições (estruturais, financeiras, familiares, psíquicas e afetivas) e de atitudes,
discursos, práticas, valores e ideias (esses últimos, também no aspecto educacional, mas
não necessariamente apenas adquiridos na escola, e nem tampouco que os primeiros
aspectos lá não estejam).
Esse situar-se no mundo, visto ocupar esse “entre –lugar”, um sair sempre do seu
lugar para outros desconhecidos, inusitados, inesperados, contribui significativamente
para apropriação, a (re)produção e a (re)invenção do que os pequenos apreendem do, no
e com o mundo que habitam.
Pelo exposto, a ideia de infância é a chave de compreensão do modus
operandi das crianças, não só em relação à sociedade, mas sobremaneira no contexto
educacional em que o conceito de infância é atravessado pelas dimensões do cuidar e do
educar, binômio inseparável, tanto teórica quanto praticamente, mas que, como salienta
Kohan (2007), para compreendermos essa indissociabilidade precisamos pensar em uma
ação pedagógica que escape de mitos fundantes no campo pedagógico, antropológico e
filosófico. Para esse autor, o mito pedagógico, que escorre das franjas do ideário
socrático-platônico, carrega a ideia de uma estratégia educativa para a transformação da
polis, de formação para a cidadania e ensino democrático. O mito antropológico se
declina sobre a lógica de um tempo cronológico, consecutivo e em progressão
desembocando na questão das aprendizagens (ibdem). Já o mito filosófico remete ao
sentido de ser a criança um “outro”, um infante que, sem fala, é reconhecido como
estrangeiro, como aquele que habita outro mundo, um mundo à parte (ibdem). Esse
ideário mítico foi percebido tanto em algumas memórias de infância quanto nas
expressões artísticas escolhidas pelos sujeitos da pesquisa, aqui resumidamente
apresentadas linhas acima, assim como buscamos capturá-los nos textos lidos e
estudados. Entendeu-se que essa tríade mítica sustenta ainda discursos e práticas na
Educação Infantil, mas que, no entanto, há uma viragem epistemológica que
despertainquietações que busca superar o enredodesses mitos trazendo à cena novas
maneiras de se pensar, estudar e compreender a singularidade da(s) infância(s).
Mas, para colocarmos esses mitos em confronto precisamos redimensionar o
próprio entendimento de infância no mundo atual; precisamos pensar e aprender com as
crianças, para elas, sobre elas e por elas.

Entendendo a Educação Infantil: entre o cuidar e o educar

A Educação Infantil, como campo de estudos, pesquisas e práticas na educação é


relativamente recente. Muito ainda precisa ser descortinado sobre o universo dos
pequenos para entendermos a infância nesse contexto educativo.
Quando propomos aqui “entender“ a Educação Infantil, fazemos menção à ideia
de compreender como essaetapa da Educação Básica vem se constituindo. Nossas
reflexões e hipóteses, para além das teorias (re)visitadas, partem também da apreciação
de narrativas e de atividades realizadas com professores em formação no Curso de
Pedagogia da FFP /UERJ.
Se reconhecemos ser a Educação Infantil a primeira etapa do processo de
escolarização da criança, havemos de reconhecer também que esse meio, que é
educacional, é também social e cultural. A criança, aí inserida, se reconhecerá tanto
individual como coletivamente, produzirá e consumirá cultura, assim, o mundo que lhe
é dado a conhecer inclui a escola. É também por meio dessa instituição que ela é
cuidada e educada, que ela constrói seu próprio conhecimento a partir de múltiplas
referências,inclusive de sua própria história. Para nós essa instituição, a escola, no bojo
das políticas públicas, é uma das possibilidades de retirada da criança da invisibilidade.
De tal forma, as experiências vividas pelos graduandos se amplificam, se abrem como
manancial crítico-reflexivo quando confrontadas com a teoria.
Reconhecemos a especificidade dessaetapa de ensino e que muitos fatores estão
implicados, mas aqui daremos ênfase ao cuidar e ao educar, um binômio que, embora
indissociável, viveu (e talvez ainda viva no interior das escolas) certa dicotomia. Ao
abordarmos esse binômio, adentramos no próprio contexto da Educação Infantil,
compreendendo a rotina, o currículo e o cotidiano dos pequenos.
No curso mencionado, lócus da pesquisa cujo recorte está aqui em tela, na
disciplina Educação Infantil, como componente curricular, fazemos uma abordagem dos
fatores históricos, políticos, sociológicos e estruturais desse campo com a intenção de
abordar a infância por um viés que parte do macro ao micro contexto. Transitamos,
inicialmente, pelo próprio conceito de infância buscando diferentes conexões. A
Sociologia da Infância, como referência, nos conduz a conhecer o campo em sua
trajetória histórica e política, assim como nos possibilita ler documentos legais como a
Constituição Federal, de 1988, as Leis de Diretrizes e Bases, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, Referenciais, Diretrizes e Parâmetros Curriculares, dentre outros
dispositivos, com apuradas lentes de compreensão.
É por meio dessa varredura que vamos entendendo as implicações quanto ao
cuidar e educar no âmbito da escola; é também por ela que nos mobilizamos a refletir
sobre nossas ações na escola de forma a manter a indissociabilidade dessas instâncias.
Buscamos capturar imagens de infâncias a partir de expressões artísticas
escolhidas pelos graduandos do Curso citado, sujeitos da pesquisa aqui anunciada, o que
envolveu filmes, obras de arte, histórias infantis, desenhos animados, brinquedos e
outras formas de expressar a noção que esses sujeitos constroem sobre ‘ser criança’. À
guisa de exemplo, temos: (a) a história do “Chapeuzinho vermelho” e a noção de medo,
desobediência e submissão; (b) obras de Manoel de Barros, como “Exercício de ser
criança”, como possibilidade de um “ser criança” cuja criatividade e a imaginação
alimentam a infância; (c) as brincadeiras pintadas na tela Childhood, de PieterBruegel,
que mostram que o brincar faz parte da cultura infantil em toda e qualquer sociedade e
em qualquer época; (d) a música “Saiba”, de Adriana Calcanhoto, que expressa a
pluralidade de infâncias a partir de figuras conhecidas popularmente; (e) brinquedos
como a boneca, que remete ao papel da menina ao cuidado com a casa e a família; (f) o
filme O Tambor, de VolkerScholondorff, onde a criança que perde a fala por acidente
usa um tambor como elemento de comunicação, tornando-se presente pela crítica e pela
contestação da ordem instituída. Essas formas de expressão (dentre algumas outras aqui
não mencionadas) foram trazidas para as aulas e discutidas à luz das teorias tratadas na
disciplina Educação Infantil, obrigatória, cursada normalmente no terceiro e no quarto
períodos do Curso, com carga horária de 60 horas/aula em cada um deles, e da
disciplina Estágio Supervisionado I, com carga horária de 90 horas/aula, que integra o
sexto período do fluxograma do Curso.
Pensamos em usar a arte como imagem que evoca a memória de formação, visto
que reconhecemos que os professores são produtores de um conhecimento sobre si,
sobre os outros e sobre o cotidiano. No entanto, para a tomada de consciência, são
necessárias reflexões referenciadas às aprendizagens e experiências construídas ao
longo da vida (JOSSO, 2002). Ser professor, na nossa perspectiva, é um pesquisar
constante sobre suas práticas, é um processo de esmiuçar sua própria história de
formação, sua história de vida, possibilitando um movimento de intervenção nas
práticas pedagógicas de modo mais consciente e significativo. Esse caminho
investigativo, aliado às narrativas de infância produzidas por esses sujeitos, nos
ofereceu pistas reflexivas sobre a noção de infância em diferentes textos e contextos, o
que remete a projetos, práticas, ações e didáticas para e com os pequenos.
Uma das atividades desenvolvidas na disciplina de Educação Infantil permitiu
evocar imagens relacionadas às ideias de infância, criança e aluno através de desenhos e
palavras a elas associados. Em um primeiro momento, solicitamos que cada estudante
desenhasse e escrevesse palavras que representassem “criança”. Em seguida, fizeram o
mesmo movimento com a palavra “aluno”. Os desenhos e palavras utilizados para
representar acriança estavam associados à brincadeira, ao movimento, à alegria, ao
prazer, à descoberta, à imaginação, à liberdade, à natureza. Já as produções referentes a
aluno trouxeram imagens relacionadas à disciplina, ao dever, ao ambiente da sala de
aula, a limites, a regras.
Com essa atividade, discutimos concepções de infância e criança tanto no
sentido de problematizar sua idealização, quanto na abordagem de aspectos que
conferem sua singularidade: “seu poder de imaginação, a fantasia, a criação, a
brincadeira entendida como experiência de cultura” (KRAMER, 2007, p. 15).
Problematizamos também a importância de, na escola, construir práticas pedagógicas
que vejam as crianças em suas especificidades, buscando, como alerta Motta (2011),
que a ideia de criança prevaleça em relação à ideia de aluno.
Fazer prevalecer a ideia de criança requer entender como ela interage no/com o
mundo e como se desenvolve. Um aspecto relevante é a centralidade que a corporeidade
assume nas experiências infantis. Se a escola vem, ao longo de sua história, enfatizando
o trabalho com a mente em detrimento do corpo, docilizando este último, como diria
Foucault (1987), é preciso que a relação com o corpo seja construída em outras bases na
educação da infância.
Uma experiência vivida na disciplina de Estágio Supervisionado I permite
refletir sobre os descompassos entre a maneira como as crianças exploram o mundo e o
que os profissionais da escola comumente propõem.Os estudantes, após acompanharem
o cotidiano de espaços de Educação Infantil ao longo de um semestre, deveriam propor
uma atividade a ser realizada com as crianças. Uma dupla de graduandas que realizou o
estágio em turmas de berçário em uma creche do município de São Gonçalo propôs uma
atividade com tinta guache. No pátio da creche, forraram o chão com jornal e
disponibilizaram a tinta em bandejas de isopor. A proposta era que as crianças
utilizassem as mãos para pintar rolinhos de papel higiênico que formariam o corpo de
palhaços. Durante o desenvolvimento da atividade, as crianças experimentaram a tinta
em seus próprios corpos, tocando-a, espalhando nas mãos, nas pernas, pintando os
braços de quem estava ao lado – inclusive adultos – e um menino chegou a passar as
duas mãos cheias de tinta no rosto, com uma clara expressão de descoberta e prazer. O
que, para nós, foi compreendido como experiência viva, ativa com um material até
então desconhecido para aquelas crianças de cerca de dois anos, causou estranhamento e
descontentamento por parte das profissionais da creche que atuavam como auxiliares
nas turmas. A preocupação com a roupa e o corpo sujos não permitiu que vissem a
riqueza daquele momento vivido pelas crianças.
Com efeito, limpeza e higiene são ideias fortemente associadas ao cuidado com
o corpo e, historicamente, constituem marcas do trabalho com crianças pequenas. Corpo
que precisa ser disciplinado, controlado, alimentado, asseado, confinado em cadeiras e
mesas, impedido de se movimentar livremente supostamente em prol de atos de educar.
O lugar do corpo e, consequentemente, atos relacionados ao cuidado são
entendidos como menores, como algo negativo, enquanto o educar, privilegiando a
mente, a instrução e a transmissão de conhecimentos / conteúdos, é visto como algo
positivo.
A ideia de Educação Infantil remetida ao cuidar pode ser percebida nos
fragmentos de narrativas a seguir: “minha mãe disse que me colocou na escola muito
cedo porque não tinha ninguém para cuidar de mim“ (J.); “como eu poderia cuidar de
você se tinha que trabalhar pra te sustentar!!(S.);“tenho poucas lembranças da minha
passagem pela educação infantil, mas o que ficou foi o ritual da merenda, todo aquele
cuidado e a insistência para eu comer tudo pra ‘ficar fortinha’ (rs) (F.).
Na disciplina de Estágio Supervisionado, as primeiras observações geraram
inquietações nos estudantes, pois estes percebiam uma rotina focada no cuidado –
alimentação, banho etc. – e poucas atividades entendidas por eles como educativas,
pedagógicas, especialmente na faixa etária de 1 a 3 anos. Comentários como “Não vi a
professora fazer nenhuma atividade com a turma”; “Eles ficaram muito tempo
brincando, não fizeram quase nada a manhã toda” evidenciavam a necessidade de
problematizar os sentidos atribuídos a educar e cuidar e à brincadeira, levando-os a
refletir sobre o que é pedagógico na Educação Infantil, questão que, para nós, configura-
se como nó górdio no momento atual.
Revisitar as memórias de infância e as representações sobre ela e realizar as
atividades de estágioforam oportunidades de recriação dos sentidos atribuídos a
vivências e experiências, despertando o interesse e o desejo pelo estudo e conhecimento
teórico de diferentes temas da seara da Educação Infantil. Destacamos, a seguir,
reflexões acerca da ludicidade.

Pensando a ludicidade na infância e na formação de professores

A ludicidade constitui um traço fundamental de toda e qualquer cultura humana


(HUIZINGA, 2004). Embora o termo também designe jogos e brincadeiras, sua noção é
bem mais abrangente do que se pensa. É uma ação livre assumida voluntariamente, que
envolve o indivíduo por inteiro numa espécie de arrebatamento que traz a sensação de
felicidade, logo, liga-se a prazer, divertimento e lazer. Assim, quando se pensa em
infância, essas noções aparecem imbricadas, pois um dos maiores prazeres dos
pequenos é brincar. O que caracteriza a infância é o brincar e porque as crianças
brincam,produzem cultura, pois criam, dão sentido ao mundo que as cerca, vivem o
simulacro e o escape da realidade sem dela se desconectar (HUIZINGA, 2004), fazendo
do lúdico uma via de escape, um mundo que só os brincantes compreendem.
Pelo exposto até aqui, adotamos a noção de infância na perspectiva de uma
educação que atualiza as possibilidades de ser criança também pela experiência lúdica.
A criança nasce lúdica, sem noção do que seja trabalho, toda sua atmosfera é de
ludicidade (BROUGÉRE, 1998), na qual o prazer acompanha suas atividades
espontâneas, fazendo parte da etologia humana. O brincar é a expressão desse
arrebatamento lúdico na infância e por ele, e por meio dele, as potencialidades
acontecem.
As narrativas das memórias brincantes dos graduandos reverberam essa ideia,
expressando como alguns deles vivenciaram algumas atividades brincantes na escola,
conforme fragmentos a seguir:

-“Ah! Que saudades daqueles tempos de infância, de acordar cedo, ir para o colégio e
entre uma lição e outra brincar muito” (H.)
-“A gente sempre dava um jeito de se divertir nas aulas chatas. Jogava bolinha de
papel molhado no teto, trocava figurinha e a professora nem via” (C.).
-“Na escola eu brincava com as crianças que estudavam comigo, sempre antes da aula
nós brincávamos de pular elástico” (R.).
-“Eu brincava muito na hora do recreio e quando acabava a aula ainda íamos para a
pracinha que tinha enfrente[sic]” (L.).
-“Minha mãe reclamava que eu voltava muito suja da escola, dizia que estava pagando
pra eu estudar e não para brincar” (S.)

Uma pedagogia da infância sugere o reconhecimento de que as atividades


lúdicas envolvem aprendizagens especiais como o desenvolvimento de autonomia,
confiança, cooperação, curiosidade, capacidade de elaborar questionamentos e críticas,
criatividade, formas de socialização e interações e o enriquecimento de múltiplas
linguagens. Nessa perspectiva, o cuidar e o educar se imbricam e se banham pela
ludicidade no contexto escolar, posto ser a criança um homo ludens (HUIZINGA,
2004).
As narrativas dos estudantes também evidenciam tensões nessaimbricação entre
educar, cuidar e brincar:
-“Bons tempos aqueles da educação infantil, nós brincávamos muito e não nos
cansávamos, hoje a exigência é grande, as crianças novinhas já têm as agendas cheias,
vindas das classes mais privilegiadas com tantos cursos, ou, as de menos recursos, são
deixadas em escolas sem qualidade, e com tantas crianças na turma é difícil cuidar e
educar como merecem” (G.)
- “(...) e como é difícil dar conta de tantos desafios quando entro na sala de aula. Como
desenvolver neles a autonomia, por exemplo, se o tempo nos devora? Aí não tem jeito,
saímos amarrando os sapatos para eles e guardando os brinquedos espalhados pela
sala [...] brincar com eles, impossível, Nessa hora a gente tenta dar conta da demanda
e optamos pelo brincar livre”(A.).
Na escola, há o brincar livre e o brincar dirigido, e nesse a intencionalidade
pedagógica não pode fazer do brincar mera ferramenta de ensino (BROUGÉRE,1998).
O brincar, por si só, educa, é meio de aprendizagens significativas e tem um fim em si
mesmo. É, na perspectiva histórico-cultural, entendido como atividade-guia do
desenvolvimento psicológico da criança. Como afirma Vigotski (2008, p. 24), “a
brincadeira (...) é a linha principal do desenvolvimento na idade pré-escolar”,

Por trás dabrincadeira estão as alterações das necessidadese as


alterações de caráter maisgeral daconsciência. A brincadeira é fonte
dodesenvolvimento e cria a zona dedesenvolvimento iminente. A ação
num campoimaginário, numa situação imaginária, a criaçãode uma
intenção voluntária, a formação de umplano de vida, de motivos
volitivos - tudo issosurge na brincadeira, colocando-a num
nívelsuperior de desenvolvimento(VIGOTSKI, 2008, p. 35)

Assim, se considerarmos que as atividades lúdicas envolvem novas aprendizagens,


promovem a autonomia, a curiosidade, a capacidade inventiva, a socialização e
potencialidades corporais, afetivas e emocionais, podemos concluir que é parte do
próprio processo educativo do ser humano. Cuidar e educar na perspectiva lúdica nos
parece possível e, para tal, necessitamos compreender e refletir sobre o tema, assumir
uma postura dialógica e ter alma brincante.

Confabulações
A Educação Infantil, em textos e contextos, ainda carece de muita atenção.
Reconhecemos que vivemos em tempos de muitos avanços nessa área, mas condições
estruturais, políticas e pedagógicas ainda estão presas a um ideário que dissocia o cuidar
do educar e que desconsidera o brincar como algo educativo por si só. Muitos desafios,
muitos percalços no caminho, mas a certeza de que a ressurgência da infância deva
trazer consigo o entendimento da especificidade dessa fase da vida, do lugar social que
as crianças ocupam, da compreensão do cotidiano híbrido e multifacetado em que se
inserem os pequenos, das aprendizagens significativas que podem e merecemvivenciar,
e quando podemos problematizar, refletir e sugerir novos caminhos, encontramos uma
outra criança, qual seja: aquela que nos habita. Sendo assim, havemos de considerar a
ludicidade como construto de um processo significativo de aprendizagens e de
desenvolvimento e, portanto, como um princípio pedagógico para o trabalho com a
pequena infância.
Como qualificar o sentido pedagógico da Educação Infantil em meio a políticas
que deixam as crianças na invisibilidade? Como, a partir das teorias estudas, de
discussões, críticas e compreensões promover uma efetiva mudança nas ações? Como,
na formação do professor, prepará-lo para os enfrentamentos e para as dificuldades
vivenciadas cotidianamente em nossas escolas de romper com a invisibilidade das
crianças e de suas especificidades? O material empírico aqui apresentado não traz
respostas, tão somente levanta questões, burila ideias, provoca aproximações e
afastamento, inquieta, convida a ouvir a voz da criança, reconhecer a singularidade da
infância e promover aprendizagens que se dão pelo brincar.
Na nossa concepção, paraa construção de uma proposta pedagógica que viabiliza
o sentido de infância na Educação Infantil, é necessário evitar a mecanização de ações,
ter sensibilidade para identificar e promover situações que envolvam o cuidar, o educar
e o brincar de forma imbricada, observando e ouvindo as crianças, reconhecendo que a
infância é uma fase de muitas aquisições e de múltiplos desenvolvimentos. É
necessário, sobretudo, levar prazer aos pequenos motivando-os e incentivando-os a
diferentes descobertas, diferentes experiências. Assim, ter sustentação teórica para
explicitar para os sujeitos da escola (o que envolve a família), por exemplo, que o
brincar é importante, é assumir uma pedagogia da infância em que o cuidar e o
educarpodem (e devem, a nosso ver) estar atravessados pela ludicidade; é assumir a
necessidade de uma didática que traga sentido para os pequenos, logo, é preciso também
estar comprometido com a criança, criando vínculos e olhando-a com olhos de criança,
reconhecendo a riqueza de seu potencial lúdico na intencionalidade de explorá-lo.

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