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RESUMO
Introdução
Na atualidade, muito se tem falado, refletido e discutido sobre infância,
sobretudo no contexto da educação. Mas de que infância se fala? Partimos da ideia que
criança e infância são termos que se complementam, estão imbricados, mas que não
dizem exatamente a mesma coisa. Criança é o ser biológico, que cresce e se desenvolve,
logo, é uma etapa inicial da vida humana que opera segundo aspectos bio-psico-sócio-
culturais. Como infere Sarmento (2004), infância é um fenômeno social, é construção
sócio-cultural, é uma condição da experiência que faz parte do processo histórico vivido
por cada indivíduo, por cada criança, por isso há distintas infâncias. Como já
mencionava Charles Fourier, por volta de mil e oitocentos, “a infância está para além
das crianças” (apud SCHÉRER, 2009). O rastro epistemológico para esse entendimento
parte de diferentes áreas e contexto, mas aqui vamos priorizar a Sociologia da Infância e
a perspectiva histórico-cultural para falar de criança e práticas pedagógicas da Educação
Infantil. Logo, procuramos entender o tema ‘estudos da infância’ como uma
ressurgência e em sua horizontalidade, buscando na urdidura das teorias
produzidas,refletir sobrea formação e a ação de professores para esse segmento de
ensino. Não se trata, no entanto, de uma abordagem linear, mas uma abordagem que
escapa ao sentido de verticalidade, do pensamento sobre o devir-criança submetido a
uma única via, qual seja: a condição de estado preparatório para a vida adulta, ou, no
âmbito escolar, com caráter propedêutico de preparação para as séries iniciais seguintes
do ensino fundamental. Propomos olhar a criança com olhos de criança, recusando o
olhar redutor e adultocêntrico, buscando entender o ‘devir-criança’. Ponderamos, como
Deleuze e Guattari (1998), que a palavra devir deva assumir a forma ativa de um verbo,
potências de ações não lineares, não encadeadas pelo antes e o depois, mas marcadas
pelo espírito de aión, uma intensidade vivida no aqui e agora, sempre nova e renovável.
Falamos de uma criança encarnada. Assim, a partir das referências mencionadas,
propomos, aqui ‘falar de infâncias’, ‘entender a educação infantil’, pensar a ‘ludicidade’
e ‘refletir’ sobre formação de professores, respeitados os limites de espaço da escrita e o
lugar em que esse texto se insere, colocando em foco o sentido da ação das palavras
escolhidas e buscando fazer reverberar o pensamento de Goethe apresentado na
epígrafe: “sê inteiramente criança”.
Adotamos como heurísticas narrativas brincantes, diferentes expressões
artísticas com o objetivo de capturar as imagens das infâncias de sujeitos em formação e
atividades de estágio supervisionado realizadas no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FFP/UERJ.
Falando de Infâncias
Para tecermos algumas considerações sobre criança e infância, como já
mencionado, recorremos à Sociologia da Infância, uma área de conhecimento
relativamente nova que, de algum modo, nasceu da confluência de estudos educacionais
e sociológicos. Pensadores como Willian Corsaro, Manuel Jacinto Sarmento, Manuel
Pinto, JansQvortrup, dentre outros, se debruçaram sobre o tema com a intenção de
afirmar o lugar da infância na sociedade contemporânea. Não que tenham inaugurado o
tema, visto que desde o Iluminismo a infância já havia sido inventada (SCHÉRER,
2009), mas foi dado a ele um impulso considerável, fazendo com que a Sociologia, em
seus desdobramentos, abrisse um campo específico para se pensar e construir
conhecimento acerca dos pequenos em sociedade.
Ao longo dos séculos, diferentes olhares vêm se constituindo como um corolário
que remonta a noções de infância que variam em função de fatores históricos, sociais,
culturais e políticos de cada época. Logo, supomos que o lugar da infância na
contemporaneidade é um lugar de mudanças, visto que sua condição social vem se
alterando em grande escala frente a um mundo que vem mudando por conta de fatores
como a globalização, a pobreza, a exploração do trabalho infantil, as doenças, os
conflitos bélicos, a estrutura financeira, urbana e familiar. Fatores esses que colocam em
cena a concepção de infância que a modernidade instituiu.
O interesse pelo estudo do mundo dos pequenos na atualidade proporcionou o
crescimento de vários métodos, tanto os que capturam o cotidiano infantil quanto os que
capturam a contextualização da infância (CORSARO, 2011). Pensamos ser necessário
compreender os modos de vida dos pequenos para apreender seu cotidiano vivido
também no contexto escolar, pois sem contextualizar os aspectos sócio-estruturais,
familiares, culturais, psíquicos, afetivos e lúdicos do mundo dos pequenos, reduziríamos
nossa capacidade de compreendê-los, de escutá-los, de darmos-lhes voz e vez. Fazemos
isso balizados na ideia de Manuel Sarmento (apud DELGADO; MULLER, 2006) de
que há um “entre-lugar” que considera o espaço-tempo da criança numa dupla
perspectiva. Por um lado ela vive num sistema simbólico que administra seu espaço
social. Por outro, ela vive um processo rápido de transição inerente à sua condição de
criança. Lugar de ponto de interseção de culturas, de gerações, de modos de educar;
lugar híbrido, por si só, em que os pequenos produzem linguagens, códigos, lógicas,
protocolos, artefatos, ou seja, vivem o devir-criança. Esse é um lugar de fusão de
tempos (pela perspectiva geracional), de espaços (pelas inserções sócio-culturais), de
condições (estruturais, financeiras, familiares, psíquicas e afetivas) e de atitudes,
discursos, práticas, valores e ideias (esses últimos, também no aspecto educacional, mas
não necessariamente apenas adquiridos na escola, e nem tampouco que os primeiros
aspectos lá não estejam).
Esse situar-se no mundo, visto ocupar esse “entre –lugar”, um sair sempre do seu
lugar para outros desconhecidos, inusitados, inesperados, contribui significativamente
para apropriação, a (re)produção e a (re)invenção do que os pequenos apreendem do, no
e com o mundo que habitam.
Pelo exposto, a ideia de infância é a chave de compreensão do modus
operandi das crianças, não só em relação à sociedade, mas sobremaneira no contexto
educacional em que o conceito de infância é atravessado pelas dimensões do cuidar e do
educar, binômio inseparável, tanto teórica quanto praticamente, mas que, como salienta
Kohan (2007), para compreendermos essa indissociabilidade precisamos pensar em uma
ação pedagógica que escape de mitos fundantes no campo pedagógico, antropológico e
filosófico. Para esse autor, o mito pedagógico, que escorre das franjas do ideário
socrático-platônico, carrega a ideia de uma estratégia educativa para a transformação da
polis, de formação para a cidadania e ensino democrático. O mito antropológico se
declina sobre a lógica de um tempo cronológico, consecutivo e em progressão
desembocando na questão das aprendizagens (ibdem). Já o mito filosófico remete ao
sentido de ser a criança um “outro”, um infante que, sem fala, é reconhecido como
estrangeiro, como aquele que habita outro mundo, um mundo à parte (ibdem). Esse
ideário mítico foi percebido tanto em algumas memórias de infância quanto nas
expressões artísticas escolhidas pelos sujeitos da pesquisa, aqui resumidamente
apresentadas linhas acima, assim como buscamos capturá-los nos textos lidos e
estudados. Entendeu-se que essa tríade mítica sustenta ainda discursos e práticas na
Educação Infantil, mas que, no entanto, há uma viragem epistemológica que
despertainquietações que busca superar o enredodesses mitos trazendo à cena novas
maneiras de se pensar, estudar e compreender a singularidade da(s) infância(s).
Mas, para colocarmos esses mitos em confronto precisamos redimensionar o
próprio entendimento de infância no mundo atual; precisamos pensar e aprender com as
crianças, para elas, sobre elas e por elas.
-“Ah! Que saudades daqueles tempos de infância, de acordar cedo, ir para o colégio e
entre uma lição e outra brincar muito” (H.)
-“A gente sempre dava um jeito de se divertir nas aulas chatas. Jogava bolinha de
papel molhado no teto, trocava figurinha e a professora nem via” (C.).
-“Na escola eu brincava com as crianças que estudavam comigo, sempre antes da aula
nós brincávamos de pular elástico” (R.).
-“Eu brincava muito na hora do recreio e quando acabava a aula ainda íamos para a
pracinha que tinha enfrente[sic]” (L.).
-“Minha mãe reclamava que eu voltava muito suja da escola, dizia que estava pagando
pra eu estudar e não para brincar” (S.)
Confabulações
A Educação Infantil, em textos e contextos, ainda carece de muita atenção.
Reconhecemos que vivemos em tempos de muitos avanços nessa área, mas condições
estruturais, políticas e pedagógicas ainda estão presas a um ideário que dissocia o cuidar
do educar e que desconsidera o brincar como algo educativo por si só. Muitos desafios,
muitos percalços no caminho, mas a certeza de que a ressurgência da infância deva
trazer consigo o entendimento da especificidade dessa fase da vida, do lugar social que
as crianças ocupam, da compreensão do cotidiano híbrido e multifacetado em que se
inserem os pequenos, das aprendizagens significativas que podem e merecemvivenciar,
e quando podemos problematizar, refletir e sugerir novos caminhos, encontramos uma
outra criança, qual seja: aquela que nos habita. Sendo assim, havemos de considerar a
ludicidade como construto de um processo significativo de aprendizagens e de
desenvolvimento e, portanto, como um princípio pedagógico para o trabalho com a
pequena infância.
Como qualificar o sentido pedagógico da Educação Infantil em meio a políticas
que deixam as crianças na invisibilidade? Como, a partir das teorias estudas, de
discussões, críticas e compreensões promover uma efetiva mudança nas ações? Como,
na formação do professor, prepará-lo para os enfrentamentos e para as dificuldades
vivenciadas cotidianamente em nossas escolas de romper com a invisibilidade das
crianças e de suas especificidades? O material empírico aqui apresentado não traz
respostas, tão somente levanta questões, burila ideias, provoca aproximações e
afastamento, inquieta, convida a ouvir a voz da criança, reconhecer a singularidade da
infância e promover aprendizagens que se dão pelo brincar.
Na nossa concepção, paraa construção de uma proposta pedagógica que viabiliza
o sentido de infância na Educação Infantil, é necessário evitar a mecanização de ações,
ter sensibilidade para identificar e promover situações que envolvam o cuidar, o educar
e o brincar de forma imbricada, observando e ouvindo as crianças, reconhecendo que a
infância é uma fase de muitas aquisições e de múltiplos desenvolvimentos. É
necessário, sobretudo, levar prazer aos pequenos motivando-os e incentivando-os a
diferentes descobertas, diferentes experiências. Assim, ter sustentação teórica para
explicitar para os sujeitos da escola (o que envolve a família), por exemplo, que o
brincar é importante, é assumir uma pedagogia da infância em que o cuidar e o
educarpodem (e devem, a nosso ver) estar atravessados pela ludicidade; é assumir a
necessidade de uma didática que traga sentido para os pequenos, logo, é preciso também
estar comprometido com a criança, criando vínculos e olhando-a com olhos de criança,
reconhecendo a riqueza de seu potencial lúdico na intencionalidade de explorá-lo.
Referências bibliográficas
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5 ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
SCHÉRER, René.Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças. Belo
Horizonte: Autêntica Editora,2009.