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Jade Cristina Corrêa Peixoto; José Vicente de Souza Aguiar

https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/8454/7971

DOI:https://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2021.v6.n17.p375-391

SER CRIANÇA E VIVER A INFÂNCIA NA ESCOLA DE


EDUCAÇÃO INFANTIL À LUZ DE MERLEAU-PONTY

Jade Cristina Corrêa Peixoto


https://orcid.org/0000-0002-1928-6251
Universidade do Estado do Amazonas

José Vicente de Souza Aguiar


https://orcid.org/0000-0001-7754-1620
Universidade do Estado do Amazonas

resumo À luz da fenomenologia de Merleau-Ponty, busca-se compreender


como as experiências escolares de ensino, aprendizagem e constru-
ção do conhecimento pelas crianças estão articuladas à ideia de que
são também seres de infância envolvidas no cotidiano escolar, cujas
experiências de ser no mundo confrontam-se ou dialogam com as
das ações pedagógicas. Desenvolveu-se o trabalho a partir da abor-
dagem fenomenológica, destacando a descrição da cotidianidade
da vida como recurso para realização de uma aproximação do co-
nhecimento relativo a um estar no mundo, reconhecendo no fazer
da criança expressões de sua existência. O “ser-no-mundo” consiste
estar no mundo apresentado pelo adulto, mas só pode ser apreendi-
do a partir do próprio corpo da criança, que carrega existenciais de
corporalidade, outridade, linguisticidade, temporalidade, espaciali-
dade, culpabilidade e mundaneidade. Nas duas escolas de Educação
Infantil lócus dessa pesquisa, constatou-se o ser criança e o viver a
infância em contextos e experiências diferenciadas: uma mais volta-
da à dimensão cognitiva da aprendizagem, com poucos momentos
de ações pedagógicas destinadas ao brincar; na outra, era mais pre-
sente o respeito pelos existenciais da criança como ser no mundo.
Pensar a criança pela ideia dos seus âmbitos existenciais nos apro-
xima do seu mundo vivido, articulando à sua condição de sujeito em
atividades de aprendizagem escolarizada.
Palavras-chave: Fenomenologia. Criança. Existenciais. Ensino-apren-
dizagem.

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Ser criança e viver a infância na escola de educação infantil à luz de Merleau-Ponty

abstract BEING A CHILD AND LIVING THE CHILDHOOD IN THE


SCHOOL OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN THE
LIGHT OF MERLEAU-PONTY
In the light of Merleau-Ponty's phenomenology, we seek to under-
stand how the school experiences of teaching, learning and knowl-
edge building by children are simultaneously articulated to the idea
that they are also childhood beings involved in the school routine.
This research was developed by means of the phenomenological ap-
proach which emphasizes the description of everyday life, recognizing
in the child's making, an expression of its existence. "Being-in-the-
world" consists of being in a world that is introduced by adults, but
it can only be apprehended from the child's own body, which carries
existences of corporality, otherness, linguistics, temporality, spatiali-
ty, culpability and worldliness. In the two schools of child education,
the locus of this research, we viewed child being and living childhood
in different contexts and experiences; one was more focused on the
cognitive dimension of learning, with few moments of pedagogical
actions destined to playing; in the other, respect for the existence of
the child as a being-in-the-world was more present. Thinking of chil-
dren by means of the idea of their existential scopes brings us closer
to the world experienced by them, which can be articulated to their
condition as subjects in school-based learning activities.
Keywords: Phenomenology. Child. Existential. Teaching-Learning.

resumen SER UN NIÑO Y VIVIR LA INFANCIA EN LA ESCUELA DE


EDUCACIÓN DE LA PRIMERA INFANCIA A LA LUZ DE
MERLEAU-PONTY
A la luz de la fenomenología de Merleau-Ponty, buscamos compren-
der cómo las experiencias escolares de enseñanza, aprendizaje y
construcción del conocimiento de los niños están vinculadas a la
idea de que también son seres infantiles involucrados en la rutina
escolar. El trabajo se desarrolló a partir del enfoque fenomenológico,
destacando la descripción de la vida cotidiana y reconociendo en
el niño la expresión de su existencia. El "ser en el mundo" consiste
en estar en el mundo presentado por el adulto, pero solo puede ser
aprehendido del propio cuerpo del niño, que conlleva existenciales
de corporeidad, alteridad, lingüística, temporalidad, espacialidad,
culpa y mundanalidad. En las dos escuelas de la primera infancia de
esta investigación se descubrió lo niño y lo vivir la infancia en dife-
rentes contextos; uno más centrado en la dimensión cognitiva del

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aprendizaje, con pocos momentos de acciones pedagógicas destina-


das a jugar; en el otro, el respeto por los existenciales del niño como
ser en el mundo estaba más presente. Pensar en el niño a través de
la idea de sus esferas existenciales nos acerca a su mundo vivido,
articulando su condición como sujeto en actividades de aprendizaje
basadas en la escuela.
Palabras clave: Fenomenología. Niño. Existenciales. Enseñan-
za-Aprendizaje.

Introdução
O ser criança e viver a infância à luz da fe- conhecimento, ou seja, os âmbitos existenciais
nomenologia tem o propósito de conhecer de corporalidade, outridade, linguisticidade,
como as atividades escolares de ensino e as temporalidade, espacialidade, culpabilida-
de natureza lúdicas se realizam articulando as de e mundaneidade tornando-se elementos
duas dimensões do ser em processo de ensi- centrais da aprendizagem, pois, de acordo
no/aprendizagem, ou seja, como contemplam com Merleau-Ponty (2006), tudo em nós está
a ideia de ser criança simultaneamente à de integrado e interligado, não havendo separa-
ter infância como expressão de corporalidade/ ção de sentidos. Com isso, o corpo constitui o
corporeidade, de uma condição de estar no modo fundamental de ser no mundo, detém
mundo e viver no mundo considerando o pa- os sentidos, a consciência, os pensamentos.
ralelo entre ser criança e ter infância, estado Corresponde na linguagem de Merleau-Ponty
com fronteiras tênues. aos elementos estabelecidos no contato com o
Toma-se como base para a reflexão e aná- mundo, pelo qual nos inserimos nele e somos
lise o filósofo Maurice Merleau-Ponty, que fun- por ele inserido. Há um imbricamento, um en-
damenta a percepção, sendo esta o elemen- trelaçamento entre o corpo e o mundo.
to inaugural do conhecimento, articulada ao
É preciso que nos habituemos a pensar que todo
ensino na escola e à compreensão de criança visível é moldado no sensível, todo ser táctil
como ser no mundo, entre diálogos realizados está votado de alguma maneira à visibilidade,
com Marina Machado na sua tese A flor da vida, havendo, assim, imbricação e cruzamento, não
baseada nos estudos de Merleau-Ponty, entre apenas entre o que é tocado e quem toca, mas
também entre o tangível e o visível que está nele
outros que também subsidiaram o estudo.
incrustado, do mesmo modo que, inversamen-
As observações de campo foram realiza- te, este não é uma visibilidade nula, não é sem
das durante seis meses em uma escola da uma existência visual. Já que o mesmo corpo vê
rede pública no bairro da Cachoeirinha e ou- e toca, o visível e o tangível pertencem ao mes-
tros seis meses em outra escola localizada no mo mundo. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 133, grifos
dos autores)
bairro Parque Dez de Novembro, ambas na ci-
dade de Manaus (AM). Para preservar a iden- Para Merleau-Ponty (2014), o corpo nem é
tidade das escolas e dos sujeitos, não foram coisa, nem ideia, mas mensurador de todas
citados nomes. as coisas. Dada a essa condição de existência
O estudo visa perceber a criança como ser do corpo, a problemática investigada consiste
no mundo, cujas experiências são possíveis a em conhecer as atividades escolares de ensi-
partir da relação e contato com os objetos de no-aprendizagem e como elas se articulam ao

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desenvolvimento dos âmbitos existenciais das Segundo Merleau-Ponty, “só posso compreen-
crianças, priorizando-as como ser no mundo e der a função do corpo vivo realizando-a eu
dando espaço para elas viverem suas infâncias. mesmo e na medida em que sou um corpo que
Dessa forma, objetiva-se compreender, se levanta em direção ao mundo” (1999, p. 114).
à luz da fenomenologia de Merleau-Ponty,
O corpo nos une diretamente às coisas por sua
como as experiências escolares de ensino, própria ontogênese, soldando um a outro os
aprendizagem e construção do conhecimen- dois esboços de que é feito, seus dois lábios: a
to pelas crianças estão articuladas simulta- massa sensível que ele é e a massa do sensível
neamente à ideia de que são também seres de onde nasce por segregação, e à qual, como
vidente, permanece aberto. E ele é unicamen-
de infâncias envolvidas no cotidiano escolar,
te ele, porque é um ser em duas dimensões,
cujas experiências de ser no mundo confron- que nos pode levar às próprias coisas, que não
tam-se ou dialogam com as das ações peda- são seres planos mas seres em profundidade,
gógicas. O que demonstra que elas não são inacessíveis a um sujeito que os sobrevoe, só
autômatos mediante o ato de aprender os abertas, se possível, para aquele que com elas
saberes escolares. coexista no mesmo mundo. (MERLEAU-PONTY,
2014, p. 134)

Dessa forma, compreende-se que o próprio


A criança como ser no mundo
sujeito precisa vivenciar as experiências para
Pensar na criança como ser no mundo e que construir aprendizagens sobre o mundo e so-
também vive sua infância no espaço escolar, bre si mesmo. É ele quem percebe o mundo ao
requer observá-la tal como ela vivencia o pro- seu redor e lhe atribui significados (TALAMO-
cesso de aprendizagem, olhar cuidadosamen- NI e BERTOLLI, 2010), o outro não poderá fazer
te para as interações com o outro, para o seu isto por ele, já que o eu e o outro são duas
brincar e o seu silenciar, com a suspensão pe- consciências distintas, e o modo como um su-
dagógica dos pré-julgamentos. Para chegar à jeito percebe um fenômeno pode diferenciar-
compreensão da ideia de ser criança articu- se do modo como outro sujeito o percebe. Se,
lada ao ensino, precisa-se conhecer primei- de fato, não é possível experienciar como e
ramente o campo fenomenológico, que busca igualmente o outro experiencia o mundo, en-
refletir sobre o irrefletido, cujo propósito con- tão, no processo de ensino aprendizagem, a
siste em “entrar em contato com os fatos, de criança promove uma experiência com os sa-
compreendê-los em si mesmos, de ler e de- beres ensinados e dirigidos a ela pelos profes-
cifrar de uma maneira que lhes dê sentido” sores não da forma como eles(as) idealizaram,
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 5). Para a concepção mas da forma como o seu ser no mundo está
fenomenológica, a compreensão dos fatos em estabelecido, como sua condição de existência
si mesmos ocorre através da percepção, ou no mundo lhe permite o ato de experiência de
seja, de como aprendemos os fenômenos vi- aprendizagem.
venciados. Dito isso, é inegável a relação entre o eu
Na percepção fenomenológica, a ação do e o mundo, pois o que se pensa está ligado
corpo e o sentir são elementos-chave para também à cultura, por isso, as experiências
compreender a si e ao outro. Tudo o que se que ocorrem por meio da ação corporal não
percebe está articulado ao corpo, ou seja, é se reduzem apenas a um processamento de
pelo corpo que se compreende o outro, assim informações. A dor, por exemplo, para alguns
como é pelo corpo que se percebe as coisas. povos indígenas, é considerada um ritual de

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passagem da infância para a fase adulta que mensão cognitiva do ser, o aluno, sendo antes
demonstra coragem, como ocorre no ritual da de tudo um corpo e não somente uma cons-
tucandeira, que consiste em o menino colocar ciência, não se submeterá unicamente quatro
a mão em uma luva artesanal com os esporões horas sentado numa cadeira na sala de aula,
das formigas tucandeiras presos na sua par- inerte, como em algumas instituições se im-
te interna, de modo a proporcionar o contato põe, portanto, sendo ele esse corpo conside-
à mão da criança que recebe as ferroadas, e rado o fundo perceptivo e encarnado numa
necessita resistir à dor por um tempo determi- consciência, necessita também da ação/movi-
nado, a partir do qual passa a ser considera- mento, necessita também de ação que envolva
do um homem adulto, conforme o que prega a as suas duas ordens de existências, de “obje-
tradição de passagem do povo Sateré-Mawé. Já to” e de “sujeito”.
para a cultura ocidentalizada, a dor é algo que A função essencial da percepção “é a de
não se deseja. inaugurar o conhecimento, o que se dará sem-
Não há separação entre o corpo e a mente, pre de forma subjetiva, já que todo conheci-
entre a consciência e o mundo e entre o su- mento advém da experiência sobre o qual se
jeito e o objeto. Isto é, tudo em nós está in- desdobra a linguagem que permite o pensar
terligado, diferentemente de objetos como um sobre” (TALAMONI e BERTOLLI, 2010, p. 100).
quadro ou uma cadeira, que para movê-los de Com a percepção sendo o fundo sobre o qual
lugar, por exemplo, precisa-se tomar a atitude as ações se destacam, é necessário dar ênfase
de praticar a ação, pois sozinhos não se move- mais uma vez à importância das experiências
rão; já o corpo humano se direciona aos luga- no processo de desenvolvimento de aprendi-
res sozinhos através de toda estrutura mental zagens e construção do conhecimento. Toda-
e física, que funcionam conjuntamente. Sendo via, circunscrita no âmbito da reversibilidade,
assim, compreender a criança no seu proces- como destaca Merleau-Ponty (2014, p. 145):
so de aquisição/construção do conhecimento
[...] falamos sumariamente de uma reversibili-
escolarizado requer um esforço para pensá-la dade do vidente e do visível, do tacto e do tan-
como um ser na sua unidade, como ela cons- gível. É tempo de sublinhar que se trata de uma
titui sua existência como ser no mundo vivido reversibilidade sempre iminente e nunca reali-
mediada pelas suas experiências. A insepara- zada de fato. Minha mão esquerda está sempre
bilidade do corpo foi apresentada por Merleau em vias de tocar a direita no ato de tocar as coi-
sas, mas nunca chego à coincidência; eclipsa-se
-Ponty, quando diz que
no momento de produzir-se, cabendo sempre
[...] nosso corpo, como uma folha de papel, é a seguinte alternativa: ou verdadeiramente
um ser de duas faces, de um lado, coisa entre minha mão direita passa para o lado do que é
as coisas e, de outro, aquilo que as vê e toca; palpado mas então interrompe sua apreensão
dizemos, porque é evidente, que nele reúne es- do mundo - ou ela a conserva mas então não
sas duas propriedades, e sua dupla pertencen- a toco verdadeiramente, dela apenas apalpo,
ça à ordem do ‘objeto’ e à ordem do ‘sujeito’ com minha mão esquerda, o invólucro exterior.
nos revela entre as duas ordens relações muito
inesperadas. Se o corpo possui essa dupla refe- Compreendendo a percepção na concep-
rência, isso não pode advir de um acaso incom- ção fenomenológica, começa-se a pensar na
preensível. Ele nos ensina que uma referência estrutura da consciência infantil, que é mar-
chama a outra. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 135)
cada pela maturação desenvolvida devido aos
No âmbito escolar, mesmo que se exija so- fatores internos (endógenos), e pela aprendi-
mente o alfabetizar priorizando o uso da di- zagem desenvolvida devido aos fatores exter-

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nos (exógenos). Desse modo, as sensações se ingressar nos espaços escolares, mas pelas
interligam e “em suma para a criança, assim suas existências no mundo vivido, que antece-
como para o adulto, a percepção implica, por dem as experiências escolarizadas.
um lado, uma relação entre as diferentes par- Merleau-Ponty (2006) acredita ser impossí-
tes do corpo entre si e, por outro, uma rela- vel separar a criança das influências culturais,
ção com o mundo exterior” (MERLEAU-PONTY, como as vitrines, os anúncios publicitários, as
2006, p. 174). À medida que a criança se desen- mídias, pois em algum momento exercerão in-
volve e vivencia experiências sensíveis, ocor- fluência nos modos de expressão da criança,
rem transformações e reorganizações na sua como no desenho que as crianças costumam
percepção e consciência. retratar o seu modo de perceber a experiência
A fenomenologia de Merleau-Ponty (1999) sensível possível ou atual. É preciso lembrar
destaca que, para compreender um aconteci- que a consciência infantil difere da consciência
mento, um fenômeno, precisa-se olhá-lo por do adulto, já que algumas vezes os professores
todos os ângulos, compreender os contextos e equivocam-se exigindo delas uma postura de
não isolar uma única verdade, mas reencon- adulto, ou seja, silenciosa, comportada a todo
trar todos os aspectos que compõem a estru- instante, que não se distrai e consegue perce-
tura do ser, do fenômeno. A configuração na ber o momento certo de falar e o que falar. A
qual o sujeito está inserido é formada por uma consciência infantil a que se refere é a que se
cultura com vários elementos, como o meio focaliza no espaço-temporal do aqui e agora,
físico, histórico, a personalidade de cada su- que se expressa através do corpo com atitu-
jeito, mas o modo, a experiência de vida, sua des, falas e até mesmo desenhando a partir do
corporeidade, é o fenômeno central. seu universo de percepção das coisas e com
os contornos por elas imaginados, ao mesmo
Não há mais essências acima de nós, objetos
positivos, oferecidos a um olho espiritual, há, tempo que apresentam um caráter de plastici-
porém, uma essência sob nós, nervura comum dade, isto é, que se modifica constantemente,
do significante e do significado, aderência e re- despreocupada com julgamentos.
versibilidade de um a outro, como as coisas visí- Ao analisar o desenho de uma criança, por
veis são as dobras secretas de nossa carne e de vezes, pode-se enxergar somente as falhas e o
nosso corpo, embora este também seja uma das
que ela pode melhorar, mas a criança desenha
coisas visíveis. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 119)
conforme sua perspectiva de mundo vivido ex-
Ao chegar à escola, a criança não é um cor- presso naquele momento histórico. É comum
po vazio, pois leva consigo inúmeras informa- ver na escola professores pedindo para que
ções transmitidas por diversos meios presen- os alunos melhorem seus desenhos, porém,
tes no seu modo de vida, pelos adultos que precisa-se incentivá-los, não julgar e dizer que
convivem com ela, pelas mídias como televi- aquilo que fazem não está bom. Isso requereria
são, internet, dentre outras. Todos esses meios do adulto a habilidade de pôr em suspensão o
influenciam na sua forma de existir no mundo julgamento sobre a criança realizado pela sua
e, consequentemente, nas suas ações. Então, o forma de compreensão do mundo, pela sua
professor precisa buscar conhecer as diferen- compreensão e expressão dos fenômenos.
tes realidades presentes numa única sala de As influências do meio social atingem dire-
aula para assim criar estratégias de ensino que tamente as crianças, e a escola deveria ser um
alcancem o máximo de alunos possível, visto espaço que proporcionasse diferentes expe-
que suas corporeidades não se constituem ao riências, como aulas em espaços não formais,

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como museus, zoológicos, parques, bibliote- ção Infantil por ser uma modalidade que ainda
cas, dentre outros, a fim de estimular o uso da não é tão marcada pela fragmentação do ensi-
corporeidade para que a criança se desenvolva no em disciplinas, havendo mais possibilidade
integralmente, sempre respeitando seus níveis de visualizar a criança criando, inventando e
de aprendizagem, pois a consciência infantil e movimentando-se.
a consciência do adulto se diferem. Esses es- Observar as ações pedagógicas de duas es-
tímulos podem ser pensados como condições colas proporcionou visões mais abrangentes
de possibilidades para que as crianças possam e diferenciadas do ser criança e ter infância,
vivenciar outras experiências com o mundo, de pois são realidades e contextos particulares, o
modo a atualizar suas condições de existên- que revelou diversas experiências das crianças
cias e de consciência. que se encontravam naqueles ambientes es-
colares.
O instrumento de pesquisa consistiu na
O caminho da pesquisa
descrição das realidades escolares com o
Esta pesquisa se desenvolveu a partir de uma olhar direcionado aos âmbitos existenciais
abordagem fenomenológica, sendo a fenome- abordados por Merleau-Ponty, sistematizados
nologia, segundo Merleau-Ponty, “a tentativa no diagrama “Flor da Vida” contido na tese de
de uma descrição direta de nossa experiência Marina Machado (2007). Conforme mostra a fi-
tal como ela é” (1999, p. 1). Logo, a fenomeno- gura a seguir:
logia enfatiza a importância das experiências,
revelando o mundo tal como ele é, e isso a faz Figura 1 Diagrama "flor da vida" abstraído da obra
inacabada no sentido que não se pode chegar de Marina Machado (2007)
a uma conclusão definitiva, já que o mundo,
por ser histórico, está em constante mudança,
ou seja, nossos exercícios de compreensão do
mundo são constantemente atualizados, o que
impede de pensarmos nossas experiências
com ele de maneira fechada, absoluta.
Entendido isso, a pesquisa foi desenvolvi-
da por meio da descrição das experiências de
escolarização de crianças na modalidade da
Educação Infantil com alunos do primeiro pe-
ríodo, na faixa etária de 4 a 5 anos de idade,
em duas escolas da rede pública da cidade de
Manaus – o primeiro, um Centro Municipal de
Educação Infantil (CMEI), localizado no bairro
Cachoeirinha; e o segundo, também CMEI, si-
tuado no bairro Parque Dez de Novembro – no
ano de 2018.
As escolhas das escolas foram feitas me-
diante o encaminhamento do estágio super-
visionado realizado no curso de Pedagogia. Nesse diagrama, “o cabo da flor tem a le-
Optou-se por realizar esta pesquisa na Educa- genda mundaneidade; os âmbitos existenciais

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estão distribuídos nas pétalas outridade, cor- Os âmbitos existenciais do ser


poralidade, linguisticidade, temporalidade,
criança e ter infância a partir de
espacialidade e culpabilidade” (MACHADO,
2007, p. 19).
Merleau-Ponty
Cada um dos âmbitos existenciais traz a A criança como ser no mundo, para Merleau
terminologia “idade” referente a uma condi- -Ponty (2006), significa estar no mundo que é
ção própria do ser e viver o mundo como crian- apresentado pelo adulto, mas que só pode ser
ça, o que nos leva a perceber que cada criança apreendido a partir do próprio corpo da crian-
tem a sua condição própria de existência, que ça. Na escola, apresenta-se o mundo à crian-
não é a mesma de uma outra criança. Logo, a ça de diversas maneiras. Nas duas escolas de
sala de aula não é um lugar homogêneo, com Educação Infantil nas quais ocorreram as des-
todas as crianças iguais umas às outras, mas crições, observou-se isso através, por exem-
um lugar com variadas realidades, contextos, plo, da contação de histórias, da exibição de
vivências e condições próprias de ser e existir filmes, da realização de algumas brincadeiras
e da roda de conversa.
no mundo e com o mundo.
Porém, vale ressaltar que na perspectiva
Os âmbitos existenciais foram tratados se-
fenomenológica, em se tratando de apren-
paradamente como um recurso didático, a fim
dizagem, a criança só interioriza quando ela
de compreender como eles são vivenciados na
própria passa pela experiência de apreender
escola e se as ações pedagógicas realmente
pelo próprio corpo, seja dramatizando, dese-
os valorizam no ensino e aprendizagem, visto
nhando, brincando ou estudando. Ocorre que
que todos os existenciais juntos compõem o
as crianças, entre 4 e 5 anos, observadas nesta
ser criança no mundo, articulando-se conti-
pesquisa, mantiveram-se mais na condição de
nuamente – uma vez que tudo no ser humano
existência passiva, como ouvintes de histórias
está interligado – ou se somente priorizam a
contadas por adultos. Contudo, cabe aos pro-
dimensão cognitiva.
fessores além de contar histórias, exibir filmes,
Buscou-se obter os resultados através da
dentre outras metodologias, possibilitar tam-
observação e da aproximação aos sujeitos
bém oportunidades para as crianças atuarem
para conhecer a experiência do ser criança e
participando ativamente na aprendizagem.
ter infância na escola. Para isso, foram reali- A modalidade da Educação Infantil, de
zados diálogos com o corpo docente e com as acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
próprias crianças, além da descrição dos fe- cação Nacional (LDBEN), tem como finalidade
nômenos envolvendo as crianças ocorridos no “o desenvolvimento integral da criança de zero
cotidiano escolar, com a preocupação fenome- a cinco anos de idade em seus aspectos físico,
nológica de não fazer generalizações. A apro- afetivo, intelectual, linguístico e social, com-
ximação tanto com as crianças como também plementando a ação da família e da comuni-
com as professoras foi feita de modo despren- dade (Lei nº 9.394/96, art. 29)” (BRASIL, 2013,
dido de um roteiro, mas sim buscando conver- p. 83).
sar livremente sobre a docência na Educação As práticas pedagógicas para essa modali-
Infantil, seguido de observações e diálogos, de dade de ensino propostas pelas Diretrizes Cur-
modo que os envolvidos da pesquisa não se riculares Nacionais consistem em atividades
sentissem constrangidos nem pressionados a intencionalmente planejadas (BRASIL, 2013).
responder. A intencionalidade é primordial para o êxito

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nas práticas pedagógicas. Não é pelo fato de e havia certa dificuldade dos pais ou respon-
a Educação Infantil ser voltada para as crian- sáveis comparecerem às reuniões escolares.
ças pequenas que professores(as) prestem so- As atividades escolares solicitadas para casa
mente o serviço de cuidadores, sem nenhuma muitas vezes voltavam sem serem realizadas.
prática previamente planejada, considerando Entende-se que se deve ao fato de os pais es-
cada ser no mundo presente na sala de aula. tarem ausentes por motivos de trabalho e não
O simples ato de criar uma rotina tanto diária poderem acompanhá-las nas tarefas escola-
como semanal, o que inclusive era muito pre- res. Para as confraternizações, eram realizadas
sente nas duas escolas lócus desta pesquisa, é rifas e as próprias professoras colaboravam fi-
importante para a criança perceber que exis- nanceiramente.
te determinado tempo para cada ação, como, Já na escola no bairro do Parque 10, os pais
por exemplo, tempo para estudar, para brincar, e a própria comunidade eram mais presentes
para comer, para descansar, e que se deve res- e envolvidos com a escola, com suas participa-
peitar tais momentos. ções nas inúmeras atividades realizadas, como
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dia das mães, dia dos pais, festival literário,
traz como eixos estruturantes das práticas pe- olimpíadas de jogos e brincadeiras. Notou-se
dagógicas na Educação Infantil a interação e que havia mais diálogo entre a professora e os
a brincadeira (BRASIL, 2019). Sabendo disso, pais, que por vezes se juntavam para comprar
buscou-se observar como ocorrem essas prá- materiais escolares que faltavam; além disso,
ticas pedagógicas escolares e principalmente a frequência das crianças também era maior
como as crianças utilizam seus existenciais de na escola. Percebe-se o quanto as especifici-
ser no mundo, de modo a viverem suas infân- dades de cada escola, cada condição socioe-
cias, ou se o ensino prioriza mais a dimensão conômica, cada família, refletem diretamente
cognitiva. na criança como ser no mundo.
Consideram-se importantes para a moda-
lidade da Educação Infantil as interações e • Aspectos estruturais e lúdicos das
brincadeiras, pois são momentos nos quais as escolas
crianças enriquecem aprendizagens e trocas Os aspectos estruturais e recursos lúdicos
umas com as outras. Vygotsky (1998), um dos das escolas foram observados de forma arti-
autores que discute a importância do brincar, culada às práticas pedagógicas e às experiên-
esclarece que o ser humano, sendo um ser so- cias das crianças. Os Indicadores de Qualidade
cial, necessita do outro para se desenvolver. (2009) para a Educação Infantil definem que se
Assim, quando proporcionamos através dos deve ter um ambiente aconchegante, seguro,
jogos e brincadeiras a interação entre as crian- com espaço para o divertimento das crianças,
ças, elas têm oportunidade de conhecerem a fim de que elas possam desenvolver suas ca-
mais a si mesmas, os outros e as normas que pacidades físicas e cognitivas.
regem o ambiente onde elas se encontram. A primeira escola onde ocorreu a pesquisa,
A respeito dos contextos das crianças nas localizada no bairro Cachoeirinha, não pos-
duas escolas, a maioria delas moravam próxi- suía esse ambiente previsto nos Indicadores
mos delas. Chegavam e saiam acompanhadas de Qualidade. O espaço interno da escola era
por familiares ou responsáveis. Contudo, ob- pouco iluminado, as salas, principalmente as
servou-se na escola no bairro da Cachoeiri- de primeiro período, eram pequenas, com es-
nha que algumas crianças faltavam bastante paço limitado para as crianças se movimenta-

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Ser criança e viver a infância na escola de educação infantil à luz de Merleau-Ponty

rem. O espaço externo se resumia a um pátio boliche, quebra-cabeça, lego, brinquedos de


coberto – de aproximadamente uns 15m de montar, bem como alfabeto móvel, blocos ló-
comprimento, 8m de largura e 6m de altura –, gicos. Além disso, havia também materiais do
onde ocorria a atividade chamada de “Hora cí- Programa de Ensino Sistematizado das Ciên-
vica” e outros eventos. Não existia jardim nem cias (PESC), como binóculos, microscópio – po-
área para brincadeiras, como um parquinho; rém este não estava montado –, um modelo de
embora houvesse um pequeno espaço após a arcada dentária, fantoches, dentre outros.
entrada na escola, ele não era utilizado. O espaço físico do primeiro período B, tur-
Em relação aos recursos lúdicos, a escola ma que foi acompanhada durante a pesquisa,
tinha materiais como jogos – quebra-cabeça, era amplo – seguia o mesmo padrão da biblio-
jogo da memória, dominó –, material dourado, teca e Ludoteca, com 8m de comprimento, 7m
blocos lógicos, brinquedos – como bonecas, de largura e 4,5m de altura –, e as crianças fi-
pelúcias, carrinhos, massinhas de modelar –, cavam em mesas, o que é importante para a
mas infelizmente pouco se viu serem utiliza- socialização. Inicialmente, a sala não possuía
dos pelas professoras. Nesse período, elas uti- tantos recursos visuais e isso dificultava quan-
lizaram apenas blocos de montar (lego), que do as crianças procuravam referências para os
distribuíam mais para passar o tempo do que seus desenhos, mas, com o tempo, passou-se
como forma de ensino. Observou-se também a ter mais cartazes e um cantinho da leitura.
que, pela falta de estrutura física, a escola não Havia muitos jogos e, durante os horários
possuía espaços como biblioteca ou Ludote- previstos na rotina para brincadeiras, a profes-
ca. Acredita-se que as crianças precisam ser sora costumava colocar em cada mesa um jogo
protagonistas, logo, é importante adequar o e fazer um rodízio de acordo com o interesse
ambiente para elas, para que possam ter ex- das crianças, possibilitando que elas brincas-
periências de aprendizagens orientadas pelos sem com todos os jogos. Para Piaget (2014), o
saberes escolarizados. conhecimento é resultado de interações entre
A segunda escola, localizada no bairro Par- o sujeito e o objeto, sendo assim uma constru-
que Dez de Novembro, está inserida no Centro ção contínua.
Social Urbano da cidade de Manaus e tem um Em relação a essa última escola é possível
amplo ambiente. No período de observação, a afirmar que a simultaneidade da existência
escola possuía diversos espaços de aprendiza- do ser criança e ter infância consistiu numa
gens, a biblioteca, um deles, era bastante am- experiência possivelmente mais significativa
pla – aproximadamente 8m de comprimento, para as crianças, permeadas por seus âmbitos
7m de largura e 4,5m de altura –, o acervo era existenciais, uma vez que se envolveram com
diversificado, possuindo as mais variadas his- as brincadeiras e foram envolvidas pedagogi-
tórias, desde os clássicos da literatura infan- camente nelas.
til a livros voltados para o folclore da região
amazônica, além de livros para os professores, • Corporalidade
como as diretrizes, livros sobre inclusão, sobre O existencial da corporalidade compreen-
a história de Manaus, dicionários, a coleção de o mundo circundante, sendo este o am-
Barsa, atlas e livros da literatura brasileira. A biente no qual nos encontramos; o mundo das
Ludoteca também possuía um amplo espaço – inter-relações, que são os contextos, as situa-
aproximadamente do mesmo tamanho da bi- ções e o outro; e o mundo próprio, que Ma-
blioteca –, com os mais variados jogos, como chado (2007) chama de “um rabisco de si”, o

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Jade Cristina Corrêa Peixoto; José Vicente de Souza Aguiar

qual é passível de transformações com tempo, mente, solicitando que quando faltassem dez
com as experiências e as vivências. Este tam- minutos para o fim da aula, fossem guardados
bém pode ser denominado de um mundo em os brinquedos a fim de esperar os pais. Então,
construção mediada pelas experiências en- recolhi uma bola pequena que estava entre
tre as crianças e delas com os adultos, daí o os brinquedos e comecei a lançá-la no chão
grande cuidado para com elas, sobretudo no com uma mão e quando a bola subia de volta
sentido de oferecer experiências que possam a pegava com a outra. As crianças se aproxi-
refletir a formação de um ser acolhedor. Há o maram pedindo para tentarem também, as-
que Merleau-Ponty denominou de reversibida- sim, solicitou-se que elas ficassem em círculo,
de do corpo nas suas relações de experiências e cada uma teria a sua vez de jogar, depois,
como o mundo vivido. mostrou-se novamente como fazia e passou-
Com a reversibilidade do visível e do tangível se a bola.
abre-se, pois, se não ainda o incorporal, ao me- Inicialmente, nessa situação descrita, no-
nos um ser intercorporal, um domínio presunti- tou-se que as crianças tiveram dificuldade
vo do visível e do tangível que se estende além para conseguirem êxito, algumas vezes joga-
das coisas que toco e vejo atualmente. Há um
vam com muita força, não conseguindo pegar
círculo do palpado e do palpante, o palpado
apreende o palpante; há um círculo do visível e a bola de volta; outras vezes, jogavam com
do vidente, o vidente não existe sem existência pouca força e a bola não subia suficiente-
visível; há até mesmo inscrição do palpante no mente para conseguirem pegá-la. Mas depois
visível, do vidente no tangível e reciprocamen- de algumas tentativas, a maioria das crianças
te. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 140-141)
conseguiu encontrar a intensidade adequada
O corpo sendo o mediador entre o mundo para arremessar a bola contra o piso da esco-
e tudo o que percebemos permeia os nossos la. Isso demonstra a relação da corporalidade
sentidos – visão, tato, audição –, que interro- como meio de articular o ser ao mundo, ao
gam as coisas e elas lhes respondem. Sendo mesmo tempo em que proporciona a apren-
assim, as relações entre as coisas são sempre dizagem.
mediadas pelo nosso corpo (PERIUS, 2012). A respeito do fenômeno da imitação, como
A criança só percebe isso se existirem ações ocorreu na situação descrita, Merleau-Ponty
que a incentivem a adquirir essas experiências afirma que “ imitar não é fazer como outrem,
com sua corporeidade. mas chegar ao mesmo resultado [...] visa o
Na escola do bairro Cachoeirinha, preocu- resultado global, e não ao detalhe do gesto”
pava-se mais em alfabetizar as crianças rapi- (2006, p. 25). O adulto, nesse processo, torna-
damente, uma espécie de corrida dirigida pelo se o intermediário entre o mundo e a criança.
esforço focado nas suas cognições, levando-as É pela ação do outro que a criança descobre
a fazerem repetitivos exercícios de escrita de coisas novas, enfatizando, nesse ponto, um
letras e números. Mesmo com os momentos de conceito de corporeidade utilizado por Mer-
brincadeiras pedagógicas disponíveis na sala leau-Ponty (1999), que a entende como a ma-
do primeiro período, as crianças buscavam de neira pela qual o cérebro reconhece e utiliza
alguma maneira se movimentarem e brinca- o corpo como instrumento relacional com o
rem em outros momentos. mundo, como ocorreu quando as crianças des-
Certo dia, no final da manhã, a professo- cobriram a intensidade adequada para arre-
ra precisou atualizar seu diário de classe, por messar a bola contra o piso a fim de chegarem
isso deixou que as crianças brincassem livre- ao resultado apresentado primeiro.

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A escola do bairro Parque Dez de Novem- ser no mundo, de sujeitos com infância, pode-
bro, por ter um ambiente mais aberto, uma vez se colaborar para ricas experiências em um
que se localiza dentro de um Centro Social Ur- ambiente facilitador de aprendizagens.
bano, possuía muitas árvores ao redor. Em um
determinado dia, a professora leu uma história • Outridade
chamada “As frutas do meu quintal”, da auto- A existência humana está destinada à con-
ra amazonense Ana Peixoto (2010), dialogando vivência, a um existir social. Logo, a capaci-
sobre os tipos de frutas presentes na nossa dade humana de relacionar-se possibilita a
região. No dia seguinte, levou as crianças para descoberta do outro e do mundo (MACHADO,
explorarem as árvores, relacionarem-se com a 2007). Na escola, as crianças se relacionam
natureza e com o espaço fora das quatro pare- tanto umas com as outras, como também com
des da sala de aula, proporcionando-lhes no- o adulto. Desses relacionamentos estabeleci-
vas experiências. dos entre as crianças e os adultos, decorrem
Em relação a isso, Machado diz que “cada as aprendizagens significativas ou a atuali-
adulto que propiciar à criança contato com os zação de suas experiências com o mundo. Os
elementos da natureza, faz a ela um convite âmbitos existenciais se realizam por meio das
para enriquecer e humanizar sua sensorialida- experiências, nas quais as crianças são, prin-
de, algo realizado especialmente pelo diálogo, cipalmente, as protagonistas, podendo agir e
pela conversação entre o adulto e a criança” interagir no mundo.
(2007, p. 61). A ação pedagógica da professora Na relação criança-criança, conforme o
de, a partir da história, realizar uma atividade que foi visto na pesquisa, o que se torna mais
que permitisse novas experiências concretas, presente é o brincar. Por meio do brincar se
fazendo uso da corporalidade ao olhar, tocar conhece, descobre-se e se experimenta o con-
e sentir as árvores, suas folhas e seus frutos tato com o outro e com o mundo. Dito isso,
foi um estímulo ao uso da sensorialidade. As em um dos momentos de brincadeiras na sala
diferenças entre as árvores foram importan- do primeiro período da escola no bairro Ca-
tes para o desenvolvimento infantil e para choeirinha, uma criança queria brincar com o
que ocorressem aprendizagens no sentido de brinquedo do seu colega, mas este não queria
atualização de suas experiências com o mun- emprestá-lo. Então, a criança ofereceu o seu
do no processo de construção do conhecimen- brinquedo para conseguir negociar uma troca
to, o que de fato aconteceu, pois, dias depois, entre os brinquedos e, por fim, conseguiu o
quando passavam pelas árvores do espaço desejado. Isso demonstrou a necessidade da
onde ocorreu a atividade, a caminho da canti- criação desses momentos oportunizadores de
na, as crianças apontavam e diziam quais eram experiências de viver no mundo e em intera-
as árvores, contavam que tiraram fotos e co- ção com ele, ou seja, a criança se faz no conta-
lheram as frutas que caíram. to com as outras, com quem negocia e aprende
A corporalidade, sendo a característica do a viver.
que é corpóreo, abarca todos os nossos senti- Segundo Merleau-Ponty (2006, p. 174), “há
dos. Segundo Machado (2007, p. 57), “as crian- um elo essencial entre sentir e assumir uma
ças pequenas olham com as mãos, pensam atitude perante o mundo exterior; todo movi-
com seu corpo”. Ao oferecer oportunidades mento se desenrola sobre um fundo percep-
adequadas para o desenvolvimento corporal, tivo, e toda sensação implica uma exploração
motor e cognitivo, respeitando a condição de motora ou uma atitude do corpo”. A criança,

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sentindo o desejo de conseguir o brinquedo, Para Merleau-Ponty (2006), as crianças


percebeu que precisava tomar uma atitude não estão isentas da cultura do adulto, uma
que envolvia se relacionar com o seu colega e, vez que estão atentas para o modo como os
além disso, descobriu que através da negocia- adultos ao seu redor falam. No estágio na es-
ção com ele poderia conseguir o que desejava. cola do bairro Cachoeirinha, em determinada
Na escola do bairro Parque Dez, ocorria de ocasião, a professora comentou que havia dei-
as crianças assumirem o papel de ajudante xado seu carro na oficina mecânica, pois esta-
do dia. A professora compartilhava algumas va com algum problema, neste momento, um
responsabilidades com elas, como distribuir dos alunos que estava a uma certa distância
os lápis ou os brinquedos nas mesas, depois da professora perguntou: “e agora, professora,
recolhê-los, bem como organizar a fila para o como a senhora vai pra casa?”. Isso retrata o
lanche. As relações criança-outro e criança- quanto as crianças estão atentas para as fa-
cultura estão ligadas, uma vez que o adulto las e conversas, já que, algumas vezes, até re-
atua como mediador, apresentando o mundo petem expressões e palavras que ouvem. Por
e, consequentemente, apresentando também isso, é necessário atenção e cuidado também
a cultura (MACHADO, 2007). Compartilhar al- para o modo como se fala com as crianças e ao
gumas responsabilidades com as crianças redor delas.
é mostrar um pouco da cultura e do mundo, Nas observações realizadas na escola do
pois assim há possibilidade de começarem bairro Parque Dez, enquanto os alunos do
a fazer descobertas e perceber que o mun- primeiro período B esperavam para entrar no
do não se centraliza somente nelas próprias, refeitório, outra turma – primeiro período A –
sendo necessário também pensar e fazer algo chegou e os alunos também ficaram esperan-
pelos outros. do. Nessa outra turma, estudava a irmã gêmea
A fenomenologia da outridade depende de uma criança do primeiro período B. Então,
que o adulto esteja presente, seja paciente, uma das alunas que estava perto de mim, na
tenha diálogos, seja cuidadoso e observa- condição de pesquisadora, ficou olhando para
dor. Já a convivência das crianças umas com as duas como se tentasse entender que ha-
as outras possibilita, como foi relatado, des- via duas delas, olhou-me e apontou para as
cobertas quando a criança negocia os brin- duas, foi lhe dito “sim, elas são irmãs”, então
quedos, e acolhimento, quando outra criança a criança disse empolgada “ah, são gemas”, e
divide os brinquedos ou assume o papel de respondeu-se “sim, elas são gêmeas”. O pri-
ajudante do dia. meiro ponto a ser destacado aqui diz respei-
to à percepção da criança em achar intrigante
• Linguisticidade ver duas pessoas “ iguais”. Visivelmente, por
A linguisticidade revela as formas daquilo que alguns instantes, ela tentou entender o que
se deseja expressar na relação entre os sujei- estava vendo. Como foi dito anteriormente, é
tos. Machado (2007, p. 76) a conceitua como: pelo corpo que se compreende o outro, assim
[...] o âmbito existencial do dizer, da linguagem como é pelo corpo que se percebe as coisas,
falada e escrita, é o modo que sofistica as tro- tudo isso direcionado pelos sentidos que com-
cas, intercâmbio, diálogo e comunicação entre
põem a corporalidade.
crianças e adultos, permite fazer uso de inter-
mediação – dos sons, das palavras, do canto, do Observa-se na situação descrita aquilo que
grito e do silêncio – para fazer ver a expressão Merleau-Ponty (2006) diz sobre o nosso cor-
do mundo vivido [...]. po ser o modo fundamental de ser no mundo,

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Ser criança e viver a infância na escola de educação infantil à luz de Merleau-Ponty

pois ele detém os sentidos, a consciência e o Uma situação muito significativa ocorreu na
pensamento, por isso a criança percebeu algo escola do bairro Parque Dez, em que tivemos a
interessante e com a ajuda ocorrida, destacan- oportunidade de identificar que as atividades
do a outridade no papel do adulto como me- escolares dirigidas às crianças não respeita-
diador para auxiliar a criança a chegar às suas vam a temporalidade de cada uma no sentido
próprias conclusões sem oferecer respostas de não impor um único modelo a ser seguido.
prontas, conseguiu compreender o porquê da A professora, em determinado dia, começou a
existência de duas crianças “iguais”. trabalhar a letra “E”, as crianças logo falaram
O segundo ponto a ser destacado é refe- “E de elefante”. A professora, assim, disse que
rente à linguisticidade, e envolve a resposta da não sabia desenhar um elefante e perguntou
criança: “ah elas são gemas”. O que a criança se eles sabiam, imediatamente disseram que
estava dizendo é que suas colegas eram gê- sim, então ela chamou cada um para ir à lousa
meas; dizer de imediato que ela estava errada desenhar seu elefante, as mais variadas for-
interromperia completamente seu momento mas surgiram e sempre que um terminava, to-
de descoberta e admiração, todavia deixar que dos batiam palmas para o desenho do colega.
ela achasse que se falava “gemas” seria dei- Oportunizar momentos para os alunos cria-
xar passar um momento de aprendizagem, por rem, mesmo que o resultado seja totalmente
isso se respondeu concordando com a conclu- diferente da forma como o objeto é na reali-
são que a criança chegou, mas dando ênfase dade – no caso, o elefante –, é uma forma de
na palavra “gêmeas” para que, dessa forma, exercitar a criatividade e inibir o medo de er-
a criança percebesse sua pronúncia. Merleau rar, permitindo que sejam protagonistas e de-
-Ponty (2006) diz que a criança fica atenta ao mostrando respeito com a criação da criança,
modo como as pessoas que a cercam falam e quando ao final todos aplaudem.
à medida que percebe os contrastes fonêmi- A fenomenologia merleau-pontyana sugere
cos e seu valor significativo, organiza-os cons- que se olhe para a criança tal como ela se apre-
truindo as palavras. senta, sem julgamentos ou generalizações; é
no desenho que a criança tem a liberdade de
• Temporalidade e espacialidade criar. Mesmo que o resultado saia diferente do
Precisa-se compreender primeiramente que objeto real, deve ser respeitado, pois é a forma
a estrutura espaço-temporal de cada criança como ela enxerga o mundo, é a sua condição
tem o seu tempo de se desenvolver, ocorrendo tempo-espacial naquele momento de existên-
de maneira diferenciada para cada uma. Um cia no mundo.
exemplo disso está relacionado à escrita. A
professora, desde o começo do ano, na escola • Culpabilidade
do bairro Cachoeirinha, passava atividades de O termo “culpabilidade” é abordado por Mari-
cobrir o nome para todos os alunos, cujo pro- na Machado mais voltado para o adulto, pois
pósito, segundo ela, consistia em que as crian- esse existencial traz o desdobramento da no-
ças fossem para o segundo período já saben- ção de responsabilidade da sociedade adulta
do escrever seus nomes. Meses depois, dos 17 para com as crianças. Para não haver culpa
alunos matriculados na sala, somente quatro por parte do adulto em relação à criança, é
já escreviam seus nomes sozinhos, enquanto necessário que se esteja presente e ausente
a maioria absoluta não havia acompanhado o ao mesmo tempo; “[...] presente, de modo que
mesmo ritmo de aprendizagem. a criança se veja assistida e acolhida, ausen-

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Jade Cristina Corrêa Peixoto; José Vicente de Souza Aguiar

te para que ela possa descobrir o mundo por presente quando a professora mostra e pede
ela mesma com a autonomia possível que sua o que se deve fazer, ao mesmo tempo estan-
existência permita” (MACHADO, 2007, p. 120). do ausente, no sentido de deixar que a criança
A professora da escola no bairro da Ca- tenha autonomia de ser atuante na sala execu-
choeirinha atuou por muito tempo no Ensino tando tarefas de acordo com suas capacidades
Fundamental, tinha muita experiência em al- naquele momento.
fabetizar, relatando que certa vez conseguiu Merleau-Ponty (2006), quando discute a re-
alfabetizar cerca de 90% de uma turma de 2º lação do adulto com a criança, fala sobre ati-
ano; contudo, ao mudar para o 3º ano, acredi- tudes possessivas que, por vezes, são deposi-
tando continuar com a mesma turma que alfa- tadas nas crianças, desconsiderando todos os
betizou para que pudesse dar continuidade ao existenciais vistos até este momento – corpo-
processo de aprendizagem, para sua surpresa, ralidade, outridade, linguisticidade, tempora-
pegou uma turma totalmente nova, na qual lidade e espacialidade.
muitos ainda não sabiam ler e teve que come- Os sistemas de ensino impõem índices
çar o processo de alfabetização novamente, para serem alcançados e os professores, cada
tal situação lhe desgastou e estressou muito, vez mais cedo, precisam alfabetizar, o que leva
refletindo até mesmo na sua saúde, até que muitas crianças a não aproveitarem suas in-
ela decidiu se transferir e atuar na Educação fâncias para experienciar a vida. Elas passam
Infantil. Esse perfil alfabetizador da professora grande parte do seu tempo fazendo exercícios
refletia na sua prática na turma pesquisada de escolares. Isso demonstra que o sistema esco-
passar muitas atividades de escrita. lar, pelo menos na primeira escola, onde rea-
Já a professora que atuava na escola do lizamos as observações e descrições, prioriza
bairro Parque Dez possui formação em magis- principalmente o cognitivo, já os existenciais,
tério e havia concluído licenciatura em Peda- que formam o ser no mundo, são muitas vezes
gogia recentemente, por isso, chegou a relatar desconsiderados.
que muitas das suas práticas se renovaram Embora não existam fórmulas e maneiras
após a graduação, passando a valorizar mais exatas de escolarização de uma criança, visto
atividades corporais como circuitos, fazendo que na educação não existem receitas pron-
alongamentos antes das aulas, utilizando mú- tas para serem seguidas, deve-se compreen-
sicas como instrumentos para as crianças mo- der que cada criança tem sua subjetividade,
vimentarem-se e aprender, além de que bus- suas maneiras de existir no mundo. Desse
cava bastante trabalhar em conjunto com as modo, cada turma é única com suas próprias
outras professoras compartilhando ideias de características e seu modo de apreender; logo,
atividades. o mesmo pode não se aplicar a outra turma
A formação das professoras reflete muito ou a outra criança, mas pode-se desenvol-
na noção de responsabilidade que se tem na ver continuamente o diálogo e acolhê-la para
relação com as crianças, no sentido de buscar compreendê-la no seu modo de ser e estar no
se renovar para compreender as crianças nas mundo.
suas formas de ser e estar no mundo.
Voltando ao exemplo citado anteriormente, • Mundaneidade
sobre o papel de ajudante do dia instituído na Toda a vivência da corporalidade, da outri-
sala do primeiro período B na escola do bairro dade, da linguisticidade, da temporalidade
Parque Dez, considera-se uma forma de estar e da espacialidade da criança constitui sua

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Ser criança e viver a infância na escola de educação infantil à luz de Merleau-Ponty

mundaneidade. A criança se encontra aber- zado o modo mais tradicional de ensino, que
ta para conhecer, explorar e viver o mundo, envolve a memorização e repetição de exer-
bem como o mundo está ao seu redor para cícios.
ser encontrado e descoberto por ela. Sendo Já no CMEI do bairro Parque Dez de Novem-
assim, é direito da criança conhecer o mundo bro, notava-se mais presente o respeito e o uso
em pequenas doses, não sendo recomenda- dos existenciais da criança como ser no mun-
do oferecer todas as informações e os conhe- do, com práticas intencionais voltadas para o
cimentos de uma só vez, tampouco privá-la ser criança em sua totalidade e integralmente,
de conhecer e explorá-lo. ora em momentos de alfabetizar, ora em brin-
Piaget (2007) discute em sua teoria constru- cadeiras, priorizando e dando atenção para as
tivista que o desenvolvimento ocorre gradati- falas e modos de expressão das crianças. Esse
vamente, dessa forma, é importante o estabe- ambiente levava as crianças a serem mais es-
lecimento do diálogo com a criança. De acordo pontâneas e expressivas, pois mostravam suas
com Machado (2007, p. 111), “a fenomenologia criações e apresentavam vontade de partici-
da descoberta do mundo é complementar à par sem medo de repressões.
fenomenologia da descoberta das palavras e É importante enfatizar que as escolas pre-
da possibilidade do diálogo, da conversa, da cisam atuar para formar sujeitos com valores
comunicação – e do acolhimento, do compa- e carregados de experiências reais, não ape-
nheirismo”. O mundo fica mais acessível, inte- nas máquinas que produzem bons resultados
ressante e instigante para a criança a partir de quantitativos nas avaliações internas e exter-
sua relação com o adulto, sobretudo quando nas. Ao oferecer oportunidades para a criança
passa a ser acolhida e a ter oportunidades de vivenciar os existenciais descritos nesta pes-
experienciar o mundo considerando o desen- quisa, os processos de ensino, aprendizagem
volvimento de suas potencialidades. e produção do conhecimento são construídos
naturalmente e não impostos.
Portanto, considera-se de fundamental
Considerações finais importância aproximar-se da criança, pois,
O ser criança e o viver a infância nas duas es- como afirma Merleau-Ponty (2006), a minha
colas lócus da pesquisa ocorreram de maneira corporalidade torna-se potência de com-
diferenciada, visto que são espaços, culturas, preensão da corporalidade alheia, sem se
contextos diferentes e singulares. Considerou- aproximar torna-se impossível compreender
se importante trazer à tona ambas as realida- o outro, já que somos duas consciências dis-
des para retratar como o ser criança e ter in- tintas e somente pela interação há possibili-
fância tem modos próprios de ser e estar que dade de compreensão. As crianças estão aber-
podem até se assemelhar em alguns pontos, tas para descobrir e explorar o mundo, mas
mas não são exatamente a mesma coisa. precisam de um mediador que o apresente a
Dessa forma, a escola de Educação Infan- elas. Assim, o ensino precisa ser construído
til do bairro Cachoeirinha estava mais vol- gradativamente com a criança em sucessivas
tada para o desenvolvimento da capacidade experiências de aprendizagem que possam
cognitiva, para o ato de alfabetizar. Fato esse repercutir significativamente nos processos
que pode estar relacionado às experiências de atualização dela, ao mesmo tempo em que
de vida das professoras, uma vez que, certa- é necessário perceber a indissociabilidade
mente, no seu processo formativo foi priori- entre ser criança e ser aluno.

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Jade Cristina Corrêa Peixoto; José Vicente de Souza Aguiar

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2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Aprovado em: 10/02/2021

Jade Cristina Corrêa Peixoto é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Ama-
zônia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Graduada em licenciatura em Pedagogia pela UEA. E-mail:
jadecristina08@gmail.com

José Vicente de Souza Aguiar é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ensino de Ciências na Ama-
zônia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), do doutorado Rede Amazônica de Ensino de Ciências e Matemá-
tica (Reamec) e do doutorado em Educação na Amazônia (Educanorte) doutor em Educação pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). E-mail: jvicente@uea.edu.br

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 06, n. 17, p. 375-391, jan./abr. 2021 391

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