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CRIANÇAS CURRICULISTAS: PENSANDO A INFÂNCIA NA RELAÇÃO COM A

ALFABETIZAÇÃO
Bonnie Axer1
Jade Juliane Dias2
Rosalva de Cássia Rita Drummond3

GRPesq Currículo, formação e educação em direitos humanos: UERJ

Palavras-chave: produção curricular, crianças, infância

1 Olhar o mundo de ponta cabeça

“Sabem por que é que eu pinto tanto menino em gangorra e balanço? Para
botá-los no ar, feito anjos” (Candido Portinari)

Começamos nosso texto com esta reflexão de Portinari quando questiona a si próprio
em suas pinturas. Assim como o pintor, colocamos de ponta a cabeça uma perspectiva
adultocêntrica de criança que muitas vezes espera que esta esteja alinhada atrás da cadeira,
num lugar previamente delimitado para elas, seja na escola ou no mundo. Na contramão,
trazemos as crianças para pensar com elas o que chamamos de currículo. Currículo este,
entendido, defendido e vivenciado por nós, como processo e produção de sentidos.
Deslocamos a ideia de um conhecimento racional, desconfiando das certezas na tentativa de
enxergá-lo também com o olhar das crianças, estas que subvertem as lógicas postas,
produzindo outras tantas a todo tempo.
O texto aqui proposto então, marca nosso posicionamento político, de tomada de
decisão que se constitui no fluxo de movimentos e desdobramentos teóricos que temos feito
acerca das políticas curriculares para a infância e alfabetização, objeto de estudos e
pesquisas.

1 Doutora em Educação pela UERJ, pesquisadora dos campos do currículo e alfabetização, professora adjunta
do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira. bonnieaxer@gmail.com
2
Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pela UERJ, pesquisadora dos campos do currículo, infância,
leitura e escrita; professora regente de Educação Infantil do Município do Rio de Janeiro.
jadejulianedias@gmail.com
3
Doutora em Educação pela UERJ, pesquisadora do campo do currículo, alfabetização e formação; professora
no ISERJ e UNESA. rosalvadrummond@gmail.com
Em nossa trajetória como pesquisadoras temos nos aproximado das discussões no
campo do currículo através das leituras das políticas curriculares para infância e o desenho
que aqui propomos de conversa, desalinha também nossas pesquisas e nos convoca a borrar
algumas certezas. Problematizamos os discursos, nos textos das políticas curriculares de
alfabetização, considerando que estas imprimem sentidos de uma visão adultocêntrica aos
movimentos na escola, com olhar de quem sabe o que é melhor para as crianças.
No âmbito da pesquisa, temos assistido o investimento no que diz respeito à
alfabetização em diferentes políticas e observado a mobilização gerada inclusive provocando
o realinhamento dos velhos discursos sobre o trabalho da Educação Infantil como resposta
salvadora que busca suprir a falta de qualidade da alfabetização. Temos entendido que a
tensão que os discursos de alfabetização na “idade certa” ou ainda em um “tempo de
aprender”, emergem de concepções que aprisionam as infâncias produzindo efeitos de
sentidos que desqualificam as diferentes infâncias, além de encurtar seus tempos.
Assim, na articulação das nossas pesquisas, o objetivo aqui é tecer alguns pontos que
configuram um “certo desarranjo” na leitura das políticas curriculares que tematizam sobre
alfabetização, a fim de pôr em questão os sentidos de infância no processo de produção
curricular para além da “alfabetização”.

2 Os adultos entendem as crianças?

Iniciarmos essa seção explicando que sim, desejamos e lutamos para que todas as
crianças sejam alfabetizadas. Nossa discussão não se faz pela polarização entre infância e
alfabetização, ao contrário, a ideia é ampliar a discussão. Em nossa experiência com as
crianças nas escolas, as vemos brincar com as letras, como brincam com bonecas e
carrinhos. Narram seu interesse em ler e escrever, inventam modos de registro das suas
ideias, desenham, narram e escrevem o mundo de forma que, por vezes, não cabe nos
moldes da escola. Assim, para atender as demandas da alfabetização, as infâncias vão
perdendo seu lugar e tempo na escola.
O modo como as crianças são cada vez mais cedo interpeladas sobre o dever de
cumprir determinadas tarefas escolares, atender a padrões e se “enquadrar” em certos
grupos, fortalece a visão de que a própria escola tem passado a ser um lugar onde não há
espaço para a infância, como ressalta Kohan (2017). Esse lugar vem a cumprir um papel que
se distancia em grande escala do que se entende por proporcionar possibilidades de
experienciar o mundo, sobretudo o universo da escrita inventiva.
Carregada pela “marca da salvação”, as políticas educacionais tomam a pauta da
alfabetização, para fundamentar sua inserção na sociedade letrada a partir da lógica de um
sujeito universal, de um currículo como projeto de nação postulado no investimento da criança

2
como futuro adulto. Nesse interstício passado-presente-futuro, idealizado pela ilusão de
linearidade temporal, criada pela suposta aposta em um futuro perfeito, antecipada por uma
memória contada/inventada de uma missão impossível. (DRUMMOND, 2019, p. 75). Missão
esta atravessada pelo peso da narrativa “as crianças de hoje serão os adultos de amanhã”. A
questão é khrónos, essa sequência sucessiva, irreversível e consecutiva de movimentos que
a escola empenha-se em sacralizar não só não é o tempo da ciência, mas também não é o
tempo da vida e muito menos é o tempo da infância” (KOHAN, 2017, pg. 13). Tampouco é o
tempo da alfabetização.
Com base na perspectiva discursiva da alfabetização (Goulart, 2017), operamos com
o entendimento de que esta não é apenas um processo de codificação e decodificação dos
códigos da língua, não se trata de receitas ou métodos para adquirir a linguagem escrita.
Trata-se de um processo de leitura de mundo, como nos diria Paulo Freire (1989), modo pelo
qual vamos interagindo, dialogando e produzindo significações. Escrever e ler é assim,
inscrição de si.
Nesse entender, o currículo não é algo dado, fixo e estável, ao contrário, se produz na
precariedade e provisoriedade, como produção cultural híbrida e é essa possibilidade de
entendimento do currículo que nos ancoramos para pensar os processos pelos quais as
crianças vão negociando seus sentidos nesse jogo discursivo. Atravessando e borrando uma
perspectiva da fronteira cultural como “lugar” [de enunciação], como momento de trânsito onde
“algo começa a se fazer presente” (Bhabha, 1998) e que se constitui na contingência, por
meio de processos fluidos de produção de sentidos.
Na tentativa de seguir na contramão do entendimento da criança como sujeito menos
importante na discussão acerca da produção curricular, buscamos romper com a cristalização
a partir da qual, boa parte das vezes, é interpretada a escola, o currículo da educação básica
e o momento da alfabetização que percebe as crianças como sujeitos à margem dessa
produção, coadjuvantes, como se fossem apenas receptoras do currículo.
Ora, se a escola é espaço de produção do currículo, as crianças são também
responsáveis por estas produções. Dessa maneira, desconfiamos e colocamos sob suspeita
políticas curriculares que atravessam e mobilizam os processos de ensino-aprendizagem na
infância de modo a se caracterizarem por seu viés salvacionista. Questionamos também, a
maneira como os adultos, por sua vez, super poderosos, irão pactuar, assumir um
compromisso para garantir uma base comum de ensino e aprendizagem que insira a criança
no mundo da alfabetização sem ao mesmo participá-las do processo.
Nos apoiamos então na perspectiva pós-estrutural do campo do currículo,
compreendendo o mesmo como fronteira, espaço de enunciação em constante movimento de
significação e diferimento (Lopes e Macedo, 2011). Pensar então a perspectiva curricular

3
como prática cultural, cotidiana, é compreender a criança como sujeito que produz cultura,
linguagem e a sua realidade. Em diálogo com Henriques e Abramowicz (2018),
compreendemos que pensar a produção política e curricular para a infância é também pensar
em como estes sujeitos usufruem da infância. Isto é, é na própria infância e através dela que
se produzem - ou deveriam - subsídios para as práticas que são a elas destinadas numa
perspectiva da diferença.

3 Considerações Finais

Se compreendemos que as crianças constroem seus conhecimentos na interação


com outros, discursivamente, produzindo sentidos, criando, inventando modos de ler e dizer
o mundo, o currículo precisa ser outro, outros, visto que este precisará contemplar espaços
de diálogo. Somente assim este será produzido na relação com as crianças e carregará por
sua vez, a impossibilidade de uma fixação das suas proposições, aceitando que há princípios,
sem receita pronta que resolva numa delimitação de tempo prévio o domínio da leitura e da
escrita, por exemplo. “Nesse processo de descobrir, conhecer, registrar, elas estão
descobrindo suas palavras, a palavra de cada uma e do grupo. Elas estão descobrindo que
são “DONAS” do seu processo de desvelar as palavras, de ler o mundo[...]” (FREIRE, 1983,
p.69).
Sendo assim, é fundamental considerar o papel das crianças e de seus conhecimentos
nos processos da aprendizagem; é preciso ouvi-las para compreender como estas se colocam
no mundo e fazem uso da sociedade que as cerca. É preciso assumir as crianças como
curriculistas, construtoras, inventoras.

Referências

DRUMMOND, Rosalva de Cássia. Podem as crianças produzir currículo? In: VIII Colóquio
Internacional de Filosofia e Educação. Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ],
2016.

FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo: relato de uma professora. Rio de


Janeiro, Paz e Terra, 1983.

GOULART, Cecília; SANTOS, Andréa Pessôa dos. Estudos do discurso como referência
para processos de alfabetização em perspectiva discursiva. In: GOULART, Cecília M. A et
al. A Alfabetização como processo discursivo: 30 anos de A criança na fase inicial da escrita.
São Paulo: Cortez, 2017.
4
LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth Fernandes. Teorias do currículo. São Paulo:
Cortez, 2011.

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