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PODEM AS CRIANÇAS PRODUZIR CURRÍCULO?

Rosalva de Cássia Rita Drummond


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro
rosalvadrummond@gmail.com

Resumo

A pretensão neste texto é discutir questões referentes à produção curricular no


contexto da escola, procurando seguir na contramão do entendimento da
brincadeira como algo menor, menos importante, neste contra fluxo para
pensar a infância. Por este caminho, desejo romper com a racionalização pelo
qual muitas vezes é concebido o currículo de educação das crianças em que a
educação infantil que localiza a discussão sobre produção curricular em
instâncias governamentais, desvinculando-a da escola ou ainda que considere
a escola, não reconhece os demais sujeitos envolvidos na produção desse
currículo. A intenção é discutir questões referentes à produção curricular da
educação das crianças (Educação Infantil e Ensino Fundamental), jogando luz
no brincar nesse processo como modo pelo qual as crianças causam tensão e
disputam essa produção. Apresento uma releitura da pesquisa desenvolvida no
Mestrado que foi investigado a produção curricular no entre-lugar Educação
Infantil-Ensino Fundamental. Em diálogo com Bhabha, Ball, Lopes e Kramer
procuro elencar questões que nos possibilitem problematizar a produção
curricular, considerando as crianças como sujeitos que tensionam a produção
desse currículo pelo seu modo de se relacionar com o mundo, através do
brincar. Minha intenção ao propor que consideremos aqui a perspectiva da
educação da criança, distanciando das segmentações das etapas na educação
básica, se faz não pela tentativa de invisibilizar as tensões na produção
curricular desse jogo, no que diz respeito ao trabalho da Educação Infantil e
Ensino Fundamental, ao contrário, esta discussão foi foco outros estudos, e
será a partir destes, que faço a reflexão que apresento aqui, justamente,
porque tenho compreendido ao longo desses estudos os ‘nós’ e dicotomias
entre os espaços, que retomo a discussão por outra via.

Palavras-chave: Produção curricular; Infância e Brincar.

1
- Texto apresentado no VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação Mundos que se tecem entre
"nosotros": o ato de educar em uma língua ainda por ser escrita - 2016
PODEM AS CRIANÇAS PRODUZIR CURRÍCULO?

Este texto, se envereda na tentativa de seguir na contramão do


entendimento da criança como sujeito menos importante na discussão sobre a
produção curricular. Por este caminho, desejo romper com a racionalização
pelo qual muitas vezes é concebido na escola, o currículo da educação das
crianças, tratando como se estas, estivessem fora dessa produção e fossem
apenas receptoras desse currículo.

Na escola de ensino fundamental, o comportamento das crianças (que


brincam) deflagra a preocupação com a proposta curricular pensada pelos
adultos. A professora diz: “Eles são pequenos, são crianças, não podemos
esquecer” (Professora Suzana, apud FÉ et al, 2012). Demonstrando a
preocupação quanto ao trabalho junto a essas crianças. O que talvez, ainda
esteja condicionado à ideia de “imaturidade”, conforme foi dito por vários
professores. Uma delas conta: “uma criança que vira e fala: ‘Quero brincar, a
que horas vamos brincar?’ A meu ver, eles são muito novos e imaturos”.
Colocações que dizem do pensar sobre as crianças e seu estado mental e
físico desesperados para enfrentar as cobranças do Ensino Fundamental.

Sempre procurei dar continuidade ao trabalho da Educação Infantil,


trabalhando com o lúdico, mas atualmente está mais difícil, pois eles
ainda não adquiriram a maturidade para entender, por exemplo, as
regras do jogo, saber ouvir o amigo, esperar para falar... (professora
Maria do Amparo., in FÉ et al, 2012).

A intenção aqui é discutir questões referentes à produção curricular da


educação das crianças, problematizando os sentidos do brincar nesse
processo. Entro no labirinto dessa discussão reconhecendo os emaranhados
desta temática, marcado, muitas das vezes por simplificações do brincar como
modos de didatizar o ensino, mas reconhecendo que tem sido caro ao campo
do currículo, o processo de produção curricular no contexto da escola, em
tempos de base nacional comum curricular. Escolho, não de forma aleatória,
seguir por esta via, tendo como fio de Ariadne, o brincar.
A provocação cobra um sentido à infância, e falar de um conceito
universal de infância, uma construção social, soa irreal, impreciso. Sendo
assim, reconhecendo as disputas pela fixação da hegemonia de significação,
trato aqui infância como produção cultural, cujos sentidos são dados pela
cultura e pelas histórias individuais dos infantes pelos adultos. Creio que a
infância, como significação, aproxima-se do que Bhabha expõe quando diz que

esses momentos de indecidibilidade não devem ser vistos apenas


como contradições de ideia ou da ideologia do império. Eles não
efetuam uma repressão sintomática da dominação ou do desejo que
será mais adiante negada ou circulará sem cessar no abandono de
uma narrativa identificatória. Tais enunciações da diferença colonial
da cultura estão mais próximas em espírito ao que Foucault
descreveu, em pinceladas rápidas, mas de forma sugestiva, como a
repetibilidade material da afirmativa. No meu modo de entender o
conceito – e trata-se de uma reconstrução tendenciosa – ele é uma
insistência na superfície de emergência que estrutura o presente de
sua enunciação: o histórico detido do lado de fora da hermenêutica do
historicismo; o sentido apreendido não em relação a algum não dito
ou polissemia, mas em sua produção de uma autoridade para
diferenciar (BHABHA, 1998, p. 187).

Ao pensar a perspectiva curricular como prática cultural, compreendendo


a criança como sujeito que produz cultura, parece pertinente considerar o
questionamento colocado por Kramer a respeito da cultura infantil:

A pergunta que cabe fazer é: quantos de nós, trabalhando nas


políticas públicas, nos projetos educacionais e nas práticas
cotidianas, garantimos espaço para esse tipo de ação e interação das
crianças? Nossas creches, pré-escolas e escolas têm oferecido
condições para que as crianças produzam cultura? Nossas propostas
curriculares garantem o tempo e o espaço para criar? (KRAMER,
2007, p. 16).

As questões trazidas neste artigo, são apontamentos que nascem da


investigação desenvolvida na dissertação de mestrado, em que a pesquisa se
deu em compreender os processos de produção curricular na transição
Educação Infantil-Ensino Fundamental. As questões da pesquisa,
relacionam-se ao meu próprio itinerário como professora da educação básica,
vivendo as urgências e emergências cotidianamente no contexto da escola.

Falar de currículo e infância é sempre perigoso. Incorremos sempre no


risco propagar um “certo discurso” que tende a forçar demais a escolarização
em detrimento do próprio sentido de infância no qual desejamos defender. Será
sempre uma linha tênue entre os modos como entendemos e falamos da
infância e os modos como lidamos com ela na escola. E é desse delicado
pensar que enveredo esta escrita.

A pesquisa se desenhou, procurando avançar no sentido de não limitar a


discussão aos possíveis rompimentos na passagem das crianças da educação
infantil para os anos iniciais do ensino fundamental, a partir da perspectiva de
discutir os processos de construção de propostas curriculares no entre-lugar
(BHABHA, 2011). Nesse sentido, utilizando-me do conceito proposto pelo
autor:

essa cultura “das partes”, essa cultura parcial, é o tecido


contaminado, e até conectivo, entre as culturas – ao mesmo tempo a
impossibilidade de as culturas bastarem-se em si mesmas e da
existência de fronteiras entre elas. O resultado é, na verdade, mais
algo que se parece com um “entre-lugar” das culturas, ao mesmo
tempo desconcertadamente semelhante e diverso (BHABHA, 2011, p.
82).

Por esta via, não se trata de nomear como entre-lugar o limite


institucionalizado ou um possível espaço vazio entre uma etapa e outra, mas
reconhecer que, embora se configurem diferentes etapas da Educação Básica,
com especificidades, e se afirmam no contexto educacional em tempos e
espaços históricos diferentes, numa separação que tem sido fortalecida por
discursos que reforçam esse distanciamento, considero a transição Educação
Infantil-Ensino Fundamental espaço potente, entendendo que, do ponto de
vista da criança, não há separação (KRAMER, 2006, p. 810), que as
especificidades do trabalho de cada uma das etapas não caracterizam
polarização, como Kramer (2006) defende que “Educação Infantil e Ensino
Fundamental são indissociáveis: ambos envolvem conhecimentos e afetos;
saberes e valores; cuidados e atenção; seriedade e riso” (p.810). A autora
afirma ainda a necessidade de diálogo entre a Educação Infantil e o Ensino
Fundamental, diálogo institucional e pedagógico dentro das escolas e entre as
escolas, para a construção de propostas curriculares.

Embora Educação Infantil e Ensino Fundamental sejam


frequentemente separados, do ponto de vista da criança não há
fragmentação. Os adultos e as instituições é que muitas vezes opõem
Educação Infantil e Ensino Fundamental, deixando de fora o que seria
capaz de articulá-los: experiência com a cultura. Questões tais como
alfabetizar ou não na Educação Infantil e integração de Educação
Infantil e Ensino Fundamental permanecem atuais (KRAMER, 2006,
p. 810).

No processo de investigação, então, tomei como ponto de reflexão o


entre-lugar Educação Infantil-Ensino Fundamental como espaço onde se
articulam possibilidades outras de negociações na produção curricular, nesse
sentido, uma passagem intersticial, aceitando as possibilidades de hibridização,
que acolhe sem hierarquia suposta ou imposta.

Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de


estratégias de subjetivação – singular e coletivo – que dão início a
novos signos de identidades e postos inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA,
1998, p. 22).

Argumentando, no diálogo com Bhabha, que a diferença possibilita a


percepção da articulação da fronteira migratória e “desenraizada” da cultura,
um espaço de enunciação em que a negociação da duplicidade discursiva
engendra um novo ato de fala (BHABHA, 2011, p. 90), sendo assim território de
disputa, que reconhece a desigualdade nas relações de poder, que é
negociado pela contingência dos interesses sociais e políticos, mas que é
questionável, fluido, porque se hibridiza e, nesse processo, revela estratégias
que se instauram na negociação, que não é assimilação, mas um
agenciamento que rompe com os binarismos, um ir além, “o ‘além’ não é nem
um novo horizonte nem um abandono do passado...” (BHABHA, 1998, p. 19).

A aproximação proposta não se faz por uma definição de cultura que


tudo se encaixa, mas, como sugere Bhabha, pela noção de tradução, conceito
inspirado em Walter Benjamin

para sugerir que todas as formas de cultura estão de algum modo


relacionadas umas com as outras, porque cultura é uma atividade
significante ou simbólica. A articulação de culturas é possível não por
causa da familiaridade ou similaridade de conteúdos, mas porque
todas as culturas são formadoras de símbolos e constituidoras de
temas – são práticas interpelantes (BHABHA, entrevistado por
RUTHERFORD, 1999, p. 36).

A proposta de investigação, então, se deu no âmbito dos processos de


articulação/negociação/mediação na transição Educação Infantil-Ensino
Fundamental, compreendendo nesse espaço as arenas em que são produzidos
os sentidos que se hegemonizam na construção do currículo e observando
quais as instâncias de mediações/articulações no processo decisório na
produção de políticas curriculares da escola básica. A partir dessa
compreensão, os encontros dos professores da Educação Infantil e Anos
Iniciais foi campo de pesquisa.

A instituição investigada, congrega a Educação Infantil e o Ensino


Fundamental no mesmo campus, e que supostamente, a transição para o
primeiro ano do Ensino Fundamental não deveria significar um rompimento
brusco de um processo vivido intensamente pelas crianças nos anos em que
frequentaram a Educação Infantil. Nesse sentido, consideramos que “é preciso
superar essas distorções, tanto na Educação Infantil como no início do Ensino
Fundamental, em direção a uma concepção mais integrada de educação
básica” (FRANGELLA, 2009, p. 12); e a proposição desta integração
configura-se investimento importante na proposta político-pedagógica da
escola.

A entrada das crianças de seis anos no Ensino Fundamental tem


suscitado debates que questionam se o que se propõe trata-se
apenas de uma antecipação dos conteúdos e práticas desenvolvidas
na primeira série. Contudo, quando rechaçamos essa concepção
defendendo a especificidade da atuação com essa criança,
colocamos em exame e questionamento a prática desenvolvida tanto
na Educação Infantil quanto no Ensino Fundamental (FRANGELLA,
2009, p. 11).

A autora destaca ainda que a discussão é marcada pela diferença entre


as duas etapas da Educação Básica, revelando, segundo ela, o binarismo: de
um lado, um espaço da infância marcado pelo lúdico, que considera o brincar, a
imaginação, a fantasia, levando em consideração o sujeito global; do outro
lado, o aprender do conhecimento, do “sério”, um espaço que vai
desconsiderando a infância, questão presente nas discussões na escola. A
reflexão que proponho aqui, então, é um recorte das questões elencadas
durante a pesquisa, o brincar, como um fio frouxo nas questões da pesquisa. A
retomada da pesquisa, então, se faz, pela releitura da brincadeira como algo
sério que precisa ser considerado no contexto da educação escolar.

A pesquisa não foi desenvolvida com as crianças. A opção feita


metodológica de pesquisa de campo, se deu considerando as próprias
limitações de abrangência da pesquisa de mestrado em que o foco foi o
encontro de professores. Não por ignorar ou não reconhecer os demais sujeitos
que se inserem nessa disputa pela produção dos sentidos da produção desse
currículo, mas necessidade de aprofundar um dos aspectos e evitar um todo
superficial. Durante o trabalho, no entanto, era possível perceber quem eram
os sujeitos que se destacam no processo de negociação desse currículo. As
próprias famílias, como sujeitos adultos representantes das crianças, figuram
um ponto de tensão nessa disputa. E, ainda que tenha elencado como opção o
professor, procurei não desconsiderar a criança nesse processo, e por isso,
retomo o texto da dissertação olhando atentamente às questões da infância
das crianças, tentando avançar das limitações impostas pelo tempo na
construção do texto e continuar o diálogo.

A professora do Ensino Fundamental comenta sobre as ações que eram


desenvolvidas junto com a Educação Infantil:

Nós íamos para lá toda quarta, só que tinha quarta... ah, hoje tem
reunião, aí não dava, eu combinei com ela porque era um dia em que
eu não tinha atividade extra, as vezes tinha dias muito loucos, ela
vinha oito horas, até eles sentarem, se acalmarem, iam embora e só
conseguíamos ficar juntos quarenta minutos, uma hora. Era uma
coisa mais lúdica, eu não estava vendo uma aula, eu a dela e ela a
minha. O que eu sinto falta de ver, quem tá no primeiro ano, em ver
quem está no Infantil 5, ver como ela trabalha no dia a dia.
(Professora W., 2013)

Minha intenção ao propor que consideremos aqui a perspectiva da


educação da criança, distanciando das segmentações das etapas na educação
básica, se faz não pela tentativa de invisibilizar as tensões na produção
curricular desse jogo, no que diz respeito ao trabalho da Educação Infantil e
Ensino Fundamental, ao contrário, esta discussão foi foco outros estudos, e
será a partir destes, que faço a reflexão que apresento aqui, justamente,
porque tenho compreendido ao longo desses estudos os ‘nós’ e dicotomias
entre os espaços, que retomo a discussão por outra via.

O arranjo escolhido para esta discussão, que não está fora desse
arranjo institucional de organização da educação básica, se faz tentando
problematizar a partir da perspectiva da criança, pelo modo como lida com o
mundo, tomando como viés a infância e questionando o lugar estipulado pelo
adulto, pensado por ele, para discutir esse currículo, no desafio de pensar
infâncias menos adultizadas.
Nogueira (2015) explica que

O olhar adultocêntrico e psicologizante que estratificada por idades,


que atribui capacidades e fazeres aos “não adultos” para se tornarem
adultos no futuro, continuamente vem sendo questionado por
desconsiderar valores, conhecimentos, desejos e experimentações
próprias do ser criança hoje, tomando a infância apenas como um vir
a ser, sem voz ativa na sociedade. (NOGUEIRA, 2015, p.14)

O que significa pensar outros modos de considerar os sujeitos no que


diz respeito à produção curricular no contexto da escola? Quais os sujeitos
estão tecendo força no processo de produção desse currículo? A proposta
aqui, é revisitar a pesquisa, trazendo à luz, questões sobre as crianças nesse
processo de produção. Como as crianças, criam pontos de tensão, na
produção desse currículo? Esta problematização, é desenvolvida, retomando o
viés da brincadeira, como articuladora desta tensão na escola.

Por uma produção curricular na fronteira


Como produção curricular na fronteira, compreendo que este se constitui
a partir dos diferentes conceitos atribuídos ao sentido de currículo
constituindo-o por diferentes pensamentos que se colocam em questão
enfrentando-se e disputando sentidos na escola. O conceito polissêmico de
currículo é entendido muitas vezes como guias e propostas curriculares
produzidas pelas redes de ensino, cuja ideia ainda está muito ligada à grade
curricular, à organização dos conteúdos e conceitos, à reprodução dos
conhecimentos assumidos como conhecimentos universais que precisam ser
trabalhados, reduzido muitas vezes à organização disciplinar e à listagem dos
livros didáticos e, hoje, ao atendimento aos objetivos propostos nos indicativos
de avaliações externas e mais recentemente, à BNCC.

Opero com a perspectiva do currículo na fronteira como lugar onde “algo


acontece”, a partir da compreensão do currículo como produção cultural, no
entendimento da cultura como enunciação, que se constitui na contingência,
por meio de processos fluidos de produção de sentidos, o que rompe com um
conceito de cultura como fixação. Na produção de sentidos, dada em múltiplos
momentos e espaços, na constituição do currículo como prática discursiva,
“isso significa que ele é uma prática de poder, mas também uma prática de
significação, de atribuição de sentidos” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41). Nesse
sentido, assumo:

o currículo, como ato de enunciar, envolve significados construídos na


relação da tradição com as novas ações discursivas presentes nos
múltiplos contextos, criando assim um caráter ininterrupto. Assumir a
ininterruptividade da prática curricular é assumi-la como produção
cultural, é evitar a dicotomia da tradicional separação de currículo
como processo de elaboração e de implementação, como se tais
processos não fossem constituídos e constituidores da prática
curricular. Ou, como assegura Macedo (2006), é pensar o currículo
como uma tarefa política, como uma prática que envolve momentos
enunciatórios, vários sujeitos, díspares interesses e múltiplas relações
de força (BARREIROS; FRANGELLA, 2009, p. 70).

O apontamento de que “a política curricular é, assim, uma produção de


múltiplos contextos sempre produzindo novos sentidos e significados para as
decisões curriculares nas instituições escolares” (LOPES; MACEDO, 2011b, p.
274) corrobora a hipótese de instâncias de mediação e negociação no
processo de fixações provisórias dos sentidos e significações desse currículo
na escola. Esse espaço não se configura como espaço de harmonia e
consensos, mas um terceiro espaço em que as contingências, em desacordo
ou em descontinuidade, colocam em campo o hibridismo cultural em suas
condições de fronteira, traduzindo, reinscrevendo o imaginário social de ambas
as culturas nos espaços de negociação em que o poder é desigual, como um
agenciamento “intersticial” que recusa, segundo Bhabha, a representação
binária do antagonismo social, em que:

os agenciamentos híbridos encontram sua voz em uma dialética que


não permite buscar a supremacia ou soberania cultural. Eles
desdobram a cultura parcial a partir da qual emergem para construir
visões de comunidade e versões de memórias históricas, que dão
forma narrativa às posições minoritárias que ocupam: o fora do
dentro; a parte do todo (BHABHA, 2011, p. 91).

Nessa reflexão, cabe considerar que “o hibridismo não resolve as


tensões e contradições entre múltiplos textos e discursos, mas produz
ambiguidades, zonas de escape dos sentidos” (LOPES; MACEDO, 2011b, p.
265). A escola é, então, espaço de ressignificação e produção de políticas
curriculares, entre-lugar em que as negociações se dão em arenas de disputa
de sentidos.
Ao olhar mais atentamente esse espaço de produção curricular na
escola de Educação Básica, pretendia entender como se constituíam/se
constituem os espaços de negociação das produções das políticas curriculares,
visando compreender, como nessa arena, se hegemonizam os conceitos das
produções curriculares, no contexto da pesquisa, tentando os processos que
estavam em jogo, na própria tentativa de significar o que Sônia Kramer coloca
como “instâncias indissociáveis do processo de democratização da educação
básica” (KRAMER, 2006, p. 798). Considerando que o currículo não é algo
pronto, estipulado por um sujeito institucional, vindo de instâncias
governamentais ou centralizado na escola situando e localizando nela o papel
protagonista, tomo como entendimento, que diferentes sujeitos e instituições
disputam a produção desse currículo. Como sujeito, considero também as
crianças. Neste sentido, a produção do currículo, se dá em território de disputa.
Os sentidos do que se deve ensinar e como deva-se dar esse processo é posta
todo tempo em questão questionando as produções curriculares em curso.
Esta questão, como já colocada, será discutida aqui, na tentativa jogar luz no
modo como as crianças tem tensionado este currículo.

E quando começa a brincadeira?

Kramer explica que singularidade da infância reside no fato de a criança


criar cultura e brincar. Afirma também que a criança é colecionadora, dá
sentido ao mundo, produz história, subverte a ordem e estabelece relação
crítica com a tradição e é sujeito social. Se a brincadeira é reconhecida como
espaço de aprender na escola, por que ainda é tão difícil lidar com esse modo
de ser e aprender das crianças? A brincadeira tem lugar específico na
organização do trabalho da escola?

Durante a conversa com professores em que a questão sobre o ingresso


das crianças com 5 anos de idade das crianças no Ensino Fundamental é
colocada, faço algumas provocações, pergunto se é a questão da idade, se
existem tantas diferenças mesmo, se as crianças com cinco anos aprenderam
a ler e escrever. Diante da provocação, uma das professoras responde:
Depende, eu tinha alunos de cinco anos que sabiam. Acho que
depende, e não é a idade. Acho que a idade atrapalha mais nessa
coisa de brincar, a gente tinha um problema de passar a atividade,
acabou a atividade ele levantar para brincar, para querer correr na
sala, eles não têm essa maturidade de ficar sentadinho, quietinho,
esperar o outro terminar, porque é a idade deles (professora Waleska,
entrevista coletiva, dez/2013).

A infância e suas peculiaridades remetem à escola a ideia de desordem,


de condição contrária à sistematização do trabalho que pretende realizar. E
durante a pesquisa, talvez considerei que a chegada das crianças com cinco
anos desestabilizou o modo como historicamente vinha sendo conduzido o
fazer pedagógico, não porque as crianças maiores não brincassem ou não
sentissem os pontos mais duros da escola, mas porque, a chegada das
crianças menores criou um certo “caos”, acentuando questões que de certa
forma, estavam postas como “certas” para a escola, porque nesse caso, “a
idade atrapalha mais nessa coisa de brincar”...
Se é brincando que as crianças aprendem, por que o brincar e o desejo
de brincar criam tensões na escola? Qual modelo de escolarização é pensado
em uma escola que se pretende pensar a infância? Motta (2011, p. 165) afirma
que a “disciplinaridade é o elemento articulador entre as práticas e o currículo:
através dela se dão as operações de docilização dos corpos infantis e a
organização dos saberes em disciplinas”. Na pesquisa sobre a escolarização
das crianças, no processo de transição da Educação Infantil, Motta conta a
experiência que vivia na pesquisa:
a expressão do corpo revelava uma aprendizagem; a sala de aula, no
Ensino Fundamental, era um espaço de movimento mais contidos, as
vozes reguladas num volume mais baixo. Os movimentos não
autorizados deveriam ser feitos de maneira rápida e sutil,
preferencialmente. Percebia-se aqui uma sujeição dos corpos infantis
à lógica das culturas escolares, que conformam um tipo de
subjetividade bem especifica: a do aluno (MOTTA, 2011, p. 167).

Qual o lugar de brincar na escola? Tem lugar para brincar na lógica


disciplinar? A sistematização dos conhecimentos rompe a singularidade da
infância? Talvez ainda seja necessário retomar e questionar se de fato o
brincar, no ensino fundamental é reconhecido como espaço de aprender, nesse
sentido, não como só ferramenta didática, mas do brincar como característica
da singularidade da infância. Pergunto se o currículo, da forma como se
apresenta, considera que

as crianças brincam, isso é o que as caracteriza. Construindo com


pedaços, refazendo a partir de resíduos ou sobras (BENJAMIN,
1987b), na brincadeira, elas estabelecem novas relações e
combinações. As crianças viram as coisas pelo avesso e, assim,
revelam a possibilidade de criar. Uma cadeira de cabeça para baixo
se torna barco, foguete, navio, trem, caminhão. Aprendemos, assim,
com as crianças, que é possível mudar o rumo estabelecido das
coisas (KRAMER, 2007, p. 15).

Sendo assim, a reflexão proposta não focaliza a articulação da


brincadeira como um adendo às práticas pedagógicas, como ferramenta
didática para “ensinar os conteúdos escolares” de modo mais prazeroso.
Questiono que a produção curricular na escola é tensionada na relação com as
crianças, que no seu modo peculiar, desafiam a escola, desestruturando rigidez
das concepções e os modelos assumidos dentro da ideia de que é precisa
estar concentrado, em silencio e quieto para aprender.
Ao comentar sobre as crianças que chegam cada vez mais cedo, a
professora Flor comenta que a frase mais ouvida naquele ano foi “eu quero a
minha mãe”; conta que o período de adaptação foi mais extenso e repleto de
choro. Essas questões foram apresentadas em 2012 pelas professoras, que
consideravam nesta falta de “maturidade” a dificuldade de lidar com os corpos
indóceis das crianças menores, pela “necessidade” de brincar como um
elemento não previsto no trabalho dos Anos Iniciais – não porque não
houvesse tempo para o brincar, pois há momentos em que os alunos vão ao
parquinho, à Brinquedoteca, tem brinquedo na sala, tempo do recreio; contudo,
a brincadeira, o desejo por querer brincar ainda não estão reconhecidos na
hora de “sistematizar” o “conteúdo” dos Anos Iniciais, explicitado pela angústia
das professoras diante das situações causadas pela chegada dos alunos com
cinco anos ao 1º ano.
Destaco aqui, duas cenas, contadas pelas professoras, que são
escolhidas com o intuito de considerar o modo como as crianças, vão por
caminhos não “esperados” pela escola, se apropriando dos conhecimentos
propostos pela escola, mas também como possibilidade de repensarmos a
dureza pelo qual a escola ainda lida com o ensino.
Na entrevista coletiva, a professora reflete:
eu acho que essa questão da concentração depende muito da
criança, porque eu tinha o [...]2, não queria ficar sentado, ele tinha
cinco anos, fez seis agora no final do ano, ele passou o ano inteiro
agitado, não parou em momento algum dentro da sala, e eu ficava
preocupada em como essa criança seria alfabetizada, não parava em
momento nenhum, fazia a atividade correndo e ficava em pé
brincando, e teve um dia que fiz uma linha do tempo das crianças no
mural, ele parou e ficou olhando para as fotos das crianças e lendo os
nomes, via a foto e falava o nome da criança, aí embaixo tinha a ultra
[ultrassonografia] e isso no meio do ano, falando os nomes, ai
comecei a perceber como o [...] estava, e ele estava lendo, foi aí que
despertei, que, mesmo ele correndo de um lado para o outro, ele já
estava lendo tudo. E agora no final do ano passado era uma das
crianças que não sabia nada, assim, ele sabia as letrinhas, mas só, e
ele foi uma das crianças mais bem alfabetizadas da sala. O despertar
foi para mim e para ele. (professora Jucelene, entrevista coletiva,
dez/2013).

Por sua vez, em conversa em outra oportunidade, a professora Flor me


contou que viveu uma situação que também rompe com a ideia da
“concentração”: falava que uma das alunas, vivia debaixo da mesa, não
participava das propostas apresentadas por ela e um dia pediu para ler uma
história para a turma; a professora se deu conta de que, mesmo diante daquele
comportamento, a aluna estava se apropriando da leitura e da escrita. Feliz
com a conquista da aluna, pedia que por outras vezes, a aluna lesse para
turma, em uma dessas situações a menina pergunta à professora: “agora que
eu já sei ler, você não vai mais ler para mim, não?”
Que podemos aprender com as pistas que as crianças revelaram? Que
sentidos tem para a menina o fato de aprender a ler? Que revela quando
questiona a professora se não vai mais ler as histórias para ela? Há muitas
possibilidades de leitura em ambas as situações, muitas pistas. As professoras
vão percebendo com seus alunos, que existem modos outros de aprender; ao
perceberem isso, as professoras aprendem com os pequenos a como
ensiná-los, ao expor as experiências com as crianças vão reorganizando como
pensavam seu fazer, e essas reflexões feitas no grupo propiciam a
rearticulação de outros discursos. Cabe questionar: que efeitos essas reflexões
causam nas propostas curriculares produzidas na escola?
Caberia dizer, que se entendo que não há produção cristalizada de um
currículo que esteja de uma vez por todas pronto, não há como prever ou
garantir a resolução de uma vez por todas de tais questões. Importa dizer que,
ao contrário do que geralmente vem sendo difundido da criança como figura
2
Optei por preservar o nome da criança citado pela professora.
frágil, incapaz e desconectado do mundo, nossos pequenos, imprimem valor à
escola. Criam escapes e desvios que produzem efeitos nas produções da
escola. Isso não significa que devamos deixá-los à própria sorte, mas requer de
nós, adultos, reconhecimento e escuta.

Para finalizar, mais fios frouxos


O sentir, o modo pelo qual a criança lida com o mundo foi expresso
pelos relatos dos professores que narraram as atitudes peculiares das crianças
em lidar com as situações impostas pela escola. A borracha que vira carrinho;
o lápis, espada ou boneca; a carteira, esconderijo; a sala de aula, pista de
corrida... E se, diante da imposição da inércia aos corpos infantis ou do
distanciamento da família, não souber como resolver, ela chora. E que leituras
essas imagens nos possibilitam?

Não é intenção criar receituários de inserção das crianças nas


produções curriculares, ao contrário, se o fizesse, estaria contradizendo o que
venho tentando dizer. No exercício de puxar fios, como a exemplo apresentado
por Bhabha quando diz que, ao puxar o fio de um pedaço da seda, “todo o
tecido é transformado, a sua estrutura fica frouxa e visível, as suas conexões,
casualidades se mostram contingentes, as suas “totalidades” se tornam
texturais e tendenciosas” (BHABHA,2011, p. 103), a ideia é afrouxar um pouco
as ideias e ressaltar a importância de considerarmos a criança na produção
curricular, considerar por elas e não para elas...

Ao trabalhar na perspectiva investigativa de olhar para a fronteira, lugar


que não é delimitado por uma linha divisória, demarcado, mas carregado por
tecidos teimosos cujos sentidos do enunciado não são nem um nem outro, não
há como posicionar, fixar, não há como deduzir esse contexto mimeticamente.
O processo de tradução é complexo

apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas


culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da
enunciação, que começamos a compreender por que as
reivindicações hierárquicas de originalidade ou de “pureza” inerentes
às culturas são insustentáveis (BHABHA, 2011, p. 67).

Assim, o diálogo proposto na pesquisa foi atravessado por outros tantos


que se fizeram presentes na ausência; mesmo as crianças e os seus
responsáveis, embora não tenham sido considerados interlocutores de modo
direto, fizeram-se presentes. As questões colocadas cobram novas leituras,
novos estudos, são fios que mostram que a trama não está finalizada. Esse
entendimento cria a necessidade de continuar as reflexões e ampliar as
investigações em possibilidades futuras.

Referências Bibliográficas

BHABHA, H. O local de cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.


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