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Crianças trans na Educação Infantil: celebrando as diferenças das pequenas crianças

fugitivas dos gêneros


Ana Carolina Damaso
acdamaso@usp.br
Universidade de São Paulo

Resumo: Este artigo pretende discutir a transexualidade na infância e seus diferentes


desdobramentos, evidenciando a importância de pensarmos as crianças trans, um tema cada
vez mais presente nos debates educacionais. Em um primeiro movimento, fazemos um
mapeamento teórico das pesquisas da área no Brasil, propondo alguns caminhos
metodológicos. Por fim, o estudo se debruça sobre os conceitos de criança e infância,
pensando como a diferença pode ser produzida e celebrada na educação infantil. É discutida
principalmente a importância de se construir uma educação para crianças pequenas que vá
além dos padrões de gênero e sexualidade estabelecidos, fazendo uma defesa do direito ao
devir das crianças de creches e pré-escolas.
Palavras-chave: Crianças. Trans. Infância. Diferença.

Niños trans en la educación de la primera infancia: celebrando las diferencias entre los
niños pequeños que huyen del hogar

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir la transexualidad en la infancia y sus
diferentes desarrollos, destacando la importancia de pensar en la niñez trans, un tema cada
vez más presente en los debates educativos. En un primer movimiento, realizamos un mapeo
teórico de la investigación en el área en Brasil, proponiendo algunos caminos metodológicos.
Por último, el estudio se centra en los conceptos de niño y niñez, pensando en cómo se puede
producir y celebrar la diferencia en la educación infantil. Se discute la importancia de construir
una educación para los niños pequeños que vaya más allá de los estándares establecidos de
género y sexualidad, haciendo una defensa del derecho a ser de los niños en las guarderías y
jardines de infancia.
Palabras clave: Niños. Trans. Infancia. Diferencia.
Trans children in early childhood education: celebrating the differences of small gender
runaway children

Abstract: This article pretend to discuss transsexuality in childhood and its different
developments, highlighting the importance of thinking about trans children, a theme that is
increasingly present in educational debates. In a first movement, we make a theoretical
mapping of research in the area in Brazil, proposing some methodological paths. Finally, the
study focuses on the concepts of child and childhood, thinking about how difference can be
produced and celebrated in early childhood education. It is evident the importance of building
an education for young children that goes beyond the established gender and sexuality
standards, defending the right to devir of children in daycare centers and preschools.
Keywords: Children. Trans. Childhood. Difference.

1. Introdução

Se Cazuza estiver certo ao nos dizer que “saiba que ainda estão rolando os dados/porque
o tempo/o tempo não para”1 em sua música de 1989, então nos encontramos na obrigação
de pensar aquilo que, na contemporaneidade, caminha e se encaminha sem pausa diante
dos nossos olhos de professoras e professores de crianças pequenas. Devemos pensar e nos
deixar questionar por seus desejos, manifestações e revoltas, seus diferentes tempos em
constante movimento, imparáveis, que compõe, também, tudo aquilo que se relaciona com
a sexualidade e as questões de gênero.
O presente artigo se propõe a pensar os espaços e tempos que habitam as crianças
transgênero – ou simplesmente trans – nos contextos escolares e como elas exercem e
manifestam suas diversas sexualidades e expressões de gênero. Partindo do estudo de
Kennedy (2010), afirmamos aqui que crianças trans existem e se tornam conscientes da sua
identidade de gênero, diferente daquela estabelecida, entre os 2 e 6 anos, assim como
também demonstra Jesus (2013) em pesquisa semelhante. Sendo assim, esse momento de
“epifania”, como denominam as autoras, acontece quando a criança já frequenta a
instituição escolar, sendo essa etapa relegada para a Educação Infantil, voltada para crianças
pequenas de até quase 7 anos.

11
Álbum “O Tempo não Para”, Universal Music, 1989.
Desde esse primeiríssimo tempo de escolarização da infância, é possível percebemos
através de relatos de homens e mulheres trans sobre suas infâncias, (JESUS, 2013; KENNEDY,
2010; OLIVEIRA, 2018; ZANETTE, 2016) inúmeras manifestações da não identificação com o
gênero designado socialmente para o sexo biológico dado ao nascimento. É possível
dizermos que o espaço habitado pelas crianças nas creches e pré-escolas se mostra como o
lugar onde as crianças são forçadas a assumirem os gêneros atribuídos socialmente através
das brincadeiras, filas, banheiros, fantasias, falas, ações, etc., divididas nas categorias “de
meninos” e “de meninas”, sendo um espaço de disciplinamento dos corpos como aponta
Carvalho (2005).
Cabe aqui pontuar, contudo, que desviar das características sociais de gênero, como, por
exemplo, nas brincadeiras, não configura, dessa forma, que uma criança está transitando
entre o feminino e o masculino (OLIVEIRA, 2018). Embora consideramos que o caráter
contingente da transexualidade, como é posto por Zanette (2016), se expresse através do
brincar, dos desejos e das falas, nem sempre as rupturas com a norma de gênero vigente
significam a transexualidade na infância, podendo ser esta uma sexualidade, uma identidade
outra, além, sem definição, ou apenas um desejo por aquilo que as convenções sociais
proíbem. Buscamos colocar em perspectiva uma pedagogia outra, que embora reconheça,
celebre e dê condições de existência para crianças trans, não aprisione em categorias fixas,
festejando, dessa forma, as infâncias e suas diferenças.
Em nossa análise pontuamos como a filosofia da diferença pode nos ajudar a pensarmos
as crianças trans, para que assim possamos forjar outras relações, outras maneiras de fazer
uma Educação Infantil que caminhe junto com aquelas crianças que se disparam para fora
da norma de gênero socialmente aceita. É proposto, portanto, uma forma diferente de fazer-
estar na escola, que não somente tolere e respeite aqueles e aquelas que desviam da política
binarista de gênero, mas que faça valer a diferença. Uma escola que, como imagina Preciado
(2017) ao escrever sobre a morte do garoto transexual Alan, seja capaz de favorecer a
singularidade e não a preservação da norma.

2. Estudos sobre as crianças trans no Brasil

As pesquisas que tratam da infância e vivência de crianças trans na escola são escassas no
Brasil, sobretudo em áreas além daquelas que envolvem a psicologia, a psiquiatria e a
pediatria. Ao investigarem a vivência de travestis, transexuais e transgêneros na escola,
Franco e Cicillini (2016), identificam cerca de 20 publicações da temática, contudo, nenhuma
delas trata diretamente da relação de crianças trans com as instituições educacionais.
Em estudo recente, Gonçalves e Franco (2019) mapeiam nas bases de dados do Scielo e
Google Acadêmico, 11 publicações que abordam de forma diversa a transexualidade na
infância, que vem a se agruparem em três eixos: biográfico, por assim dizer, ao investigar as
memórias de adultos trans; médico e psicológico, ao abordar a transexualidade infantil como
uma patologia a ser curada; e cinematográfico, ao olhar para as crianças trans a partir de
obras ficcionais.
Além disso, o trabalho desenvolvido por Oliveira (2018) relata a sua experiência como mãe
de uma criança trans, explorando também as relações familiares e vivências de adultos trans
quando crianças, evidenciando o quão forte é a repressão familiar e a violência escolar
contra as crianças desviantes das normas de gênero. Essa violência pode ser categorizada
como um dos diversos retratos que a transfobia assume durante a infância de quem não
joga com as regras de gênero, sendo fortalecida, sobretudo, no interior da família e nas
relações com outras crianças.
São diversos os estudos na literatura científica que se propõe a pensar gênero e
sexualidade na escola, tal como Louro (1999), Felipe (2009), Argüello (2013), entre outros,
contudo, ainda há certa lacuna nos estudos acerca de crianças trans, vivências escolares,
infância transsexual. Essa lacuna pode ser explicada por uma forte resistência ainda presente
na sociedade no que se refere às questões de gênero com crianças. Reconhece-se na criança
“a ideia de um sexo que está presente (em razão da anatomia)” (FOUCAULT, 1989, p. 142),
porém, uma sexualidade ausente. O sexo biológico é reconhecido, lhe é conferido um
gênero de acordo com esse sexo, contudo, a sexualidade é tida como inexistente, fora da
“natureza” da criança.
Silva e Paraíso (2019) ao cartografarem as infâncias que incomodam professores e
dirigentes, em uma escola de Belo Horizonte (MG), adotam o caminho cartográfico para
pesquisarem crianças queer, uma cartografia brincante, explorando o território da pesquisa
através de diferentes formas, apoiados tanto em Deleuze-Guattari (2011) no movimento da
cartografia, quanto em Foucault (2013), ao criarem espaços heterotópicos, que escapam da
norma, que brincam, transgridem o adultocentrismo das pesquisas. O estudo foi feito com
um grupo de crianças de 10 e 11 anos consideradas “anormais” pelos colegas e até mesmo
pelas professoras, por fugirem daquilo que é considerado normal para meninos e meninos.
Importante ressaltar que na primeira abordagem, uma entrevista estruturada, as crianças
fecharam-se, por assim dizer, forçando os pesquisadores a assumirem um outro
posicionamento, questionarem seus métodos.
Dessa forma, essa experiência nos faz indagar se as pesquisas com crianças trans a serem
realizadas, o nosso modo comum de nos relacionarmos com essas sexualidades que
questionam e assustam, não devam recorrer a outros métodos, outros aportes. Não apenas
as pesquisas, mas também as escolas, indo além das pedagogias normativas e corretivas
(LOURO, 2008) para aqueles que resistem às regulações heteronormativas.
Zanette (2016) chama atenção para a necessidade de se constituírem outras formas de
relação com as infâncias transgênero, percorrendo, dessa forma, o que o autor chama de
enigmas da infância, sem vigilâncias e punições para que cumpram a ordem sexo-gênero-
sexualidade imposta desde a tenra idade. O autor dialoga com Guizzo (2013) ao sustentar
que na Educação Infantil há uma forte regulação para que o indivíduo, a criança, se adeque
às normas estabelecidas, sendo constantemente vigiada para que não atravesse as barreiras
de gênero muito bem delimitadas socialmente.
Importante ressaltar o estudo desenvolvido por Jesus (2013), o que também é constatado
em Kennedy (2010), que ao entrevistarem pessoas trans, concluem através das memórias
relatadas o desejo de mudança de gênero manifestado desde criança. Os entrevistados
relatam irem dormir, por volta dos 4 e 7 anos, rezando para acordarem com o outro gênero,
aquele que não lhe foi dado na constatação do sexo biológico. É latente um desejo de “se
tornar” menino ou menina. Se tornar aquilo que a criança sabe que não lhe é permitido.
Aquilo que a criança, com seu radar social (KENNEDY, 2010), sabe que é inaceitável.
Miranda, Martins, Miranda e Silva (2019) ao estudarem a inserção de uma criança trans
em uma escola particular de Maringá, concluíram que tanto seu dirigente quanto o corpo
docente não apresentavam iniciativas de acolhimento ou até mesmo vontade em receber
um aluno trans na instituição. Silva e Paraíso (2019) mostram nos relatos das crianças queer
participantes da pesquisa, que as professoras ao longo dos anos escolares exercem funções
reguladoras das normas de gênero, adotando uma postura vigiante e punitiva,
condicionando comportamentos (considerados) adequados aos meninos e meninas,
direcionando brincadeiras conforme o sexo e rotulando como “mau comportamento” aquilo
que não ia de encontro com o gênero masculino/feminino.
O recorte feito na revisão de literatura abrangeu, portanto, aquilo produzido sobre as
crianças transgênero em contextos, sobretudo, escolares, sendo duas dessas publicações
(GONÇALVES; FRANCO, 2019; FRANCO; CICILLINI, 2016) de cunho teórico-reflexivo, partindo
de um levantamento bibliográfico dos estudos publicados até então. Ainda são limitadas as
propostas para se estudar as crianças transgênero além de uma perspectiva médico-psi-
terapeuta, prescritiva de tratamentos a fim de atenuar um sofrimento diagnosticado nos
familiares, não nas crianças.
Sendo assim, é justificada a necessidade de se pesquisar, cartografar e mais do que tudo,
escutar e acolher as diferentes infâncias que a sexualidade e as plurais identidade de gênero
produzem. Até o presente momento, agosto de 2020, ainda não foram feitos estudos
científicos neste ano, tanto práticos quanto teóricos, sobre crianças trans. Em meio ao
contexto de isolamento social vivido devido a pandemia de Covid-19, quem se pergunta
como estão as crianças que vivem outros gêneros e outras sexualidades, isoladas em casa,
sob intensa supervisão, ou então nas ruas sujeitas a quaisquer tipos de violência? É
necessário pensar além das infâncias “normais”, heterossexuais, cisgêneras, protegidas e
amparadas por um discurso normativo.

3. Gênero, trans, infância: a diferença

Menino de Ouro (2013), de Abigail Tarttelin, nos conta a história de Max, um adolescente
que, imerso em uma sociedade e uma família que busca constantemente a perfeição e a
excelência, se revela ao longo da trama como um garoto intersexual, possuidor dos dois sexos
biológicos, alguém que foge das normas e convenções de gênero consideradas aceitáveis. Max
em certo ponto do livro nos diz:

Às vezes, eu ainda sinto que há dois de mim: uma imagem


limpa e impecável, e outra imperfeita e rachada, um menino,
uma menina, uma voz que fala em voz alta e uma outra que
sussurra em meu ouvido; um publicamente conhecido por ter
ficado perturbado, mas agora em recuperação, o outro que
privadamente perdeu alguma coisa que tem a ver com
inocência e ganhou algo que tem a ver com sabedoria e vida
adulta, e que nunca poderá ser desfeito. (TARTELLIN, 2013, p.
379)

Embora o presente estudo de natureza teórica-reflexiva aborde as crianças trans nos


contextos escolares, acreditamos que possamos tomar o relato do personagem Max como
ponto de partida para discutirmos outras formas de gênero na infância. Antes de tudo,
devemos pontuar uma certa limitação em estudar crianças trans/inter/queer, que consiste
na falta de instrumentos metodológicos que possam permitir a pesquisa com essas crianças.
Talvez essa seja uma das diversas possíveis explicações para a falta de um número
consistente de pesquisas na área.
Dessa forma, tal como Silva e Paraíso (2019), propomos uma outra forma de estudo da
diferença sexual na infância, que se invente pelo caminho, se deixando questionar como as
crianças querem se deixar falar, ver, pesquisar. Por este caminho estaremos construindo
outros espaços de fazer pesquisa que fogem do adultocentrismo e pautam-se tão somente
na vida e naqueles que se deixam pesquisar, que nos abrem as portas e falam de si mesmos
para nós, que pesquisam e dão aulas.
Esse artigo segue uma linha teórico, como dito anteriormente, portanto, valendo-se dos
estudos já desenvolvidos nos últimos anos sobre transexualidade na infância, busca tecer
diferentes educações infantis que pontuem as diferenças, que possam diferir. Lugares de
crianças pequenas que criem espaços e tempos para que, junto com as crianças, nas suas
diferenças, possamos inventar, reinventar, construir e descontruir, refazendo os gestos de
pensamento, as ínfimas ações.
Seguiremos adiante buscando pontuar os conceitos de gênero e sexualidade que são
adotados na pesquisa, reconhecendo a multiplicidade das discussões, porém, assumindo
determinadas posturas. Os estudos dessa área no Brasil são amplos, embora apenas uma
pequena parte deles, como já comentado na seção anterior do artigo, se concentre na
transexualidade infantil.
Por gênero entendemos aquilo que vem a ser a construção social do sexo biológico, com
demarcações culturais, históricas, sociais, sendo alvo de disputa, constantemente regulado
e em contínua transformação (LOURO, 2008). O gênero, portanto, é aquilo que é atribuído
ao sexo biológico, verdades produzidas e acumulados ao longo da história, sujeito a
mudanças, influências e, mais do que nunca, em disputa.
Em nome do gênero, dois, mais especificamente, o feminino e o masculino, o homem e a
mulher, os discursos e as políticas se produzem, sendo o discurso a luta pelo próprio poder
(FOUCAULT, 1996). A luta das políticas de gênero e pelos esquemas binários se traduz nas
disputas presentes na mídia, nos espaços culturais, nas figuras políticas. É em nome da
normatividade e do binarismo que são eleitos presidentes que flertam de forma desinibida
com o fascismo e falam em favor dos héteros, dos homens, dos brancos. Em nome da norma
a diferença é ameaçada, violentada, reprimida. Essa norma não se instaura através de um
soberano, de um poder central e disciplinar, mas sim por algo quase invisível, um poder que
se encontra e dissipa em todos, em toda parte.
A sexualidade, sendo adotada a partir dos pensamentos de Foucault (1999), pode ser
entendida como um dispositivo cuja função social é exercer poder, ter controle sobre os
indivíduos. Esse controle exercido pelo dispositivo da sexualidade disputa terreno,
sobretudo, no corpo dos indivíduos, regulando, ordenando. O corpo se torna o ponto de
apoio do dispositivo da sexualidade, não excluindo as crianças dessa lógica, pintando em
seus corpos convenções, marcas, símbolos, como brincos, cortes de cabelo, roupas.
As crianças estão sujeitas, portanto, a um biopoder, uma biopolitica que se desprende nos
corpos e pretende regular a vida, domar, controlando a tudo e a todos que nela se
encontram. O corpo das crianças são território de disputa, quase pedófila, sobre com o que
as vestiremos, como cortaremos o cabelo, quais características e personalidades daremos,
se as faremos comer salgadinhos ou legumes, o que farão nas escolas da infância, com quem,
como brincarão.
Ariès (1987) ao escrever sobre a história da criança e sua emergência no século XVII, aquilo
que o autor chama de descoberta da infância, aponta que quando a criança emergiu,
separou-se do mundo dos adultos e passou a assumir uma outra existência, sucumbida a
diferentes poderes, desencadeando a partir daí um acúmulo de saberes sobre ela,
características, discursos. Essa criança ao emergir já está posta sob uma rede de poderes
que lhe conferem uma forma específica, sendo ela branca, heterossexual, cristã, de classe
média, boa, inocente, excluindo outras experiências de infância que diferenciam-se de
acordo com as categorias sociais em que se inserem as crianças, como, por exemplo, a
infância negra (JOVINO, 2015).
Nessa ótica da emergência, podemos dizer que as crianças trans estão emergindo na
contemporaneidade brasileira, onde na literatura não há registros sobre isso até o século
XXI, embora nas artes plásticas, no cinema, na poesia, isso ainda seja um território a ser
desbravado. Cabe aqui questionarmos quais forças fazem emergir a criança transgênero,
bem como as forças que emergiram as crianças cis e heterossexuais. Por transgênero
entendemos aqueles que assumem uma identidade de gênero diferente daquela que lhe foi
atribuída, transcendendo as barreiras de gênero, como aponta Louro (2008). Embora não
haja um consenso em relação aos conceitos que envolvem as discussões sobre gênero,
consideramos importante ressaltar que a criança trans é aquela que, em suma, não se
identifica com o gênero dado de acordo com seu sexo.
Kennedy (2010) identifica através de entrevistas com pessoas trans, dois tipos de crianças
transgênero: aparentes, que são reconhecidas como trans por algum adulto (pais, familiares,
professoras, etc.) e não aparentes, quando não há esse reconhecimento. Na perspectiva da
autora, ambas as crianças passam por processos comuns durante a infância como o
sentimento de exclusão, solidão, culpa, isolamento, silenciamento.
Esses sentimentos vivenciados também são recorrentes em um estudo semelhante
desenvolvido por Jesus (2013), onde um dos breves momentos de felicidade da infância
transsexual relatada por participantes é quando as crianças vivenciam o gênero oposto,
mesmo que por curtos momentos, ao usarem escondidas roupas das mães, irmãs, pais,
irmãos, etc.
São nesses momentos que outros tempos e espaços são criados. Não por nós, mas pelas
crianças. Bolsões de tempos e espaços habitados não por aquilo que a norma impõe e os
adultos fazem valer, mas sim por aquilo que as crianças escolhem ser. Aquilo que elas
escolhem como existência.
As crianças trans, queer, todas as crianças que decidem seguir caminhos diferentes
daqueles que o sexo dita, nos lançam em um enigma: o que fazer? Contudo, para construir
e reinventar outras formas de nos relacionarmos e compreendermos essas crianças, talvez
seja importante pensarmos em outras questões. Quem são as crianças transgênero? Onde
estão? Do que elas gostam? Quais suas forças, suas potencialidades, como podemos elevar
suas potências?
Tomaz Tadeu da Silva (2002) nos diz que a diferença é mais do que fugir da norma, é um
movimento sem lei. É dentro desse movimento que podemos nos propor pensar a
transexualidade na infância, como algo que não apenas descumpre a norma socialmente
estabelecida, mas como algo além da lei, que não permite diagnósticos ou supressões, uma
forma que requer, tão somente, a própria possibilidade de existência.

O problema não é a transexualidade, mas a relação


constitutiva entre pedagogia, violência e normalidade. Não é
Allan que estava doente. Para salvá-lo, deveria haver uma
pedagogia queer capaz de trabalhar com a incerteza, com a
heterogeneidade, capaz de conceber as experiências sexuais e
de gênero como processos abertos e não como identidades
fechadas. (PRECIADO, Transfeminismo, 2017)

Essa escola almejada por Preciado não é impossível, mesmo para crianças. É possível a
construção de uma educação para crianças pequenas que celebre as diferenças não só de
raça e gênero, mas sexuais também. Que produza diferenças, que crie outros espaços,
propícios para as livres expressões de gêneros, de sexualidades, de potências.

4. Diferença, existência e as crianças que resistem

Como já foi pontuado, as pesquisas desenvolvidas com adultos trans sobre suas vivências
enquanto crianças, nos mostram o processo de isolamento, supressão e ocultação da
identidade que é enfrentado durante a infância. Oliveira (2018) evidencia o medo, culpa e
vergonha que crianças variantes de gênero desenvolvem nas relações com os familiares e
instituições escolares, sendo esta última um ambiente que embora se pretenda a acolher a
todas as crianças que recebe, ainda não consegue fazer com que, de fato, as diferenças
sejam acolhidas.
A escola, ao mostrar sua face intolerante e punitiva, se torna o lugar onde as crianças trans
se encontram diariamente com a violenta transfobia, tanto nas macros quanto micros
violências. É na escola que muitas delas são vítimas da violência física, sexual, psicológica,
emocional, entre tantas outras. Dentro das instituições escolares são produzidos
sofrimentos, onde se escolhe entre viver a própria identidade ou manter a vida e integridade
física. Infelizmente. Dolorosamente.
Não é preciso ir muito longe para esbarrarmos em discursos que se pretendem ser
protecionistas das crianças tidas como inocentes, corruptíveis, quase débeis, discursos
conservadores da moral, da política de gênero, que ao fundo não pretendem nada mais do
que a manutenção da biopolítica exercida sobre os corpos das crianças. Sobre isso, Preciado
(2018) nos interroga: quem protege a criança queer, a criança diferente? É sobre essa
questão que devemos nos debruçar. Quem é a criança protegida e o que acontece com
aquela cuja suposta proteção não é garantida?
A criança “é, para o adulto e a sociedade, aquela que eles constroem e aquela que mudará
o que eles construíram” (CHARLOT, 1976, p. 108). Aquilo que a norma e o mundo
adultocêntrico tenta construir, formar e regular nas crianças será enfrentado com
resistência, com teimosia, com embate. As crianças lutam o tempo todo, de fato. Contra as
balas perdidas e direcionadas, contra o abuso, contra a morte, o horror, a miséria. Essas
crianças que transcendem as convenções de gênero resistem contra as normas que o poder
almeja manter a todo custo, se apropriam daquilo que lhes permitem vivenciarem
momentos de libertação, mesmo que breves, tomando para si as roupas que são proibidas,
as maquiagens, os bonés, os brinquedos, resistindo, assim, em meio ao escárnio de uma
escola que utiliza mecanismos de ridicularização e exclusão para normalizar.
Nos parece uma obrigação ética, portanto, fazer uma escola que acolha, que jogue a favor
das diferenças, que jogue junto com as crianças, fazendo assim uma pedagogia brincante,
indo por outro caminho. Longe de pretender delinear instruções, não descreveremos qual
caminho será este, até porque não sabemos, ou se podemos considerar um somente,
cabendo a nós, enquanto professoras e professores, construirmos os tijolos enquanto
caminhamos, refazendo os passos, de mãos dadas com os pequenos alunos que temos.
Há um devir-criança, que nada tem a ver com o mundo adulto, que pode vir a ser realizado
ou não, de acordo com a prática educativa (ABRAMOWICZ, 2003). Esse devir pode ser
entendido como uma capacidade da criança de ir além, de transpor as barreiras que estão
dadas. De que forma o nosso mundo adulto, com nossos triviais problemas e nossas
inacabáveis crises, possibilita o direito das crianças de viverem esse devir? É preciso garantir
que as crianças na Educação Infantil consigam construir seus devires, seus desejos,
experimentarem a vida em todas as suas possibilidades, distantes dos horrores produzidos
pelos adultos que lhes roubam a infância.
Há algo belo na infância vivenciada pelas crianças que deserdam das etiquetas de gênero.
A beleza na potência que essas crianças apresentam, nos espaços que elas criam em si
mesmas e nos lugares que habitam para que possam ir ao encontro com a sexualidade que
desejam. Há algo de subversivo na infância transgênero ao criarem saídas para que possam
vivenciar suas multiplicidades, para que possam diferir. A vida imparável mesmo quando
proibida.
É preciso coragem, criatividade e estratégia para existir em uma escola que, não poucas
vezes, fecha os olhos perante a violência, se omite, pune e invisibiliza crianças que se
contrariam ao sistema heteronormativo. Essas crianças são corajosas, rebeldes, mas
também isoladas socialmente, estigmatizadas, sujeitas ao que há de mais violento entre as
paredes das instituições escolares.
Uma das trincheiras das guerras que as crianças trans enfrentam acontece com as outras
crianças, na escola, na rua, nas brincadeiras. É no ato do brincar que muitas coisas se
desdobram, podendo ser tanto uma experiência afetiva quanto traumática (JESUS, 2013).
Em suas entrevistas com as crianças queer, Silva e Paraíso (2019) através dos relatos ouvidos,
constatam o quanto a escola pode se tornar um ambiente violento e intimidador através das
zombarias, do escárnio, das ofensas.
Em contrapartida, ao apropriarem-se de outros gêneros durante a brincadeira, crianças
trans passam por um momento de alívio, de alegria, como se ali, naquele curto tempo, elas
pudessem vivenciar a experiência de forma plena. Ao mesmo tempo, pode vir a se tornar
um momento difícil e traumatizante caso a criança seja vítima de repressão tanto das outras
crianças, quanto da própria professora.
Devemos nos questionar, então, como esses tempos brincantes experimentados pelos
pequenos durante a Educação Infantil podem se tornar uma forma livre de expressão de
gênero e sexualidade. Uma das múltiplas formas das crianças trans, cis ou com outras
identidades de gênero, expressarem suas potencialidades, explorarem o território oculto
daquilo que a sociedade lhe nega até o momento.

Ou seja, do outro lado está a vontade de criar um sujeito


paneleiro, um sujeito que para além do mais não tem medo de
instigar o conservadorismo que se faz guardião da infância
(Will someone think of the children?!), e de criar algo, bem no
coração dessa imaginada inocência, que não é nem homem-
por-vir nem mulher-por-vir, que é traveca mesmo, em toda a
sua potência, mas que deixa por dizer aquilo em que se vai
tornar, que resiste, ora aí está, à categorização e taxonomia de
um pequeno-adulto. (FEIJO, 2017, p. 196)

Não é sobre taxar gêneros e sexualidades, mas sobre deixar surgir. As crianças são forças,
por vezes teimosas, resistentes, mas também são potências que surgem e se fazem existir em
um mundo adultocentrado, que as desconsidera na ordem discursiva. Podemos dizer, então,
que a voz da criança trans é menos escutada ainda, e quando se expressa, não é respeitada
ou tomada como legítima. Os adultos lhes prescrevem tratamentos, medicamentos, um
infinito aparato psicológico na intenção de lhe “aliviar o sofrimento”. Qualquer criança que
cometa a tenra ousadia de fugir do nosso sistema binário é punida pela sociedade através das
instituições familiares e escolares, que lhe encaminham aos especialistas, às igrejas e chegam
até mesmo aos castigos físicos, não sendo esses casos difíceis de encontrarmos, infelizmente.
É preciso não apenas repensar a Educação Infantil para além da heteronormatividade, mas
também reconhecer o direito da criança de se governar e fazer uso do próprio corpo. As
crianças são fortes o suficiente para expressarem seus desejos, se defenderem, se
construírem, desmontarem e construírem novamente se preciso. É necessário apenas calma
por parte dos adultos. Calma para deixarmos que elas se encontrem e façam seus caminhos.
Calma para que exerçam suas forças e potências. Para que se inventem sem nossas formas
fixas. É preciso deixar que as crianças façam uso de seus tempos que não param.

5. Conclusão

A força das crianças é inegável, embora seu reconhecimento e legitimação ainda sejam
territórios negados pelos adultos. Os tempos que habitam as diferentes infâncias são
inúmeros e se desdobram em infinitas possibilidades. É nesses tempos criados pelas crianças
que podemos conhecê-las em suas múltiplas potências e invenções de si mesmas.
Pesquisar crianças transgênero ainda é um desafio, prático e teórico, afinal, nos faltam
instrumentos metodológicos que nos permitam uma aproximação, até mesmo porque nossos
ouvidos ainda não estão acostumados com as falas das crianças. É preciso inverter a ordem
do discurso, questionar não como pesquisaremos a criança trans, mas como ela quer ser
pesquisada e se deixar vir.
Os estudos desenvolvidos até então são feitos com adultos transsexuais sobre a infância
vivenciada e nos mostram uma difícil realidade enfrentada pelas crianças combatentes das
normas. Jesus (2013), Kennedy (2010) e Oliveira (2018) nos retratam adultos que contam
como desejariam que suas infâncias fossem acolhidas por aqueles encarregados de ampará-
los, famílias e escolas. Estes adultos atualmente se fazem escutar e firmam suas existências
mesmo em um mundo muitas vezes transfóbico. Mas e as pequenas crianças trans/queer que
hoje estão em nossas salas de aula? E as crianças que dormem e esperam acordarem um
menino, uma menina, uma mistura ou um contrário dos dois? E as crianças que não
conseguem realizar seu devir, seja com batons, bonés, bonecas ou carrinhos, porque dizemos
um alto e claro “não é para você”?
Pensar uma Educação Infantil que acolha e celebre as diferenças é imprescindível. É
necessário desnaturalizar esse modelo heteronormativo e binário a qual submetemos as
crianças, mesmos os bebês, refazendo assim, espaços abertos, dispostos a diferir e produzir
diferenças, não um espaço que tolere os diferentes, afinal, a diferença existe para além da
aceitação e tolerância (SILVA, 2002).
É dentro desse espaço-além que poderemos deixar as crianças realizarem seu devir, seus
desejos e sonhos, independentes de quem ou o que sejam. Uma escola que celebre o garoto
que gosta de usar a maquiagem da mãe, a menina que se desenha casando com a melhor
amiga, a criança que não quer vestir as roupas compradas pelos pais porque deseja um
vestido, uma calça, um bermudão, que seja. Dessa forma, expandiremos e atravessaremos os
limites das políticas de gênero, deixando livre o caminho para o amor, a expressão, para a
própria vida.
Proteger as crianças trans, queer ou de quaisquer outros gêneros que vão contra a uma
norma de gênero e colocam em perigo os dispositivos pedagógicos e da sexualidade
socialmente estabelecidos, é mais do que uma obrigação, é um dever e um compromisso com
a infância. É preciso proteger, segurar suas pequenas mãos e entrar junto com elas nesse jogo
das diferenças. Estar nas trincheiras com as crianças resistentes, valentes e fortes. Abraçar a
criança e seu corpo extravagante, político, em movimento, afeminado, masculinizado,
debochado, contrário e deixar que nele a criança exista.

6. Bibliografia

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