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O Humor dos Mangás

e a Educação para a
Diversidade Sexual e
de Gênero
 Prof. Dr. Amaro X. Braga Jr.
Professor do Instituto de Ciências Sociais (UFAL)

Resumo: O trabalho analisa como o Humor dos Mangás é uma ferramenta adequada
e válida para discutir aspectos relacionados à educação para a Diversidade Sexual e de
Gênero conforme os parâmetros definidos nos documentos oficiais do governo Brasileiro
relativos a três aspectos: (1) o corpo como matriz da sexualidade, (2) as relações de
gênero e (3) a prevenção das DSTs. Defende que a percepção destas instâncias pode ser
facilmente identificada nos mangás publicados no Brasil e que já compuseram a leitura
dos jovens educandos, facilitando o trabalho do professor na gestão destes conteúdos.

Palavras-chave: Quadrinhos; Recursos Didáticos; Educação Sexual; Educação de Gênero.

Abstract: The work analyzes how Mangas Humour is an appropriate and valid tool to
discuss issues related to education for Sexual Diversity and Gender as the parameters
defined in the official documents of the Brazilian government relating to three aspects:
(1) the body as matrix sexuality, (2) gender relations and (3) the prevention of STDs. It
argues that the perception of these instances can be easily identified in manga published
in Brazil and has already composed the reading of young students, facilitating the work
of teachers in the management of these contentes.

Keywords: Comics; Didactic resources; Sexual education; Gender education.

Introdução e suas problematizações sociais e políticas


O Ministério da Educação através de enfrentamento; a orientação sexual e as
de suas subsecretarias especiais como a questões relativas à Heteronormatividade
de Educação Continuada, Alfabetização e e seus problemas decorrentes, tais como
Diversidade, entre outras, têm publicado o Sexismo e a Homofobia, visando,
diversos documentos com orientações para sobretudo, promover parâmetros de uma
o desenvolvimento da educação para as pedagogia sobre o gênero e a sexualidade
questões de Gênero e Diversidade Sexual nas escolas.
que contemplam diversas instâncias Estas questões, polêmicas, esbarram
relacionadas às práticas de constituição em muitas barreiras para sua efetivação.
do gênero social, da identidade de gênero Política contrária da escola (principalmente

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quando são de administração religiosa), de histórias em quadrinhos. Ao
das ideologias não assertivas dos pais e contrário, os dados (refere-se à
professores e pela falta de material didático pesquisa do CNTE, supracitada]
ou orientações pedagógicas aos professores mostram que os alunos leitores de
no desenvolvimento destas ações. quadrinhos, sejam oriundos de
Os dois primeiros aspectos são escolas particulares ou públicas,
macrossociais e dependem de políticas tendem a ter notas melhores
públicas que discutam e reorientem as com uma diferença percentual
mentalidades sociais. Já a última, tem significativa. Os dados também
uma aplicação microssocial e pode ter um mostram algo interessante: entre
direcionamento a partir das indicações de os alunos que tiveram baixo
uso e descobertas de práticas aos quais os rendimento escolar, encontra-se
professores tenham acesso. uma associação com a não leitura
Nosso trabalho visa se dirigir de quadrinhos. (BRAGA JR,
a este último patamar: identificar 2013, p. 41-42, grifo nosso).
a aplicabilidade prática de diversas
publicações juvenis, através do uso do A grande profusão de trabalhos
humor, no desenvolvimento de planos sobre o tema demostra claramente as
de ação pedagógicos que trabalhem estas benesses deste tipo de publicação no
questões na sala de aula e por vias de um universo escolar. O que os pesquisadores
veículo que é de fácil acesso e aceitação querem, sobretudo, defender, é que
por parte dos educandos: as histórias nenhum recurso é melhor do que aquele
em quadrinhos. E mais enfaticamente, ao qual o aluno já conhece e consome
a um tipo de quadrinho que desperta sem que o “professor, o pai ou o padre”
bastante o interesse dos jovens na o mandem ler. Além disso se reconhece
contemporaneidade, o quadrinho japonês, que estes veículos exercem importante
conhecido como Mangá. papel de educação não-formal entre os
A inter-relação entre quadrinhos educandos, conforme avisa os PCNs:
e educação tem ocupado muito o tempo “A criança também sofre influências de
de investigadores que demostraram, muitas outras fontes: de livros, da escola,
através de diversas pesquisas, qualitativas de pessoas que não pertencem à sua
e quantitativas, que seu uso é eficaz e família e, principalmente, nos dias de hoje,
benéfico. Dos relatórios educacionais da mídia. Essas fontes atuam de maneira
de censo estatístico da Confederação decisiva na formação sexual de crianças,
Nacional dos Trabalhadores em Educação jovens e adultos.” (BRASIL, 1997, p.77).
– CNTE-Brasil (RETRATO..., 2002) Os quadrinhos enquanto mídias são
às investigações qualitativas reunidas por ótimas ferramentas pedagógicas, pois já
Santos Neto e Silva (2011; 2013; 2015), são materiais que estão sendo consumidos
passando pelas iniciativas de Carvalho pelos educandos. São publicações que
(2006), Anselmo (1975), Calazans (2004), ele não espera que esteja envolvido
Mattos (2009), Gottlieb (1996) e as em suas dinâmicas diárias de estudo.
coletâneas de diversos autores organizadas Principalmente, porque são produtos de
por Vergueiro e Ramos (2009a; 2009b) e entretenimento que contem uma cultura
Modenesi e Braga Jr (2015a; 2015b), de muitas vezes tachada historicamente
resumo sintetizam, como afirmamos em como “cultura inútil” e por isso mesmo,
um momento anterior, que: despertadora de interesse no alunado.
[...] o nível baixo de rendimento Não há muito esforço ou convencimento
escolar dos alunos não está na hora de pedir a leitura de uma HQ (ou
associado ao consumo e leitura congênere).

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A diversidade sexual e de gênero por vias brincadeiras são amplamente explorados.
do humor quadrinizado Talvez o professor já saiba disso. O que
Segundo os PCNs do MEC a ele desconhece é que a constituição de
orientação para a educação sexual na escola identidade de gênero complexas, que
deve: tanto amedrontam os docentes, também
[...] considerar a sexualidade já se apresentam nestas publicações.
como algo inerente à vida e à Neste tópico, nosso objetivo
saúde, que se expressa desde cedo é discorrer sobre um panorama de
no ser humano. Engloba o papel situações que discutem/apresentam
social do homem e da mulher, personagens ou enredos que envolvem
o respeito por si e pelo outro, as os principais temas descritos nos PCNS
discriminações e os estereótipos em torno da educação sexual e de gênero.
atribuídos e vivenciados em seus Segundo este documento o tema se
relacionamentos, o avanço da organiza em três blocos de conteúdo: (1)
AIDS e da gravidez indesejada na o corpo como matriz da sexualidade, (2)
adolescência, entre outros, que são as relações de gênero e (3) a prevenção
problemas atuais e preocupantes. das DSTs. Vejamos como cada uma delas
(BRASIL, 1997, p.73). se apresenta neste tipo de quadrinhos.

E mais adiante, complementa que (1) O corpo como matriz da


muitas “[d]essas questões são trazidas sexualidade
pelos alunos para dentro da escola. Cabe O corpo das personagens é
a ela desenvolver ação crítica, reflexiva estruturado para indicar sinais de
e educativa.” (BRASIL, 1997, p.77). nosso gênero. Esta indicação é muitas
A grande dificuldade dos professores e vezes confundida com determinação.
demais profissionais da educação é achar Gênero e Sexualidade são coisas
os meios para esta inserção. Porém, por diferentes, relacionadas, mas distantes,
mais estranho que pareça, não é preciso ao mesmo tempo. Nossos genes
ir muito longe. Boa parte deste debate já determinam se seremos machos ou
é de conhecimento do aluno. E não nos fêmeas, biologicamente falando. Isto
referimos ao ambiente familiar ou suas é, se teremos órgãos reprodutores dos
experiências sensoriais, mas se origina na machos (pênis e testículos) ou das fêmeas
leitura de quadrinhos e na audiência dos (vagina, útero e ovário), costumamos
desenhos animados (muitos deles versões nos referir a estes órgãos como “sexo de
quadrinizadas, como nos animês que se nascimento”. É pela aparência deles é que
originam dos mangás1). se determina nossa educação de gênero, 1. Os Mangás são os tipos
Os papéis de gênero (a isto é, se receberemos um conjunto de quadrinhos produzidos no
caracterização dos comportamentos de informações culturais relativas a Japão que possuem uma esté-
tica de desenho bem particular.
femininos e masculinos construídos comportamento, vestimenta e aspectos Os animes são os desenhos
socialmente) são amplamente explorados sociais masculinos ou femininos. É animados. Boa parte dos animes
nos quadrinhos em todos os seus importante frisar que tais aspectos são tiveram suas versões em mangá
e vice-versa.
subgêneros estilísticos (super-heróis, constituídos histórica e socialmente.
infantil, underground, mangá etc.). Em termos: eles variam de região, para a
Representações visuais com roupas, região. De época para a época. Eles não
trejeitos, gostos por brinquedos e até são estáveis e nem absolutos.

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Figura 1 - Termo masculino de Luís XIV. A vestimenta incluía peruca, salto alto, maquiagem, luvas e laços nos
pés e pescoço como parte da vestimenta tida como masculina. Hoje estes mesmos adereços são associados
totalmente à feminilidade. Isso nos mostra que os padrões de vestimenta são artificiais e coisas de mulher e de
homem são voláteis com o tempo. O mesmo ideal deve ser percebido entre as roupas etnicamente constituídas
como togas masculinas entre árabes e africanas que na cultura ocidental são vistas como vestidos femininos e
assim por diante. Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/07/45_3140-sec%20XVII.jpg

Em determinados casos não maioria dos casos.


há congruência entre o tipo de órgão A descaraterização do binômio
sexual de nascimento do indivíduo, sua corpo/gênero masculino é frequente em
mentalidade em relação à sexualidade diversas das publicações em quadrinhos,
ou seu comportamento de gênero. Assim mas principalmente nos mangás. As
surgem crossdressings, hermafroditas, imagens listadas a seguir trazem um
transexuais, travestis, meninas lésbicas, pequeno apanhado de algumas destas
meninos gays, meninos afeminados, situações. O professor precisa ter em
meninas masculinas, pessoas andrógenas mente que em praticamente todas as
entre outras diversas identidades sexuais. publicações de mangá que circulam no
Há uma tensão entre a Brasil, será possível encontrar algum
representação do corpo e a identidade personagem ou situação que debata estas
sexual dos indivíduos. Nas histórias questões. São tantos e tão frequentes os
em quadrinhos, boa parte do humor é casos que não é possível lista-los aqui
construída colocando em choque estas sem comprometer o espaço do trabalho.
duas esferas. Heróis masculinos que se Entre os diversos casos, citamos os mais
travestem de mulheres geram riso e são famosos e que circularam nas bancas de
ambientações da comicidade na grande revistas no Brasil, nos últimos anos.

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Um dos primeiros mangás a Figura 2 - Cena emblemática do mangá
Boku No Shotaiken, onde Eitaro, já
apresentar personagens em situação de no corpo de menina, demonstra seu
conflito quanto a identidade sexual e de interesse na garota. As cenas do conflito
sexual e de gênero são ambientadas em
gênero foi Boku No Shotaiken de Yuzuki
diversas cenas humorísticas no mangá.
Hikaru em 1976. O gibi era de comédia Por meio da comicidade do mangá se
e apresentava a história de Eitaro, um discute diversos conflitos de personagens
com identidades transgêneras. Fonte:
jovem rapaz apaixonado por uma garota http://www.genkidama.com.br/gyabbo/
que morre e tem seu cérebro removido files/2015/01/boku_no_shotaiken_v01_
c001_000c-400x342.jpg
e reimplantado em um corpo de uma
menina. Mesmo vivendo como mulher
ele resolve conquistar a garota que esteve
apaixonado quando era menino. As
situações, obviamente, envolvem diversas
cenas cômicas. Figura 3- Capa de Ranma ½ . Um menino
RANMA ½ (Ramma Nibun-no- que vive como menina, com cenas satíri-
cas de um menino que, ao se molhar, vira
Ichi). Neste mangá o protagonista Ranma uma menina. O “½” do título se refere ao
Saotome, devido a uma maldição, toda garoto que é “metade” garota. Fonte:
vez que se molha na água, vira uma http://www.opusgames.com/toys/pics/
RanmaMem.jpg
menina. A história ria várias situações
que levam o rapaz a lidar com a situação
(pois as pessoas não sabem que ele é
homem, devido ao corpo feminino que
assume. As piadas se dão justamente pelo
Ranma, quando transformado, chamar
a atenção dos garotos e receber cantadas
deles ou não poder cortejar uma garota
enquanto estiver na forma feminina.
Temos um menino que tem que viver
como menina em vários momentos ou
uma menina (com corpo feminino), mas
Figura 4 - Lady Oscar do mangá
com a mentalidade masculina, logo um
“A Rosa de Versailles”. Uma menina
transgênero. que vive como menino. Oscar vive o
A ROSA DE VERSAILLES conflito entre seu papel masculino e
seus desejos femininos de amar um
(Berusaiyu no Bara). O mangá narra a homem. Fonte: http://2.bp.blogspot.
história de Oscar uma menina que foi com/_4AP684PWbyM/TKOioKGfmeI/
AAAAAAAAGI0/5tp2KWB6kdQ/s1600/
criada como menino pelo pai. Além do
Lady+Oscar.jpg
nome, também usava roupas de menino e
sua educação militar a fez ocupar o cargo
de capitão da Guarda Real. Os enredos
mostram uma menina que vive como
homem, é apaixonada por um rapaz, mas
não pode demostrar seu amor, devido ao
seu papel social de homem e capitão.
Existem inúmeros casos como estes
supracitados. A travestismo enquanto
cena cômica é uma pratica constante nos
mangás. Sua presença constante e a falta
de crítica negativa sobre o fato coloca a
prática num espaço de normalidade que

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permite discutir, por outros termos mais de ser gay ou travesti não é relevante no
tolerantes, a diversidade de vestimentas e enredou problematizado, é apenas um
as regras de vestimentas por sexo. detalhe da personalidade ou caracterização
As definições dos corpos e sua da personagem.
aparência também são foco de comicidade
nestas publicações. Há participações (2) As relações de gênero
esporádicas e constantes. Revistas Em Yu Yu Hakusho , o protagonista
dedicadas a personagens e temas próprios, da série (Yusuke Urameshi) enfrenta um
como títulos onde só aparecem histórias dilema quando enfrenta uma vilã muito
com hermafroditas ou crossdressings. O forte (Miyuki), pois ele não quer bater em
mais interessante para o professor discutir mulheres. Porém, em certa altura da luta,
na sala de aula são justamente as aparições ele desconfia destas habilidades e apalpa
nos mangás de sucesso. Estas aparições os genitais da vilã e descobre que ela tem
não são problematizadas quanto à situação testículos o que o faz compreender sua força
da identidade sexual da personagem, e agilidade e derruba seus impedimentos de
colocando a identidade sexual como não bater em mulheres. Apesar do enredo
um fator natural e aceitável. Em outros relacionar a masculinidade à aparência (ou
termos: quando um personagem travesti presença) do órgão sexual masculino, a
ou gay aparece na história, não há história permite discutir como a questão
questionamentos quanto a esta situação do personagem travesti na série não
que define sua identidade sexual. /o fato gera nenhuma problematização. Não se
questiona o fato de ele ser ela, mas apenas
de suas astucia de vencer os homens,
disfarçando-se de mulher. A questão de
gênero implica nas éticas de tratamento
entre homens e mulheres.
A situação de comportamento
masculino e feminino é tão diverso e
complexo nos mangás que praticamente há
um nome de classificação para cada tipo de
personagem (personalidade) entre homens
e mulheres no mangá (Vide Quadro
1). Leitores e roteiristas descrevem, em
suas histórias, os mais diversos tipos
que são reconhecidos pela relação entre
a caracterização visual (vestimenta,
adereços, posicionamento do corpo) e
a caracterização da personalidade. É o
principio da definição de gênero. Há uma
regra nos mangás de definição das coisas
por contrastes estéticos e conteudísticos.
Assim, sempre haverá homens e mulheres
submissos, dominadores, sofredores,
tímidos e assim por adiante. Não há um
padrão absoluto de personalidade entre
homens e mulheres. Isso torna os mangás
Figura 5- No mangá Mahou Shoujo Ore, a protagonista (uma garota frágil) se transforma
em um homem forte e musculoso para defender seus amigos e gera muitas piadas ao muito passiveis de discussão sobre a
tentar salvar os meninos em sua forma masculina. Fonte: http://blog-imgs-64.fc2.com/y/a/r/ questão do gênero, assim como os conflitos
yaraon/6_20140804183258c80.jpg
de gênero.

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Quadro 1: Panorama de Personalidades de Personagens nos Mangás. Fonte: Alyss (2013) e Mugiwara (2013)

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(3) A prevenção das Doenças Sexualmente
Transmissíveis - DSTs
Dos três tópicos, este é o único cuja
aparição não é constante e diversificada. Isso
não implica, entretanto, em inexistência,
ao contrário, há inúmeras publicações
que estabelecem estes parâmetros. Eles
também são temas que aparecem em
histórias correlatas e em mangás eróticos.
No Brasil cenas de sexo cujos
personagens usam preservativo são
frequentes em mangás eróticos como
os Hentai, porém aparecem também
em mangás que não são completamente
eróticos, isto é, cujos roteiros se relacionam
a outras temáticas, não tão explícitas. É
o caso dos mangás Video Girl-Ai (Den’ei
Shōjo) e Futari Ecchi, publicados no Brasil.
Figura 6 - Cena pedagógica do mangá Futari Echhi ensinando a desabotoar o sutiã na hora dos
No primeiro, um garoto depois de locar sexos. Foram publicadas 42edições no Brasil, mostrando tudo o que é necessário saber sobre sexo
uma fita de vídeo, ganha uma mulher que através da vida do casal, com muitas cenas de prevenção de DSTs. Fonte: http://4.bp.blogspot.
com/-wPsT2Vj_rwQ/VUA5wiVg7DI/AAAAAAAAImI/kEKBV32n5Qw/s1600/Futari%2BEcchi_
tem a missão de transformá-lo em um Vol1_034_sutia.png
garanhão do sexo.
Em Futari Ecchi, a vida de um casal animadores, assumindo novos papeis de
recém-casado e inexperiente sexualmente Drag Queens (ou Drag Kings, em sua versão
é o tema das histórias que mostram feminina). É pelo exagero e pela quebra
pedagogicamente como proceder com o padrão de vestimenta (homens com
sexualmente o contato intimo. Ensina roupas de mulheres ou o contrário) que o
de maneira cômica, posições, práticas, humor se constrói, em princípio.
movimentos e procedimentos como a Em outro estudo sobre o tema,
prevenção, tudo dentro do enredo do (BRAGA JR, 2014) estabeleci que as
mangá. Inclusive, Futari é considerado referências às sexualidades dissidentes (em
uma “Bíblia do Sexo”. relação ao ocidente) nos mangás podem
ser representações visuais: (1) explícitas,
Considerações finais (2) simpatizantes e (3) veladas. As
O riso do travestismo masculino ou explícitas são os títulos que se dedicam ao
feminino, às vezes, pode ser confundido tema (como quadrinhos gays do tipo Yuri,
com falta de respeito ou desaprovação. BL, Bender etc.) (Cf. BRAGA JR, 2014);
É o ridículo medieval do humor que Os simpatizantes, a grande maioria são
retorna no imaginário social. Entretanto, aqueles que personagens cuja identidade
o mesmo riso, no caso dos quadrinhos sexual ou de gênero é dissidente, parecem
e no desenho de humor em geral, pode no enredo sem que sua caracterização
ser um veículo para a naturalização da seja problematizada; e os velados são
representação. Acostumar-se com o fato aqueles que colocam os personagens em
e torna-lo natural e frequente é um meio situações constrangedoras, parodiando
para entender que a caracterização fora dos ou satirizando a situação de gênero ou
padrões heteronormativos é possível e não identidade sexual dos personagens. É nesta
mais estranha (ao passo que se naturalize). última categoria que o humor desempenha
Lembremo-nos que muitos dos travestis um papel primordial no debate da
seguem carreira de comediantes ou diversidade da identidade sexual. É pelo

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constrangimento que o riso se processa temos duas pessoas (um homem e uma
e a questão das identidades divergentes mulher) que vivem socialmente no
aparece. Apesar da comicidade levar ao campo do seu gênero oposto, isto é, tem
ridículo, é por meio dela, que a naturalização comportamentos (vestimentas, linguagem
se processa. Esta naturalização decorre da e práticas) associadas ao sexo posto,
presença constante destas situações. São porém não apresentam práticas sexuais
os próprios leitores de quadrinhos (fãs) homossexuais. Esta ambientação demostra
que pedem que os autores coloquem seus como pessoas que tem comportamentos
personagens preferidos nestas situações. efeminados (no caso dos meninos) e
Esta prática é tão frequente que ganhou masculinizados (no caso das meninas) não
o nome de fanservice, isto é, “à serviço do necessariamente possuem uma identidade
fã”. Este recurso criativo cria situações que sexual homossexual. Assim, nestes casos,
fazem os protagonistas heterossexuais se exemplifica que gênero e sexualidade
participarem de cenas com temática são cosias distintas e não estão associadas
homoafetiva (beijos acidentais, toques nos diretamente como o senso comum apregoa.
genitais, vestir roupas do sexo oposto etc.). Como a comicidade é um elemento
Como já mencionado, os jovens já narrativo nos mangás independente de
leram centenas de páginas de um mangá seu subgênero narrativo (se de terror,
cujo grupo é formado por um garoto drama, cotidiano, aventura medieval etc.),
afeminado ou por um transexual ou gay, estas questões se instauram na história
sem que este detalhe de sua personalidade por vias do elemento cômico através de
seja foco da narrativa. É simplesmente uma imagens em SD (super deformed), onde
característica do indivíduo, que não chega a aparecem as miniaturas dos personagens
ser problematizada na história. Assim são ou das metalinguagens visuais (quedas
Shun (nos Cavaleiros do Zodíaco), Shima de pernas-pra-cima, gotas em narizes,
(em Jaspion), Malachite e Ziocyte (em Sailor exagero nas expressões faciais (Cf.
Moon) e Toya (em Sakura Card Captors). BRAGA JR, 2011) e sempre, pela
No caso de Ranma ½ e a Rosa comicidade apresentam situações de
de Versailles, citados anteriormente, educação sexual.

Figura 7 -Cena do anime Dragon Ball Z onde o Goku criança descobre ao tocar a genitália de
sua amiga Bulma que ela não tem “bolas” e nem “pinto”. Uma cena cômica sobre a diferenciação
orgânica entre os sexos e a descoberta ocasional. Fonte: http://www.kamisama.com.br/wp-content/
uploads/2010/11/censnoballstv2.jpg

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Os leitores identificam esta instância. próprios personagens debocham
Em diversos depoimentos de leitores em da situação. Além disso, o
seus blogs pessoais é possível encontrar mangá apresenta situações bem
estas referências do papel do humor na absurdas, como a cada ano os
constituição dos quadrinhos cuja temática personagens passarem de ano e
é relacionada à diversidade sexual e de continuarem na mesma série ou
gênero. Citamos a seguir os comentários o En ter amnésia todo mês de
do blogueiro e otaku “Faust Naoi” (2014, abril, que só são possíveis graças
[s.p.], negritos nossos), que segundo seu ao tom de paródia com que esse
perfil online, é graduado em psicologia. mangá trabalha.”
Suas leituras são de mangás Yaois e
Shonen Ai (ambos fazem referências aos Por isso que o humor é um elemento
romances entre garotos): importante para compreender os mangás.
“Eu não sou muito fã da É através da metalinguagem de tendência
Higashino You, mas os títulos cômica que a diversidade de personalidades
que as editoras americanas dão se instaura entre os personagens e conquista
para os mangás dela são tão a leitura da audiência, permitindo que
engraçados e ridículos que eu os temas polêmicos se apresentem sem
acabo não resistindo e resolvo problematização, mas como instrumento
ler.” cômico que alivia a tensão do enredo ou
da dissidência da personagem. Professores
“[Sobre o mangá Kami nomi zo cientes disso terão em mãos um recurso
Shiru Sekai ] As paródias e o didático fantástico para trabalhar com as
humor estão sempre presentes questões de educação sexual na sala de aula.
nesse mangá, que é muito, muito
engraçado. Fazia tempo que eu Referências
não ria tanto com um mangá.” ALYSS. Xd tipos de personalidades de
um personagem de anime ou otaku! venha
“Tipo, eu entendo um mangá ver qual vc é!. Social Spirit. 30 abr. 2013.
[refere-se a In These Words] que Disponível em: https://socialspirit.com.
é feito para ser brutal, violento e br/perfil/gatinha2011/jornal/xd-tipos-
perturbador. Só que aí as autoras de-personalidades-de-um-personagem-
desenham os personagens em de-anime-ou-otaku-venha-ver-qual-
chibi [versões infantis em SD vc-e-762341. Acesso em: 29 ago. 2015.
dos personagens] e brincam ANSELMO, Zilda A. Histórias em
sobre o Katsuya se tornar a Quadrinhos. São Paulo: Editora Vozes,
esposa de Shinohara...” 175.
BRAGA JR, A. X. Desvendando o Mangá
“Gosto bastante desse mangá Nacional: Reprodução e Hibridização
[Usotsuki Lily], porque é nas Histórias em Quadrinhos. Maceió:
uma leitura leve e engraçada. Edufal, 2011.
No último capítulo que eu li, BRAGA JR, A. X. A Diversidade
temos momentos tão fofos e Homoafetiva Nos Quadrinhos Japoneses.
românticos, sendo que há alguns In BRAGA JR, A. X. (Org.). Questões de
capítulos atrás teve alguma Sexualidade nas Histórias em Quadrinhos.
tensão e, antes disso, era pura Maceió: EDUFAL, 2014.
comédia. Funciona bem. Há BRAGA JR, A. X. Quadrinhos
vários clichês, que o mangá Independentes: usando imagens para
trata com tom de paródia e os contar muito mais que história. In

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