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UM HOMEM NEGRO PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

AUTONARRAÇÃO DOS DESAFIOS DE UMA PRÁTICA EM PROCESSO

Claudionor Renato da Silva


claudionorsil@gmail.com
Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual
Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara. São Paulo, Brasil. Agência de Fomento: CAPES – Bolsa de
Doutorado.

Introdução e justificativa
O presente relato é uma contribuição à produção de conhecimento na área de
educação infantil no que diz respeito à formação e à atuação de professores
nesta faixa de escolarização nos quesitos conceituais de gênero e raça (“raça”
é o termo utilizado pelo movimento social negro, dado que etnia, inoperaliza a
variante “racismo” e sustenta o mito da democracia racial brasileira; por essa
razão, opta-se neste trabalho pelo termo “raça”).
Como professor de educação infantil já há quatro anos, tenho convivido, na
prática docente, com alguns desafios que destaco neste trabalho como
“desafios de uma prática em processo” que incorrem na realidade escolar
infantil quando o professor é um homem. Desafios que se iniciam na relação
com a gestão escolar e os pares professores do sexo feminino e se ampliam
aos pais dos educandos pequenos.
Somado à relação de gênero, a categoria raça tem despontado em minhas
observações e vivências na relação com os pares docentes, da mesma forma
que ocorrem nas relações professor-aluno e aluno-aluno na educação básica,
conforme proposições de E. Cavalleiro: são falas e gestos silenciosos,
camuflados, mas perfeitamente contextualizados e com sentido para um
afrodescendente.

Problema
A problemática instaurada neste trabalho, que originou um projeto de tese de
doutoramento é a seguinte: na observação e vivência de um professor homem
negro, que possibilidades, gênero e raça, enquanto conceitos sociológicos,
podem ser configurados à análise da necessidade (urgente) da construção de
uma sociedade antissexista, antirracista e antipreconceituosa?

Objetivo
Tenho assim o objetivo de relatar minha vivência de professor na educação
infantil e os desafios em processo de “se manter” na unidade escolar (no
sentido de adquirir a confiança dos pares e dos pais) e demonstrar o caráter

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profissional da presença masculina que não é a figura do “tio” nem a do pai
ausente, mas a figura de professor.

Referencial Teórico: GÊNERO E RAÇA


Carvalho (1998) afirma que

Pouco se tem escrito, no campo educacional, sobre os


professores do sexo masculino, levando em consideração
suas identidades de gênero (...). Concentrados na área da
Psicologia Social, estes estudos tendem a focalizar as
possíveis consequências do sexo do professor/a para o
aprendizado e a socialização de meninos e meninas (...)
(CARVALHO, 1998, p.6).

Carvalho (1998) discute gênero a partir de Scott (1995), segundo a qual,


gênero é categoria de análise. Nele está implícito todo construto social ao
longo da história sobre o que os homens devem fazer e o que as mulheres
devem fazer, bem como as negativas dessas ações.
Scott (1995) não restringe gênero a uma construção dicotômica
homem/mulher. Segundo a autora trata-se da necessidade de se pensar
gênero numa perspectiva para a igualdade de direitos, no crivo da diferença e,
de se propor uma análise mais ampla, ao mesmo tempo pontual, articulando
outras dimensões. Por exemplo: raça, etnia.
Na proposta deste trabalho, trata-se de configurar o tema “gênero” à dimensão
“raça” na educação (escola de educação infantil, particularmente), a partir das
representações de um homem negro professor, num espaço (de poder)
eminentemente feminino, onde as construções sociabilizadas no decorrer dos
anos colocam o homem professor como alguém que não tem “dom”, “jeito” de
lidar com os infantis.
“Gênero e raça” (Cavalleiro, 2010) estão interligadas e são extremamente
complexas, mas devem caminhar para o estabelecimento da igualdade e do
quesito formação profissional, e não para o “jeito”, a “aptidão” ou “a maioria”,
pois do contrário, perpetuamos a ideologia sexista.
Costa (2007) citando M. Cortez defende

(...) a presença masculina, além da feminina, nas


organizações escolares dos primeiros níveis de ensino, no
sentido do desenvolvimento integral das crianças e no
intuito da maior visibilidade dos elementos masculinos no
estatuto sócio-profissional de educador de infância,
promovendo e incentivando a paridade educativa, assim
como a aceitação das especificidades próprias de cada
gênero (COSTA, 2007, p.13).

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Tal como gênero, raça é fruto dos contextos de “construções sociais, políticas e
culturais produzidas nas relações sociais e de poder ao longo do processo
histórico (...). É no contexto da cultura que nós aprendemos a enxergar as
raças” (GOMES, 2005, p.49).
Logo, ao pensar as relações gênero e raça nos espaços escolares que são
espaços sociais é de construção de olhares, percepções, identidades e
representações que estamos tratando.
Isso significa que perceber as diferenças de gênero e de raça nas relações de
poder, dos espaços sociais é encaminhar ações para igualdade, portanto, ação
antissexista e antirracista. Compreende construir, ao mesmo tempo,
desconstruir; identificar/apontar, ao mesmo tempo criticar/negar, a fim de que a
igualdade seja vista na(s) diferença(s). E no caso brasileiro, que negros, índios,
brancos e amarelos se vejam resultado/produto e agentes históricos e
identitários dessa grande nação (GOMES, 2005; GUIMARÃES, 1999).

Método
Utiliza-se a História Oral (Houle, 2008) no relato da chgada ao primeiro
emprego, a primeira escola e a continuação desta vivência no magistério
destacando a “história em processo”.
Para Houle (2008):
(...) sujeito está presente, ele fala, e sabe muito bem falar
tanto de si mesmo, como da sociedade no interior da qual
vive. Talvez seja preciso lembrar (...) para além dos
números e das letras, a vida em sociedade é o objeto
primeiro e último da sociologia, e que só há sociedade a
partir do momento em que isso faz sentido. (...) o sujeito
está aí, sua palavra vale (HOULE, 2008, p.331).

A narrativa como método, denominado na literatura como abordagem


biográfica, narrativas (auto) biográficas, histórias de vida, autonarração, etc.,
vem sendo muito utilizada nas pesquisas em educação nesta última década.
Referenciada em W. Benjamin e J. Larrosa, a abordagem narrativa aplicada à
educação defende que através da narrativa do sujeito é possível compreender
a pluralidade da formação, que se dá na trajetória de escolarização e também
na profissionalização, e vão constituindo significados para a prática atual; é
possível compreender, sobretudo, como vão se constituindo as concepções
que orientam a docência (NÓVOA, 1992; NÓVOA; FINGER, 2010).

Procedimento
Os dados desta pesquisa são oriundos da Atividade Final Avaliativa da
Disciplina “Aportes de Africanidades” durante o meu Mestrado na UFSCar em
2010. De posse desses, dados somado à “prática em processo” faço algumas

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considerações atualizadas do que venho vivenciando como professor da
educação infantil.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Adentrando ao espaço (de poder) feminilizado: um processo continuo de
aprendizado
E foi na escolha da classe em que ia trabalhar naquele
ano que o impacto de ser negro e professor se instaurou.
Como todo recém contratado se pega o que resta. Das
inúmeras possibilidades nenhuma estava para as crianças
de 4 e 5 anos cujas atividades de docência são bem mais
pedagógicas que as das creches. Me sobravam Berçário
e Maternal. A entrevistadora não acreditando muito que
eu ficaria no cargo começou a me fazer entender que
desistir seria o melhor. - Você terá que trocar fraldas, tirar
fraldas, fazê-los dormir... Pena que não tem pré-escola,
acho que você se daria melhor... Claro que na hora aquilo
me assustou, pois imaginava que seria professor
daquelas crianças não babá. Mas resisti. - Você não terá
recesso. A creche trabalha direto, não pára. Os pais são
exigentes. - Você fará seis horas com uma hora de
descanso. A cada tentativa de me afastar da aceitação do
cargo fazia sinal com a cabeça e balbuciava alguns “hã,
hã, hã”. Afinal, disse: - Estudei pedagogia, me formei
nisso. É um bom começo. Assinei o contrato (...) (SILVA,
2010, p.8).

Senti-me desconfortado com a entrevista inicial, pois foi me revelado que a


minha atuação seria um pouco resistida pelos pais. O temor dos sistemas de
ensino é sempre os pais - especialmente em ano eleitoral!.
Aquelas palavras apontam para o que Costa (2007) e Catani, Bueno e Souza
(1998) afirmam ser o estranhamento de num espaço de mulheres, um homem
exercer atividades de cuidado, de docência.
Pensei que “as dicas” fossem simplesmente pelo fato de tratar-se da creche,
mas atualmente, trabalhando na pré-escola tenho visto e sentido as mesmas
reações por parte dos gestores, dos companheiros de trabalho (as professoras,
principalmente) e de alguns pais, no sentido de serem reproduzidas sempre as
mesma opiniões: homem não dá certo na educação infantil ou homem e
educação infantil não combinam.

(...) e fui para o meu primeiro contato com a direção. Foi


um pouco frustrante, pois ouvi as mesmas coisas do
momento da entrevista da escolha de classe. Só que

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desta vez ela me encheu de material para leitura quanto
ao que fazer com crianças de um ano e meio e três,
sugestões de banho, de atividades, enfim. Fazia questão
de frisar – e até hoje – que não tenho experiência (SILVA,
2010, p.9).

A dificuldade de comunicação da gestão feminina com o professor masculino é


na creche de educação infantil, especialmente, na minha atuação e
experiência, muito próxima da fala de Vianna e Ridenti (1998) quanto à
construção social do que seja papel do homem e do que seja papel da mulher
em alguns espaços.
Minhas aulas são sempre de portas abertas e quando as crianças vão ao
banheiro peço acompanhamento de uma integrante da equipe escolar. Mas
acredito que a presença masculina e essa presença marcante da gestão em
observação às aulas e acompanhamento direto é um caminho, como também
entende Costa (2007) e Cavalleiro (2001) para as desconstruções sociais
dadas/impostas na escola de educação infantil ao considerar e relevar não o
profissionalismo, mas o ser mulher, como o mais adequado à docência na
escola da infância e, nesse sentido, alcançando uma educação antissexista e
antirracista e antipreconceituosa.
São evidenciados na minha vivência, resumidamente comentada aqui, da
impossibilidade de isolar gênero, raça, opção sexual, etnia, etc. Há uma
complementaridade, uma complexidade, um processo todo conjunto, ao
mesmo tempo, particularizado como afirmam Cavalleiro (2010), Scott (1995) e
Costa (2007).

UMA HISTÓRIA EM PROCESSO (QUASE UMA CONSIDERAÇÃO FINAL!)


As minhas impressões de iniciante à prática na educação infantil não são
diferentes, hoje, após três anos. E como afirma M. Tardif, em Os Saberes
Profissionais Docentes, os três anos foram determinantes para que pudesse
compreender e apreender as especificidades do trabalho na educação infantil e
o enfrentamento pessoal para que tudo desse certo, ao contrário de “muitas”
que torciam (e ainda torcem) para que eu desista.
Os desafios da prática em processo, atualmente, é uma aproximação total com
os pais. Estes são meus aliados para que o meu trabalho seja realizado com
segurança e tranquilidade. Assim, nesse ano, fiz uma apresentação sobre mim,
sobre minha família, sobre o time do coração, pois fizeram uma diferença, pois
os pais, quando me viram na sala de aula, esse ano (2013) ficaram um pouco
assustados. Alguns disseram: “Cadê a professora?”. (Tenho uma intuição: acho
que a gestão não disse que o professor era um homem?!). Mas enfim, o
trabalho tem que ser feito.
É interessante que depois que ficamos sós, as crianças e eu, tudo corre
naturalmente. Percebo que para elas, há o adulto professor, independente de

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homem ou mulher. O receio é adulto, dos pais, dos gestores e dos pares
docentes femininos. Para estes últimos o pensamento é sempre: “Será que ele
vai dar conta?”.
É urgente na formação inicial das licenciaturas, bem como nas formações
permanentes que seja implantando a educação antissexista, antirracista e
antissexista tendo como locus transformador o espaço escolar. Uma postura e
formação ética, a começar na gestão e professores e toda equipe de trabalho
escolar. Aos gestores e professores, sobretudo, a tarefa de conscientização
aos pais, tranquilizando-os, demonstrando e evidenciando o profissionalismo
docente na educação infantil, não mais o cuidador(a), a babá que reforçam a
ideia de que o oficio nesta escolarização é para que tem o dom da
maternidade: a mulher.
A prática de um professor homem na educação infantil, para mim é um
continuum, um processo de construção do qual muitos desafios são ainda
impossíveis de serem transpostos pela cultura feminilizada na educação
infantil, mas que, com paciência e muito profissionalismo, a presença de
homens nessa faixa de escolarização não será uma discussão necessária, pois
teremos uma sociedade antipreconceituosa, antiracista e antisexista, em que
as pessoas são respeitadas independente de sua cor de pele , de sua opção
sexual, de sua religião, etc.

Palavras-chave: Gênero. Homem negro. Educação infantil.

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