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MULHER, NEGRA, “PROFESSORINHA” OU PROFISSIONAL, QUE PEDAGOGA

EU SEI QUE SOU?


Carlinda Moreira1
Adauto leite Oliveira2

O presente trabalho apresenta um relato de experiência tomando por base alguns


discursos e práticas educativas vivenciados em espaços escolares que oferecem o Ensino
Fundamental I, em bairros empobrecidos/periféricos de Salvador/Ba, onde atuam,
majoritariamente, mulheres negras oriundas dos Cursos de Pedagogia, onde eu me situo. Para
explicitar este locus social o qual me situo, antes de ser professora, trago a fala de uma
estudante que participou de uma pesquisa a qual realizei pelo Programa de Pós-graduação em
Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Naquele
momento, buscou-se compreender o que representou a política de cotas raciais para as
mulheres negras que lograram ingressar em cursos de elevado prestígio social, da
Universidade Federal da Bahia - UFBA, no ano de 2012:
A minha amiga X que faz medicina ela é do mesmo tom de pele que eu. Ela é
de comunidade quilombola e ela tem que alisar o cabelo dela. Ela tem que
passar chapinha no cabelo dela. E é uma coisa que ela faz contra a vontade
dela. Ela ainda não conseguiu vencer isso. Mas ela sabe que ela não quer fazer
aquilo, e ela diz pra todo mundo que ela não sabe como ela vai fazer aquilo. O
problema todo é esse, o que fazer...como é que os professores vão fazer.
Porque eles procuram a todo momento estar segregando ela. Então tem mais
essa desculpa do cabelo. Então uma coisa que ela colocou é a todo momento
querer ser a melhor da sala, mas ela ainda não conseguiu ser a melhor porque
infelizmente ela não consegue tomar nada pra ficar branca (Estudante D, do
curso de Comunicação/Jornalismo, autodeclarada negra, cotista, oriunda de
escola pública estadual).
A partir deste lugar social onde se produziu, com base nas características biológicas de
determinados grupos sociais, estigmatizado-os, coisificando-os, para lhes destituir do direito à
plena existência, buscamos refletir sobre os impactos decorrentes das políticas neoliberais na
reformulação dos cursos de Pedagogia, as barreiras que se colocam para regulamentar a
profissão de pedagoga/o e suas consequências na práxis educativa escolar. Retoma-se, para

1
Me. Em educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professora pedagoga
da Rede Municipal de Salvador/Ba. E-mail: lindamoreira260@gmail.com.

2
Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Membro da
Associação de Pedagogas/os do Norte e Nordeste – ASPENN. E-mail: adautoleite@hotmail.com.

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esta reflexão, os estudos do campo pedagógico onde se compreende a ampliação e a
diversificação das fontes legítimas de saberes e a necessária coerência entre o saber-fazer é
o saber-ser-pedagógico (Freire, 1997). A primeira regulamentação do curso de Pedagogia foi
em 1939, que previu a formação do bacharel em Pedagogia. Segundo Pimenta (2005),
Libâneo (2010) e Pinto (2011). Desde então o Curso vem sofrendo ataques de ordem
capitalista neoliberal, políticas históricas de mercantilização da educação, em prol da
manutenção das desigualdades. Estas visam a fragmentação do sentido epistemológico da
Pedagogia enquanto ciência da e para a educação; o esvaziamento de seu currículo, que
dificulta o acesso a conhecimentos próprios do campo pedagógico, a limitação da atuação de
pedagogas/os aos espaços escolares e a consequente “confusão” que se busca colocar entre o
campo de formação que deveria habilitar a/o pedagoga/o stricto sensu a priori, para chancelar
sua atuação nos mais variados espaços profissionais, inclusive , não especificamente, na
docência escolar.
Embora se queira pensar o pedagogo restrito à docência escolar, o desafio é superar a
perspectiva neoliberal de mercantilização da educação e pensá-la como contribuição para a
humanização dos indivíduos. Para isto, Pimenta (2005) aponta que,
Dada a natureza do trabalho docente, que é ensinar como contribuição ao
processo de humanização dos alunos historicamente situados, espera-se da
licenciatura que desenvolva nos alunos conhecimentos e habilidades, atitudes
e valores que lhes possibilitem permanentemente irem construindo seus
saberes-fazeres docentes a partir das necessidades e desafios que o ensino
como prática social lhes coloca no cotidiano (pág. 17 - 18).
O olhar sobre o trabalho pedagógico escolar vivenciados e traduzidos nos discursos e
práticas de colegas professoras/es, coordenadoras pedagógicas e diretoras são refletidos a
partir do momento em que comecei a lecionar nos primeiros anos do Ensino Fundamental I da
Prefeitura Municipal de Salvador.
Ano de 2012, feliz por encontrar um lugar no e para o mundo enquanto profissional
professora, que galgava um lugar de existência diferente daquele que a sociedade tinha
estabelecido para as mulheres negras. Estava confiante nos saberes próprios do meu campo de
atuação. Sentia-me preparada para desenvolver, ao longo desta caminhada, uma práxis
educativa emancipatória. Buscava compartilhar algum saber pedagógico e a perspectiva de
contribuir para diminuir as desigualdades educacionais, raciais, e de gênero, pois vivi a
materialização de me ver com capacidade de ocupar um lugar na sociedade, porque políticas
comprometidas eticamente para romper com o status quo da sociedade brasileira. Nesses

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diálogos, "brincava", dizendo que em uma noite dormia com Paulo Freire e acordava com
Bourdieu; noutra noite dormia com Bourdieu e acordava com Paulo Freire. O sociólogo
francês Pierre Bourdieu compreende que nos sistemas de ensino das sociedades
contemporâneas, as relações que mantêm os diferentes grupos sociais com a escola servem
para a perpetuação das desigualdades:
É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando
o sistema escolar como fator de mobilidade social, segundo a ideologia da
escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um
dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de
legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom
social tratado como dom natural (Bourdieu, 1998, p. 41).
Compreendo que esta análise descreve a realidade social brasileira, contudo, volto-me
para as análises de Paulo Freire que nos coloca questões próprias do campo pedagógico, que
encaminham saberes para uma prática educativa transformadora:
[...] Prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta
pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola
ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na
qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O
essencial [...], é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-
se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática
para tornar-se concretude histórica (FREIRE, 1997, p.5)
Nesta perspectiva, minhas reflexões passeiam entre a percepção de uma escola
reprodutora das desigualdades e a possibilidade dela ser um espaço de transformação e,
portanto, de esperança, em um conflito constante e necessário, na possibilidade de encontrar,
em diferentes contextos, a ética e a estética.
Considerando a perspectiva trazida por Bourdieu de que a escola faz parte de um
sistema de conservação das desigualdades, percebe-se esse traço em certos discursos nas
unidades escolares aonde tive a experiência de trabalhar a partir de 2012. Por cuidado ético,
não se identifica nominalmente as escolas e os profissionais de onde partiram as afirmações
que seguem e compõem as reflexões. Ao demonstrar o desejo de fazer um trabalho que de
fato contribuísse para a melhoria do processo ensino-aprendizagem, deparei-me com frases
como essas:
Menina, você é tão cheia de esperança que tenho até dó. Logo, logo você vai
ver que a melhor alternativa para nos mantermos vivas é seguir o protocolo: a
gente fazendo de conta que ensina e alunos fazem de conta que aprendem
(corpo docente de escolas F, Y e Z).

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Em outras atividades, buscando dialogar numa perspectiva crítica da realidade, no
sentido de contribuir na formação das pessoas para intervir no meio social de maneira mais
acurada:
Cuidado com o que você pode criar nas mentes desses adolescentes ao
discutir transparência no uso dos recursos públicos, poderá incitar a violência,
deixa este assunto pra lá (Vice-diretora da escola Y);
Dialogando sobre um projeto de vendas de produtos para arrecadar fundos para
realização de festa de encerramento de ciclo para os estudantes: o que vocês acham de
trabalharmos sobre cidadania, direitos e deveres, transparência com os recursos públicos?
Você quer pegar o projeto de vendas de guloseimas da Escola e
promover palestras, falar de ética, autonomia e responsabilidade
social? Você está duvidando de nossa honestidade? Você quer é
colocar a comunidade contra nós! (Diretora, coordenadora e uma
professora da escola Z).
Em poucos momentos vivi atividades coletivas do corpo docente, o que favoreciam as
reflexões em torno de nossas angústias, na busca por um trabalho eficiente, naquilo que é a
função primordial da escola. Foram ocorrendo mudanças como forma de controlar o tempo
pedagógico, o que “inviabilizou” este espaço. Questionando esses formatos em busca de
alternativas válidas para este objetivo, a resposta sempre desanimadora: - A Secretaria
observa e cobra o tempo pedagógico, você sabe que não dá pra nos reunir pois cada
professor tem o seu AC individua. E como então pensarmos o Projeto Político Pedagógico e
as determinações da Lei 10.639/03: - Oh, pró… pessoas como você sofrem muito, faça apenas
o que você pode fazer no seu cantinho da sala de aula” (coordenadora pedagógica).
Início do ano letivo, estava evidente um contexto de violência realizada dentro da
lógica do “olho por olho e dente por dente”, os/as estudantes estavam comovidos, sentindo-se
ameaçados, amedrontados, impotentes, indignados e eufóricos. Quando houve a possibilidade
de uma intervenção cuidadosa, ecoa uma voz no corredor: - Ei, ei, que barulho é este?!!
Senta, agora! fulano, ciclano e beltrano!! (Auxiliar administrativo masculino).
No diálogo entre os pares: - por que você não busca outros espaços de atuação, onde
as pessoas gostem de discutir educação, essas coisas?
Muitos foram os momentos em que me senti agredida e desrespeitada no ambiente
escolar por propor uma pedagogia mais libertadora, com frases direcionadas a mim sem muito
cuidado. Esses discursos não estão isolados, são ligados a processos históricos marcados pelo
ataque a uma educação verdadeiramente emancipatória, eivados por princípios capitalistas,
racistas e machistas. Sendo mulher, periférica e negra, não havia como não me sentir

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atravessada por essas questões no exercício profissional que, hoje, consigo perceber pistas
mais elucidatórias para as minhas angústias.
Foi no segundo semestre do ano de 2022, num dos movimentos sindicais de luta por
melhores condições de trabalho e renda, fui abordada por um colega estudioso em educação,
com o seguinte questionamento: “Carlinda, você é pedagoga, não é verdade? Mas você sabia
que nossa profissão não é regulamentada?”. Fiquei bastante incomodada com aquela
informação. De alguma maneira eu me sentia culpada. Como pude permitir que aquela
pergunta me soasse nova? Não sou eu também estudiosa do campo educacional? Esta
provocação me levou a redirecionar e sistematizar as angústias vividas como profissional.
Certamente eu não estou isolada nesta dimensão.
Na descoberta do quanto a profissão de pedagoga (o) está em completa indefinição
formal, inclusive passando por ajustes que tentam restringir a pedagogia ao fazer docente e,
pelo que se tem na maioria das escolas, considerando inclusive os discursos vigentes, um
fazer irreflexivo.
Demonstra, portanto, como tenho me construído enquanto mulher e negra na
apropriação de um saber que se apresentava para mim com faces sombreadas por discursos
promotores de deslocamentos de lugares, causando dúvidas, constrangimentos e
adoecimentos.
Palavras-chave: Neoliberalismo, Pedagogia, mulheres negras, identidade profissional,
regulamentação.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e a cultura. In:


NOGUEIRA, Mª Alice; CATANE, Afrânio (orgs). Escritos de Educação. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998, p. 39-64.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo.
Paz e Terra, 1997.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo. Cortez, 12ª ed. 2010.
Saberes Pedagógicos e Atividade Docente. PIMENTA, Selma Garrido (org.). 4ª edição - São Paulo:
Cortez, 2005.

SANTOS, Carlinda M. dos. A mulher negra no ensino superior: trajetórias e desafios. Dissertação -
Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade - UNEB, 2013.

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