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A questão de

gênero na
educação infantil

Profa. Daniela Aparecida Francisco

Profª. Daniela Aparecida Francisco


A questão de gênero na educação infantil – para começo de conversa1

1. Educação infantil e gênero

1.1 Algumas questões legais e normativas

As definições dos papéis do menino e da menina começam a ser delineados desde quando o
bebê está na barriga da mãe. A decoração do quarto, as roupas, brinquedos e demais acessórios
ganham cor e forma quando se descobre o sexo da criança. Geralmente, predominância de rosa para
meninas e azul para os meninos.

Conforme vão se desenvolvendo, as meninas ganham bonecas, fogões, panelas e outros


brinquedos relacionados ao cotidiano do lar, da casa, da função do que comumente acredita-se que
seja da mulher: cuidar. Já os meninos, crescem cercados por bola, armas, ferramentas, carros,
caminhões e outros objetos que os impulsionam à ação, ao movimento e àquilo que se espera de um
homem. Por meio desse universo infantil cultivado ao redor das crianças, estamos ensinando o lugar
que se espera que elas ocupem.

Podemos perceber que, desde antes mesmo de nascermos, vamos aprendendo a ser menino
ou a ser menina. As crianças são ensinadas como devem se comportar para se tornar “homem” ou
“mulher”. Há alguns anos, a discussão sobre o que se entende por feminino e por masculino tem se
revelado não algo natural, como alguns ainda acreditam, mas sim uma construção social. E como
construção social deve ser pensada para que seja destituída de preconceitos e estereótipos. No
espaço escolar, pensar sobre as questões de gênero envolve uma reflexão sobre as nossas práticas
pedagógicas.

1Daniela Aparecida Francisco é doutora em Literatura e Vida Social, com ênfase em Literatura infantil e juvenil pela UNESP
com a tese Muito além do gênero: a literatura juvenil de Stella Maris Rezende (2019). Mestre em Literatura infantil e juvenil
pela UFMS. Formada em pedagogia pela Unesp. Cursou magistério e atuou como professora do ensino fundamental. Foi
formadora regional no Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, modalidade educação infantil. É
coordenadora pedagógica na Educação Básica desde 2008 e desde 2012 na educação infantil. Atua também na formação
continuada e como docente no curso de Pedagogia da Fundação Educacional de Penápolis (FUNEPE).
Abordar e refletir sobre a questão de gênero na educação infantil é algo muito importante,
pois temos presenciado, dia a dia, muitas tentativas de silenciar, especialmente no campo da
educação, a discussão sobre a temática. No entanto, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, fixadas pela Resolução nº 05, de 17 de dezembro de 2009, publicada pelo Conselho
Nacional de Educação, em seu artigo 7 afirma que as propostas pedagógicas das instituições de
educação infantil devem cumprir sua função sociopolítica e pedagógica e no inciso V do mesmo
artigo continua: “construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com
a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de
dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa” (BRASIL,
2009).

A Resolução nº 05 aponta a necessidade de a educação infantil contribuir para a diminuição


das diferenças e hierarquias, incluindo as de gênero. Porém, a própria Base Nacional Comum
Curricular (2017), que é o documento nacional mais recente no campo da educação e que objetiva
organizar a educação brasileira, retirou os termos relacionados às questões de gênero de sua versão
final. Existiu e ainda existe, por trás dessa opção, um movimento conservador que representa
determinados segmentos da sociedade e que, de certa maneira, buscam neutralizar discussões que
envolvam as questões de gênero dentro dos espaços escolares.

Nossa sociedade possui uma relação com o corpo que é problemática, já que nos criamos
fundamentados em uma base religiosa que entende o corpo como fonte de pecado e não como o
nosso instrumento de ação sobre o mundo. Assim, a eliminação de algumas discussões na escola está
atrelada a uma neutralização da própria sexualidade. Porém, a escola é constituída por sujeitos, e
todos os sujeitos são constituídos por uma dimensão corporal e sexual. Como nós, enquanto escola,
podemos não tratar desse assunto? Como lidar com uma criança sem considerar seu corpo?

A sexualidade faz parte da constituição de todos os sujeitos. No entanto, quando nos


propomos a refletir sobre a sexualidade dentro do espaço escolar, estamos pensando na sexualidade
não no sentido de sexo, de ato sexual e sim a sexualidade no sentido de composição do ser humano.
A formação do sexo vai sendo delineada desde que cada ser humano é apenas um embrião.
Biologicamente nascemos com um sexo definido que influência diretamente na nossa constituição
corporal, social e cultural, pois, de acordo com Zaltzman (1999), o ser humano está relacionado à
sexualidade e às diferenças dos sexos desde o início de sua existência.

Quando pensamos especificamente nos objetivos da educação infantil, também a Resolução


nº 5, de 17 de dezembro de 2009, afirma que a educação infantil deve “[...] promover o
desenvolvimento integral das crianças” (BRASIL, 2009). Além disso, o artigo 9, inciso I, garante que as
práticas pedagógicas da Educação Infantil devem promover “[...] o conhecimento de si e do mundo
por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem
movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança”
(BRASIL, 2009). Se a educação infantil deve promover educação integral, como podemos retirar a
esfera do gênero e da sexualidade de dentro da escola, e conseguir alcançar esse objetivo?

Enquanto não incluirmos as discussões de gênero e de sexualidade dentro do currículo


escolar, enquanto existirem tentativas de silenciar essa parte da formação e do desenvolvimento do
ser humano, nós não vamos conseguir desenvolver o sujeito por completo. No entanto, para abordar
a temática é necessário termos clareza sobre o tema, diferenciar terminologias e compreender seus
significados. A seguir, apresentamos algumas definições dos termos que serão utilizados para que
possamos continuar as reflexões sobre as questões de gênero na educação infantil.

1.2 Mas afinal, o que é gênero?

Em muitos momentos, quando alguém ouve a palavra “gênero” já a associa à expressão


“ideologia de gênero”. O termo carrega um sentido pejorativo e geralmente está relacionado a uma
falsa ideia de que abordar questões de gênero, especialmente na escola, destruirá valores
tradicionais das famílias e da sociedade e influenciará os alunos e as alunas2 na escolha de seus
futuros parceiros ou parceiras sexuais.

Os termos “gênero” e “sexo” muitas vezes são utilizados como sinônimos. Sexo pode ser
definido como o sexo biológico, como homem e mulher. Assim, biologicamente existem dois sexos
predominantes – homem ou mulher. No entanto, existem também pessoas que são intersexuais. De

2
Sempre que possível, optamos por utilizar o feminino e o masculino, para utilizar a linguagem em um sentido mais
abrangente, pois de acordo com Grada Kilomba (2019), a língua tem uma dimensão política que pode criar, fixar e perpetuar
relações de poder e de violência. Cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade.
acordo com a médica Laura Audí (2020), “[...] a intersexualidade acontece quando há uma
discrepância entre o sexo genético, o da gônada e o dos genitais.” Já o gênero está relacionado aos
papeis que cada sexo desempenha na sociedade e as ideias que foram associadas a cada um desses
papeis. A mulher deve ser feminina e o homem masculino, de acordo com as regras tradicionais da
sociedade e da cultura. Mas, o que isso significa?

Na obra Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola (2016), Lins, Machado e
Escoura afirmam que gênero

[...] é um dispositivo cultural, constituído historicamente, que classifica e posiciona o mundo a


partir da relação entre o que se entende como feminino e masculino. É um operador que cria
sentido para as diferenças percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções, práticas
e coisas dentro de uma estrutura de poder (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016, p. 10).

A sociedade espera que as meninas e as mulheres sejam comportadas, que cuidem da casa e
da família, que sejam delicadas, calmas, que usem roupas “decentes” e que mantenham um padrão
de comportamento, ou seja, todas as mulheres que não se encaixam dentro desse padrão, possuem
sua feminilidade questionada. Já dos homens, espera-se que sejam fortes, que não chorem, que não
demonstrem sentimentos, que sejam provedores do lar, que se relacionem com muitas mulheres,
dentre outras ideias que remetem ao conceito de masculinidade. Resumidamente, há duas caixas de
gêneros – o masculino e o feminino –, e todas as pessoas são classificadas a partir dessas duas caixas.
Mas, e se alguém não se adequar a nenhuma delas? Ou, se o homem ou a mulher apresentarem
comportamentos que não estão relacionados ao que se espera para o seu gênero?

Essas questões e todas as consequências decorrentes delas é o que nos fazem perceber como
as classificações de gênero são limitadas e limitantes e como impõem, de alguma maneira, um
manual de conduta aos homens e às mulheres, desde o seu nascimento. Assim, surge a ideia de que
existem ações e atividades que são apenas dos meninos e outras que são apenas das meninas, como
“futebol é coisa de homem” e “brincar de casinha é coisa de mulher”. O que está por trás dessas
frases é o que se espera de homens e o que se espera das mulheres, ou seja, padrões de
comportamentos.

A escola, como um prolongamento da sociedade, é um espaço no qual todas essas relações


podem ser reproduzidas, caso não sejam questionadas. No entanto, como educadores e educadoras,
devemos nos ater ao fato de que continuar reproduzindo os estereótipos de gênero limita a vida das
crianças e dos adultos que um dia serão. Nossa função é refletir sobre o tema para evitar que, ao
menos dentro da escola, esses estereótipos não sejam reproduzidos, indiscriminadamente.

1.3 Azul e rosa: a questão de gênero presente na escola de educação infantil

Quando pensamos a questão de gênero dentro do espaço escolar da educação infantil é


comum observarmos pequenas atitudes no dia a dia que demonstram as concepções de sexo e
gênero de educadores e educadoras. Em muitas situações, aliás, na maioria delas, as turmas são
separadas sempre por critério de sexo: meninos de um lado e meninas de outro. Os brinquedos
também possuem orientação: alguns são apenas para as meninas e outros são apenas para os
meninos.

Além da fila, dos grupos e dos brinquedos, o rosa é a cor que representa as meninas e o azul é
a cor que representa os meninos. Há um padrão do que se espera do comportamento das meninas e
outro padrão dos meninos. Quando alguma criança foge a esse padrão, já surgem especulações até
mesmo sobre as suas futuras orientações sexuais. Em muitos casos, até as falas que são direcionadas
às crianças demonstram preconceitos de gênero, do tipo: “meninas não fazem isso”, “menino não
chora”, “isso é coisa de menino”, “meninas são mais calmas” etc.

Ao analisarmos as ações realizadas no dia a dia da educação infantil, é possível afirmar que
muitas delas reforçam os estereótipos de gênero, definindo papeis que os meninos e as meninas
devem cumprir, restringindo o modo de ser e de estar no mundo dessas crianças. De acordo com
Louro (2003), “currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos,
processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe
[...].” (LOURO, 2003, p. 64).

Pensar na questão de gênero é pensar a vida das crianças e de todas as pessoas. Abrir novas
possibilidades, tanto para meninas quanto para meninos. As crianças, desde a educação infantil, já
começam a serem divididas: “a menina vai brincar disso e menino vai brincar daquilo”. Conforme vão
crescendo, a sociedade continua a frisar a mesma divisão dos papeis. Meninos são racionais e
meninas sentimentais. Assim, delineiam-se até mesmo quais seriam as melhores profissões para cada
um dos sexos. Algumas profissões são relacionadas à mulher e outras ao homem. A própria atividade
docente é uma profissão que está relacionada às mulheres, pois historicamente reflete as questões
de gênero já que docência e maternidade são atribuídas à mulher.

A escola e consequentemente a educação, não é apenas um lugar no qual as crianças vão


para conhecer o mundo. É também o espaço no qual desenvolvem relações e afetos. É um espaço de
aprendizagem das mais diversas, do conhecimento científico e social, o lugar no qual as crianças
aprendem também a serem humanas, desenvolvem e aperfeiçoam a sua humanidade. A escola deve
ensinar cada um dos meninos e meninas a se valorizar, a entender que todas cabem no mundo, a
falar com o outro. A ampla luta social pela democratização, pela diminuição de todos os tipos de
desigualdades e valorização das diferenças passa pela escola, pela transformação das práticas
pedagógicas mais inclusivas e problematizadoras, pela mudança de qualidade das relações humanas.

Meninos e meninas devem ser vistos nas suas potencialidades e incentivados a se


desenvolverem realmente de maneira integral, com conhecimento de si, do outro e do mundo. E
como conhecer a si mesmo ou a si mesma sem compreender a dimensão corporal? Como se
desenvolver de maneira integral quando uma dimensão da sua constituição é negligenciada e até
mesmo negada ou desvalorizada por meio de práticas que estão a serviço da manutenção de um
sistema de exclusão? A escola, educadores e educadoras, devem ser agentes para a mudança, que
espalham valores humanos pela celebração do coletivo, pela interação. A missão da escola deve ser a
transformação social, a justiça social. E não existe justiça sem igualdade de condições de ser e de
estar na escola e no mundo.

A educação deve ser vista como uma oportunidade que todos e todas devem ter para se
desenvolverem. Mas, qual tipo de oportunidade estamos oferecendo às crianças da educação
infantil?

A escola é o lugar socialmente constituído no qual se espera que os alunos e as alunas


aprendam, se desenvolvam a partir do contato com o conhecimento constituído pela humanidade.
Como definimos anteriormente, gênero é um conceito que discute a construção dos papeis dos
meninos e das meninas dentro da cultura, da sociedade. Assim, como um conceito científico, deve
também ser inserido nos currículos das escolas. Não necessariamente como uma disciplina, mas
como uma temática que perpassa todos os âmbitos do conhecimento e dos espaços escolares. Então,
qual o problema real de discutirmos a questão de gênero dentro da escola?

A escola deve mostrar para a criança que existem muitas formas de ser homem, de ser mulher
e muitas possibilidades para ambos os sexos. Existem muitas diferenças entre as pessoas, entre os
seres humanos e cabe à escola oportunizar que as crianças, desde a educação infantil, possam
estabelecer relações de igualdade com todos e todas. A pergunta que devemos nos fazer novamente
é: por que impedir essas discussões? Além disso, como criar um ambiente acolhedor e democrático
na escola, no qual as relações de gênero sejam refletidas, problematizadas e não apenas
reproduzidas de maneira estereotipada?

2. Muito além do azul e rosa: as práticas pedagógicas na Educação Infantil

2.1 Mitos e verdades

A ideologia de gênero é um mito. Não existe uma escola ideológica tentando incutir nas
crianças como ser ou não ser mulher/homem. O que existe, e temos discutido até aqui, é a questão
de gênero. Marcia Tiburi (2019) afirma que muitas pessoas utilizam a palavra “gênero” com um
sentido perverso. De acordo com Tiburi (2019), muitos “[...] falam em “ideologia de gênero”, por
exemplo, embora o termo gênero sempre tenha sido o elemento para desmascarar essa ideologia de
gênero que é o patriarcado.” (TIBURI, 2019, p. 74). Para a estudiosa, o patriarcado é um movimento
ideológico que procura definir e marcar o papel de cada gênero na sociedade, com a supremacia do
gênero masculino.

Gênero é a forma como a sociedade estabelece as relações entre meninos e meninas, entre
homens e mulheres, entre masculino e feminino. No entanto, essas relações não são igualitárias, pois
dentro da relação de gênero há também uma relação hierárquica na qual os homens são
considerados superiores e consequentemente, as mulheres inferiores. Homens são a razão, a lógica,
a força. Mulheres são “o segundo sexo”, na expressão de Simone de Beauvoir, ou seja, o sexo frágil,
emotivo e menor. O que se espera das meninas e dos meninos é que se encaixem nessas
características, o tempo todo, por toda a vida. A docilidade da menina e a agilidade física do menino,
ou a calma da menina em contraposição ao temperamento explosivo do menino, o raciocínio lógico-
matemático desenvolvido no menino enquanto a menina tem aptidão para cuidar do outro. Esses e
outros tipos de comportamento poderão ser reforçados dentro da escola, caso não passem por um
processo de reflexão.

As relações de gênero estão na escola como estão na sociedade. Socialmente, o corpo da


mulher é tido como mais frágil e por isso, deve ocupar o espaço seguro do lar. Já o homem, forte,
evoluiu de caçador para provedor e é considerado o sexo forte, que pode frequentar todos os
espaços. No entanto, essas afirmações são todas de embasamento cultural e não natural, biológico,
ou seja, a maneira como enxergamos os homens e as mulheres relaciona-se ao que foi elaborado e
difundido culturalmente. Não se deve considerar essas ideias para estabelecer hierarquias, nas quais
as mulheres estão em posição de inferioridade frente ao sexo tido como dominante, o masculino.

Para que nós, educadores e educadoras, possamos contribuir com essas discussões e ensinar
gênero de outra maneira, é necessário e urgente, refletir de forma sistemática sobre o tema,
identificando os estereótipos e as práticas que os sustentam e os reproduzem. Devemos possibilitar
diferentes formas de ser homem e de ser mulher às crianças, sem encaixá-las em modelos pré-
estabelecidos e hierarquicamente valorizados. As diferenças entre os gêneros não devem ser tratadas
como desigualdades. A escola educa para as relações de gênero e a educação que será ofertada aos
meninos e às meninas deve ser problematizada e não apenas reprodutora.

No interior da escola, existem muitos sujeitos. E muitas diferenças. No entanto, muitas vezes
as diferenças são tratadas como desigualdades. Por exemplo: aquele menino que não quer se
envolver nos jogos de futebol ou aquela menina que não gosta de brincar apenas com as bonecas.
Ambos são olhados de maneira questionadora por professores, professoras, colegas de sala e demais
profissionais do espaço escolar, como se não se encaixassem, como se estivessem transgredindo uma
barreira imaginária. A escola, em muitas dessas situações, tenta impor um modelo de
comportamento a essas crianças tidas como “transgressoras” ou simplesmente fingem que não
percebem a exclusão que elas sofrem ao longo do percurso escolar.

Novamente ressaltamos que a escola, embora não possa mudar a sociedade de um dia para o
outro, tem grande poder sobre os indivíduos e é seu papel não reproduzir os preconceitos e
estereótipos existentes e a partir daí, contribuir para uma sociedade justa, igualitária e não
excludente. É nesse espaço que as crianças devem aprender a conhecer diferenças que existem fora
do espaço escolar e respeitá-las. Para isso, educadores e educadoras precisam estar preparados/as,
terem papel ativo e reflexivo, repensando e desconstruindo práticas tradicionais que não contribuem
com o projeto de uma sociedade democrática.

Há grande resistência por parte de um setor conservador da sociedade em relação à


problematização dos papeis de gênero e à própria educação sexual, pois esse grupo, por diversos
fatores, confunde a educação sexual com sexualização das crianças, temendo que valores da “família
tradicional” sejam perdidos e tentando, de todas as formas, impor um padrão de identidade de
gênero que na realidade nunca existiu historicamente. Esse movimento impacta na escola, que é
pressionada e olhada com maus olhos por esse setor conservador.

A escola tem responsabilidade social. É nela que a criança tem o primeiro contato com os
diferentes grupos sociais além da família. É no espaço escolar que existe a possibilidade de falar
sobre violências e injustiças que podem acometer as meninas e os meninos, um lugar onde eles e
elas podem se sentir acolhidos/acolhidas e protegidos/protegidas. Discutir a questão de gênero
promove justiça, igualdade, respeito, dignidade. Ressalta que somos sim diferentes, mas não
desiguais em direitos e deveres.

Como espaço socialmente elaborado para compartilhar o conhecimento, os agentes da escola


– educadores e educadoras –, devem estar em constante relação com o estudo, com a formação
continuada e devem se aprofundar para compreender as relações de gênero e como elas foram
delineadas historicamente é fundamental para compreender muitos dos preconceitos e estereótipos
de gênero que permanecem até hoje. A escola deve fundamentar as discussões sobre o tema e
pensar nas desigualdades de gênero presentes em diversas instâncias sociais:

A formação continuada de professoras/es, gestoras/es e toda a equipe técnica deve estar


voltada para a percepção das questões de gênero. Em se tratando de práticas naturalizadas
em nosso cotidiano, é importante que muita energia e esforço contínuo sejam despendido no
questionamento de nossas ações e preconceitos, visando construir uma escola mais
acolhedora. (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016, p. 75-76).

2.2 Relações de gênero no dia a dia da educação infantil

Mas, na educação infantil, como as relações de gênero se estabelecem? Antes do educador e


da educadora intervir e alterar sua prática pedagógica é importante refletir, elaborar e reelaborar
conceitos e até preconceitos sobre gênero. Desde que nascemos, a sociedade orienta como deve ser
e agir tanto o menino quanto a menina. E, nós, como membros sociais, muitas vezes reproduzimos
essas orientações para com nossos alunos e nossas alunas. Esperamos das crianças, de acordo com o
gênero, o uso de determinadas cores, roupas, brincadeiras e atitudes padronizadas como “homem
não chora” e “meninas são mais calmas”.

A cor rosa é predominantemente relacionada à menina e o azul, ao menino. Dentro da escola,


muitas vezes, as crianças pequenas já demonstram ter interiorizado essa relação. É papel da escola
estar atenta às falas e às preferências das crianças, refletindo sobre as cores e as suas relações,
descontruindo a ideia de que existe uma cor pré-determinada para um ou outro gênero. O educador
e a educadora devem tomar cuidado e não realizar também esse tipo de separação. Muitas vezes, é
ele ou ela quem separa os alunos e as alunas de acordo com a cor rosa ou azul, ofertando materiais
rosa para as meninas e azul para os meninos. Opte por cores diversas, sem padronizar na dualidade
do azul e do rosa.

Também é corriqueiro na rotina da educação infantil alguma criança reproduzir esse tipo de
fala: “rosa é coisa de menina” ou “azul é cor de menino”, por exemplo. Aproveite situações desse
tipo para problematizar junto à turma qual a real influência que a cor da roupa, do acessório, do
brinquedo ou de outro material verdadeiramente possui. Desconstrua coletivamente o
pertencimento de uma ou outra cor exclusivamente a um determinado gênero, afinal, não existe “cor
de menina” ou “cor de menino” e as crianças devem ser livres para realmente escolherem a cor que
mais gostam, de maneira natural e não socialmente construída.

As brincadeiras e brinquedos não devem ser definidos de acordo com o gênero de cada
criança. Por que a menina não poderia jogar futebol ou o menino não pode brincar com a boneca?
Meninos poderão ser pais e adultos autossuficientes como as meninas poderão ser mães e adultas
que cuidam de suas próprias casas. O que diferencia as crianças nisso além do preconceito social e da
ideia de que cuidar de filhos e da casa é coisa de mulher? E de onde surge a ideia de que se um
garoto fizer isso colocará em risco a sua “masculinidade”. Frases que são repetidas dia a dia e que
não possuem nenhum embasamento científico. Apenas preconceitos de gênero e estereótipos.
Lembremos de que o brincar e a interação são os eixos estruturantes da educação infantil e que o
brincar, de casinha ou de mecânico, estimulará a imaginação, a função simbólica tanto do menino
quanto da menina e não há restrição alguma nisso.
Elemento importante também e que deve receber a atenção do educador e da educadora são
os referentes às ações e atitudes que se espera de cada criança. Não devemos dizer frases que
tolham a liberdade de expressão de nenhuma criança, especialmente aquelas referentes aos meninos
que devem “engolir o choro”, já que “homem não chora”. Além disso, cobrar as meninas de
determinados comportamentos a partir da oposição desse comportamento com o comportamento
masculino: “ah, isso é coisa de menino”, “meninas não fazem isso”, “meninas são calmas”, “isso não
são modos de menina”, “desobedecer é coisa de menino” dentro outras frases que reforçam e
reproduzem os estereótipos. Ao dizer isso para uma criança, mesmo sem perceber, a escola está
educando a criança para seguir determinados padrões de gênero.

Materiais didáticos e pedagógicos podem reforçar ou não os estereótipos e padrões de


gênero. Imagens em livros didáticos e infantis que apresentam a mulher sempre servindo à família
enquanto o homem lê o jornal ou realiza outras atividades, por exemplo, reforçam a ideia da mulher
como aquela que deve servir à família enquanto o homem apenas provê o lar. Meninas passivas em
histórias, sempre salvas por meninos ativos e destemidos também colaboram para criar um
imaginário das mulheres frágeis que precisam ser salvas pelo homem forte. Animações e filmes
também devem ser selecionados de forma atenta, para que não reforcem essas ideias e o mito por
trás delas: “[...] Por intermédio das religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções,
do cinema, os mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades materiais.”
(BEAUVOIR, 1980, p. 306).

Ação também possível de ser realizada na escola é a observação e reflexão quanto à


linguagem, com atenção especial às piadas, às acusações, às fofocas e às demais situações que
podem constranger ou diminuir alguém. Frases do tipo “seja homem”, “mulherzinha”, “viadinho”
dentre outras reforçam a ideia de homem e de masculinidade em oposição às mulheres e ao
feminino. Na verdade, os gêneros são relacionais e não oposicionais, ou seja, não é possível abordar
o feminino sem o masculino. No entanto, feminino e masculino não devem ser categorias que se
opõem e até se excluem, como se qualquer característica do gênero feminino fosse impossível de ser
encontrada no gênero masculino. É esse tipo de atitude que transforma um menino que apresenta
sensibilidade em um “exemplar problemático do gênero”, ou seja, tido como alguém que não se
encaixa e assim, torna-se “mulherzinha” ou “viadinho”. Essas condutas devem ser combatidas:
Se pretendemos ultrapassar as questões e as caracterizações dicotomizadas, precisamos
reconhecer que muitas das observações – do senso comum ou provenientes de estudos e
pesquisas – se baseiam em concepções ou em teorias que supõe dois universos opostos: o
masculino e o feminino. (LOURO, 2003, p. 76).

A escola deve entender que não existe um padrão de comportamento para os meninos e as
meninas que seja considerado o ideal ou o melhor, cientificamente. Não devemos normatizar e
construir um comportamento padrão a partir do sexo biológico. À escola também cabe refletir sobre
as relações estabelecidas em seus espaços, promovendo a igualdade de direitos e oportunidades,
sem nenhum tipo de preconceito, inclusive de gênero, combatendo as hierarquias de certa forma,
normalizadas na sociedade.

Pensar a questão de gênero dentro da escola objetiva compreender como as relações se


estabeleceram historicamente de forma desequilibrada e que ainda existem muitas desigualdades
entre homens e mulheres na esfera doméstica e pública. Se compreendermos que as diferenças
estabelecidas geram as desigualdades e até mesmo violências, podemos educar os meninos e as
meninas para que percebam que essas relações não fazem parte do DNA de cada um, mas foram
construídas e também podem, e devem ser desnaturalizadas, modificadas e desconstruídas.

Estimular a discussão sobre gênero no espaço educacional é uma forma de contribuir para a
produção de novas organizações curriculares, novas práticas pedagógicas engajadas com a
valorização das subjetividades, reinventando o conceito de gênero no mundo contemporâneo. Como
agentes da escola, devemos fazer parte dessa mudança de paradigmas, reconhecendo a diversidade
como constitutiva da sociedade e consequentemente, da escola.

2.3 Para saber mais

Este texto apresenta, de maneira preliminar, elementos que nos ajudam a pensar a questão
de gênero dentro da escola e consequentemente, na sociedade. No entanto, há muito ainda para
pensar, refletir e desconstruir.

A seguir, sugestões de filmes e documentários que ajudam a aprofundar a discussão. Bom


trabalho!
Acorda Raimundo, acorda (1990): curta metragem que conta a história de um casal que acordou em
um mundo totalmente diferente, no qual as mulheres são o sexo dominante e o homem o sexo
dominado. Oferece a possibilidade de diversas reflexões sobre o que é natural e o que é social nas
relações de gênero. Direção: Alfredo Alves.

Thelma & Louise (1991): roadmovie que narra a história de duas amigas em diferentes situações a
partir de um crime acidental. Ao longo da trama, Thelma e Louise refletem sobre diferentes aspectos
das suas vidas e condição de mulher, em busca da emancipação. Direção de Ridley Scott.

Miss representation (2011): o documentário discute a maneira como a mulher é representada na


mídia, de forma objetificada. Além disso, aponta como isso reflete na falta de representação de
mulheres dentro da indústria do entretenimento e dentro dos espaços de poder público, como os
congressos. Direção: Jennifer Siebel Newsom.

O silêncio dos homens (2019): o documentário brasileiro que reflete como o machismo impacta na
formação e na vida de meninos e homens, que crescem cercados por pressões sociais, educados em
um modelo de comportamento no qual devem ignorar suas emoções e sentimentos, sem valorizar a
subjetividade e que tenta padronizar o comportamento tido como “masculino”. O documentário
ainda oferece possibilidades para romper com esses padrões de comportamento.

Repense o elogio (2018): o documentário apresenta as diferentes formas que são adotadas para
elogiar meninos e meninas e como esses elogios seguem lógicas referentes aos estereótipos de
gênero e acabam reforçando ideias questionáveis sobre o papel da mulher e do homem na
sociedade.

The mask you live in (2015): o documentário demonstra como a sociedade tem ensinado aos meninos
a serem “homens” e tem os adoecido, ensinando-os a reprimirem seus sentimentos, suas angústias,
suas lágrimas, numa diferenciação até excludente do que é “feminino” e “masculino”. Direção:
Jennifer Siebel Newsom.
Um crime entre nós (2019): documentário sobre o mercado de exploração sexual de crianças e
adolescentes no Brasil. JoutJout, Luciano Huck, Dráuzio Varela e Gail Dines investigam o fato e
refletem sobre como as ações machistas e patriarcais influenciam a continuidade dessa exploração.
Dirigido por Adriana Yañes.

3. Referências
AYUSO, Bárbara. Sou intersexual, não
hermafrodita.https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/17/estilo/1474075855_705641.html
BRASIL. Resolução nº 05, de 17 de dezembro de 2009. Conselho Nacional de Educação. Câmara da
Educação Básica. Disponível em:
http://www.seduc.ro.gov.br/portal/legislacao/RESCNE005_2009.pdf. Acesso em fev. 2021.
______. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF, 2017.
ESCOURA, Michele; MACHADO, Bernardo Fonseca; LINS, Beatriz. Diferentes, não desiguais: a questão
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KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó,
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LOURO. Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
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ZALTZMAN, Nathalie. Do sexo oposto. In Ceccarelli, P. (org.). Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta,
1999.

O material A questão de gênero na educação infantil, de Daniela Aparecida Francisco, está licenciado com uma
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As questões de gênero estão cada dia mais presentes
nos estudos e discussões dentro e fora do âmbito
escolar. A maneira como a sociedade constrói a imagem
do que é ser menina e do que é ser menino tem raízes
históricas e precisa ser questionada, de forma conjunta,
para que a educação não atue apenas como
reprodutora dos modelos e estereótipos existentes. A
escola, inclusive a modalidade da educação infantil,
pode atuar criticamente na sociedade, revendo os
papeis de gênero e as formas de sua permanência no
espaço escolar, pensando práticas e vivências que não
se restrinjam aos estereótipos. Pensar e discutir
questões de gênero na educação infantil auxiliará na
desconstrução de padrões e ideais de comportamento,
a partir da leitura e da ação na prática pedagógica.

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