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Ainda muito pequenos já começamos a lidar com as expectativas que a sociedade

deposita sobre cada um. Já na infância, entraremos em contato com uma lista de
predileções, afazeres e tarefas específica construídos socialmente como “coisa de
meninos” ou “de meninas”. Eles gostam de azul, de futebol e não choram. Elas
gostam de rosa, de bonecas e são comportadas.

Essas diferenciações, entretanto, não são naturais, mas socialmente e historicamente


construídas, a partir de padrões normativos do que é ser homem e o que é ser mulher.
“A nossa sociedade diferenciou mulheres e homens em uma prática social e, em
seguida, atribuiu maior valor às características masculinas. E quando você tem dentro
de uma diferença uma atribuição de maior e menor valor, gera-se a desigualdade”,
coloca Viviana Santiago, gerente técnica de gênero da Plan International Brasil.

Em entrevista cedida ao Centro de Referências em Educação Integral, a especialista


fala sobre a importância dos estudos de gênero para nos ajudar a entender que essa
desigualdade – que se manifesta na violência contra a mulher, nas diferenças salariais
e posições de liderança – não podem ser naturalizadas, mas o
contrário: desconstruídas.
E se falamos de desconstrução desses estereótipos desde a infância, não resta dúvidas
de que cabe à escola um papel fundamental nesse sentido, oferecendo às crianças uma
ampliação dos conhecimentos que lhes permita ver para além dos discursos
hegemônicos presentes na sociedade. Confira a seguir trechos da entrevista
com Viviana Santiago.

O conceito

O conceito de gênero é muito importante para a construção do que a gente


entende ser justiça social, porque ele trata do caráter fundamentalmente social das
diferenças que são atribuídas às mulheres e aos homens. De uma maneira geral, as
pessoas têm uma tendência a imaginar que as diferenças entre mulheres e homens, ou
sobre o que é ser mulher e o que é ser homem, são naturais. As pessoas imaginam que
é possível depositar uma série de expectativas em relação a esse comportamento ou às
atitudes desses indivíduos, baseados no sexo biologicamente definido, sendo comum
falas como “ah, mas isso é porque ela é mulher” ou “isso é porque ele é homem.

A nossa sociedade diferenciou mulheres e homens em uma prática social e, em


seguida, atribuiu maior valor às características masculinas. E quando você tem dentro
de uma diferença uma atribuição de maior e menor valor, gera-se a desigualdade. O
conceito de gênero vem para nos ajudar a entender que essa desigualdade, ou seja, os
homens estarem em posições superiores na sociedade, terem melhores salários,
posições de liderança, tudo isso que a gente considera natural por ser homem, é social,
é construído. Para que a gente equilibre essa balança isso precisa ser desconstruído,
porque se foi aprendido dessa forma pode ser aprendido de outra que possibilite às
mulheres desenvolverem seu pleno potencial e acessarem às oportunidades da mesma
maneira que os homens”.

Gênero, identidade de gênero e sexualidade

Os estudos de gênero nascem no bojo dos estudos feministas e apontam para


esse caráter social das diferenças entre mulheres e homens. Esses estudos avançam, a
partir da reivindicação das mulheres. Então o debate se amplia para a questão da
sexualidade, no qual se pauta a não existência de algo “natural”. Aí também se
evidencia que a sociedade também constrói seu discurso sobre sexo e sexualidade,
considerando uma forma das pessoas serem e se relacionarem – a heterossexual.

Agora, discutir gênero não quer dizer que você vai ter que abordar tudo isso,
necessariamente, em todas faixas etárias. Você pode centrar as discussões no caráter
social das diferenças. A confusão é que as pessoas acham que quando estamos falando
de gênero, estamos falando necessariamente de sexualidade. Esta é a maneira como a
gente expressa nossos afetos, nossas relações afetivas, a dimensão do amor e do
prazer. E, claro, não há só uma maneira de vivenciá-los.

Ideologia de gênero

Os estudos de gênero têm um poder de transformação social muito grande


porque ao mostrar que as desigualdades não são naturais, afirma que elas podem ser
revertidas. As mulheres ocupam os piores lugares nos índices sociais, como as
relacionadas a salário e renda, acesso à terra, entre outros.

Imagine, então, o poder de um pensamento que diz que isso pode e deve ser
modificado. Isso fere violentamente uma ordem patriarcal que beneficia uma porção
de gente. Essas pessoas se colocam contra a discussão de gênero e tratam de satanizar
o discurso. Elas não entendem como uma questão de direito das meninas e mulheres a
se desenvolverem plenamente. Distorcem a discussão e ainda dizem que estão
fazendo isso em nome da família, em nome de Deus.

Aí cabem outras perguntas: que família é essa que essas pessoas estão defendendo?
Existe um único modelo de família? Elas defendem que o único modelo de família é
homem, mulher e criança, excluindo as demais formações familiares. As pessoas têm
muito medo do feminismo, dos movimentos emancipatórios das mulheres, dessa nova
ordem social em que mulheres e homens possam viver em igualdade.

Gênero, meninas e meninos

O mais comum é ouvirmos falar do enfrentamento a violência contra as


mulheres na vida adulta, tornando a discussão bastante adultocêntrica. Não chegamos
nessa vida pessoas adultas e o fato é que antes mesmo do nascimento, o processo de
construção social do gênero já está instalado. Basta considerar as expectativas sobre
esse ser humano que vai vir, se é menino, se é menina, como vai ser… Ou seja, nem
nascemos e já se tem um modelo de que corresponderá ao ser homem ou mulher. O
problema é que ele se baseia em estereótipo. Já na primeira infância vamos dando
essas regras para as crianças, punindo ou presenteando quão bem ou mal elas aderem
aos modelos estereotipados que impedem que elas se desenvolvam plenamente.

Na vida das meninas isso é absurdamente danoso porque a sociedade patriarcal não só
vai dar menos oportunidade a elas, como menos valor a tudo que elas produzem. E
isso passa pelo controle do corpo e da sexualidade, com repercussão na vida adulta.

Gênero, meninos e meninas

O conceito de gênero é relacional, ou seja, não podemos estudá-lo


considerando apenas as mulheres, posto que ele nasce para explicar as relações sociais
entre homens e mulheres. Em relação à masculinidade, o gênero vai apontar que
também não é natural ser homem apenas dentro de características hegemônicas.

Desde muito cedo vamos educando os meninos a terem determinados tipos de


comportamentos, nós cobramos deles uma força, uma valentia, tolhemos que
expressem seus sentimentos e assumam seus medos, o que é extremamente prejudicial
ao seu desenvolvimento.

Não permitimos a esse menino dançar, pintar, cozinhar ou exercer qualquer outra
atividade que destoe do modelo masculino dominante. E, quando isso acontece,
dizemos que eles são afeminados, ou seja, que eles têm características femininas, e
que isso é ruim. É extremamente perverso.
Gênero na infância

Costumo dizer que a abordagem de gênero na vida adulta é curativa, ou seja, o


mal se instalou e a gente tenta reverter; na infância é preventiva, evita que esses
estereótipos sejam introjetados nessas crianças e que elas tenham condições plenas de
desenvolverem seus potenciais a partir desse enfoque de direitos que considera a sua
humanidade plena.

Igualdade de gênero e cotidiano

Quando a gente pensa na casa, na família, no lugar da pessoa que cuida,


percebemos nitidamente que as expectativas em torno do comportamento das crianças
estão atreladas aos papeis de gênero. Por exemplo, se na casa temos uma menina e um
menino, vamos ser mais tolerantes ao mau comportamento do menino, porque isso é
próprio dele. Já a menina provavelmente será punida se apresentar o mesmo tipo de
conduta.

Esse modelo estabelecido que temos do que é ser homem e ser mulher acaba
incidindo em tudo na vida de uma pessoa, desde seu modo de sentar, ao quanto se
come. Já reparou como ficamos surpresos quando uma mulher come bastante?
Por isso, a importância que, desde cedo, as crianças tenham acesso a outros
repertórios.

Se não corremos o risco dela passar a vida se culpando por não ser a menina do
vestido rosa, caso ela se reconheça fora dos discursos oficiais.

Gênero e família

Embora não seja a única responsável por essa condução, as famílias têm um
papel importante na promoção da igualdade de gênero. Quando a criança tem a
oportunidade de acessar outros discursos sobre o que é ser menino e ser menina, ela
consegue criar um autoconceito muito mais poderoso. A questão é que os discursos
hegemônicos estão em todos os lugares, na escola, na mídia, na própria família. Por
isso, a importância que essa atuação reflexiva seja constante.

De modo geral, um bom exercício para as famílias considerando a igualdade de


gênero é pensar sobre as expectativas que temos em relação a essas crianças: no que
esperamos que elas sejam boas, onde gostaríamos que elas atuassem. É preciso
questionar se não estamos levando estereótipos adiante. O ideal é que todos que
cuidam dessa criança operem nesse senso de justiça, possibilitando a reflexão, análise
e desconstrução das normas presentes na sociedade”.
Gênero na escola

Tudo o que a criança vivencia na escola tem valor muito maior do que outras
experiências e ela mesma reconhece isso quando diz: “mas a professora falou” ou “eu
li em um livro”.

A questão é que as escolas precisam assumir que já operam discursos de gênero. Do


jeito que está colocado parece que elas são neutras e que as pessoas que propõem a
discussão sobre gênero é que estão inventando de colocar isso em pauta, o que é
bastante falso.

Desafios da escola

A grande questão, a meu ver, está na formação de professores e professoras.


Tudo o que se relaciona à cidadania, diversidade e direitos humanos não está colocado
nesse processo. As universidades seguem desconectadas da realidade, com raríssimas
exceções.

Tratar de gênero é uma ação política e quando não se tem uma direção para a prática
pedagógica, apenas se reproduz as ideologias dominantes. É preciso debate e diálogo
para termos ações propositivas nas escolas nesse sentido”.

Gênero e desenvolvimento integral


“A organização da escola tal como é hoje trata de um pedaço de cada estudante. A
escola observa os meninos a partir de uma série de características depositadas sobre
eles, o corpo que pula, o raciocínio lógico; e as meninas a partir do corpo quieto, da
dança, da afinidade ao trabalho manual, da letra bonita.

Nem todos os meninos e meninas são só isso. Essa menina tem o direito de
desenvolver sua inteligência matemática, ou ser a garota que corre e pula. Já os
meninos também podem se desenvolver para a leitura, interpretação, para atividades
de cuidado.

Uma aposta no desenvolvimento integral articulado as questões de gênero


possibilitaria uma prática pedagógica para além dos estereótipos e dos papeis
tradicionais e permitiria o desenvolvimento de potenciais considerando as diversas
formas de ser menino e ser menina”.

Gênero nas políticas públicas


A retirada do termo gênero nas políticas, a meu ver, representou uma perda histórica
para os movimentos sociais, essencialmente para os grupos feministas e de mulheres
que tinham conseguido pautar a necessidade da igualdade de gênero já a partir da
escola para uma sociedade mais justa. No entanto, a luta não para.
Precisamos encontrar formas de dialogar sobre esse conteúdo, porque se de um lado
temos pessoas estudando profundamente gênero e suas relações, temos outras que
apenas reproduzem informações deturpadas a respeito.

Precisamos informar a maioria da população como funciona a elaboração das políticas


públicas e, como movimentos sociais, qualificar as nossas ações e começar a ocupar
os espaços legislativos, monitorando mais de perto a elaboração e a implementação
das leis.

Acredito que o caminho é o da qualificação, precisamos sair do lugar em que o outro


nos representa, no caso das eleições, e assumir uma democracia participativa visceral.

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