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Eliana Ayoub

Elaine Prodócimo
Guilherme do Val Toledo Prado
(Organizadores)

Coleção:
Formação Docente em Diálogo

Volume 4
PIBID-UNICAMP

Experiências e reflexões sobre a


formação docente
Algumas considerações sobre a difícil tarefa de se
tornar um professor contador de histórias
Ana Archangelo
Coordenadora de Área do subprojeto Pedagogia do PIBID-Unicamp
Faculdade de Educação
Aletéia Eleutério Alves Chevbotar
Colaboradora do subprojeto Pedagogia do PIBID-Unicamp

Introdução

É vasta a literatura que afirma a importância do brincar e da narrativa para


os processos de significação do existir humano, ou seja, para o desenvolvimento
do sujeito (WINNICOTT, 1975; BION, 1991; SAFRA, 2006; FERRO, 2005;
BENJAMIN, 2002). A escola, embora supostamente preocupada com o
desenvolvimento dos alunos, raramente reconhece tal importância, o que se
evidencia no cotidiano do ensino fundamental que, desde os primeiros anos,
submete-os a objetivos de aprendizagem e a rotinas organizadas em torno de
atividades pedagógicas excessivamente estruturadas e, não raras vezes, pouco
significativas. Em muitas ocasiões, o brincar e o narrar espontâneos são
confundidos com indisciplina e considerados indesejáveis, pouco contando a
importância vital de tais atividades para os pequenos.
Ao longo da última década, acompanhamos e investigamos alunos de
ensino fundamental I, com severas dificuldades de aprendizagem
(ARCHANGELO, 2007, 2010; ALVES, 2010) e identificamos forte correlação
entre tais dificuldades e a dificuldade para brincar e narrar. E não por acaso. Se
os processos de significação nascem e se consolidam por meio do brincar e do
narrar, é esperado que a aprendizagem dependa dessas atividades e com elas
contribua, posto ser ela mesma um processo de significação.
A inquietação provocada pela constatação de que “crianças que não
aprendem” são, geralmente, as mesmas que “não conseguem brincar ou
construir uma narrativa própria” levou-nos a conceber o PIBID-Pedagogia no
contexto do PIBID-Unicamp, iniciado em 2011. A finalidade foi a de promover
espaços para o brincar e para o narrar na rotina escolar, de modo a contemplar
todas as crianças e, em especial, aquelas que “não aprendiam”, “não brincavam”,
e “não narravam”.
Nos primeiros dois anos, foi introduzido o “momento para o brincar” 1, em
dez salas de 1º a 5º ano de uma escola pública de Campinas. Em 2013, a
“contação” veio, progressivamente, somar-se ao “brincar”. Atualmente, são onze
turmas de 1º a 5º anos dessa mesma escola que, uma vez por semana, se
aproveitam dos baús de brinquedos, dos livros de histórias infantis, do espaço
físico especialmente preparado e, fundamentalmente, da presença de adultos
significativos – como os bolsistas e as professoras de classe –, para usufruir
desse espaço diferenciado de fruição, interação, imaginação, manifestação e
elaboração de conflitos e de criação de um existir pleno de sentido.
Dia a dia, as crianças nos dão provas de que essas oportunidades são
vitais para elas. O espaço físico, o tempo, os objetos e a presença convertem-
se em experiência de viver, em possibilidade de expansão das possibilidades de
ser e de estar no mundo (VILLELA & ARCHANGELO, 2013) e,
consequentemente, de aprender. O presente artigo tem, contudo, a finalidade
modesta de refletir apenas sobre a necessária formação do bolsista PIBID, futuro
educador, para que a experiência de contação se dê em sua máxima potência.
O que chamamos de “contação” no projeto envolve três etapas: a
contação da história propriamente dita – que pode ser lida ou contada de
memória –, a conversa após a história e a atividade escrita.
Assim como ocorre com o professor na escola, os bolsistas planejam
antecipadamente as atividades e avaliam o seu desenvolvimento em sala de
aula. A cada encontro com as turmas, os bolsistas elaboram um relatório com a
descrição pormenorizada das atividades, das reações das crianças, das
conversas que a história evocou, e de como essas foram conduzidas pelos
bolsistas. Em reuniões semanais, as atividades planejadas e os relatórios são
discutidos, assim como textos de literatura especializada. Eventualmente, uma
das coordenadoras do projeto acompanha diretamente a atividade de contação.
Uma das turmas é acompanhada sistematicamente.
O acompanhamento mediante discussão dos relatórios e observação das
atividades de contação revelou que poucos se sentiam confortáveis diante do
desafio de contar e dar vida a uma história. Entre os bolsistas, em função da

1
Sobre essa etapa do projeto, ver Capítulo 2 (“Contribuições de uma área para
‘o brincar’ em salas de aula do ensino fundamental”) do Volume 2 desta coleção.
literatura pesquisada, havia, desde o início, a convicção de que tal atividade
exigiria estudo e preparo. Todavia, faltava a compreensão de que tão ou mais
importante do que isso, era a disponibilidade interna para o envolvimento
emocional com a história e as personagens, com a ilustração, com a técnica de
contação e, fundamentalmente, com as surpresas que o encontro com as
crianças trazia.
Percebemos que a falta de tal disponibilidade interna prejudicava a
interação do contador tanto com a história, quanto com a conversa que se seguia
à contação. As atividades planejadas seguiam uma lógica repetitiva, pouco
buscando na essência da história ou no impacto dela sobre as crianças e sobre
o contador. Somado a isso – ou como decorrência disso – as fantasias
envolvidas na história ou evocadas por ela entre as crianças acabavam, na
melhor das hipóteses, ignoradas, ou, na pior, utilizadas com a finalidade de
moralização. Ao moralizar o desfecho das histórias, muitas vezes era atribuída
ao texto uma conotação moral que o texto, na realidade, não possuía.
Portanto, coube ao processo de formação dos bolsistas o enfrentamento
dessas dificuldades e já podemos perceber mudanças significativas na
condução das atividades. Devido à relevância da narrativa na vida de cada um
de nós e, em especial na vida do aluno, acreditamos que o conhecimento
produzido no processo vivido no interior do PIBID-Pedagogia pode vir a ser útil,
não apenas internamente, mas também para professores que se aventuram ou
que queiram se aventurar nessa tarefa de contar histórias para os seus alunos.

A importância das histórias para o desenvolvimento emocional das


crianças

No campo pedagógico, a discussão sobre as histórias infantis e, em


especial, sobre a Literatura Infantil, demanda ao menos dois enfoques: um que
abarca os aspectos pedagógicos do trabalho com a Literatura Infantil em sala de
aula e outro que envolve a importância do texto literário para o desenvolvimento
das crianças, sobretudo em relação à sua condição emocional.
Concordamos que o texto literário pode auxiliar o professor na tarefa de
construção da linguagem oral e escrita com seus alunos, pensando nos aspectos
estruturais da narrativa, como tipologia textual. A leitura e a escrita a partir do
texto literário podem tornar essa tarefa mais envolvente e significativa para os
alunos. Apesar de essa vantagem parecer clara, muitas vezes encontramos, por
parte da escola, uma atitude estritamente escolarizante frente ao trabalho com
Literatura Infantil. Isso significa evidenciar apenas aspectos gramaticais e
estruturais do texto, distanciando os alunos de uma compreensão semântica e
subjetiva daquilo que leem. Há que se considerar não ser essa a única nem
tampouco a principal função do texto literário.
A escola, preocupada com o desenvolvimento da linguagem oral e escrita,
acaba por ignorar em suas práticas diárias a importância que as histórias infantis
têm para o desenvolvimento emocional das crianças. Disso resulta um
esvaziamento do texto literário, colocando a perder sua qualidade subjetiva e
sua condição para tratar, no campo da fantasia, de temas fundamentais da
existência humana.
As histórias infantis tratam em seu enredo de temas universais,
experiências e emoções pelas quais todos passamos ao longo da vida. Essas
experiências são abordadas de forma tão atraente e fantasiosa, que evocam na
criança a possibilidade de reviver a sua própria história, de adentrar seus
conflitos e medos sem grandes sobressaltos e, sobretudo, contando com as
possibilidades que a fantasia e a criatividade oferecem para esse enfrentamento
e, eventualmente, para a sua solução.
Bettelheim (1980) ressalta que as histórias comunicam à criança, que é
inevitável uma luta contra as dificuldades graves da vida, mas que, apesar disso,
se confrontarmos com coragem as opressões inesperadas, será possível
ultrapassar os obstáculos e nos mantermos vitoriosos ao final de tudo. As
histórias trazem em seu enredo, de forma clara e direta, um dilema existencial.
Permitem à criança compreender o problema em sua essência e, acima
de tudo, oferecem sugestões simbólicas para que ela lide com tal dilema e
encontre possíveis soluções de enfrentamento.
Por meio da fantasia, os dilemas dos personagens, a luta entre o bem e o
mal representam para a criança uma possibilidade de vivenciar seus próprios
medos e decidir com segurança entre suas partes “boas” e “más”.
Esse enredo, que acaba sempre com o final feliz, sugere para os
pequenos que, assim como no caso dos personagens, seus conflitos serão
resolvidos e que, desse modo, poderão aguardar, também na vida, o seu “final
feliz”. Do ponto de vista psíquico, essa possibilidade de superação é fundamental
para o desenvolvimento emocional da criança e para a compreensão de que
“nem tudo está perdido”.
As histórias infantis conseguem representar com harmonia a forma como
a criança sente e experimenta o mundo, com todos os seus dissabores e
possibilidades de superação. De acordo com Bettelheim (1980), é por esse
motivo que o consolo que as histórias oferecem à criança é mais efetivo do que
o que o adulto pode oferecer a ela. Isso ocorre porque o adulto intervém a partir
do campo racional ou da realidade, enquanto a história fala à criança por meio
de um mundo de fantasia que combina perfeitamente bem com o momento que
ela vivencia.
Ao ouvir uma história, a criança é capaz de se transportar para ela e viver
os conflitos presentes no texto, junto com os personagens. Consegue projetar
no vilão as suas ansiedades, livrando-se da raiva e do ódio sentidos em
situações cotidianas. Revive, em consonância com a história, situações de
rejeição e abandono que experimenta internamente – ainda que isso não ocorra
objetivamente em sua vida. E pode, também, alegrar-se, quando o mal é
destruído e o seu personagem preferido “acaba bem” e feliz.
Ao tratar dessa possibilidade de enfrentamento das dificuldades que a
história oferece, Bettelheim (1980) refere-se mais especificamente aos contos
de fadas. Porém, muitas histórias infantis contemporâneas também permitem
essa mesma compreensão do texto. Assim, ao tratarmos de histórias infantis
aqui, não estamos tratando apenas do Conto de Fada, mas de Literatura Infantil,
de modo geral.
Considerando os conteúdos psíquicos que a história apresenta, Safra
(2005) ressalta que a própria estrutura do texto já é útil para a resolução de
conflitos internos. Isso porque a organização da história em começo, meio e fim
indica ao leitor as etapas da vida e, ainda, que cada situação difícil que
enfrentamos ao longo dela, por pior que pareça, pode ser confrontada e
superada.
Em outras palavras, que tudo o que vivemos, por mais difícil que pareça
no momento, tem começo, meio e fim. Para Safra (2005), contar e ouvir histórias
têm uma função terapêutica, pois a criança supera dissociações do self tentando
comunicar as suas angústias a alguém. A escuta de histórias é, segundo o autor,
benéfica em si mesma, visto que nela é dada à criança a possibilidade de
transformar suas experiências em elementos toleráveis e possíveis de serem
vivenciados no brincar, no desenho ou no narrar, por exemplo.

A história infantil como instrumento para a construção de um espaço de


comunicação emocional em sala de aula

Quando o adulto se dispõe a contar histórias para a criança, de certo


modo autoriza-a a fantasiar, indicando que o mundo mágico, de fantasia e
imaginação é permitido e pode ser vivido com segurança (BETTELHEIM, 1980).
Ao ler um livro ou contar de memória uma história, o adulto demonstra que
também tem interesse sobre aquele texto e, sobretudo, que compreende a sua
importância e o seu significado para a criança. E essa leitura, por si só, dispensa
explicações por parte do contador.
Bettelheim (1980, p.27) afirma que

É sempre invasor interpretar os pensamentos inconscientes de


uma pessoa, tornar consciente o que ela deseja manter pré-
consciente, e isto é especialmente verdade no caso da criança.
É exatamente tão importante para o bem-estar da criança, sentir
que seus pais compartilham suas emoções, divertindo-se com o
mesmo conto de fadas, quanto seu sentimento de que seus
pensamentos interiores não são conhecidos por eles até que se
decida revelá-los.

O autor ainda ressalta que o encantamento da criança pelo conto


depende, em grande medida, do fato de ela não saber o porquê de se sentir
maravilhada.
Para que esse momento seja de fato benéfico, é preciso que o contador
escolha boas histórias. Isso implica, num primeiro momento, selecionar textos
que ofereçam essa possibilidade imaginativa. Não são boas opções para esse
momento os livros paradidáticos – que ensinam conteúdos escolares ou
abordam temas transversais a partir de uma história –, histórias moralizadoras e
livros cuja história apresente um enredo deficiente, do ponto de vista da estrutura
da narrativa (começo, meio e fim), ou com falta de coerência e de coesão.
Safra (2005, p.48) ressalta
[...] que para que a história seja efetivamente útil ela deve conter
a angústia básica da criança, suas organizações defensivas, o
tipo de relação objetal e um personagem que funcione como um
objeto compreensivo, que ajude na integração do self.

Essa angústia básica da criança relaciona-se diretamente ao tema


principal da história. Por tal motivo, a escolha de uma boa história é o primeiro
passo para o sucesso da contação. Num primeiro momento, o contador precisa
levar em consideração a necessidade de que a história possibilite à criança
estabelecer relações com sua própria vida. Para isso, o enredo do texto precisa
retratar emoções provenientes das relações humanas, como as tensões
familiares entre pais e filhos, os sentimentos de rejeição, de solidão, de
abandono, de inveja, de ódio, de amor, de acolhimento. (ALVES, 2010)
Entretanto, a boa escolha pode ser desperdiçada, caso o contador não
esteja emocionalmente receptivo à história, às angústias nela presentes e às
peripécias e agruras do personagem. Uma boa história também pode se perder
se o contador não puder acolher os sentimentos que ela evoca na criança.
Embora o nome não faça parecer, o contador deve não apenas saber
escolher e contar uma boa história. Deve também saber ocupar o lugar da
escuta, daquele que facilita a construção de narrativas por parte dos ouvintes ou
mesmo que acolhe silenciosamente o que a criança sente. Nesse segundo caso,
o adulto terá parte fundamental no desenvolvimento da criança. Não só
compreenderá as suas necessidades, como estará ao seu lado para o que for
preciso. A criança se sentirá acolhida, e não julgada, por seus erros e medos.
Essa é uma consideração importante, pois, quando falamos de Literatura
Infantil, não envolvemos histórias com intenções morais. Estamos tratando de
um texto aberto que será completado e ganhará sentido por meio das
interpretações do ouvinte, e não das daquele que conta. Isso garante a
importância da história pelo próprio texto e dispensa uma explicação por parte
do contador.
Muitas vezes, especialmente na escola, uma narrativa é acompanhada de
um comentário moralista, de um ensinamento ou de um juízo de valor que, em
geral, é útil apenas do ponto de vista de quem conta, e não da criança que ouve.
Além disso, ainda que o adulto interprete corretamente o significado que aquele
conto tem para a criança, é preciso que se abstenha de manifestar abertamente
tal interpretação, para que a história seja de fato valiosa para o aluno.
Portanto, pode parecer contraditório propor que, após a contação da
história em sala de aula, sejam realizadas uma conversa e uma atividade escrita
com as crianças. Entretanto, em nenhuma das atividades existe a pretensão de
moralização ou explicação do significado do conto para o ouvinte. Pretende-se,
ao contrário, criar oportunidades para que o sentido interior que o conto possa
ter despertado na criança encontre espaço de ressonância, acolhimento,
legitimação e aprofundamento. Tal sentido não precisa necessariamente ser
formulado verbalmente ou revelado à criança, mas pode sê-lo, por razões já
abordadas. No entanto, pode vir a fazer parte da conversa se e quando, por
exemplo, a criança anseia pela nomeação ou verbalização de tais experiências,
mas depende do adulto para fazê-lo.
Para que essa escolha aconteça, o contador precisa ter a convicção de
que ler para a criança já oferece a ela uma oportunidade ímpar de contato com
seu mundo interno. Ouvir uma história, pura e simplesmente, já tem um
significado emocional e afetivo relevante para o desenvolvimento infantil.
Conversar com as crianças após esse momento mágico, só tem sentido
se o contador estiver aberto ao encantamento do momento, às fadas e bruxas
que habitam o mundo interior, atento ao que diz e, ainda, livre de ensinamentos
e padrões morais. Durante a conversa, o contador precisa estar disponível para
acolher os interesses e necessidades da criança. Precisa desenvolver um olhar
atento para aquilo que a criança sente e o que necessita, uma escuta qualificada
para identificar elementos conflitivos e angústias intoleráveis que possam ser
mobilizadas, de modo a ajudá-la a confrontar com tranquilidade as suas
ansiedades e frustrações.
Conversar com a criança após a história, portanto, pode contribuir para a
compreensão dos seus sentimentos e para encorajá-la a enfrentá-los. A
conversa auxilia também na construção de uma narrativa por parte da criança.
A capacidade de narrar está em estreita dependência da disponibilidade
de um “outro” interessado e capaz de legitimar uma experiência pessoal que se
desenrola no decorrer de um tempo e espaço. A criança vivencia situações
trágicas e insuportáveis – reais e imaginárias – que precisam ser processadas
mentalmente. Em grande parte das vezes, tal processamento depende da
possibilidade de compartilhar tais situações e de transformá-las em palavras. O
adulto, ao conversar sobre a história, pode emprestar à criança um modelo de
narrativa, um modelo de força psíquica que reconhece a dor humana, que a
tolera e dá conta de incorporá-la à própria história. Em outras palavras, o adulto
pode mostrar, didática e emocionalmente, como podemos construir a nossa
própria história a partir da história das personagens (ALVES, 2010).
A conversa não deve ser invasiva. Por meio de perguntas sobre o que
aconteceu na história, sobre que parte do texto as crianças gostaram mais ou
menos ou, ainda, com uma brincadeira de faz de conta, propondo que a crianças
ocupem o lugar dos personagens, é possível auxiliá-las na construção da sua
própria narrativa.
Ao mesmo tempo que aprofundamos o tema trazido pela contação,
procurando não impor um único significado, uma única interpretação à criança,
é fundamental que a conversa não seja superficial. O adulto precisa indicar à
criança que aqueles assuntos são importantes, e não tolos ou dispensáveis. Da
mesma forma que contar uma história autoriza a criança a fantasiar e a
identificar-se com os personagens, valorizar o momento da conversa encoraja a
criança a pensar sobre si mesma, a construir uma memória sobre sua história e,
consequentemente, uma narrativa própria.
Se o adulto assume uma postura moralizadora, ou se ele mesmo se
mantém afastado das ansiedades que a história evoca na criança ou em si
mesmo, de certa forma, comunica a ela que “é melhor não pensar nessas coisas”
ou que “seus conflitos não têm solução”.
A receptividade do contador às necessidades e interesses das crianças
às histórias contadas ajudará na escolha de novas histórias, como também num
bom aproveitamento do texto, tanto na conversa como na atividade. Ao longo
das contações, as crianças, por meio de gestos, pequenas narrativas,
brincadeiras ou desenhos, comunicam ao contador aquilo que para elas é mais
valioso. Essa comunicação emocional só será possível se o contador mostrar-
se disponível e acolhedor.
Safra (2005), referindo-se ao uso das histórias em situação terapêutica,
afirma que, à medida que esse processo continua, são revelados a cada sessão
os pontos de angústias da criança, os quais podem ser identificados por meio
dos desenhos que se repetem, da elaboração dos rabiscos de alguns desenhos
em relação a outros, em gestos comuns que acompanham os encontros, e em
outras formas de expressões não verbais.
Esse relato clínico do autor também é válido em situação escolar. Ao
longo do trabalho com contação, é possível notar que uma frequência de ações
específicas da criança indica, de certo modo, aquilo que é mais valioso para ela
ou, talvez, aquilo que ela não consegue resolver sozinha.

O professor/contador e sua capacidade para tolerar ansiedades das


crianças

Como vimos aqui, contar histórias em sala de aula, em especial as


histórias literárias, envolve, além de um planejamento antecipado do contador
para selecionar um bom texto, a organização de atividades significativas que vão
ocorrer depois da contação. Para ilustrar como essa atividade pode ser
desenvolvida positivamente, construindo um momento valioso e útil para a
criança do ponto de vista emocional e pedagógico, relataremos um momento de
contação que ocorreu numa sala de 4º ano, acompanhada por uma bolsista
PIBID.
Para escolher a história, consideramos uma questão que sempre surgia
entre as crianças, o preconceito, em geral, com relação à cor da pele.
Elegemos “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado (2004), para
contar às crianças. Mais uma vez, vale ressaltar que o nosso objetivo não era
tratar o preconceito, recorrendo apenas à racionalização das questões morais,
concluindo ao final sobre o certo ou errado, mas oferecer um espaço para as
crianças se identificarem com a história, com os dilemas e o sofrimento
envolvidos, fazendo emergir a própria condição de cada um e do grupo.
Na história mencionada, um coelho de pelo bem branquinho se mostra
apaixonado por uma menina negra que tem sempre um laço de fita em sua
cabeça. No texto, o coelho se refere à Menina como “menina bonita do laço de
fita” e passa a história toda numa busca para descobrir o segredo para a menina
ser “tão pretinha”. O termo “pretinha”, em geral, é o primeiro motivo de discussão
entre as crianças, independentemente da intervenção do adulto.
Criamos um roteiro para a conversa que previa fazer um levantamento
dos trechos mais importantes da história na visão das crianças e, ainda, falar
sobre como nos sentimos com relação à nossa aparência física, como é bom ser
elogiada e admirada como acontecia com a personagem. Também
pretendíamos discutir sobre a insatisfação do coelho, que queria ser “pretinho”
como a menina. Depois da conversa, havíamos planejado que as crianças se
admirassem em um pequeno espelho e dissessem aquilo que gostam ou não
nelas mesmas. Também poderiam dizer o que mais gostam no colega. O fato é
que logo de início a conversa tomou um rumo diferente do que havíamos
planejado. Assim que iniciamos a conversa, após a leitura, as crianças
começaram a responder às questões com evidente desinteresse.
Era possível perceber que não estavam envolvidas, pois quando
perguntávamos algo sobre a história, respondiam em coro “sim” ou “não”. Foi
preciso interromper e conversar com elas sobre esse jeito de responder.
Colocamos que naquele momento não era hora de responderem todos juntos, já
que as perguntas exigiam que cada um colocasse o que pensava. Destacamos,
também, que não era preciso que todos falassem, mas era preciso falar de
verdade sobre o que sentiam.
Essa intervenção já indica logo de início que vamos falar sobre algo
importante, que valorizamos os sentimentos que a história evoca na criança e
que respeitamos a dificuldade momentânea de expressão. Do ponto de vista
escolar, é comum que, após a leitura de uma história, sejam formuladas
questões normalmente voltadas à compreensão do texto pelas crianças.
Dentro da nossa proposta, a compreensão do texto é também importante,
mas ficamos ainda mais envolvidos com os sentimentos que o texto evoca nas
crianças e com a importância do texto para o desenvolvimento emocional infantil.
Responder de forma mecânica e coletiva às questões que colocávamos pode
indicar tanto uma fuga das crianças em relação a temas que lhes causam
sofrimento, quanto a percepção, por parte delas, de que na escola não há espaço
de acolhimento para as angústias reais que tais temas evocam, sendo a
preocupação central do professor a necessidade de realização da tarefa, da
“lição”, como as próprias crianças dizem.
A partir da nossa intervenção, houve um pequeno silêncio e logo em
seguida começaram a dizer um a um o que pensavam da história. Todos queriam
falar. As coisas caminhavam enquanto falávamos dos elogios, do que
gostávamos em nós mesmos e em nossos colegas. Até colocarmos que, muitas
vezes, as coisas não vão tão bem assim. Às vezes, escutávamos elogios, mas,
às vezes, também ouvíamos coisas de que não gostávamos. Nesse momento,
duas crianças se destacaram: um menino e uma menina que chamaremos nesse
texto de Paulo e Larissa. Utilizaremos os termos utilizados pelas próprias
crianças para relatar parte do que aconteceu no dia.
Paulo relatou que os colegas dizem que ele é “preto” porque “caiu na
bosta”. Teve que repetir duas ou três vezes, pois não era possível compreender
o que dizia em função do tom de voz bastante baixo. Após essa fala, Paulo
rapidamente começou a sorrir e a fazer brincadeiras com os colegas ao lado.
Outras crianças se manifestaram incomodadas, dizendo que ele também
colocava apelidos nos colegas. O relato dos colegas serviu como pretexto para
que Paulo reagisse com mais brincadeiras, como se não tivesse dito nada tão
importante. Rindo, mais uma vez relatou algo que não foi possível compreender.
Após solicitarmos que repetisse, justificou de forma bastante confusa que os
amigos também colocam apelidos nele e por isso revidava.
É importante indicar para a criança o quanto compreendemos sua
condição e que estamos de fato preocupados com ela. Os risos e as brincadeiras
quando tocamos em um assunto que pode trazer sofrimento à criança podem
indicar uma fuga da conversa, ou uma fuga do que ela de fato sente ou pensa.
Nesse caso, o contador precisa ajudar a criança a enfrentar suas
dificuldades e lidar com suas emoções. Isso contribui para um encontro com “a
verdade da experiência”, como observa Bion (1991).
O momento da conversa exige atenção do contador e condutor da
discussão. Isso porque, conforme afirma François (2009), a narrativa das
crianças tem características diferentes da narrativa do adulto. Para o autor,
quando se trata de crianças é comum que seus relatos sejam tomados por falas
fragmentadas e aparentemente descontextualizadas. Em uma situação inicial de
construção da narrativa, essas características se devem à dificuldade da criança
de organizar seu pensamento e manifestá-lo de forma organizada.
Além dos aspectos destacados por François (2009), o trabalho de
pesquisa de Alves (2010) evidencia que, quando as crianças narram algo sobre
si mesmas, durante a conversa motivada pela história, essa narrativa
normalmente ocorre em tom de voz baixo, com falas aparentemente sem sentido
e de difícil compreensão. Isso acontece porque, nesse momento, a criança está
tentando converter em palavras algo que lhe traz um sofrimento íntimo e
particular.
Diante disso, conversamos com o grupo que aquela situação não era
engraçada. Ressaltamos que todos nós ficamos tristes e muito chateados
quando alguém coloca um apelido de que não gostamos, por causa de uma
característica física, por uma preferência ou por uma dificuldade da nossa parte
em fazer algo. Aos poucos, as crianças foram entendendo que estávamos
tratando com seriedade a questão, e até mesmo o Paulo mostrou-se um tanto
envergonhado diante da intervenção. Conversamos sobre esse e outros relatos
que apareceram. Tivemos que suspender a atividade com o espelho em virtude
de o tempo ter sido tomado por relatos de insatisfação e sofrimento das crianças.
A suspensão de uma atividade previamente planejada pode e deve
ocorrer. Sempre que o contador perceber que as crianças apresentam interesses
e necessidades cujo sentido é vital para elas e com o qual a atividade narrativa
está em profunda conexão, é preciso encorajar o processo que ali se desenrola.
Isso porque são esses os momentos preciosos em que a capacidade narrativa
cumpre seu papel primordial de dar forma e comunicabilidade à existência,
enriquecendo a própria existência e sendo enriquecida por ela.
Naquele momento, era mais importante permitir que as crianças falassem
sobre algo que as incomodava do que nos preocuparmos em manter um
planejamento a todo custo. Iniciamos a nossa conversa procurando demonstrar
que estávamos preocupados com elas, com seus interesses e necessidades,
que sabíamos que estavam falando de algo triste e doloroso para todos. Não
fazia sentido interromper esse momento para cumprir um planejamento. Essa
percepção faz parte de uma disponibilidade do contador para atender às
necessidades das crianças, característica fundamental na tarefa de contar. Mas,
além disso, exige que o contador seja capaz de entrar em contato com o
sofrimento presente nas histórias confusas, nas “brincadeirinhas de mau gosto”
e no silêncio duro de Paulo e das demais crianças. Muitas são as ocasiões em
que o professor retoma a rota da atividade planejada ou por entender que tais
“brincadeirinhas” acontecem por desinteresse ou bagunça, ou por não tolerar a
ansiedade que circula entre os membros do grupo, ele incluído.
Voltando à situação de sala, a intervenção do contador deu apoio e
segurança para que Larissa também relatasse o que a incomodava. De acordo
com a menina, os colegas sempre a chamam de “menina homem”, por causa do
seu comportamento. Larissa destacou que fica muito chateada e que não gosta
de ser chamada assim.
No momento da atividade escrita, propusemos que as crianças
desenhassem e/ou escrevessem como elas se veem hoje, como elas são. E
depois, abaixo, poderiam desenhar e escrever se gostariam de mudar algo em
si mesmas, e o que mudariam. Algumas crianças relataram que mudariam o
cabelo ou outras características físicas, alguns que não mudariam nada. O
desenho de Larissa chamou a nossa atenção. Ela desenhou na primeira parte
uma menina e um menino com os mesmos traços e a mesma roupa – bermuda
e camiseta – apenas em cores diferentes. Sem a explicação de Larissa, era
possível saber quem era a menina apenas pelo cabelo comprido, como o dela é
de fato. Na segunda parte, Larissa se desenhou de saia e com cabelo loiro. Sem
que pedíssemos para ela explicar o que tinha desenhado, ela entregou a
atividade ressaltando que, na primeira parte, o menino que estava ao seu lado
era o colega Carlos.
Ao ser questionada sobre a ausência do colega Carlos na segunda parte,
onde desenhara como ela gostaria de ser, sorriu e respondeu que na segunda
parte era só ela mesmo, de menina.
Na mesma semana, em nossa reunião do PIBID, ao analisarmos os
desenhos produzidos pelas crianças durante a atividade, notamos que Larissa
havia apagado algo que escrevera. Entretanto, como se tratava de uma frase
“mal apagada”, conseguimos ler a mensagem que dizia: “Eu queria ter nascido
menino para ninguém me chamar de menina homem”. Embora tivesse deixado
os vestígios de texto, mantendo comunicável seu sofrimento, percebemos que o
ato de apagar seus escritos nos dizia também que não era a hora de falar sobre
isso, apenas de “escutar”, de acolher e partilhar em silêncio o que ela vivia, sem
fazê-la sentir-se “inadequada” ou constrangê-la com uma conversa que ela ainda
não pedia.
Essa atitude de Larissa confirma que nem sempre é importante falar sobre
o que a criança sente ou compreende sobre si mesma a partir da história.
Mais importante que isso é perceber em qual momento falar e em qual
acolher em silêncio que é comunicado. Também é necessário perceber como
alguns temas esbarram em tensões sociais e culturais, fazendo emergir maior
angústia.
Nesses casos, manter-se ao lado da criança, sem julgá-la, assegurando
o espaço para seus dilemas e dando-lhe confiança, é prepará-la para a
autonomia e para eventuais embates futuros3. Por fim, é vital reconhecer que a
oferta de um momento de conversa e de atividade escrita pode potencializar os
atributos da história, essa capacidade particular de falar ao nosso interior.
Esses relatos evidenciam a importância da história e a necessidade de
um contador que esteja envolvido na tarefa de contar e disponível para
compreender e atender às necessidades da criança. O caso de Larissa, assim
como vários outros vividos no PIBID, aponta para a urgente e necessária
discussão sobre as questões de gênero e sobre o seu manejo na escola.
Entretanto, dada a complexidade do assunto, tal discussão não cabe no presente
artigo.

Considerações finais

Assim como a história abre, amplia, expande os campos de sentido, as


atividades provocadas a partir dela também devem fazê-lo. O desenvolvimento
humano se dá na medida da necessidade de expansão do espaço mental, ou do
que pode ou não ser pensável. O silenciamento muitas vezes estrangula a
“pensabilidade”. Cria pontos cegos no universo potencialmente pensável. Ou
seja, a criança percebe que determinados assuntos estão em “campo minado” e
não devem ser abordados – ou que só podem ser tocados se estiverem sob
determinadas condições.
Se nos acovardamos e não tocamos em pontos que são importantes para
a criança, justamente onde as ansiedades dela se manifestam, esse
silenciamento comunica que a fuga é mais recomendável do que a modificação
dos sofrimentos. Não apenas reforçamos os campos minados, como
transmitimos à criança um método para que se evada da verdade de sua
experiência (BION, 1991).
Em alguns momentos, nosso silêncio indica até mesmo que
desconhecemos o que se passa com ela ou que não damos a devida importância
para quem ela é e pelo que passa.
Para que a contação, a conversa e a atividade escrita possam oferecer o
melhor para as crianças, o contador precisa dispor de certa condição egóica para
tolerar as tensões dessa aventura que é contar histórias. Sinteticamente, é
preciso que ele:
- seja receptivo ao que surge espontaneamente da criança, quando da
contação;
- seja receptivo à história que a criança traz consigo e que ecoa na história
contada;
- seja receptivo à sua própria história (a verdade do próprio contador, sua
capacidade de entrar em contato com seus “campos minados”, de compartilhar
com as crianças a sua experiência de contato com certas zonas de silêncio);
- seja capaz de manter-se em sua condição de adulto, mesmo em
situações em que lida com aspectos infantis próprios;
- esteja ao lado da criança em eventual “enfrentamento social”, dando a
ela sustentação psíquica ao tratar de temas sobre os quais a escola, a família ou
a sociedade impõem restrições.
Há a necessidade de compreender como o conjunto das atividades pode
ser profundo e fecundo do ponto de vista psíquico. Vale pensar se o que estamos
fazendo favorece a narrativa da criança, a elaboração de suas ansiedades e o
pensar – ou se silencia e constrange, ajudando a constituir ou fortalecer “campos
minados”, zonas de silêncio, áreas da experiência sobre as quais não se fala. Se
por um lado não podemos ser invasivos, por outro não podemos contribuir para
movimentos de fuga, que restringem as possibilidades de pensar, de sentir e de
criar narrativas. A boa história é a porta para o enfrentamento da verdade de
cada um de nós. Mas a presença e a receptividade do adulto são a chave para
que tal verdade seja tolerada e harmonize suficientemente os dilemas que
vivemos diuturnamente. Se a escola é parceira nessa tarefa, encontrará alunos
com mais confiança na instituição, no conhecimento e nos vínculos ali
estabelecidos.

Referências bibliográficas
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Tecnologia de Presidente Prudente – Universidade Estadual Paulista, Presidente
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BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fada. Traduzido por Arlene


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BION, Wilfred. O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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Ana Lúcia T. Cabral e Lélia Erbolato Melo. São Paulo: Humanitas, 2009.

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. (7a ed.) São Paulo:
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