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Sobre o tema

A criança, a natureza
e a cultura
Nós, humanos, somos constituídos de natureza e cultura, ou seja, somos compostos pelo
entrelaçamento da nossa dimensão biofísica com a nossa dimensão sociocultural. De acordo
com Lea Tiriba (2018):

A criança se identifica com a natureza a partir do seu corpo, pois é nele


que ocorrem os processos fisiológicos, sensitivos, afetivos e ele
é a origem de todo conhecimento; todo conhecimento é corpóreo.​

Enquanto seres de natureza e de cultura, as crianças desenvolvem suas potencialidades a


partir das experiências de imersão e participação na cultura e das experiências de contato
íntimo com o mundo natural.

Não é por acaso que as coisas da natureza — aqui


incluídas a terra, as plantas e árvores, seus frutos,
flores e folhas, os animais, as águas, as pedras, os
fenômenos como as chuvas e o vento etc. — são tão
atraentes para as crianças.

Assim como o mundo natural, as expressões culturais pertencentes ou afinadas às culturas


da infância (como brincadeiras, canções, lendas, contos, personagens, jogos de rua,
brinquedos, linguagens e artefatos) despertam muito interesse nas crianças, tornando-se
alvos de suas incessantes experimentações.

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Sobre culturas da infância, Manuel Sarmento (2002) conceitua que:​

[...] por este conceito entende-se a capacidade das crianças em


construírem de forma sistematizada modos de significação do
mundo e de acção intencional que são distintos dos modos adultos
de significação e acção.​

Para refletir
Vamos relembrar aspectos da sua relação com a natureza
e com elementos da cultura durante sua infância?
Reflita sobre as questões a seguir.

• Você teve convívio com a natureza quando era criança? Em que lugares?
O que você fazia nestes lugares e o que sentia quando estava neles?

• As expressões culturais — músicas, histórias, festejos, jogos, brincadeiras,


personagens ou outras — despertavam em você curiosidade, interesse,
encantamento?

• Pense em um lugar onde você conviveu com a natureza e em uma expressão cultural
que marcaram sua infância. O que você aprendia quando interagia com esses
elementos?

Ao fazer esse exercício de memória e resgate de sua infância, você deve ter percebido que as
experiências que envolveram você de modo mais profundo foram aquelas que mobilizaram
sentimentos, emoções e aprendizagens.

Essas experiências passaram, então, a fazer parte da constituição da sua subjetividade.

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Com as crianças, ocorre exatamente
assim. A primeira infância é uma fase
especial de desenvolvimento,
de intensa construção de identidade, por
isso a qualidade das experiências que
oferecemos às crianças nas
escolas de Educação​Infantil vai
construindo o seu modo de ser e
estar no mundo e influencia de forma
marcante as escolhas que farão agora e
no decorrer da vida.

Em sua forma original de ser, as crianças vivem todo o tempo observando tudo ao seu redor:
olhando curiosamente, tocando, experimentando, brincando, inventando, criando e testando
suas próprias hipóteses sobre como o mundo funciona. Vamos chamar esta ação infantil
de procurar satisfazer suas curiosidades experimentando e analisando o que lhes cerca,
sua disponibilidade de aprender investigando as coisas de diferentes formas, perguntando,
imaginando, criando, assumindo diferentes papéis e personagens de experiências de
exploração do mundo.

Esta exploração vivencial do mundo natural e


sociocultural é uma das principais formas pelas quais as
crianças aprendem e se desenvolvem e também é fonte
de bem-estar e alegria. Por isso ela é tão importante para
seu desenvolvimento pleno.

O intenso e permanente impulso das crianças de se movimentar, conhecer e agir sobre o


mundo natural e sociocultural está presente todo o tempo nas escolas de Educação Infantil
e, muitas vezes, não é devidamente percebido, considerado e potencializado como modo de
a criança aprender. Em muitos casos, essa disponibilidade para se movimentar e descobrir
sensorialmente o mundo é interditada na escola, por um permanente empenho de pessoas
adultas em manter as crianças “comportadas” e sob controle. Outras vezes, a forma como as
crianças têm acesso a estes conhecimentos é distorcida. Acompanhe alguns exemplos.

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Alimentação saudável

Em um primeiro exemplo, as crianças são


convidadas a realizar uma série de atividades
com o intuito de se alimentarem de forma
saudável. Esse tipo de ação é muito comum
nas escolas, e de fato a questão de uma boa
alimentação é bastante importante.

No entanto, há uma crença de que, ao desenharem os alimentos, brincarem com eles,


cantarem músicas sobre frutas, falarem sobre as cores e as formas dos alimentos e se
fantasiarem de “chefs” ou de frutas, garante-se que as crianças aprendam sobre os
alimentos e passem a se alimentar melhor, sob o pretexto de que o que está sendo
proposto é lúdico e divertido.

Porém, em uma perspectiva de aprendizagem por experiência, sabemos que as crianças


aprendem com ações efetivas de experimentar alimentos, levar da escola para casa e de casa
para a escola, investigar os alimentos consumidos na comunidade, conversar com pessoas da
comunidade e transformar os momentos de refeição coletivos em experiências significativas
de se alimentar juntos, tal como é feito socialmente.
Borboletas
Neste segundo exemplo, acompanhe duas
investigações abordadas a partir de referências
bem diferentes.

Na primeira sequência de fotos, observe que, na investigação sobre o ciclo de vida das
borboletas, os registros são todos pré-elaborados pela pessoa docente a partir de
desenhos estereotipados, que muito se distanciam da diversidade de espécies
encontradas no ambiente natural.

Além disso, as crianças não fazem uso das observações sobre o ciclo de vida em si — que
podem ser feitas por vídeos, ilustrações de livros de pesquisa etc. — para, então, registrá-lo
por meio dos desenhos de observação. Neste caso, os registros são distanciados do que um
processo investigativo do objeto natural em si promove (no caso, o ciclo das borboletas).
Mares
Nesta investigação sobre o mar, que envolveu
uma visita ao Museu de Oceanografia e rodas
de conversa sobre placas de petróleo que
invadiram as praias do Nordeste, os registros
das crianças revelam um processo de
aprendizagem por experiência e suas formas
singulares de apropriação dos conhecimentos,
revelam um compromisso com os fatos em
si e com as características dos animais
observados no museu.

Podemos também afirmar que a forma como as propostas dos dois primeiros exemplos é
desenvolvida — comida saudável e ciclo de vida das borboletas — está muito relacionada à
utilização das datas comemorativas como currículo e prática pedagógica na escola.

É comum as crianças serem vestidas de árvore ou flores para comemorar o Dia da Árvore e a
chegada da Primavera bem como desenhar e/ou colorir coelhos na época​da Páscoa e assim
por diante. Nesses casos, também encontramos atividades elaboradas por pessoas adultas,
nas quais as crianças são passivas.
Quando acreditamos na capacidade investigativa, criativa e relacional das crianças, damos
oportunidades para que criem suas próprias representações, levantem suas hipóteses para
checar e confirmar ideias e informações, encontrem formas de produzir conhecimentos e
utilizar o conhecimento social como ele é na realidade, sem transformá-lo ou distorcê-lo, sob
a crença de que, assim, as crianças “podem” aprender.

Ainda nesta seção, falaremos sobre o trabalho com projetos. Aproveite as reflexões em torno
dos exemplos apresentados para pensar em boas práticas de trabalho em projetos.
Hora de praticar

Nas imagens a seguir, observe as crianças de seu grupo


em interação com as coisas da natureza ou com práticas
socioculturais que lhes são significativas.

Reflita sobre como elas se expressam e o que expressam quando estão imersas
nestas experiências. O que elas demonstram sentir? O que aprendem?
Na primeira sequência de fotos, as crianças participam de uma experiência com sagu:
experimentam a consistência e temperatura, observam cores, sentem prazer em manusear,
em “se lambuzar”, aguçam o tato, a visão, e assim constroem conhecimentos sinestésicos e
usufruem do prazer de brincar juntos.

Já nas outras fotos, a professora realiza com os bebês uma experiência que inclui luz e
sombra, cores, movimentos e formas.​

Estas foram experiências de exploração de mundo realizadas em escolas de Educação Infantil.


Convidamos você a refletir:

• Os interesses das crianças foram considerados na


seleção destas práticas?

• Você percebe nas imagens o quanto as crianças


estão envolvidas?

Isso só é possível quando o ou a docente, ao conhecer as especificidades e necessidades


do seu grupo, planeja intencionalmente práticas de exploração de mundo afinadas com os
interesses das crianças, ajudando-as a ir além daquilo que já sabem.​
Quando são planejadas e propostas práticas afinadas com os interesses e desejos
das crianças, conquista-se um alto nível de envolvimento e entusiasmo delas.

As crianças se envolvem de corpo inteiro, expressam um “estado de entusiasmo ou fluxo”, de


acordo com Ferre Laevers (2014), no qual todos os sentidos são mobilizados, pois se colocam
totalmente presentes naquilo que tem sentido para elas.

Ao se envolverem deste modo nas​experiências de exploração de mundo, as crianças


sentem prazer no que fazem, sentem bem-estar, experimentam e registram corporalmente
diferentes sensações e constroem diferentes conhecimentos de forma integrada, ou seja,
aprendem diversas coisas ao mesmo tempo, envolvendo diferentes campos de experiência
propostos na BNCC.

As sensações, descobertas, as compreensões construídas com esta qualidade de


envolvimento se tornam estruturantes na formação das crianças.

É função da escola planejar práticas


cotidianas que considerem, incluam,
acolham e incentivem esta característica
infantil, possibilitando que as crianças
explorem o mundo de variadas formas,
em diferentes ambientes e com
materiais diversificados.

Deste modo, a criança vai aprendendo que vale a pena ser curiosa; que faz sentido investigar,
explorar, porque se aprende coisas novas; que conhecer é algo positivo e prazeroso. O modo
como a escola lida com o impulso da criança de experimentar vivencialmente o mundo
influencia diretamente na relação que ela está estabelecendo com o ato de conhecer e com o
prazer diante da vida.

Na busca por saber sensivelmente as coisas, saber e sabor


vinculam-se.
Duarte Jr., 2001

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Ao planejar diversificadas práticas de exploração de mundo natural e sociocultural pelas
crianças, a escola concretiza os direitos de aprendizagem apresentados pela BNCC para
Educação Infantil.

Quando afirma que as crianças têm direito a conviver, a brincar, a participar e a explorar e
que são também seus direitos se expressar e se conhecer, a BNCC indica que as crianças
precisam estar a todo o tempo desempenhando um papel ativo em seu processo educativo.
Para que se efetivem seus direitos de aprendizagem, elas precisam agir e participar. ​

Para saber mais

Para rever a descrição de cada direito de


aprendizagem, copie e cole o endereço eletrônico
abaixo no seu navegador:

bit.ly/39qPEGV

A garantia das condições para que as crianças


tenham acesso a experiências significativas de
exploração de mundo se dá, especialmente,
através da organização dos ambientes e
materiais, da organização dos tempos e do
cuidado com os modos como as relações
se estabelecem no​ambiente escolar.
Abordaremos aspectos destas dimensões no
decorrer da unidade.

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Parece que, de modo geral, esse é um processo em
construção. Esta é uma grande mudança nos modos como
a educação das crianças pequenas vem sendo conduzida no
decorrer dos tempos.

Exige da parte de profissionais da educação (professoras, professores, coordenação, gestão


e equipes das Secretarias) garantir uma abertura e empenho para dar à criança o lugar que é
seu por direito; o lugar de sujeito competente e participante naquilo que lhe diz respeito.​

Por muito tempo, as crianças foram “consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto
social nem autonomia existencial”, nas palavras de Sarmento (2007). Para o mundo adulto,
elas não tinham o que falar. Atualmente sabemos que as elas são produtoras de cultura e
que, de acordo com Maria Carmem Barbosa (2009):

não apenas se apropriam (...) daquilo que as suas culturas lhes


propiciam, mas investigam e questionam criando, a partir das tradições
recebidas, novas contribuições para as culturas existentes.​

Neste processo, a escuta das crianças pelo professor ou pela professora e por demais
profissionais da escola torna-se um imperativo.
Na intensa jornada da criança, de autoconstituição, de descoberta e recriação do mundo,
o papel docente tem a imprescindível função de preparar cuidadosamente as práticas,
criando as condições para que ocorram de forma significativa para ela.

Neste sentido, docentes são a âncora que escuta atentamente e de diversas formas o que
a criança expressa pela fala, pelo olhar, pelo corpo, pelos silêncios, o choro, o riso etc. Essa
escuta sensível envolve uma qualidade de presença por parte da pessoa adulta que lhe
possibilita sentir a criança e conectar-se a ela, de coração para coração.

É nossa função, como educadores e educadoras, amparar as ações das crianças,


ajudá-las a encontrar significados e sentidos, a nomeá-los. Assim, validamos e estimulamos a
busca primordial de quem está olhando pela primeira vez para as tantas coisas do mundo. ​

Importante!

A criança, quando se sente escutada, afetivamente amparada


e instigada a se expressar livremente pelas suas diferentes
linguagens, se mantém conectada a si mesma, pode constituir
vínculos fecundos com outras crianças e com pessoas adultas e
tem confiança em se lançar na busca do que deseja conhecer.​

Neste processo, a criança vai, gradualmente, despertando a sua potência imaginativa, criativa
e surpreendendo, muitas vezes, as pessoas adultas com suas ideias inovadoras sobre o
mundo e com suas invenções.​

Tornar as escolas da infância espaços mágicos


de descobertas, invenções e alegrias, requer
que nós, educadores e educadoras, confiemos
na força da vida presente nas crianças, nas
suas infinitas capacidades, e nos coloquemos
abertos para aprender com elas. ​
As múltiplas formas de aprender das crianças

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