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Revista Psicologia e Educação 131

Infância como um campo de estudo multi e interdisciplinar:


Algumas reflexões
Catarina Almeida Tomás*

Resumo: Este artigo tem como objectivo fazer algumas reflexões sobre a infância
como um campo de estudo multi e interdisciplinar. Caracterizando, para o efeito, as
diversas contribuições das várias disciplinas para a construção social da infância e
as várias formas de pensar sobre as crianças.
Palavras Chave: Infância; Crianças; Interdisciplinar; Multidisciplinar; Construção Social.

Abstract: The main goal of this article is to reflect on childhood as a multi and
interdisciplinary field. For this, I will characterise the contributions of several
disciplines to the childhood social construction and the several ways of thinking
about the children.
Key-Words: Childhood; Children; Interdisciplinar; Multidisciplinar; Social Construction.

1. A Infância como Construção Social adoptado uma visão parcial do fenómeno.


Assim sendo, e frente a este obstáculo de
Em 1993 foi constituída a Comissão fundo, gostaria de defender a tese de acordo
Gulbenkian para a Reestruturação das com os objectivos do presente trabalho, que
Ciências Sociais. No Relatório Final, o só através de uma abordagem e postura
grupo de investigadores indica, entre outros de integração disciplinar, uma discussão
pontos, que a tarefa de «reestruturação das abrangente, global, das questões
ciências sociais tem de resultar da subjacentes a esta categoria social, e das
interacção de estudiosos provenientes das questões que ela suscita, conseguiremos
mais diversas paragens e perspectivas (e compreender o fenómeno na sua
numa diversidade que leve ainda em globalidade (ou pelo menos tentar).
consideração o sexo, a raça, a classe e a Vejamos, como a sociologia da infância,
cultura linguística [e porventura a idade]), poderá estabelecer dita colaboração (vide
e que esta interacção de todo o mundo seja quadro 1).
algo de real (...)» (1996: 109). É Obviamente que não se trata de uma matriz
precisamente a partir desta ideia que se definitiva, única ou completa, mas apenas
desenvolve este artigo, já que um dos de um exercício de reflexão, porque a
problemas que as ciências sociais se têm complexidade do tema, como é o da
deparado na actualidade é a rigidez das infância, exige respostas e abordagens
demarcações disciplinares, facto que se múltiplas, mais ainda porque quando se
verifica, por exemplo, quando se estuda pretende realizar um trabalho de
a infância. Fora algumas excepções, as investigação com este colectivo deparamo-
diversas ciências, sociais ou não, têm nos com uma série de dificuldades: a) um
_______________
objecto difícil de definir, especialmente
* Departamento de Sociologia - Universidade enquanto a sua duração dentro do ciclo de
da Beira Interior. vida dos indivíduos; e, inclui problemas

Vol. 1, nºs 1 e 2, Dez. 2002


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QUADRO 1 - Parcelamento/Integração multidisciplinar no estudo sociológico da infância


Potencialidade
Dimensão do Estudo Operacionalização em Epígrafes
de integração disciplinar
O conceito de infância: caracterização socio-
histórica. O determinado e o indeterminado
no desenvolvimento infantil. A infância como
A Infância como Construção Social História; Filosofia
fenómeno social. O estudo da infância numa
perspectiva sociológica. A infância e as
diferentes culturas.
Fontes secundárias para o estudo da
infância. Quantitativo/Qualitativo? Técnicas
Aspectos Metodológicos na de investigação social aplicadas ao estudo
Estatística; Demografia; Economia
Investigação Social da Infância da infância. Definição de indicadores sociais
no âmbito dos menores. Censos, registos e
outras fontes.
A “Natureza da Criança” vs Aprendizagem
Social. A socialização como conceito
sociológico. Socialização, cultura e
personalidade. A reprodução social, entre
Infância, Desenvolvimento, Reprodução Psicologia Social, Psicologia, Antropologia
individual e o social. Infância, crescimento e
Social e Socialização Social; Biologia; Genética Comportamental(a)
reducionismos. Desenvolvimento numa
perspectiva sociológica. Como aprendemos
a ser seres sociais? Meros receptores vs
agentes activos no processo de socialização.
A infância e a mudança demográfica.
Fecundidade, fertilidade, natalidade e dados
Aspectos Demográficos relacionados com a
demográficos na sociedade moderna. A Demografia, Estatística.
Infância
mediação da reprodução social: modelos
demográficos.
Identidades das crianças são construídas
num espaço e lugar particulares; os
processos socio-espaciais que envolvem as
crianças; Global/Local: um progressivo
Aspectos espacio-temporais relacionados sentido de espaço; Reconhecimento que as
Geografia; Antropologia; Sociologia.
com a Infância condições da infância variam entre tempos e
espaços, consoante as características das
várias sociedades; Processos de
globalização e sua influência no quotidiano
das crianças.
A família e a mudança social: novas formas
familiares e as suas consequências para a
infância. O filho na família. Redefinição das
funções familiares: para um novo modelo
Psicologia Social, Antropologia Social,
Família e Infância familiar? A infância e as alterações do ciclo
Psiquiatria, Serviço Social
de vida da família. Família e socialização:
para um modelo explicativo do porque e o
como da transformação de valores e outros
conteúdos culturais.
A infância e a sua socialização na escola.
Modelos de atenção aos menores na
mudança educativa. Educação e reprodução
social. A interacção na aula: currículo escolar
e educação. Estrutura social, infância e Pedagogia, Psicologia da Educação;
A infância em Meio Educativo
rendimento escolar. O comportamento Psicologia Social
desviante na escola, fracasso escolar ou
social? O papel do professor. Modelos
educativos de acordo com o tipo de infância
ou massificação? Exclusão vs inclusão.

(a)
Não num sentido de imprimir uma orientação mais biológica às ciências sociais, nem reviver as ideias
do determinismo genético. Das descobertas mais recentes da genética comportamental, sobretudo do projecto
do genoma humano e dos desenvolvimentos mais recentes registados nas ciências naturais, a principal lição
a tirar «é que, mais do que nunca, se torna necessário tomar muito a sério a complexidade da dinâmica
social.» (Comissão Gulbenkian, 1996:111).

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QUADRO 1 - Parcelamento/Integração multidisciplinar no estudo sociológico da infância


Infância, pobreza e marginalização. Conduta
desviante e infância. Mau-trato infantil:
factores de risco. Transtornos de
personalidade durante o desenvolvimento:
Psicologia Social; Trabalho Social,
Infância e Exclusão suas conexões com a estrutura social.
Pedopsiquiatria, Direito, Pediatria(b)
Infância e discapacidade. O menor e a
delinquência infantil. Trabalho infantil.
Prevenção dos desvios: redes de apoio local
ao menor.
Política familiar e protecção à infância.
Modelos de intervenção estatal. O sistema
público de serviços sociais em atenção ao Serviço Social, Ciências Políticas,
A Protecção Social do Menor
menor. O papel do Estado no Economia
desenvolvimento infantil vs os direitos da
família.
Infância e comunicação. Os media e a
socialização da infância. A literatura infantil:
uma aproximação sociológica. Modelos
educativos extra escolares: industria cultural
e representação da realidade social. A
Psicologia Social; Antropologia Social;
sociedade do ócio e do lazer e a infância. O
Infância e Produção Cultural História; Ciências da Comunicação;
consumo e a sua relação com os menores.
Marketing.
Crianças e as novas tecnologias de
informação. Novos tipos de
linguagem.Análise de como as crianças
compreendem e respondem às mudanças
globais.
Fonte: Adaptado de Pascual (2000: 119-120)

(b)
A medicina infantil só nasceu no século XIX e o «termo “pediatria” só aparecerá em 1872. No entanto,
a segunda metade do século XVIII revela uma tomada de consciência por parte dos médicos da especificidade
da criança, «coisa que (...), não tivera até então lugar. (...) Porque se pensava, (...) que as doenças das crianças
eram mais difíceis de tratar que as dos adultos, pela boa razão de que as crianças pequenas não falarem.»
(Badinter, s/d:76)

de natureza metodológica1, b) um objecto adultos, mais adaptados às suas próprias


difícil de investigar, porque se encontra necessidades, começando a constituir-se
dentro de outras realidades que também como um grupo social. Podemos assim
são estudadas (por exemplo, a família e afirmar que o espaço social da infância
a educação), e c) é um objecto é um espaço construído - infância como
compartimentado por múltiplas disciplinas construção social - nas suas várias
científicas nem sempre permeáveis entre dimensões. Contudo, e considerando uma
si, como a Biologia, a Medicina, a melhoria da situação, na maioria das vezes
Psicologia, a Pedagogia, a Sociologia, etc. este espaço é construído pelos adultos sem
(Pascual, 2000: 100-101). (quase) nunca ser ter em conta a opinião
No entanto, só muito lentamente, ao longo e mesmo participação das crianças. Este
dos séculos, as crianças foram facto deve-se à subsistência na actualidade
conquistando o direito a uma identidade de velhos paradigmas face à infância que
própria e a modos de vida distintos dos podemos sintetizar em: a) Paradigma de
Propriedade, que é uma imagem ainda
_______________
1
Por exemplo, na elaboração e aplicação de um prevalecente nas nossas sociedades e que
questionário terá que ser equacionado a linguagem podemos caracterizar através da expressão
dos menores. Sobre metodologia, cf. Greig, A. & “É meu filho(a)/aluno, eu é que sei o que
Taylor, J. (1999). Doing Research with children. é melhor para ele”. Na história ocidental
London: Sage Publications. E, Ennew, J. (1994).
Niños de calle y niños trabajadores. Una guia de encontraremos sempre a posição subalterna
planificación. N.º 4, Londres: Save the Children. das crianças em relação ao poder dos

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adultos, nomeadamente, ao poder paterno, considera a criança como um ser frágil,


já que, como as crianças, as mulheres que não tem autonomia, ainda incapaz (a
tinham um papel secundário na sociedade. categoria, e utilizando a terminologia de
Cícero, recorda que o pai tinha sobre o Casas (1992) dos “ainda –não”), e que tem
seu filho o direito de vida e de morte, o de ser obrigatoriamente protegida.
direito de o castrar a seu bel-prazer, de Podemos afirmar que se trata de uma
o mandar flagelar, de o condenar à prisão, visão colonizadora face à infância, já que
e por fim de o excluir da família (cit in a criança é considerada como um receptor
Badinter, s/d:25); b) Paradigma da passivo, é considerada como uma realidade
Perigosidade, herdado da filosofia e da social que se caracteriza pela sua
teologia do século XVII. «Durante longos dependência face a outros colectivos.
séculos, a teologia cristã na pessoa de Santo Terá necessariamente que se (re)inventar
Agostinho elaborou uma imagem dramática um novo paradigma, um paradigma em que
da infância. Assim que nasce, a criança as crianças sejam considerados agentes
torna-se símbolo da força do mal, é um sociais imprescindíveis e participativos na
ser imperfeito, acabrunhado pelo peso do sociedade.
pecado original.» (Badinter, s/d:51). Na Como qualquer outro colectivo social, terá
que receber por parte das instituições
actualidade traduz-se, primeiro, no
sociais, respostas concretas face às suas
alarmismo, sobretudo por parte da
necessidades, estabelecendo-se o
comunicação social2, de sobrevalorizar
compromisso real da sua efectiva
comportamentos desviantes protagonizados
participação, autonomia e protagonismo
por crianças e jovens ou aludir
social4, onde os seus direitos e deveres
constantemente para o aumento da
sejam efectivamente reconhecidos e se
delinquência e criminalidade juvenil,
transformem em práticas sociais.
mesmo que muitas vezes isso não Por conseguinte, reivindica-se através deste
corresponda à realidade; segundo, na conceito defender que as crianças têm os
mudança de paradigma em termos jurídico- seus próprios direitos e que têm a
legais: de um sistema de protecção adopta- capacidade de poder participar nas decisões
se um modelo de justiça, mais
_______________
re(penalizador) para as crianças com a 4
O conceito de protagonismo aplicado à
criação, como no caso de Portugal, de população infantil que aqui é utilizado traduz-se numa
regimes fechados para as crianças; c) reapropriação do conceito que alguns autores, como
Paradigma da Protecção e do Controlo3, Cussiánovich (1997) e Liebel (2000), utilizaram
relativamente a investigações realizadas com os
que é uma doutrina que não desapareceu movimentos de crianças trabalhadores, crianças de
dos reflexos socio-psicológicos das rua e movimentos juvenis na América Latina. Estes
sociedades contemporâneas, onde se movimentos surgiram nos anos 70 e existem hoje
nos países periféricos, o denominado “Terceiro
_______________ Mundo”: África, Ásia e América Latina. E foi aos
2
Os primeiros estudos que exploraram as esforços empreendidos por aquelas crianças, em
representações sociais da infância na cultura ocidental promover um movimento social das crianças, que
foram os de Chombart de Lowe, em 1971 - A infância se designou por protagonismo infantil (Liebel, 2000:
como o mundo imaginativo construído pelos adultos. 15). A principal ideia das crianças é inserir-se em
Os mitos sobre a natureza da infância presentes nos esferas das quais sempre estiveram excluídas
meios de comunicação social. (considerando também as crianças dos países
3
Sobre a questão da sobreprotecção cf. W. centrais): trabalho e política – a infância invisível
Corsaro (1997). (Gaitán, 1998).

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sobre todas as questões que as afectem5. que contribuíram para que se pudesse
É neste contexto que o contributo das conhecer um pouco melhor a infância. Uma
diversas ciências se torna fundamental e das obras mais conhecidas sobre a infância
imprescindível. Através de um trabalho é Centuries of Chidhood, de Philippe Ariès.
interdisciplinar e complementar os diversos Ainda que actualmente a teoria e
conhecimentos certamente contribuirão metodologia utilizadas pelo autor sejam
para um conhecimento mais profundo da alvo de criticas por outros investigadores
realidade deste grupo social, promovendo, e cientistas, a sua investigação foi
assim, um efectivo protagonismo infantil. fundamental para que a infância fosse
estudada a partir da perspectiva das
crianças, dos próprios actores sociais.
2. Perspectiva socio-histórica da Infância Podemos, assim afirmar que a contribuição
de Ariés é a mais próxima ao próprio
A infância não é um fenómeno “natural”, núcleo do pensamento sociológico
que deriva directamente do desenvolvi- (Pascual, 2000: 103).
mento físico, mas uma construção social, Ariès considerava que na Idade Média não
como referi anteriormente, que se refere existia o conceito de infância, uma vez que
a um estatuto delimitado, que se incorpora as crianças começavam a fazer parte do
dentro de uma estrutura social e que se mundo adulto, logo que podiam prescindir
manifesta em determinadas formas típicas dos cuidados das mães ou das amas
de conduta, todas elas relacionadas com (Corsaro, 1997: 50). Segundo este
um conjunto concreto de elementos historiador, é sobretudo a partir do século
culturais (Jenks, 1982). É uma construção XVI que se verifica um maior interesse
social gerada no contexto de um processo e reconhecimento da infância, sendo esta
de mudança socio-histórica que alterou considerada uma fase de inocência e de
usos, concepções e percepções associadas doçura. A partir do século XVIII, a infância
aos menores (Pascual, 2000:99). começa a ser considerada como uma fase
Desta forma, torna-se imprescindível de imaturidade, e por esse motivo as
caracterizar no tempo e no espaço, as crianças deveriam ser treinadas e
principais contribuições científicas para a disciplinadas6 para poderem adaptar-se ao
construção da infância, nomeadamente da mundo dos adultos (ibidem: 50).
História. Contudo, realizar uma perspectiva Estudando com minúcia a iconografia, a
histórica da infância é uma tarefa árdua. pedagogia e os jogos das crianças, Ariés
Existem poucos dados históricos que conclui que, «a partir do início do século
documentem esta fase da vida. Este facto XVII, os adultos modificam a sua
poderá estar relacionado com a concepção concepção da infância e concedem-lhe
da infância que se tinha até ao século XIX. nova atenção, ao contrário do que acontecia
Houve no entanto diversos historiadores anteriormente.» (cit in Badinter, s/d:49).
_______________ Contudo, não considerava que se tivesse
5
Sobre estudos empíricos, cf. Archbold, C. & verificado melhorias na situação das
Irvine, C. (2000). Consulting with Children and crianças, uma vez que o processo de
Young People: The Office of Law Reform’s separação da infância do mundo adulto se
Experience. Child Care in Practice, Vol. 8, n. 1,
73-75. E, Keeley, K. (2002). Fermanagh Shadow _______________
6
Youth Council: Youth Participation in Decision Ideia defendida pelas teorias deterministas da
Making. Child Care in Sociologia da Infância.

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baseou sobretudo em separações de raça séculos XVIII/XIX. Até aqui situações de


e de classe. abandono, negligência e abuso sexual eram
A tese de deMause (1982: 15), oposta à frequentes e raramente repudiados e
de Ariès, defende que quanto mais se sancionados social e juridicamente.
retrocede na história da infância, mais Se nos questionamos dos motivos
frequentes são os casos de crianças explicativos para a inexistência de cuidados
expostas a morte violenta, ao abandono, e de leis que protegessem as crianças,
ao terror e aos abusos sexuais. talvez a resposta se encontre no facto de
Se as várias áreas de conhecimento têm não existir um reconhecimento face a esta
omitido dos seus estudos a infância talvez categoria social, por conseguinte, as
seja porque durante muitos séculos a crianças viviam desde os primeiros tempos
criança se encontrava “diluída” no mundo em função dos interesses dos pais,
dos adultos, mesmo os estudos sobre mostrando-lhes obediência e dedicação.
socialização e desenvolvimento, que Podemos assim afirmar que não existia o
consideravam as crianças como seu objecto espaço social da infância.
de estudo, centravam a sua preocupação A evolução dos cuidados para com as
no mundo dos adultos e nas formas adultas crianças é um processo extremamente
de ordem social (Alanen, 1988; Burman, heterogéneo, decorrendo daí o facto de ser
1994 cit in Lee, 1998:458). Observamos uma tarefa quase impossível determinar o
isso, por exemplo, com a perspectiva de período histórico das diferentes formas de
deMause, quando caracteriza as três formas cuidar de crianças 7 . No entanto, os
principais como se podem processar as historiadores da infância, indicam que foi na
relações entre pais e filhos: época pós-medieval que se registaram uma
1.Reacção Projectiva – os pais projectam série de mudanças institucionais que servirão
os seus sentimentos nos filhos. Por de base à instituição da infância moderna,
exemplo, se um filho sofria um acidente, entendida como um âmbito da vida social,
esse facto era considerado um castigo pelas específico e separado do resto da vida social.
más acções dos pais, em vez de ser As mudanças nas atitudes e nas instituições
atribuído à desatenção das próprias relacionadas com a infância não se
crianças. desenvolveram de forma isolada ou
2.Reacções de “inversión” – os filhos fortuita, bem pelo contrário, têm de ser
existem para satisfazer as necessidades dos compreendidas e analisadas como o
pais (necessidades afectivas, económicas e resultado de processos sociais mais amplos,
sociais). As relações entre ambos eram de índole económica, política, histórica,
sobretudo consideradas em função das social e cultural.
obrigações que os filhos tinham para com _______________
os pais e nunca o contrário. 7
A periodização de tipo de relação entre pais
3.Reacção Empática – Consiste na e filhos que na maioria das vezes se utiliza nas
capacidade dos pais se situarem ao nível investigações é da autoria de Lloyde deMause (1982:
88-90). As datas não são exactas, contudo deixam
das necessidades dos seus filhos, analisando- perceber a partir de que momentos se iniciaram os
as segundo a perspectiva da criança e não principais factores de mudança: Infanticídio
segundo a perspectiva do adulto. (Antiguidade – Século IV); Abandono (séculos IV
– XIII); Ambivalência (século XIV – XVIII); Intrusão
(Século XVIII); Socialização (século XIX – meados
Os dois primeiros tipos de atitudes do século XX); Ajuda (começa em meados do século
referidos são os mais frequentes até aos XX).

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A mudança na conduta reprodutiva que teve que não seja abstracta e estritamente
lugar nalguns países europeus, ainda normativa (Tomás, 2000). Acrescenta-se a
durante o século XIX, foi, sem dúvida uma esta mudança, as alterações demográficas,
das mais transcendentes na história da e o consequente envelhecimento da
humanidade. O “modo de procriação população, sobretudo na Europa; o início
moderno” terá ficado a dever-se a outros do período de escolarização (sobretudo a
factores sócio - culturais: ao “sentimento obrigatória) dos menores e o surgimento
da infância”, que deixou de representar os do Estado-Providência. São alguns dos
filhos como instrumentos de produção de factores explicativos na evolução da
riqueza, à autonomia familiar, que infância enquanto categoria social, que
privatizou a família isolando-a do controlo desenvolverei mais adiante.
do exterior, e à descoberta das “técnicas
do corpo” que podem modificar no próprio
as leis da natureza. Através do primeiro 3. A construção de um campo de estudo:
factor, as crianças passaram a representar principais contribuições científicas
um valor e uma entidade próprias.
Pelo segundo, o casal passou a ser “livre Com o aparecimento de estudos pioneiros
de decidir ter ou não ter filhos”, no “cenário acerca da história da infância, foram
privado da intimidade familiar”, o ambiente surgindo novas teorias que abordam
da família conjugal, modelo familiar diferentes perspectivas da infância. Por
dominante na era moderna. exemplo, Pollock (cit in Corsaro, 1997: 50-
O terceiro deu à família nuclear o 51), recorrendo a diferentes fontes
instrumento de que ela necessitava para documentais, defendia que não se poderia
gerir a procriação, em função desse novo generalizar as relações de desinteresse e
objectivo, o qual consistia em “servir” os maus-tratos a todas as famílias nos séculos
filhos, em vez de os utilizar. anteriores. O autor procurou demonstrar que
Assim, a articulação entre a fecundidade as relações entre pais e filhos não eram
e o novo quadro de estruturas mentais formais e unilaterais em todas as famílias.
surgido da modernidade apresenta-se Outra historiadora, Hanawalt (cit in
particularmente importante para entender Corsaro, 1997: 54), apesar de reconhecer
o objecto analítico do novo campo da que, entre o século XIV e XV existia uma
infância. Neste sentido, a afirmação da elevada taxa de mortalidade infantil, rejeita
nova estrutura mental, para alguns autores, a ideia de que a negligência e o abuso de
fica-se a dever a um novo “estado de crianças fosse prática comum, e rejeita
consciência” quanto à família e à criança também a ideia de que não existisse uma
na família e não a um determinismo distinção entre infância e idade adulta.
tecnológico da medicina ou tão só à Defende a sua tese através da análise de
laicização dos costumes. Quem teimar em processos de tribunais, através do quais
ignorar o longo processo de regulação da verificou a existência de casos em que se
procriação - o qual, contemporaneamente, decidia a favor de crianças que haviam sido
subjaz à ideia de planeamento familiar - mal tratadas. Alston e Wiggins (cit in
ignora também um dos aspectos Corsaro, 1997: 57), procuram comprovar
fundamentais da própria história da que em algumas sociedades existia um
evolução da família e da infância, tempo para brincar, e as crianças apenas
tornando-se incapaz de toda a compreensão começariam a trabalhar a tempo inteiro a

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partir dos treze anos. Contudo, o objectivo decisivo da atenção e intervenção dos
das brincadeiras era ajudar as crianças a adultos no processo de formação das
enfrentar as suas ansiedades e medos, para crianças. Contudo, o pensamento dos dois
se prepararem para a vida adulta e também autores diverge sobretudo no que diz
para que crescessem saudáveis e fortes para respeito ao tipo de intervenção que os
terem plena capacidade de trabalho quando adultos exercem junto dos menores:
chegassem à vida adulta (Corsaro, 1997: enquanto Locke considerava que os adultos
54-55). O autor indica ainda outros deviam agir junto das crianças para que
exemplos de estudos históricos da infância. estas se transformassem em adultos,
Desses vários estudos convém salientar o Rousseau, por seu lado considerava que
facto de que cada um deles se centrar em os adultos deviam intervir o menos
determinado enfoque, dando particular possível, agindo de forma a preservar as
atenção a uma característica diferente da virtudes das crianças, e a protegê-las dos
infância. Daí se poder inferir da riscos provindos da sociedade.
complementaridade entre si, proporcionando Por seu lado, o filósofo norte-americano,
uma perspectiva mais ampla deste grupo George H. Mead10, centra os seus estudos
social, reforçando a ideia de que a forma nos processos que permitem à criança
como se processa a infância, depende não
desenvolver a noção do self (eu) e dos
só do contexto histórico, mas também do
outros. A construção do self, é considerado
contexto socio-cultural.
um produto social, e permite à criança
É sobretudo no início do século XVIII, que
unificar as diferentes dimensões da
surgem «obras que apelam para novos
realidade social.
sentimentos por parte dos pais e, em
particular, para o amor maternal. É verdade A Psicanálise e a Psicologia, contribuíram
que o médico parteiro Philippe Hecquet, também de forma decisiva para que a
desde 1708, Crousaz em 1722 e outros infância fosse considerada como uma etapa
tinham já traçado a lista dos deveres de fundamental do desenvolvimento dos
uma boa mãe. Mas não foram ouvidos indivíduos. O psicanalista Sigmund Freud,
pelos seus contemporâneos.» (Badinter, s/ opunha-se à ideia de que as crianças se
d:50). Contudo, na época do Iluminismo, assemelham a uma tabula rasa, defendendo
com a contribuição de diversos filósofos que cada indivíduo nasce dotado de «um
dá-se o autêntico impulso para a formação aparelho psíquico, de impulsos instintivos
do actual conceito de infância. Deles se e de capacidades de enfrentar os obstáculos
destacam o filósofo inglês, John Locke8, que se lhe deparam (ansiedade, separação,
e o filósofo francês Jean Jacques etc.)» (Pinto, 1997: 42). Freud diverge
Rousseau9. Ambos reconheceram o papel também da perspectiva de Rousseau, uma
vez que considera que os mecanismos de
_______________
8
Locke, filósofo do século XVIII, defendia os recalcamento da sociedade são
ideais do Iluminismo. A sua teoria baseava-se sobretudo indispensáveis para que se possa
no conceito de Tábua Rasa, segundo a qual a criança compreender a própria civilização (ibidem:
seria como uma espécie de cera maleável, onde os 42).
adultos poderiam “escrever” aquilo que consideravam
necessário ao seu desenvolvimento (Pinto, 1997: 40). _______________
9 10
Rousseau, filósofo francês. Uma das suas obras (1863-1931) Frequentemente considerado
mais conhecidas é Emílio, no qual defende que o ser como o pai do Interaccionismo Simbólico. Descreveu
humano é naturalmente bom. Considerava a criança o processo de socialização como uma sequência de
como um ser que nasce puro e bom, sendo por isso realização de função, que permite ao socializado
merecedor de piedade, de protecção e de amor. interiorizar “o outro generalizado”.

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Quantos aos aspectos sociais da infância, institucionalização se pode dar conta de


segundo Qvortrup11 (1994) as crianças não novas actividades (com quase um século
só foram ignoradas, como também de atraso, em comparação a psicólogos,
marginalizadas pela Sociologia, apontando, por exemplo), como o estabelecimento do
para tal, razões que se prendem, por um Comité de Investigação dedicado à
lado, com a posição de subordinação que sociologia da infância no XII Congresso
as crianças ainda ocupam nas sociedades Mundial de Sociologia e a Associação
e, por outro lado, com as conceptualizações Internacional de Sociologia (ISA),
teóricas da infância e da socialização12. realizado em 1990 (mas a iniciativa partiu
Com efeito, a origem do termo “Sociologia da Nordic Sociological Association, em
da Infância” remonta aos anos 30, mas na 1984), até à realização de um Curso
segunda metade do século poucas são as Internacional de Verão – “El Espacio Social
obras que transportam esta noção nos seus de la Infância – promovido pelo Colégio
títulos. Segundo Corsaro (1997), foi o de Politólogos e Sociólogos de Madrid, em
trabalho desenvolvido pelas minorias e por 2002.
grupos feministas, que despertou o De facto, a nova orientação da pesquisa
interesse pelas crianças, e levou a que estas sobre a infância, pelos sociólogos, surgiu
fossem consideradas como uma categoria um pouco em simultâneo num determinado
social, que deveria ser estudada de forma número de sociedades industrializadas que,
diferente dos adultos. num mundo globalizado, exibem em
De qualquer forma, decorrente de uma grande parte o mesmo género de
redescoberta da infância por parte da características sociais. Este interesse deu
Sociologia verificou-se, sobretudo a partir origem a uma grande quantidade de
dos anos 80 do século XX, um “boom” pesquisas, em particular pesquisas
na pesquisa sobre a infância, a Sociologia relacionadas com as políticas sociais
redescobriu a infância, tendo como dirigidas a este sector da população. Assim,
consequência algumas mudanças visíveis: foram surgindo várias teorias que procuram
projectos internacionais; livros sobre explicar e compreender o papel que as
Sociologia da Infância; um número crianças desempenham na sociedade.
razoável de artigos foram já editados e até Existem duas perspectivas principais da
têm sido publicadas algumas revistas da infância: uma perspectiva determinista e
especialidade. Também a nível de uma perspectiva construtiva e
organização e de um determinado grau de interpretativa. A primeira considera a
criança como um produto ou construção
_______________ social. As teorias deterministas, consideram
11
Professor de Sociologia e director do
Norwergian Centre for Child Research, da a socialização como um processo através
Universidade de Trondheim. Tem – se dedicado nos do qual as crianças se preparam para a
últimos anos ao estabelecimento de uma Sociologia vida adulta, desempenhando um papel
da Infância. essencialmente passivo.
12
Sobre a forma como a sociologia britânica
tendeu (e ainda tende) a ignorar as crianças e a As teorias construtivas e interpretativas,
infância, estudando-as indirectamente em áreas sub- onde se inclui o trabalho dos psicólogos
disciplinares, como a família e educação (a Jean Piaget e de Lev Vygotsky (Corsaro,
dominação das teorias da socialização) cf. Brannen,
1997: 11-18; Pinto, 1997: 45-50),
J. & O’Brien, M. (1995) Childhood and the
Sociological Gaze: Paradigms and Paradoxes. consideram que quer os adultos, quer as
Sociology 29:729-737. crianças, participam activamente na

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140 Revista Psicologia e Educação

construção da infância. Defendem que as destes anteriores modelos com a teoria de


crianças não se limitam a assimilar a Locke, que afirma que a criança quando
cultura dos adultos, mas desenvolvem nasce é uma tábua rasa, e que as crianças
estratégias próprias para interpretarem e se terão que trabalhar para que possam,
adaptarem ao mundo adulto. quando adultos, adaptar-se à sociedade; e
As teorias tradicionais tendem a ser com a teorias de Rousseau, que defende
deterministas, considerando que a infância que quando nasce, o ser humano é inocente
é essencialmente uma fase de transição para e que é a sociedade que o corrompe, não
o mundo adulto, durante a qual se reconhecendo a capacidade de resposta da
aprendem as normas e regras para se ajustar criança.
à sociedade em que vive. Estas teorias são
constituídas por dois modelos principais As teorias construtivas, proporcionam
(Corsaro, 1997: 9 e segs): 1) Modelo novos avanços no conhecimento da
Funcionalista – o principal contributo para infância e das diferentes fases que a
este modelo foi fornecido por Talcott constituem, dai considerar-se e defender-
Parsons13. se a existência de várias infâncias. Um dos
Este autor considera que a sociedade é um seus principais representantes é o psicólogo
sistema, que se auto reproduz através do Piaget. Este considera que a infância é
processo de socialização. Não reconhece constituída por diversos estádios
um lugar especial para as crianças. intelectuais, ao longo dos quais a criança
Segundo este, a infância não passará de desenvolve as suas capacidades e respostas
uma fase de transição para a vida adulta, sociais. Acompanhando o seu
durante a qual as crianças são treinadas desenvolvimento podemos aperceber-nos
para aceitar e seguir as normas sociais que as crianças percebem e organizam os
existentes. Existe um conjunto de valores, seus mundos de forma diferente dos adultos
definidos pelos adultos que deverão ser (Corsaro, 1997: 12).
aprendidos pelas crianças de forma a O autor chama a atenção para um outro
assegurar a estabilidade do sistema social. conceito importante: o conceito de
2) Modelo de Reprodução Social equilibrium, que define a capacidade das
(Reproductive Models) - neste modelo o crianças para lidar com problemas vindos
processo de socialização é considerado do exterior. O restabelecimento do seu
como uma forma de controlo social, que equilíbrio, ou a capacidade das crianças
assegura a reprodução social e a se defenderem dos seus problemas,
perpetuidade das desigualdades entre as depende das actividades que sejam
diferentes classes sociais. Tal como o desenvolvidas no seu contexto social
modelo anterior, não considera que as (Corsaro, 1997: 13).
crianças sejam capazes de contribuir
activamente para a construção do social. Relativamente às teorias interpretativas, o
Poderá estabelecer-se um paralelismo principal autor destas teorias, foi o
_______________ psicólogo Lev Vygotsky. Como Piaget,
13
Sociólogo americano que produziu uma teoria salienta o papel activo das crianças no
da acção social que teve em conta, para além da desenvolvimento humano. Considera que
pesquisa do interesse pessoal, a interiorização dos
as crianças desenvolvem estratégias para
sistemas de normas e valores. Foi também
considerado como o principal representante do lidar com a realidade social. Quando esta
estruturo-funcionalismo. se altera, também as estratégias das

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Revista Psicologia e Educação 141

crianças se modificam (Corsaro: 14-15). interesse pela infância? O século XIX foi
Contudo, ao contrário de Piaget, que determinante para que as crianças
considera que o desenvolvimento das deixassem de ser consideradas como
crianças é um processo essencialmente “adultos em miniatura”, porque foi nesse
individual, Vygotsky considera que o século que começaram a surgir as primeiras
desenvolvimento das crianças se processa leis de protecção à infância um pouco por
num contínuo de interacções entre adultos toda a Europa, e sobretudo em países como
e crianças. Uma outra diferença entre os a França, a Inglaterra e Países Baixos.
dois autores consiste no facto de Piaget Contudo, até atingirmos o modelo
se centrar sobretudo nas características dos actualmente em vigor, houve um longo
processos e estruturas cognitivas, enquanto caminho a percorrer. Diversos autores
que Vygotsky salienta que são as caracterizam as diferentes fases da
actividades praticas e os eventos culturais evolução do sistema de protecção de
em que a criança participa, que determinam menores, a saber:
em grande medida a forma como se
interioriza, apropria e reproduz a cultura 1. A Criança como um “adulto em
e a sociedade. Um outro aspecto importante miniatura” - Até meados do século XIX,
da teoria do autor é o facto deste considerar a criança era inteiramente responsável
que o desenvolvimento das crianças é fruto pelos seus actos. Se cometia um acto
de um processo de interacção, de um classificado como crime, deveria ser
processo colectivo. Para fundamentar a sua castigado como um adulto cumprindo uma
tese refere-se ao conceito interiorização da pena de prisão14. Após esta, os menores
cultura e da sociedade, que consiste num eram acompanhados por associações de
processo em que a criança desenvolve os iniciativa privada (movimentos
seus conhecimentos e capacidades, filantrópicos) com o intuito de proceder
inicialmente ao nível social, e só depois,
à sua reintegração na sociedade. Nesta
através da meditação e interpretação que
época o Estado ainda não desenvolvia
levam à recriação da sociedade e permitem
políticas sociais. Esta competência
às crianças criar respostas às questões que
desenvolve-se sobretudo a partir das duas
surgem no seu quotidiano.
primeiras décadas do século XX com o
desenvolvimento do Estado-Providência
Estas teorias têm algumas limitações,
(Santos, 1989: 15). Anteriormente, as
nomeadamente por analisarem a infância
políticas sociais assumiam sobretudo a
individualmente, sem ter em consideração
forma caritativa.
o seu contexto social mais amplo. Contudo
foram fundamentais para salientar a 2. Pouco a pouco os movimentos
importância da infância, e a capacidade das filantrópicos vêem a sua importância
crianças participarem activamente na acrescida. Foi através deles que começaram
construção da realidade social. a aparecer as primeiras alternativas à
Contribuíram ainda para que as crianças privação de liberdade dos jovens15. Quer
fossem consideradas agentes activos do seu fossem de carácter religioso ou laico, estes
próprio desenvolvimento, não sendo apenas _______________
14
fruto da acção dos adultos. Contudo as penas de prisão das crianças eram
em geral mais curtas.
15
As alternativas consistiam normalmente no
Mas, a partir de que momento da história envio dos menores para colónias agrícolas que tinham
da humanidade se assistiu ao despertar do o objectivo de os educar, mas também de os punir.

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movimentos reconheciam a necessidade de 5.O Surgimento do Estado-Providência –


separar os detidos menores dos detidos Ao longo do século XX, verifica-se uma
adultos e, consideravam importante acumulação de capitais, que permite a
encontrar soluções alternativas à prisão libertação de meios que são aplicados em
para os menores. políticas sociais a favor da classe operária
3. A família na origem do risco – A partir e de grupos sociais desfavorecidos. Entre
de 1890, após diversos congressos sobre essas políticas sociais estavam incluídas
a protecção de crianças, a culpa antes medidas de protecção à infância e
atribuída a estas, é transferida para o seu juventude. Nomeadamente verificou-se
grupo familiar. As famílias mais uma diminuição dos custos com a
desfavorecidas eram consideradas como o educação, para permitir às classes baixas
principal factor de risco para o menor. A acesso à escolaridade obrigatória. Terá sido
criança é então considerada “vítima” do este um primeiro passo em direcção a
contexto em que vive. Considerava-se que medidas políticas ao nível da prevenção,
os delinquentes provinham sobretudo das uma vez que se se tivesse uma boa
classes mais desfavorecidas. Uma vez que educação poder-se-ia evitar comporta-
a família pode estar na origem das mentos desviantes e aumentar as
situações de risco, começa a sentir-se a possibilidades de um desenvolvimento
necessidade de uma intervenção do Estado equilibrado. Também a escola, constitui
de forma a adoptar medidas que possam uma ferramenta privilegiada para o
alterar a sua situação desfavorável. controlo e normalização das crianças,
Neste contexto, surgem as primeiras leis passos essenciais para regularizar o
de protecção a menores. Estas visam a inexistente controlo estatal (Pascual,
interdição do trabalho infantil, a instituição 2000:106).
da escolaridade obrigatória e a inibição do 6. Organizações Não Governamentais –
poder paternal. A partir dos anos setenta começa
4. Profissionalização – Sobretudo a partir novamente a ganhar expressão a iniciativa
da II Guerra Mundial, começa a ser privada das ONG’s. Através destes
frequente verificar-se uma organismos internacionais, começam a
complementaridade entre profissionais como detectar-se casos de crianças vítimas de
psicólogos e psiquiatras e profissionais da inúmeras situações de risco: crianças
justiça. Os primeiros consideram que
negligenciadas, vítimas de má nutrição e
existiam diferentes comportamentos
de saúde precária são apenas alguns
desviantes que deveriam desencadear
exemplos dos problemas relacionados com
diferentes formas de actuação. Esta atitude
a infância. Neste campo a UNICEF tem
surge em oposição ao tratamento
vindo a desenvolver um trabalho
homogéneo que os movimentos filantrópicos
importante, assim como a Organização
aplicavam aos menores a seu cuidado.
Foi, sobretudo no campo da marginalização Internacional do Trabalho (OIT). Esta
e dos comportamentos desviantes, que se última elaborou, em 1999, um documento
produziu uma maior sistematização de que visa a eliminação do trabalho infantil
conhecimentos sobre a infância16. (International Programme on the
Elimination of Child Labor – IPEC). A
_______________
16
Cf. Foucault, M. (1977). Discipline and
UNESCO, através da Unidade de Primeira
Punish. The Birth of the Prison. London:Penguin Infância e Educação Familiar, desenvolve
Books. também actividades no sentido de

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Revista Psicologia e Educação 143

incentivar os governos a integrarem nos 1967); em 1978, a Comissão dos Direitos


seus planos sociais e económicos de longo do Homem decide incluir na sua agenda
prazo, programas integrados para a a questão de uma Convenção sobre os
primeira infância e programas de apoio à Direitos da Criança, no sentido da sua
família baseados na comunidade. Participa preparação e aprovação pela Assembleia
também em actividades das Nações Unidas Geral; Estatuto da Criança e do
no sentido de defender a Convenção sobre Adolescente Lei n.º 8.069, de 13 de Julho
os Direitos da Criança. Um dos seus de 1990 (Brasil); Convenção do Conselho
objectivos visa coordenar informação sobre da Europa sobre o Exercício dos Direitos
fontes, organizações, políticas e programas da Criança (1996), entre outros.
da primeira infância, de forma a
desenvolver uma estratégia de comunicação Se considerarmos que a descoberta da
inter-agência sobre a primeira infância. infância é uma realidade recente, é
Havendo uma maior consciência para os compreensível que a construção de direitos
problemas das crianças começam a que dessem resposta às necessidades das
elaborar-se, sobretudo após 1979, Ano crianças também o seja. A conquista de
Internacional da Criança, vários um corpo de direitos para as crianças,
documentos internacionais, que procuram apesar de ser considerado um dado
sensibilizar os diferentes países para a adquirido, pelo menos teoricamente, para
importância de criar leis que protejam os grande parte da sociedade ocidental,
direitos dos menores. apresenta-se ainda hoje em muitos
Decididamente, o período mais fértil, no contextos civilizacionais num estado muito
que diz respeito à criação de documentos próximo daquele que caracterizou o início
relacionados com a infância, verificou-se do percurso de construção de tais direitos.
a partir da década de oitenta do século O desenvolvimento de diversas ciências no
passado. Tal facto verifica-se em parte século XIX, tais como a Pedagogia, a
devido a uma diminuição progressiva da Psicologia, a Medicina Infantil, teve uma
taxa de natalidade, que contribuiu de forma grande influência na separação do mundo
decisiva para que a infância adquire maior das crianças do mundo dos adultos,
relevo e atenções especiais nas sociedades assumindo-se assim, como uma categoria
ocidentais contemporâneas (Pinto e social especialmente vulnerável com
Sarmento, 1997: 11). necessidades de protecção.
Dos documentos jurídicos criados para Foi também no século XIX que as crianças
defender o bem-estar das Crianças e dos foram objecto do primeiro diploma legal
Jovens, são exemplo os seguintes: que estabelecia o limite mínimo de idade
Declaração dos Direitos da Criança, de para trabalhar nas minas de carvão. Foi
1923, designada por Declaração de o Factory Act, na Inglaterra, que foi
Genebra (Carta da União Nacional de pioneira nesta matéria tal como a Bélgica
Protecção à Infância); Declaração e a França (Tomás, 2001: 94). No século
Universal dos Direitos da Criança (ONU, XX, a inglesa Eglantyne Jebb, iniciou o
1959); Convenção Relativa à Competência movimento de defesa dos direitos da
das Autoridades e da Lei Aplicável em criança, gerando uma onda de solidariedade
Matéria de Protecção de Menores (Haia, e apoio à sua causa, ao defender que os
1961); Convenção Europeia em Matéria custos das guerras dos adultos eram pagas
de Adopção de Crianças (Estrasburgo, pelas crianças, distribuindo pelas ruas

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fotografias de crianças famintas e vítimas sociedade. Nesse ano foi elaborada pelas
da guerra, acto pelo qual foi presa. Este Nações Unidas A Convenção Sobre os
movimento internacional esteve na base da Direitos da Criança, que constitui o ponto
elaboração da Primeira Declaração dos máximo de um processo de criação de
Direitos da Criança, usualmente medidas no sentido da defesa dos direitos
denominada por “Declaração de Genebra”, das crianças. As actuais políticas da
em 1923. infância de muitos países ocidentais são
É essencialmente após a II Guerra Mundial construídas a partir deste documento. O
que a sistematização dos direitos da criança seu objectivo consiste em dinamizar os
aparecem com mais relevância, resultando processos internacionais de
como resposta às graves condições de responsabilização, solidariedade,
pobreza e carência vividas na Europa. E cooperação e assistência indispensáveis
é assim que em 1946 se funda o Fundo para procurar encontrar soluções para os
das Nações Unidas para a Infância problemas graves da criança em todo o
(UNICEF), organismo que, tem um papel mundo. Na base da Convenção está
fundamental na defesa dos direitos da também a ideia de que é fundamental uma
criança, sempre com o intuito de melhorar intervenção interdisciplinar e integrada do
a vida das mesmas. direito em matéria de infância e da família,
Em 10 de Dezembro de 1948, a para que se crie uma visão global e
Organização das Nações Unidas (ONU) integrada da infância.
proclama a Declaração dos Direitos do
Homem, onde não constava os temas
específicos da Infância (Tomás, 2001: 94). Considerações Finais
Só mais tarde, em 1959, a Assembleia
Geral das Nações Unidas promulga a As alterações de comportamentos e atitudes
Declaração Universal dos Direitos das dos adultos face às crianças não foram
Crianças que, não teve força vinculativa lineares. É evidente que a forma como se
junto dos Estados que a subscreveram, interpretou, e ainda interpreta, a infância
surgindo assim, a necessidade de formular mudou muito ao longo dos séculos, ao
uma Convenção das Nações Unidas que ponto de justificar que na actualidade
fosse capaz de comprometer os Estados surjam quadros jurídico-legais que visam
com obrigações muito específicas. proteger o ser humano na sua fase mais
Segundo Tomás (2001: 94), o ano de 1979, vulnerável.
foi o ano em que se celebrou o Ano A infância é um campo de estudo que deve
Internacional da Criança, em que um grupo ser estudado numa perspectiva multi e
de trabalho das Nações Unidas, por interdisciplinar, com uma base
proposta do governo polaco, começou a pluriparadigmática, porque desde sempre
preparar uma Convenção dos Direitos da se tem adoptado enfoques parciais e muito
Criança, que viria a consubstanciar-se específicos, o que tornou a infância um
somente em finais de 1989, onde a criança objecto de análise compartimentado. E ao
passa a ser considerada um cidadão com contrário do que muitos autores afirmam
capacidade de ser titular de direitos. a «existência de outras visões e outras
O ano de 1989 foi decisivo para que se vozes sobre o mundo da infância não é
avançasse no sentido da tomada de sinónimo de desordem ou caos
consciência sobre o papel das crianças na metodológico, senão uma última e genuína

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