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RESUMO
Este trabalho visa discutir os novos olhares que as ciências humanas vêm
direcionando à infância, levadas por uma modificação no lugar ocupado
pelas crianças na sociedade atual. Nesse sentido, questiona os papeis
assumidos pelos adultos frente a essa nova visão, o que impacta diretamente
no desenvolvimento das práticas educativas e das relações estabelecidas
entre professores e alunos – adultos e crianças – em um contexto regido pela
pedagogia, ciência que, por sua vez, é alimentada por esses olhares e pelo
convívio cotidiano com a infância.
Palavras-chave: Infância; Ciências; Olhares.
A percepção muito difundida atualmente por estas ciências de que a criança não
é um vir-a-ser e sim ela o é, com seus pensamentos, sua voz e sua participação na
sociedade e nas construções culturais, é aqui interpretada como sendo consequência das
mensagens inconscientemente transmitidas a elas pelos adultos que, na sociedade
capitalista atual, como a que vivemos, são cada vez mais tendenciosos a “terceirizarem”
a criação dos filhos, buscando ajuda para exercer sua função. Talvez isso se dê pelo fato
dos pais, como sujeitos desejantes inscritos na falta, pensarem não ser suficientes para
garantir todas as necessidades que, em suas fantasias, são necessárias a seus filhos.
Essa terceirização de cuidados não é algo que se desenvolveu apenas na
atualidade. Sabemos que, conforme nos mostrou Ariès (2006), logo que houve uma
diferenciação entre crianças e adultos, surgiram os especialistas, ou moralistas,
conforme ele chamou, que diziam sobre os modos adequados de se cuidar e educar uma
criança. Portanto, desde o século XVI encontramos registros sobre a destituição do
saber dos pais, que passam a assumir saberes diferentes dos seus para criarem seus
filhos (ARIÈS, 2006).
Essa destituição do saber dos pais é hoje amplamente enfatizada pelo formato de
sociedade em que vivemos. Com a ampliação dos profissionais especializados e com a
ocupação cada vez maior com o trabalho, os pais necessitam de uma rede de cuidados
que possa dar conta da sua incompletude na relação com os filhos. Desse modo,
encontramos o que Vocaro e Ferreira (2014) chamou de filhos de pais anônimos ou
evocamos a discussão desenvolvida por Lajonquière (2014) incitada pela pergunta “os
filhos de hoje são filhos de quem?”, observando que, se os pais não sabem sobre seus
filhos e buscam esse saber na sociedade, as crianças passam a conviver com referências
anônimas, ou com o anonimato do desejo, o que leva-as a uma visão imediatista do
mundo, na busca de satisfações que tamponem seus desejos voltados às figuras
parentais.
Assim, a criança investe de forma mais enfática em sua atualidade, no
imediatismo, e os próprios adultos criam, possivelmente, como uma alternativa, a ideia
de que a criança não é mais um vir a ser, mas já o é.
Nesse sentido, entendemos que essa posição do adulto pode estar relacionada a
uma pretensão em tirar a criança do lugar de demanda, diminuindo assim, sua angústia
ao se sentir impossibilitado de preencher todas as necessidades que um infans, e toda a
sua dimensão simbólica de futuro, possui.
Não estamos defendendo, com isso, que a criança não é um ser pleno, que pensa
e constrói, pelo contrário. Porém, na perspectiva da Psicanálise ela é, acima de tudo, um
sujeito de desejo, que demanda do outro – o adulto – e que também é demandada por ele
para que assim se constitua. Há, portanto, um perigo inerente na perda da dimensão de
futuro que envolve a criança. Uma vez que ela deixa de ser infans, ou seja, passar a ter
voz na sociedade, a dizer de si e, assim, não necessitar do adulto, sua demanda em
relação ao futuro cessa, ela não almeja esse futuro, uma vez que passa a fantasiar que já
é, antecipando momentos vividos por adultos, passando diretamente à adolescência,
abolindo a latência e, portanto, gerando um curto-circuito numa pretensa equivalência
entre prazer e gozo, conforme nos lembram Vocaro e Ferreira (2014).
Se a criança sai da sua posição de demanda frente ao adulto, a angústia deste em
se destituir do saber sobre ela diminui, sendo, portanto, uma posição de maior conforto.
Os pais contam com os diversos profissionais para cuidar e educar suas crianças e, nessa
situação, podem ainda pretender contar com a própria criança, que sabe mais de si que
os pais. Nesse ponto, nos encontramos novamente com o problema. Se a criança sabe de
si e os pais não sabem dela, então de quem ela é filha? Quem serão aqueles que irão
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demandar dela, fazendo-a tornar-se sujeito? Quem irá inscrevê-la no campo do desejo?
A quem ela endereça o seu desejo?
Esse problema nos leva a refletir sobre tais questões postas atualmente pelas
ciências humanas que estudam a infância. Nesse contexto, podemos observar as
implicações da destituição do saber dos pais na constituição das infâncias atuais.
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Discutiremos infâncias na relação destas com a Pedagogia, uma vez que
entendemos que, em instituições escolares, as infâncias estão sendo frequentemente alvo
de reflexões por parte dos adultos – educadores – que as rodeiam, por desafiarem
constantemente as concepções destes, no intuito de que sejam desenvolvidas práticas
que levem as crianças a alcançarem o estatuto de sociedade pretendido pelo discurso
pedagógico. Nessas instituições, as infâncias se encontram e se constroem. Assim,
buscaremos refletir sobre as implicações da interpretação apresentada anteriormente
para as infâncias e, consequentemente, para a Pedagogia.
A Escola foi há um tempo um dos auxílios buscados por pais na educação dos
filhos, sendo ela possuidora do saber sobre como educar a criança. Porém, o que
notamos hoje é uma destituição também da escola nesse processo. Os especialistas –
psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, etc. – são os detentores do saber sobre a
criança e, portanto, sabem como cuidar dela e educá-la. Os educadores entram, assim,
no mesmo processo dos pais e a criança novamente perde sua referência. Podemos
pensar, nesse sentido, na destituição da figura paterna, conforme interpretação de
Lajonquère (2014), lembrando o que Lacan discutiu sobre o “declínio da imago social
do pai”. A escola, como lugar de regras e de marcação dos limites e das diferenças,
deveria recriar um ambiente onde os papeis materno e paterno exercessem funções e
servissem de referência para o posicionamento da criança enquanto sujeito.
Nesse contexto, que infâncias estão se constituindo nos dias de hoje? Não
raramente observamos nas próprias instituições escolares movimentos que diferenciam
amplamente as crianças de hoje das de anteriormente. Necessidades de satisfações
imediatas a todo custo, uso de violência na relação com colegas e professores, desprezo
ou irritação frente à rotina escolar, afastamento e exclusão diante das diferenças...as
infâncias se constituem então frente a um contexto adulto bastante diferenciado, o que
gera grandes modificações nos modos de ser e se relacionar.
Essas infâncias, por sua vez, questionam constantemente a Pedagogia,
ciência que, por ofício, convive concretamente com as experiências cotidianas daquelas,
conforme lembra Arroyo (2009, p. 119). Para este autor, as verdades e imagens que são
dinamicamente construídas por nós ao longo do tempo acerca da Pedagogia e da
infância, acabam por se encontrar e, juntas, fazem-se questionamentos, os quais
favorecem a continuidade desse dinamismo: “a pedagogia vai ao encontro da infância
com seus imaginários e suas verdades. Verdades prévias que condicionam sua
experiência, seu pensar e fazer pedagógicos”. Porém, é preciso que lembremos que nem
sempre a Pedagogia aceitou questionar-se ou ser questionada pela infância, pois isso
depende dos papeis assumidos por adultos e crianças nos contextos escolares.
Quando observamos uma Pedagogia questionada pela infância, nos deparamos
com uma abertura de espaços simbólicos, no sentido de que a criança, com seus fazeres
cotidianos desafia os adultos e suas percepções em torno dela. Desse modo, observamos
que, na própria construção científica da educação, a criança passa dizer de si e, portanto,
a direcioná-la. Há o que Arroyo (2009, p. 119) chama de “Protagonismo da Infância”,
conforme ele ressalta na seguinte passagem:
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adulto para que se constitua único – e não cópia de alguém. Ao contrário, defendemos,
com base na psicanálise, tais afirmações. Porém, o que chamamos atenção é para a
diminuição do papel do adulto que as ciências referidas parecem então pretender, e suas
conseqüências para a constituição das infâncias atuais.
Esperamos, desse modo, contribuir para a elaboração de um contraponto que
instigue reflexões no sentido de ampliar as possibilidades de se enxergar as infâncias e
de assumirmos, enquanto adultos, os papeis que nos são inerentes frente a uma criança.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC,
2006.
GOMES, Ana Maria Rabelo. Outras crianças, outras infâncias? In: SARMENTO,
Manuel; GOUVEIA, Maria Cristina Soares (orgs.). Estudos da Infância: Educação e
Práticas Sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
LAJONQUIÈRE, Leandro de. Os filhos de hoje são de quem? Notas sobre uma
confusão em torno do pai. In: VOLTOLINI, Rinaldo (org.). Retratos do Mal-Estar
Contemporâneo na Educação. São Paulo: Escuta/ Fapesp, 2014.