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OS NOVOS OLHARES SOBRE A INFÂNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA


EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Lia Silva Fonteles Serra1

RESUMO
Este trabalho visa discutir os novos olhares que as ciências humanas vêm
direcionando à infância, levadas por uma modificação no lugar ocupado
pelas crianças na sociedade atual. Nesse sentido, questiona os papeis
assumidos pelos adultos frente a essa nova visão, o que impacta diretamente
no desenvolvimento das práticas educativas e das relações estabelecidas
entre professores e alunos – adultos e crianças – em um contexto regido pela
pedagogia, ciência que, por sua vez, é alimentada por esses olhares e pelo
convívio cotidiano com a infância.
Palavras-chave: Infância; Ciências; Olhares.

Minhas reflexões em torno da temática proposta para este artigo surgiram a


partir de uma pesquisa realizada em nível de mestrado 2 a respeito do lugar da criança na
sociedade contemporânea a partir dos olhares de professores, entendendo que esse lugar
traz implicações para a construção da infância - ou das infâncias3 – atualmente. Na
oportunidade, realizei um trabalho de cunho antropológico, com contribuições da
psicologia, psicanálise, história, sociologia e pedagogia para a construção das
compreensões pretendidas. Esse pontapé inicial, que me colocou diante de muitos
outros questionamentos, me impulsionou a continuar o caminho de reflexões que ainda
hoje realizo na tentativa de construir interpretações que me permitam, junto com o meu
leitor, buscar compreensões frente à infância com a qual nos deparamos na
contemporaneidade.
A convergência dos olhares das diversas ciências que estudam o humano me
parece então um bom caminho para o levantamento de proposições em torno da
temática. Diversos posicionamentos se constroem cientificamente questionados pelo
modo como percebemos as infâncias atuais, que se diferencia fortemente dos modos
anteriormente vistos, uma vez que hoje é bastante clara a existência de um espaço social
distinto para as crianças nas sociedades ocidentais.
Nesse sentido, convido as construções contemporâneas realizadas em torno da
infância atual - a Sociologia da Infância, a Antropologia da Infância, a Pedagogia e a
Psicanálise - para dialogarem, através de suas reflexões, na tentativa de buscarmos
novas interpretações e novos olhares que respondam aos nossos questionamentos: que
infâncias são essas que nos deparamos atualmente? Qual a influência dos adultos de
hoje na construção das infâncias? Que implicações as infâncias atuais trazem para a
educação?
Com essas questões, buscamos compreender as infâncias atuais para pensarmos
criticamente na educação que se constrói em torno delas e na sociedade que pensamos
1
Professora do Departamento de Educação II da Universidade Federal do Maranhão. Mestre em
Educação. Psicóloga e Pedagoga.
2
Pesquisa intitulada Imagens da Infância na Escola Pública de São Luís: o lugar da criança no imaginário
de professores, defendida através do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Maranhão, com financiamento da CAPES. Dissertação completa disponível em:
http://www.tedebc.ufma.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=843
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Entendemos, conforme as construções científicas contemporâneas, que não existe apenas uma infância,
marcada por um período do desenvolvimento biológico, mas sim diversas infâncias, construídas
simbolicamente pelos sujeitos.
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estar, narcisicamente, construindo através delas. Veremos que, em determinados pontos


de vista, alguns desses estudos se contrapõem, evidenciando diferentes posicionamentos
diante da criança, o que nos permite repensar nossos próprios posicionamentos,
pensamentos e atitudes frente a ela.
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A vivência cotidiana com crianças em contextos sociais, como no caso das
instituições escolares, por exemplo, nos permite que pensemos rapidamente através da
ótica da Sociologia da Infância e da Antropologia da Infância, que nos evidencia uma
criança que deixa de ser infans, ou seja, que passa a ter voz na sociedade. Essas
correntes da Sociologia e da Antropologia vêm se desenvolvendo amplamente através
de pesquisas, também, em contextos educativos.
Não raramente podemos observar no nosso dia-a-dia a “esperteza” das crianças
em contato com o meio social atual e podemos facilmente perceber a diferença delas em
relação à nossa época de infância. Assim, verificamos que as sociedades estão em
constante movimento e sempre operando modificações aos costumes estabelecidos. Mas
quem seriam os operadores de tais mudanças? As crianças seriam ativas em tal
processo? Ou apenas recebem passivamente aquilo que lhes é transmitido pelo adulto?
A infância é uma categoria da estrutura social e agrega elementos simbólicos à
sociedade?
Tais questionamentos nortearam o desenvolvimento dessa nova abordagem
dentro da área da sociologia, modificando os olhares direcionados à infância. Sabemos
que esta fase da vida não esteve de fora dos estudos sociológicos, porém ela era
normalmente enxergada sob o ponto de vista das categorias adultas ou das instituições.
A Sociologia das Mulheres, a Sociologia da Família e a Sociologia da Educação são
algumas das vertentes que acabam por se referir à infância, mas sempre enquanto
produto do processo de socialização encabeçado pelos adultos.
A emergência do “sentimento de infância”, conforme Ariès (2006), no início da
Idade Moderna, coincidiu com um processo de socialização específico para a infância
que se dava por orientações através de escritos moralistas da época e das instituições
específicas para a educação das crianças. Assim, autores como Sarmento (2009, p. 22)
consideram que uma Sociologia da Infância já operava há alguns séculos, porém sob
moldes bastante diferentes daqueles que alguns autores contemporâneos têm
desenvolvido a partir da última década do século XX. Por esse motivo, estudiosos se
referem atualmente a uma nova Sociologia da Infância. Esse autor considera que “existe
infância na medida em que historicamente a categoria etária foi constituída como
diferença e que essa diferença é geradora de desigualdade”. A desigualdade, então
verificada a partir da emergência do sentimento de infância e geradora desse
sentimento, se constitui fincando suas bases na ideia de inferioridade. A criança, em sua
diferença em relação ao adulto, estaria socialmente regida pelo poder e pelo controle
deste, passando a ser confinada aos espaços privados (família e instituições sociais) e
não tendo, desse modo, participação na esfera pública.
Nesse sentido, a criança foi estudada tradicionalmente pela Sociologia como não
sendo um ser social pleno, sendo percebida como “estando em vias de o ser, por efeito
da ação adulta sobre as novas gerações”, conforme revela Sarmento (2009, p. 20), que
acrescenta, criticando:
O conceito de socialização constitui, mais do que um constructo
interpretativo da condição social da infância, o próprio fator de sua ocultação:
se as crianças são o “ainda não”, o “em vias de ser”, não adquirem um
estatuto ontológico social pleno – no sentido em que não são “verdadeiros”
entes sociais completamente reconhecíveis em todas as suas características,
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interativos, racionais, dotados de vontade e com capacidade de opção entre


valores distintos – nem constituem, como um objeto epistemologicamente
válido, na medida em que são sempre a expressão de uma relação de
transição, incompletude e dependência.
Esse autor nos auxilia a observar as diferenciações que foram se constituindo no
decorrer do tempo em relação aos estudos sociais sobre a infância. As teorias
tradicionais, voltadas principalmente para as instâncias encarregadas por socializar a
criança, tendo, portanto, como base esse conceito de socialização, que foi inicialmente
desenvolvido pelo sociólogo francês Emile Durkheim (1858 – 1917), hoje se
diferenciam, conforme nos revela Sarmento (2009) das chamadas teorias da
“reprodução interpretativa”, conceito criado por W. Corsaro, em alternativa à
reprodução passiva. Essas teorias se caracterizam por partirem da ideia de que as
crianças,
na sua interação com os adultos, recebem continuamente estímulos para a
integração social, sob a forma de crenças, valores, conhecimentos,
disposições e pautas de conduta, que, ao invés de serem passivamente
incorporados em saberes, comportamentos e atitudes, são transformados,
gerando juízos, interpretações e condutas infantis que contribuem para
configuração e transformação das formas sociais (SARMENTO, 2009, p. 29).
. Nesse sentido, as correntes sociológicas são atualmente organizadas nestes dois
grupos: teorias tradicionais da socialização e teorias da reprodução interpretativa.
Percebemos, dessa forma, as grandes tendências atuais nos estudos da
Sociologia da Infância, que modificam os olhares tradicionais desse campo de estudo
em relação à criança. A infância passa a evocar através das ciências contemporâneas
que a estudam, como é o caso da Sociologia da Infância, uma valorização de sua voz, de
sua participação na vida social e adulta.
A antropologia, conforme dissemos, também vem acompanhando nas três
últimas décadas as novas tendências acerca dos estudos da infância no ocidente. Cohn
(2009) e Gomes (2009) apontam para a emergência, nos últimos 30 anos, de uma
Antropologia da Infância que acompanha as concepções contemporâneas de infância do
mundo ocidental. A necessidade de superação da visão fragmentada que se instaurava
nas ciências em épocas anteriores, acaba por exigir uma articulação entre os diversos
aspectos humanos, produzindo assim a necessidade de modificação dos olhares
direcionados às diferentes fases da vida humana.
A infância, desse modo, ganha novos sentidos e significados, passando a ocupar
lugares diferentes nas sociedades e, consequentemente, nas pesquisas em ciências
humanas. De um modo não diferente da Sociologia, a criança na Antropologia passa a
ser vista como um ser social ativo, que participa dos processos simbólicos da sociedade,
gerando novos impactos na cultura a partir do momento em que entra em contato com
ela, criando sobre ela. Nesse sentido, ela passa a ser sujeito nas investigações
antropológicas, o que denota uma mudança radical nas pesquisas dessa área sobre a
infância, conforme Cohn (2009, p. 21-28) nos explica, enfatizando que,
ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando
papeis sociais enquanto são socializados ou adquirindo competência e
formando sua personalidade social, [as crianças] passam a ter um papel ativo
na definição de sua própria condição. [...] a criança não é apenas alocada em
um sistema de relações que é anterior a ela e reproduzindo eternamente, mas
atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas das relações sociais
dentre aquelas que o sistema lhe abre e possibilita.
Desse modo, observamos que a criança passa de receptáculo passivo da cultura
para sujeito atuante na produção desta, sendo capaz de elaborar “sentidos para o mundo
e suas experiências, compartilhando plenamente de uma cultura”, ainda que tais
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sentidos partam de um sistema simbólico que é compartilhado com os adultos. Tal


proposição não pode ser negada, uma vez que a criança necessita partir de vivências
culturais para que possa construir suas elaborações simbólicas (COHN, 2009, p. 35).
Encontramos, assim, discussões com princípios comuns: a criança é um ser que,
para constituir-se simbolicamente dentro de uma sociedade, parte das construções
simbólicas já realizadas pelos adultos, porém, como seres pensantes e ativos
psiquicamente, constroem em torno dessas acepções simbólicas, gerando novos modos
de ser nos contextos sociais e culturais.
Esta concepção não me parece diferir do que a Psicanálise há tempos observa
acerca da criança e sua constituição enquanto sujeito no campo do outro. Há um ponto
de partida que é o outro, o adulto, e uma constituição própria do sujeito, que começa a
operar na sua relação com este outro à medida que vai se constituindo, não sendo,
portanto, apenas um produto bruto das intervenções de alguém – criança como simples
cópia do adulto – conforme os estudos mais tradicionais buscavam afirmar.
Conforme assinala Freud e nos explica Lacan, a criança, antes mesmo do
nascimento biológico, começa a ser inserida no campo simbólico a partir de sua relação
com o Outro, representado pelos pais. É o olhar e a voz, enfim, o investimento psíquico
do adulto sobre a criança que a leva a se tornar um sujeito desejante e isso marca a sua
existência enquanto ser humano. Essa condição desejante opera modificações
significativas no seu aparelho psíquico, pois marca sua possibilidade de desenvolver-se
subjetivamente na eterna busca pelo objeto faltante – objeto do desejo. Onde há falta, há
desejo e vice-versa.
Porém, para que possamos compreender como esse processo opera e de que
forma isso implica na constituição das diferentes infâncias, é necessário que vejamos o
lugar do adulto e não somente o da criança, uma vez que esta se constitui apenas devido
ao investimento que é realizado por aquele. Portanto, precisamos compreender os
impulsos que o levam a realizar tais investimentos e, a partir desse ponto, entender as
novas relações que vêm se estabelecendo entre pais e filhos – crianças e adultos -, as
quais geram modificações nas constituições infantis e, portanto, alterações nos
contextos educativos, nos quais os adultos – professores – estão propensos a exercer
papeis parentais.
Os adultos, conforme nos lembra Vocaro e Ferreira (2014), superinvestem nos
filhos evidenciando um narcisismo parental, pois acreditam que estes podem ser tudo
aquilo que os pais não foram, sendo como um “pedaço” deles. Desse modo, há toda uma
projeção deles mesmos nos filhos, o que os leva a investirem psiquicamente, supondo
pensamentos e falas antes mesmo das crianças apresentarem possibilidades de uma
linguagem oral ou até mesmo antes de nascerem ou existirem. É esse processo que
permite que elas desenvolvam seus pensamentos, linguagens e emoções e isso se dá
pelo fato de que é nesse investimento constante e na relação que vai sendo estabelecida
com as figuras parentais que a criança passa a ser desejante e, assim, constitui-se
enquanto sujeito na relação com os que a rodeiam.
Porém, nota-se atualmente que “os filhos de hoje evocam uma relação imediata e
direta com sua atualidade, portanto, teriam se tornado alheios a determinações prévias
ou a promessas em seu vir-a-ser”. Contudo, isso possivelmente se dá pelo fato de que,
conforme nos mostram as autoras citadas, as crianças seriam melhores entendedoras das
mensagens dos adultos que eles mesmos. Aqui percebemos um dado interessante que
amplia nossas compreensões em relação às reflexões das ciências humanas já discutidas
anteriormente sobre a contemporaneidade das infâncias (VOCARO e FERREIRA,
2014, p. 16).
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A percepção muito difundida atualmente por estas ciências de que a criança não
é um vir-a-ser e sim ela o é, com seus pensamentos, sua voz e sua participação na
sociedade e nas construções culturais, é aqui interpretada como sendo consequência das
mensagens inconscientemente transmitidas a elas pelos adultos que, na sociedade
capitalista atual, como a que vivemos, são cada vez mais tendenciosos a “terceirizarem”
a criação dos filhos, buscando ajuda para exercer sua função. Talvez isso se dê pelo fato
dos pais, como sujeitos desejantes inscritos na falta, pensarem não ser suficientes para
garantir todas as necessidades que, em suas fantasias, são necessárias a seus filhos.
Essa terceirização de cuidados não é algo que se desenvolveu apenas na
atualidade. Sabemos que, conforme nos mostrou Ariès (2006), logo que houve uma
diferenciação entre crianças e adultos, surgiram os especialistas, ou moralistas,
conforme ele chamou, que diziam sobre os modos adequados de se cuidar e educar uma
criança. Portanto, desde o século XVI encontramos registros sobre a destituição do
saber dos pais, que passam a assumir saberes diferentes dos seus para criarem seus
filhos (ARIÈS, 2006).
Essa destituição do saber dos pais é hoje amplamente enfatizada pelo formato de
sociedade em que vivemos. Com a ampliação dos profissionais especializados e com a
ocupação cada vez maior com o trabalho, os pais necessitam de uma rede de cuidados
que possa dar conta da sua incompletude na relação com os filhos. Desse modo,
encontramos o que Vocaro e Ferreira (2014) chamou de filhos de pais anônimos ou
evocamos a discussão desenvolvida por Lajonquière (2014) incitada pela pergunta “os
filhos de hoje são filhos de quem?”, observando que, se os pais não sabem sobre seus
filhos e buscam esse saber na sociedade, as crianças passam a conviver com referências
anônimas, ou com o anonimato do desejo, o que leva-as a uma visão imediatista do
mundo, na busca de satisfações que tamponem seus desejos voltados às figuras
parentais.
Assim, a criança investe de forma mais enfática em sua atualidade, no
imediatismo, e os próprios adultos criam, possivelmente, como uma alternativa, a ideia
de que a criança não é mais um vir a ser, mas já o é.
Nesse sentido, entendemos que essa posição do adulto pode estar relacionada a
uma pretensão em tirar a criança do lugar de demanda, diminuindo assim, sua angústia
ao se sentir impossibilitado de preencher todas as necessidades que um infans, e toda a
sua dimensão simbólica de futuro, possui.
Não estamos defendendo, com isso, que a criança não é um ser pleno, que pensa
e constrói, pelo contrário. Porém, na perspectiva da Psicanálise ela é, acima de tudo, um
sujeito de desejo, que demanda do outro – o adulto – e que também é demandada por ele
para que assim se constitua. Há, portanto, um perigo inerente na perda da dimensão de
futuro que envolve a criança. Uma vez que ela deixa de ser infans, ou seja, passar a ter
voz na sociedade, a dizer de si e, assim, não necessitar do adulto, sua demanda em
relação ao futuro cessa, ela não almeja esse futuro, uma vez que passa a fantasiar que já
é, antecipando momentos vividos por adultos, passando diretamente à adolescência,
abolindo a latência e, portanto, gerando um curto-circuito numa pretensa equivalência
entre prazer e gozo, conforme nos lembram Vocaro e Ferreira (2014).
Se a criança sai da sua posição de demanda frente ao adulto, a angústia deste em
se destituir do saber sobre ela diminui, sendo, portanto, uma posição de maior conforto.
Os pais contam com os diversos profissionais para cuidar e educar suas crianças e, nessa
situação, podem ainda pretender contar com a própria criança, que sabe mais de si que
os pais. Nesse ponto, nos encontramos novamente com o problema. Se a criança sabe de
si e os pais não sabem dela, então de quem ela é filha? Quem serão aqueles que irão
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demandar dela, fazendo-a tornar-se sujeito? Quem irá inscrevê-la no campo do desejo?
A quem ela endereça o seu desejo?
Esse problema nos leva a refletir sobre tais questões postas atualmente pelas
ciências humanas que estudam a infância. Nesse contexto, podemos observar as
implicações da destituição do saber dos pais na constituição das infâncias atuais.
***
Discutiremos infâncias na relação destas com a Pedagogia, uma vez que
entendemos que, em instituições escolares, as infâncias estão sendo frequentemente alvo
de reflexões por parte dos adultos – educadores – que as rodeiam, por desafiarem
constantemente as concepções destes, no intuito de que sejam desenvolvidas práticas
que levem as crianças a alcançarem o estatuto de sociedade pretendido pelo discurso
pedagógico. Nessas instituições, as infâncias se encontram e se constroem. Assim,
buscaremos refletir sobre as implicações da interpretação apresentada anteriormente
para as infâncias e, consequentemente, para a Pedagogia.
A Escola foi há um tempo um dos auxílios buscados por pais na educação dos
filhos, sendo ela possuidora do saber sobre como educar a criança. Porém, o que
notamos hoje é uma destituição também da escola nesse processo. Os especialistas –
psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, etc. – são os detentores do saber sobre a
criança e, portanto, sabem como cuidar dela e educá-la. Os educadores entram, assim,
no mesmo processo dos pais e a criança novamente perde sua referência. Podemos
pensar, nesse sentido, na destituição da figura paterna, conforme interpretação de
Lajonquère (2014), lembrando o que Lacan discutiu sobre o “declínio da imago social
do pai”. A escola, como lugar de regras e de marcação dos limites e das diferenças,
deveria recriar um ambiente onde os papeis materno e paterno exercessem funções e
servissem de referência para o posicionamento da criança enquanto sujeito.
Nesse contexto, que infâncias estão se constituindo nos dias de hoje? Não
raramente observamos nas próprias instituições escolares movimentos que diferenciam
amplamente as crianças de hoje das de anteriormente. Necessidades de satisfações
imediatas a todo custo, uso de violência na relação com colegas e professores, desprezo
ou irritação frente à rotina escolar, afastamento e exclusão diante das diferenças...as
infâncias se constituem então frente a um contexto adulto bastante diferenciado, o que
gera grandes modificações nos modos de ser e se relacionar.
Essas infâncias, por sua vez, questionam constantemente a Pedagogia,
ciência que, por ofício, convive concretamente com as experiências cotidianas daquelas,
conforme lembra Arroyo (2009, p. 119). Para este autor, as verdades e imagens que são
dinamicamente construídas por nós ao longo do tempo acerca da Pedagogia e da
infância, acabam por se encontrar e, juntas, fazem-se questionamentos, os quais
favorecem a continuidade desse dinamismo: “a pedagogia vai ao encontro da infância
com seus imaginários e suas verdades. Verdades prévias que condicionam sua
experiência, seu pensar e fazer pedagógicos”. Porém, é preciso que lembremos que nem
sempre a Pedagogia aceitou questionar-se ou ser questionada pela infância, pois isso
depende dos papeis assumidos por adultos e crianças nos contextos escolares.
Quando observamos uma Pedagogia questionada pela infância, nos deparamos
com uma abertura de espaços simbólicos, no sentido de que a criança, com seus fazeres
cotidianos desafia os adultos e suas percepções em torno dela. Desse modo, observamos
que, na própria construção científica da educação, a criança passa dizer de si e, portanto,
a direcioná-la. Há o que Arroyo (2009, p. 119) chama de “Protagonismo da Infância”,
conforme ele ressalta na seguinte passagem:
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[...] o protagonismo da infância e suas experiências e formas de viver interrogam as


verdades da pedagogia. São tempos em que as experiências da infância são tão
tensas e precarizadas que as verdades da pedagogia sobre si própria e sobre a
infância entram em choque. As metáforas e imagens de ambas se quebram. Estamos
em tempos em que o pensamento pedagógico é levado a rever suas verdades,
metáforas e autoimagens, a partir das experiências da infância. [...]
Entendemos as pretensões do autor ao enfatizar este movimento e suas
consequências para o desenvolvimento das práticas educativas, porém mais uma vez
chamamos a atenção para o perigo inerente a esse processo. Isolar o saber do adulto
sobre “suas” crianças e ampliar um movimento de que somente elas sabem de si, de que
são as protagonistas, pode levar a um desenvolvimento científico que as desfavorece
enquanto sujeitos.
Encontramos, assim, infâncias que se elaboram num contexto de destituição do
adulto, no qual estes são diminuídos em relação ao seu saber, as crianças acabam
diminuindo sua suposição no saber do adulto e, portanto, perdem sua referencialidade.
Isso leva à elaboração de infâncias perdidas, formadas por crianças com imensas
angústias na relação com o outro, e, portanto, com dificuldades em assumir o seu papel
infantil no contexto da sociedade. Crianças que fantasiam ter poder sobre os adultos,
que lidam com limites de forma bastante custosa, ou não conseguem lidar com eles, que
não se adaptam ao ambiente escolar ou buscam formas negativas de fazê-lo...enfim,
crianças mergulhadas em angústias cada vez maiores por terem sido permitidas crescer
a partir de papeis parentais que flutuam ao seu redor, papeis que não se firmam e,
portanto destroem suas referências na constituição de si, deixando marcas no seu modo
de se relacionar, que as acompanharão durante suas vidas. Isso implica fortemente nos
modos de ser criança, e, portanto, na construção das infâncias atuais.
Lembramos que este é um olhar lançado sobre as discussões estabelecidas e
tendências das ciências atuais que estudam a infância ocidental, sem esperar estabelecer
generalizações. Entendemos que tais tendências refletem no modo como as infâncias se
constituem atualmente, porém, sabemos que são muitas as nuances que influem nessa
elaboração, não sendo possível, portanto, pretender tal generalização.
***
Neste percurso buscamos compreender o posicionamento das ciências humanas
que discutem a infância contemporânea tomando-o como base para uma interpretação
psicanalítica no que concerne a tal posicionamento e as implicações deste para a
constituição das infâncias atuais e sua interface com a educação.
Observamos que o ponto principal deste posicionamento gera questionamentos
por parte do pensamento psicanalítico no que concerne o chamado protagonismo
infantil. Entendemos que uma criança, ao entrar na vida dos pais, se torna figura de
essencial importância, ocupando um amplo lugar em suas emoções e pensamentos. É
esse acontecimento que leva os pais a demandarem atitudes de sujeito dos filhos, a
suporem sujeito neles, o que os seva a se constituírem enquanto tal. Entretanto, o que
buscamos levantar foi a possibilidade de que este protagonismo, conforme abordado
pelas ciências, pode levar a criança a um lugar de diminuição de demandas. Os adultos
não precisam demandar tanto de um sujeito que já é, que já tem voz, que fala e sabe de
si. Assim, as referências se perdem, tanto frente às figuras parentais, quanto frente aos
educadores, o que gera imensas implicações para a constituição do sujeito e,
consequentemente, grandes diferenciações nas infâncias com as quais convivemos
atualmente.
Nesse sentido, não pretendemos com essa discussão criticar a visão da criança
como um ser que age na sociedade, que constrói cultura, ou seja, que interage com o
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adulto para que se constitua único – e não cópia de alguém. Ao contrário, defendemos,
com base na psicanálise, tais afirmações. Porém, o que chamamos atenção é para a
diminuição do papel do adulto que as ciências referidas parecem então pretender, e suas
conseqüências para a constituição das infâncias atuais.
Esperamos, desse modo, contribuir para a elaboração de um contraponto que
instigue reflexões no sentido de ampliar as possibilidades de se enxergar as infâncias e
de assumirmos, enquanto adultos, os papeis que nos são inerentes frente a uma criança.

REFERÊNCIAS

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2006.

ARROYO, Miguel G. A Infância Interroga a Pedagogia. In: SARMENTO, Manuel;


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Sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. 2 ed.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

GOMES, Ana Maria Rabelo. Outras crianças, outras infâncias? In: SARMENTO,
Manuel; GOUVEIA, Maria Cristina Soares (orgs.). Estudos da Infância: Educação e
Práticas Sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Os filhos de hoje são de quem? Notas sobre uma
confusão em torno do pai. In: VOLTOLINI, Rinaldo (org.). Retratos do Mal-Estar
Contemporâneo na Educação. São Paulo: Escuta/ Fapesp, 2014.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In:


SARMENTO, Manuel; GOUVEIA, Maria Cristina Soares (orgs.). Estudos da Infância:
Educação e Práticas Sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

VOCARO, Angela; FERREIRA, Tania. Entre o capricho e o anonimato, quem são os


pais de hoje? In: VOLTOLINI, Rinaldo (org.). Retratos do Mal-Estar Contemporâneo
na Educação. São Paulo: Escuta/ Fapesp, 2014.

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