Você está na página 1de 14

Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

Eixo Temático
Quadrinhos e Linguagem

A ANÁLISE DO DISCURSO E AS HQS


Donizete A. Batista*
Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Professor da Faculdade Padre
Bagozzi, Curitiba, Paraná

RESUMO - A Análise do Discurso (AD) pode oferecer importantes ferramentas para o estudo
das Histórias em Quadrinhos. A partir dessa premissa, o presente trabalho revela alguns dos
discursos em relação às Histórias em Quadrinhos (HQs) ,em um primeiro momento, os
discursos do senso comum, que apontam os preconceitos que envolvem esse gênero. Ainda
considerado como cativo de um único público e, consequentemente, apresentando um
conteúdo não muito profundo. A Análise do Discurso é uma área da Linguística, que incorpora
ao seu modus operandi saberes de outras áreas além da Linguística. Para comprovarmos esta
tese selecionamos um cartum de Angeli, publicado originalmente no site Uol Sexo e depois em
uma antologia intitulada “Sexo é uma coisa suja”, observamos, por intermédio da AD, as várias
Formações Discursivas ali representadas e como os sujeitos retratados nesse cartum
assumem, incorporam essas vozes. Verificamos também como se dá a construção do humor,
baseado no principio de ironia, ou seja, na sua superfície o texto tenciona dizer uma coisa, na
apreensão de todos os elementos, a mensagem potencializa outros significados.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Linguística, Análise do Discurso, Cartum, Angeli

ABSTRACT - A Discourse Analysis (DA) may provide important tools to study the comics.From
this premise, this study reveals some speeches about the comics, at first,the discourse of
common sense, pointing the prejudices surrounding this genre,
still considered a single captive audience and because of that, the requirement
have a reading of "easy". The discourse analysis is an área of linguistics, which
incorporates the knowledge of their modus operandi fields other than linguistics.
For the implementation of Instrumental DA selected an Angeli's cartoon,
published in an anthology entitled "Sex is a dirty thing, " observed through the
AD, the various discursive formations and how they present the subjects
depicted in this cartoon assume incorporate these voices , We also note how is
the humor contruction based on the principie of irony, that is, on its surface the
text will say one thing, the apprehension of ali elements, the message
reinforces other meanings.

Keywords: comics, linguistics, discourse analysis, cartoon, Angeli.

1 INTRODUÇÃO
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

Há cerca de dois anos, as Histórias em Quadrinhos (HQs) foram


colocadas no centro de uma polêmica. A Secretaria Estadual de Educação do
Estado de São Paulo havia selecionado a obra Dez na Área, Um na Banheira e
Ninguém no Gol", da editora Via Lettera, para o programa que distribui livros às
bibliotecas escolares do Estado. A obra em questão apresentava palavrões e
nudez. O fato foi amplamente explorado pela mídia. Ramos (2009) coletou
algumas das frases proferidas no calor do debate:

“Eu achei um horror isso"


19.05 - Governador José Serra, em entrevista ao "SPTV 1ª
Edição", telejornal local da TV Globo
- "Queria saber como isso foi parar nas escolas. Eu sou mãe, o
senhor também tem família, filhos, netos. A gente fica até
assustado quando acontece uma coisa dessas."
19.05 - Carla Vilhena, apresentadora do "SPTV 1ª Edição",
na formulação de pergunta a Serra
- "Eu aliás achei de muito mau gosto. Desenho, tudo"
19.05 - Governador José Serra, na mesma entrevista ao
"SPTV 1ª Edição"
"A Associação dos Cartunistas do Brasil, que vem participando
por anos da luta pelo reconhecimento do autor brasileiro na
área dos quadrinhos e humor gráfico, não pode deixar de dizer
que as informações colocadas, dessa forma na mídia, podem
depor contra um trabalho sério nas escolas de utilização de
publicações de quadrinhos como ferramenta de incentivo à
leitura e cultura nacional"
19.05 - Nota da Associação dos Cartunistas do Brasil sobre o
caso, aqui no blog

Cada um desses interlocutores dá voz a diferentes pontos de vista sobre


um mesmo acontecimento. O político, o jornalista e o artista tomam a palavra,
retiram-na do seu sono de dicionário e a revestem de ideologias. Ideologias
cuja origem não se dá na emergência do fato em questão, mas possuem uma
espécie de tradição, de história, ou seja, esses enunciados estão alinhavados a
outros tantos, ditos, reditos nesse mais de um século de surgimento das HQs.
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

Decorrem desse fato algumas percepções muito pertinentes para a


nossa investigação. Toda a polêmica foi construída por um componente
concreto, material: a linguagem. É por meio dela que temos acesso ao mundo,
ao universo. Esse acesso não se dá de forma transparente, direta e objetiva. A
palavra media esse contato e ela nos chega atravessada de significações,
opaca de sentidos. Dessa forma, não somos donos da linguagem, mas ela que,
de alguma forma, nos ensina a ver e conceituar o mundo. As palavras
empostadas de um político, de um jornalista e de um apaixonado por HQS
sobre o mesmo evento vão indiscutivelmente variar, mudar. Elas são
orientadas de acordo com suas perspectivas ideológicas, ecoam as palavras
que constituíram esses A linguagem é material de pesquisa da linguística e nos
deparamos com uma imensa quantidade de “setores” que tomam a linguagem
como centro de suas investigações.

A Análise do Discurso (AD) integra esse grupo de ciências que


investigam a linguagem. Cada área delimitaria seu campo de atuação; como
uma espécie de loteamento da realidade, (BORGES e DASCAL 1991), as
fronteiras entre esses lotes seriam um tanto quanto imprecisos, pois, há áreas
da linguística que flertariam com a história, com a sociologia, outras utilizariam
conceitos emprestados da matemática, da biologia e até da física (estudos
acústicos de fonética e fonologia, por exemplo).

O objeto observacional – neste caso, a linguagem- seria coincidente,


porém as diferentes teorias criariam objetos teóricos distintos. Para tornar mais
claro, Borges e Dascal (1991) apresentam uma frase e demonstram como cada
ramo da linguística (re)constituiria o enunciado ao seu modo. Há teorias que
operariam na análise de elementos mínimos, retirados da repartição e
fragmentação do evento. Para outras, como a Análise do Discurso (AD),
entende como incompleto todo e qualquer enunciado, para que haja uma
leitura mais precisa desse evento, A AD buscaria por elementos extratextuais
pois “o discurso transcende o lingüístico, ele é socioconstituído e também o é
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

sentido, que não pode ser controlado como se fosse um objeto contido no
texto” (MASCIA, 2005 p. 46).

Dessa forma, A AD seria uma ciência da dispersão, pois utiliza saberes


de outras ciências. A recuperação da metáfora da salada de fruta utilizada por
Borges e Dascal (1991) se faz pertinente nesse momento. No conjunto dos
elementos que comporiam uma salada temos as frutas. Mas também há
ingredientes que fogem desse critério de “conjunto das frutas”. O creme de
leite, por exemplo. Assim, na AD, há os elementos mais característicos da
linguística como a fonologia e a sintaxe – A AD não os nega, afinal, os
discursos são construídos nessa base, mas também traz para dentro do
corpus, os saberes da história, da sociologia, da psicologia etc.

Justifica-se desta forma porque a AD pode ser um instrumento de


análise mais interessante, dentro das inúmeras áreas da linguística, para o
estudo das HQs. Uma vez que não está apenas interessada na língua por ela
mesma, mas nas instâncias históricas que motivaram o surgimento de
determinado enunciado, nos interdiscursos ali representados e
consequentemente, o mosaico de vozes que se parelham ou que se chocam.
Como analisar o gênero em questão utilizando os critérios da AD?

Vale lembrar que as HQs possuem um diferencial em relação a alguns


gêneros estudados pela AD, elas são constituídas, na sua grande maioria, pela
junção de duas formas de linguagem: uma verbal e outra imagética. Há HQs
sem palavras, entretanto, o inverso dificilmente pode ocorrer, uma vez que a
imagem é uma das marcas fundamentais para a constituição e reconhecimento
do gênero quadrinhos.

2 POSSÍVEIS LEITORES E LEITURAS

Para falar da AD e de como ela faz seus recortes no objeto


observacional – no caso a linguagem – optamos por apontar alguns conceitos
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

materializados na leitura de gênero discursivo. Na análise aponto alguns


conceitos próprios da área da linguística em questão.

O texto escolhido foi uma charge de Angeli, primeiramente publicada no


site Uol, na seção que tratava especificamente de sexo. Os cartuns produzidos
pelo autor, dentro dessa seção satirizavam e ironizavam questões ligadas à
temática sexual. O site é voltado para o público adulto, visto que muitos cartuns
abordam explicitamente temáticas sexuais, dentre elas, sexo anal, oral etc. Há
ainda muitos cartuns que apresentam como temática a violência doméstica
(agressões às mulheres, estupro etc.).

Figura 1

Fonte: ANGELI. Sexo é uma coisa suja. São Paulo: Devir, 2003 p. 32
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

A escolha do cartum em questão se deveu, sobretudo, pelas


possibilidades de recuperação das relações dialógicas ali instaladas. Para a AD
não há análise de um texto propriamente dito, o estudo só tem relevância se
investigar a emergência desse texto como parte de uma cadeia, de uma rede
de outros textos. Nas palavras de Foucault:

As margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente


determinadas: além do título, da primeiras linhas e do ponto
final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá
autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a
outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma
rede.(FOUCAULT 2004 p.26)

A AD faz um trabalho de mapeamento, observando em que outras


instâncias esse discurso é produzido e quais foram as condições que
permitiram sua propagação e difusão. Para Orlandi:

A noção de texto, enquanto unidade da análise de discurso,


requer que se ultrapasse a noção de informação, assim como
coloca a necessidade de de se ir além do nível segmental. O
texto não é soma de frases e não fechado em si mesmo.

Portanto, ao se passar para o texto como unidade de discurso,


se passa da operação de segmentação para a de recorte.
Passa-se da distribuição de segmentos para a relação das
partes com o todo, em que se procuram estabelecer, através
dos recortes, unidades discursivas. (ORLANDI, 2008 p. 22)

Dentro das perspectivas assinaladas por Borges e Dascal,(p 44) a AD


seria uma ciência heterogênea, da dispersão, de “tendência sociologizante”,
pois, utiliza na elaboração de instrumentos para análise do objeto
observacional, outras ferramentas oriundas de outras áreas científicas.
Possenti observa que a AD precisa necessariamente da linguística para se
constituir, entretanto, vê com ressalvas algumas posturas em relação à análise
de elementos “puramente linguísticos”. Para o autor
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

Não há dúvida nenhuma de que uma teoria do discurso deve


levar em conta a região do conhecimento chamada linguística
(...) Em suma, concordo com a necessidade de a análise do
discurso considerar a sintaxe e a enunciação, mas não num
quadro em que estes dois fatores sejam conjugados, e sim
num quadro em que eles estejam implicados (POSSENTI, 1993
p. 28)

Mais adiante do texto Possenti determina como deveria ser o quadro


epistemológico adequado para a AD. Para o autor, há necessidade de uma
teoria linguística, não a maneira como são feitas as análises no estruturalismo,
mas uma teoria ciente da sua incompletude, da necessidade de uma
ancoragem a outros fatores que não puramente lingüísticos. Essa teoria
contaria com uma ajuda de ciências auxiliares, que, de alguma forma, dariam
conta das lagunas da análise de primeiro tipo. Saberes da História, da
Psicologia, da Sociologia são fundamentais para complementar o quadro
teórico/metodológico da AD.

Ainda sobre o texto analisado para este trabalho, ele demandaria ainda
outras questões que não serão devidamente verificadas. A relevância do
suporte em que texto foi publicado. Como já dito, o cartum foi originalmente
pensado para ser veiculado em uma página da internet e logo depois publicado
em forma de livro. As relações de leitura e recepção desse texto são
diferentes. Há de se considerar que o público, na emigração de um suporte
para outro também muda.

Uma outra questão importante que é preocupação da AD é recuperação


histórica de como o gênero cartum se consolidou. Nas palavras de Mainguenau
(1993 p. 37)

Mas, se há um gênero a partir do momento que vários textos


se submetem a um conjunto de coerções comuns e que os
gêneros variam segundo os lugares e as épocas,
compreender-se-á facilmente que a lista dos gêneros seja, por
definição, indeterminada.
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

O cartum, assim como grande parte das HQs, teve sua origem na
imprensa do século XIX. Os caricaturistas retratavam com humor o cenário
político e social. O traço humorístico ainda se mantém, ou seja, os cartuns, em
sua maioria, oferecem ao leitor uma visão irônica e ácida da realidade. Não se
pode falar também que as HQs seriam um gênero único – foi essa visão, por
exemplo, que orientou a definição da obra “Dez na área” como infantil. O
cartum integra um grande feixe de gêneros ou um conjunto a que se
denominam HQs. Dentre os quais podemos pensar na charge. Considerar
também nas tênues fronteiras que delimitam a charge e o cartum (Ramos
2009). A charge possui uma dependência muito grande da sua cenografia
original, ou seja, os efeitos de humor podem se perder caso não seja possível
uma recuperação do horizonte de sua produção. O cartum já teria uma certa
independência da sua cenografia, pois lidaria com um humor, digamos, mais
universal.

A AD também pode apresentar algumas questões sobre o entendimento


do gênero HQs. Os preconceitos que encerram esse gênero, ora entendido
como destinada ao público infantil – marcação que se deve também na sua
origem- ora compreendido como leitura fácil devido soma de duas formas de
linguagem: a verbal e a não verbal. Dessa forma os leitores de HQs são
erroneamente definidos como um público não muito exigente, nem muito sagaz
(Pivovar 2007).

O texto quebra com algumas dessas expectativas. Primeiro por tratar de


uma temática não infantil. Ao mesmo tempo, para a sua compreensão, o
cartum exige do leitor uma mobilização de uma série de conhecimentos
prévios, sem os quais sua leitura fica comprometida. Ao falar de sexo, lida com
temáticas que pertencem a uma zona interditada, cheias de tabus, cercada de
restrições e vigiada por instituições reguladoras.

Basicamente há três enunciados no texto. Todos nominais. Os dois


primeiros nomeiam estabelecimentos “comerciais” e o outro, dentro do formato
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

charge, tem a função de legenda ou título da ilustração. Lidos isoladamente os


enunciados não dizem muito, os efeitos de sentidos se constituem nas relações
estabelecidas entre eles. No outro quadro, a leitura do título “teologia da
libertação” contrapõem-se a imagem da freira mostrando as nádegas. Teologia
da Libertação é uma corrente da Igreja Católica ligada a setores mais
progressistas, de filiação marxista. Entretanto, a expressão ganha outros
sentidos se lida no todo, ou seja, na soma texto + imagem (no caso, a freira
com as nádegas expostas). A expressão indicaria também uma “teologia” da
libertação sexual, da liberação.

Os elementos visuais que compõem o cartum merecem também a


atenção. Ramos, ao analisar os recursos de humor utilizados nas tiras,
esclarece o papel fundamental da leitura conjugada texto e imagem. Para ele,
as ilustrações também são signos. A definição dada ao signo amplia a já
clássica definição de Saussure.

(...) a parte verbal é um dos elementos dos textos escritos. Há


também signos visuais (vistos num sentido amplo), que se
subdividem em signos próprios: icônico, plástico e de contorno.
Cada um possui um significado depreendido pelo contexto
sociointeracional (...) O sentido global depende da relação
desses signos, também na percepção cognitiva e nas
inferências do leitor (RAMOS 2007 , s/p)

Na observação dos sujeitos representados na tira, temos um homem


vestido com um terno e uma espécie de livro debaixo dos braços. De posse
desses elementos, o leitor infere e deduz que o homem é um pastor, um
“representante de Deus” na Terra. Essa posição social, constituída
historicamente, garante a esse sujeito a interpelação do outro por uma série de
discursos pertencentes a uma dada Formação Discursiva (FD). Brandão define
FD como algo que constitui o discurso e
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

(...)pertencente ao gênero ideológico. Em outras termos, a


formação ideológica tem necessariamente com um de seus
componentes uma ou várias formações discursivas
interligadas. Isso significa que os discursos são governados por
formações ideológicas. São as formações discursivas que, em
uma formação ideológica específica e levando em conta uma
relação de classe, determina „o que pode e deve ser dito‟ a
partir de uma posição dada em uma conjuntura dada
(BRANDÃO 2004 p. 47-48)

Assim, pastores ou qualquer outro religioso são autorizados dentro


dessa FD a produzir determinados tipos de enunciados.

Como contraponto as FD representadas pela figura do pastor, ao lado da


Igreja, há um hotel de nome Paraíso. Apesar de praticamente pertencerem ao
mesmo campo semântico, as expressões “caminho do céu” e “paraíso” se
opõem justamente por estarem em FD diferentes.

(...)o sentido não é função de um significante/palavra, mas de


uma dupla ou de uma (n)dupla de significantes/palavras em
relação de mútua substituibilidade, mas apenas em cada
discurso historicamente dado. Isso se sustenta, nesta teoria,
pelo fato de que o sentido das palavras em um discurso
remete sempre a ocorrências anteriores. Ou ainda: qualquer
enunciação supõe uma posição, e é a partir dessa posição
que os enunciados (palavras) recebem seu sentido.
(POSSENTI ,2009 p. 372-373)

O nome da igreja sinaliza um céu “espiritual”, de elevação, conquista


que só obtida, de acordo com os preceitos cristãos, a custa de muito sofrimento
e abnegação. O nome “Paraíso” já indicaria os prazeres carnais, o sexo fora do
casamento, representada pela figura da mulher parada a porta. A referência ao
sexo nesse caso nega por completo o da visão utilitarista cristã – crescei-vos e
multiplicai-vos - as relações nesse espaço visariam saciar desejo, sentir prazer.

Tal como o pastor, a mulher é descrita por meio de signos icônicos, de


elementos visuais estereotipados, por meio das inferências do leitor a dedução
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

de que se trata de uma representante da mais antiga profissão do mundo: uma


prostituta. Na segunda charge, as roupas e a posição de prostração sinalizam
que as mulheres são religiosas e se encontram em alguma situação de
devoção. É a partir desse jogo de ideologias que se excluem e ao mesmo
tempo se visibilizam que se extrai o humor. Brait (1996) analisa os efeitos de
humor, especificamente a ironia, obtidos por essa justaposição imagem + texto.
Estudando as fotos e suas legendas de jornais dos anos 1980 e 1990, investiga
como determinadas fotos desdiziam o que estava inscrito nas legendas ou nas
manchetes.

(...) tudo isso estaria perdido nas dobras do tempo se a


verificação da atitude contraditória não se transformasse em
linguagem engenhosamente estruturada para que mais
alguém, além desse observador primeiro, pudesse partilhar
esse conhecimento. De fato, o acesso aos dois acontecimentos
interligados por uma contradição se deu na medida em que um
enunciador justapôs, articulou sintaticamente por meio da
linguagem visual e da linguagem verbal, enunciados
aparentemente dissociados. Ao articulá-los, formou-se um
conjunto, uma sequência discursiva, uma unidade
significante(...) (BRAIT, 1996 p. 64)

Essa leitura global e a apreensão dos significados que se revelam não


na superfície do texto, mas em estruturas localizadas em outro nível,
pressupõe um leitor mais sagaz do que imagina os detratores das HQs. Para
que se percebam as ironias do texto é necessário dar conta das relações
interdiscursivas presentes. Maingueneau (2005 p. 21) afirma que “o
interdiscurso tem precedência sobre o discurso”. Adiante, diz

(...) o caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz


aparecer a interação semântica entre os discursos como um
processo de tradução, de interincompreensão regrada. Cada
um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus
enunciados nas categorias do Mesmo e, assim, sua relação
com esse Outro se dá sempre sob a forma do “simulacro” que
dele constrói inscrever na ironia no texto, o autor utilizou.
(MAINGUENEAU 2005 p. 22)
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

As relações interdiscursivas se mostram em dois instantes. Em um nível


mais elementar, na leitura das imagens e nas inferências deduzidas pelo leitor,
os dois prédios e suas oposições discursivas. Um, de certa forma, constituindo
e completando o outro. A outra relação interdiscursiva se dá pela posição social
e histórica representadas pelas figuras presentes no cartum (os dois em pé
diante dos estabelecimentos e a prostrada possivelmente dentro de uma
igreja). O pastor simboliza a tradição discursiva que demoniza o sexo que não
seja para fins procriativos, que enxerga a mulher como grande responsável
pela queda do homem diante de Deus (o mito de Adão e Eva). Ao assumir essa
postura, o cristianismo fez do corpo da mulher palco para propagar sua
ideologia. A instituição procurou moldar a ferro e fogo o caráter feminino. A
obra “Ao sul do corpo” de Mary Del Priore escancara como a Igreja, amparada
por discursos religiosos, médicos, disciplinou durante quase 500 anos o corpo
feminino. Para seus propósitos fomentou a diferença entre a mulher da rua, a
puta e a santa-mãezinha, esta última, a dona de casa, recatada que
encontraria a redenção por meio das dores do parto, do cuidado do marido e
dos filhos (DEL PRIORE, 1993). Do outro extremo, a mulher da rua, o corpo
todo seria um estandarte opositor à ideologia cristã. As roupas coloridas, justas
e pequenas contrastando com as vestimentas sóbrias. A prostituta afronta a
igreja ao gerenciar o próprio corpo, negando a autoridade de padres e pastores
sobre ele. A figura que levanta o hábito desnuda não apenas seu corpo, mas
também todo o histórico de repressão e clausura. A libertação, presente na
legenda do titulo, implica desconstruir, de certa forma, as amarras discursivas
dessas instituições reguladoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho discutimos como é possível fazer uma leitura


das HQs utilizando como instrumental metodológico os critérios da AD. Para a
análise do cartum, além da leitura do código por si mesmo, é necessário um
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

outro nível de leitura, que apreende o texto como parte de uma rede, interligada
a outros e à história, Ou seja, a AD não busca apenas “decodificar” o texto,
mas também o que motivou sua produção, que vozes e discursos são
propagados nos enunciados. Esse rastreamento não se limita ao texto em
questão, mas a um mergulho em um emaranhado de vozes que o constituiu e
que possibilitaram o seu surgimento. Posto assim, as vozes ali representadas
ocupam diferentes frentes de atuação. De um lado, os discursos que ordenam
e condicionam o corpo e o sexo da mulher, do outro, as vozes que discordam
desse papel instituído, dessa função meramente biológica. O humor funciona
pela justaposição de um texto e de uma imagem que são discordantes entre si.
O jogo que se obtém é de uma tentativa de um sentido literal (os enunciados
verbais) que seria desconstruído pelos “deslizamentos” semânticos provocados
pela mesma linguagem verbal e também pela não verbal. Entretanto, esses
sentidos não estão indexados ao texto, só são acessíveis mediante a
recuperação de elementos além do texto, fora dele. Tais procedimentos em
relação às HQs denotam que o horror e a ignorância (palavras retiradas dos
discursos no início deste artigo) advêm, sobretudo, daquilo que não
conhecemos. A ciência ajuda a entender que as HQs não são de propriedade
de um público único, cativas de uma leitura linear e rasa. Trata-se de um
gênero heterogêneo, múltiplo, e que, nas suas entrelinhas – ou na sarjeta (o
intervalo de uma vinheta para outra) pode mostrar um emaranhado de vozes,
vozes estas que deflagram um pouco da matéria intersubjetiva de que somos
feitos e refeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGELI. Sexo é uma coisa suja. São Paulo: Devir, 2003 p. 32

BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso.; organização Calin-Andrei


Mihailescu;tradução José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras,
2000
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011

BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas, SP: Editora da


UNICAMP, 1996

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à Análise do Discurso.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004

DASCAL, Marcelo; BORGES NETO, José. De que trata a linguística afinal?


In: Histoire Épistémologie Language. Tome 13, fascícule 1, 1991. PP 13-50

DEL PRIORE , Mary. Ao sul do corpo- condição feminina, maternidades no


Brasil Colônia.Rio de Janeiro: José Olympio/Unb, 1993.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. Tradução Luis Felipe Baeta


Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004

MAINGUENAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti.


Curitiba, 2005.

MASCIA, M. A. A. Leitura: uma proposta discursivo-desconstrutivista. In: LIMA,


R. C. C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2005.

ORLANDI, Eny Pulcinelli. Discurso & Leitura. São Paulo: Cortez, 2008

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins


Fontes, 1993.

. In Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos ,


volume 3. Fernanda Mussalim, Anna Christin Bentes (org). São Paulo: Cortez,
2009.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

____________. Tiras cômicas e piadas: duas leituras, um efeito de humor.


2007 Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.

Você também pode gostar