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Literatura e outras séries culturais

Autora

Patrícia Freitas
Professora e realizadora de audiovisual, bacharel em Letras/Língua Estrangeira pela
Universidade Federal da Bahia – UFBA e mestra em Literatura e Cultura pelo programa de pós-
graduação do Instituto de Letras da UFBA. Cursou Direito pela UFBA, tendo, nesse período,
indisciplinadamente, movimentado-se por pesquisas e estudos em disciplinas de Antropologia, projetos
de Educação Jurídica Popular e atividades de extensão em Arquitetura. Atualmente, leciona Literatura
Anglófona, além de orientar turmas em estudos dirigidos de Literatura Colonial Brasileira e de Teoria
da Lírica no Centro Universitário Jorge Amado – Unijorge e Artes (um panorama de História da Arte)
e Língua Portuguesa no Colégio Villa. Participa de projeto de extensão “Corpos indóceis, mentes
livres” com oficinas de escrita criativa, coordenado pela professora doutora Denise Carrascosa, do
Instituto de Letras da UFBA.

Objetivos
Ao final desta disciplina, você deverá ser capaz de:
Identificar diferentes usos e noções da prática da escrita artística.
Explicar o conceito de escritura na tradição literária e filosófica e seu lugar nas práticas da
contemporaneidade.
Produzir escritos críticos a partir dos encontros com obras de arte expandidas e da noção de
crítica performativa.
Analisar os modos e efeitos da experiência estética.

Ementa
Estuda o campo expandido do literário em seu trânsito entre o processo criativo, a experiência
estética e as linguagens de arte (teatro, dança, performance, audiovisual, fotografia, artes plásticas e
artes de rua) em uma perspectiva comparada e transdisciplinar. Estudo dos conceitos de arte.

Referências

Complementar
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios sobre fotografia, cinema, pintura, teatro e
música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BASBAUM, Ricardo. Manual do artista etc. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
SANTOS, R. C. dos. Modos de saber, modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, a história, a
vida, o exterior. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
SANTOS, Roberto. Cérebro Ocidente / Cérebro Brasil: arte / escrita / vida / pensamento /
clínica / tratos contemporâneos. Rio de Janeiro: Circuito: Faperj, 2015.
Unidade 1 - Literatura: ficção, tradução e clínica

Introdução

1. A partir de quais perspectivas a prática literária pode ser compreendida enquanto produção
ficcional?
2. Como os textos literários têm sido traduzidos para outras linguagens artísticas?
3. De que maneira a literatura pode afetar nossos corpos subjetivamente e sociopoliticamente?

Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:


Identificar diferentes usos e noções da prática da escrita artística.

Conteúdo Programático

Esta unidade está dividida em:


Aula 1 - Literatura como ficção
Aula 2 - Literatura e tradução
Aula 3 - Literatura e clínica

Aula 1 - Literatura como ficção

Para pensar/articular a disciplina Literatura e outras séries culturais, precisaremos atravessar


algumas questões caras. A primeira delas é: o que é ficção?
Antes, porém, de iniciarmos a problematização desse conceito, é necessário indagar: afinal, o
que é literatura?

O téorico/professor inglês Jonathan Culler, por intermédio do livro Teoria literária: uma
introdução, será um importante agenciador para respondermos (ou tentarmos responder, já que não se
trata aqui de respostas precisas, mas de múltiplas reflexões disparadas por diversas perguntas) essa
questão. O próprio Culler se faz e nos faz essa pergunta – O que é literatura?

"O que é literatura?" pede não uma definição, mas uma análise, até mesmo uma discussão, sobre
por que alguém poderia, afinal, se preocupar com a literatura. Mas "o que é literatura?" poderia também
ser uma pergunta sobre as características distintivas das obras conhecidas como literatura: o que as
distingue das obras não literárias? O que diferencia a literatura de outras atividades ou passatempos
humanos? (CULLER, 1999, p. 28)

Diante da indefinição acerca do que é e do que não é literatura, Culler propõe cinco tópicos:

Tópico 1: a literatura como a "colocação em primeiro plano" da linguagem

O texto literário é visto, nesse primeiro tópico, como um tipo de linguagem que altera os
significados ordinários das coisas. O que isso quer dizer? Culler traz a noção de literariedade. A
literariedade é uma espécie de categoria, criada por estudiosos (aqui poderíamos falar sobre os
formalistas russos, por exemplo, mas ainda não é o momento) que tentam dar ao texto literário um
valor intrínseco, isto é, algo que está na constituição do próprio texto ou é inerente a ele.

Através dela, o texto literário recoloca as palavras e as coisas em lugares diferentes daqueles
comumente encontrados na linguagem denotativa do cotidiano. Um situação-exemplo pode nos ajudar
a entender, mais pragmaticamente, o que a categoria literariedade é e o que ela pretende:
Um transeunte, ao atravessar costumeiramente a mesma rua de sempre, indo para o trabalho se
depara com o seguinte verso escrito no muro: “Deixei uma ave me amanhecer”. O verso pode gerar
um estranhamento no leitor. Afinal, no sentido dicionarizado, uma ave não pode amanhecer ninguém.
O significado de ave, nesse verso, não é o mesmo significado reduzido de ave na frase: “Há pássaros
azuis no Brasil”. O poeta do verso, Manoel de Barros, portanto, ampliou o significado dos significantes
árvore e amanhecer. Essa ampliação gera uma desorganização ou reorganização da linguagem (dos
significantes e dos significados). Com o texto literário, a palavra ultrapassa os limites impostos pelos
dicionários.

Tópico 2: literatura como integração da linguagem

O aluno atento pode desconfiar do tópico 1, afinal, não é característica apenas do texto literário
colocar a linguagem em primeiro plano. Podemos encontrar sentidos denotativos nos textos literários
e sentidos conotativos (traços da literariedade) em textos, comumente, não considerados como
literários.

Exemplo de sentido denotativo no texto literário: no conto Aqueles dois, é narrado “Eram dois
moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas
quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias” (ABREU,
2014, p. 103). Veja que aqui a linguagem está posta, estrategicamente, a serviço de uma compreensão
da narrativa. Para isso, ela atende ao significado fixo do dicionário – mulher só pode ser entendida,
nesse exemplo, como mulher.

O mesmo não acontece quando alguém corriqueiramente diz: “estou morrendo de fome”. Nesse
enunciado (exemplo de sentido conotativo em texto não literário), entendemos que a linguagem excede
ao significado dicionarizado – o verbo morrer, aqui, indica que há alguém sem se alimentar durante
muitas horas, mas sem correr risco de vida.

Em nossa linguagem coloquial, na oralidade ou ainda em textos publicitários, encontramos


traços que nos remetem ao texto literário. Mais uma vez, nos deparamos com a impossibilidade de se
obter uma conclusão decisiva sobre o que é e o que não é literário.

Nesse tópico 2, o que Culler nos ensina, sem querer encerrar a literatura em um conceito fixo,
é que há uma predisposição no texto literário em gerar outras maneiras de abordar as palavras, o
cotidiano e a vida.

Tópico 3: literatura como objeto estético

Precisaríamos de muitos dias para discutir o que é estética. Parte do pensamento filosófico se
debruçou para pensar nessa noção. Entretanto, para fins didáticos, vamos retomar o conceito a partir
de nosso diálogo com Culler:

Estética é historicamente o nome dado à teoria da arte e envolve os debates a respeito de se a


beleza é ou não uma propriedade objetiva das obras de arte ou uma resposta subjetiva dos espectadores,
e a respeito da relação do belo com a verdade. (CULLER, 1999, p. 28)

Culler não desenvolve esse tópico, mas nos deixa, como é dito no bom português popular, com
a pulga atrás da orelha. As lacunas, deixadas por ele, suscitam em nós, estudantes da literatura e da
linguagem, muitas questões:

A literatura é apenas expressão do belo?


O que está em jogo, no texto literário, é apenas o valor estético ou formal do texto?
O texto literário, ainda que lide com o estético e amplie a noção de belo, não se configura
também como um gesto político?
Ou seja, podemos pensar o estético sem pensar no ético/ no político?

Tópico 4: literatura como construção intertextual ou auto reflexiva

Para Culler (1999, p. 41), a literatura é uma prática na qual os autores tentam fazer avançar ou
renovar a literatura e, desse modo, é sempre implicitamente uma reflexão. O texto literário é como
construção intertextual porque ele sempre pode se conectar direta ou indiretamente a outro texto
literário.

Muitos escritores, conscientemente, dialogam seus textos com outros, como é caso da poeta
Marilia Garcia, cuja feitura do livro Teste de resistores parte do procedimento de colocar em ordem
alfabética os versos do livro A teus pés, de Ana Cristina Cesar. Outras vezes, cabe ao leitor inferir
possíveis articulações e produzir intertextualidades. Quantos romances foram escritos atualizando a
história de Romeu e Julieta, por exemplo? É possível, assim, entendermos que o romance Queria ver
você feliz, de Adriana Falcão, é mais um dos textos que conversam com a história de amor dos
personagens shakespearianos.

As tantas conexões possíveis entre os textos literários fazem deles um tecido que se dobra em
si mesmo e, portanto, pode apresentar diversas camadas imbricadas. O texto literário, ao se referenciar,
produz autorreflexões. Culler, no entanto, aponta que a intertextualidade e a autorreflexão não são
suficientes para determinar o que é literatura.

Até aqui, para pensar a ficção, fomos conduzidos a refletir sobre o que é literatura. Vimos quatro
dos cinco tópicos elencados por Culler, faltando um, que é exatamente aquele que mais nos interessa,
porque traz a articulação da literatura como ficção.

Mas antes de nos determos nesse tópico, é necessário abrirmos um importante parêntese e
entendermos que o conceito de literatura não é estático. Ele mudou no decorrer do tempo. Identificamos
em três diferentes paisagens a peculiaridade do significado que o literário tem em cada uma. As três
paisagens são as seguintes:
Paisagem 1: até fins do século XVIII.
Paisagem 2: até fins do século XIX.
Paisagem 3: a partir do início do século XX.

Nomearemos essas três paisagens, respectivamente, como:


Paisagem 1: literatura, um campo aberto.
Paisagem 2: literatura, territórios demarcados.
Paisagem 3: literatura, fronteiras expandidas.

Essa divisão feita é estratégica. Por quê? Porque dispara, em nossas discussões, no decurso
desta disciplina, alguns conceitos-chave importantes: literário e não literário, ficção e não ficção,
mimésis, representação, mundo das ideias e mundo sensível, autobiografia e autoficção. A divisão das
três paisagens está implicada na provocação feita por Culler:

É tentador desistir e concluir que a literatura é o que quer que uma dada sociedade trata como
literatura – um conjunto de textos que os árbitros culturais reconhecem como pertencentes à literatura
(CULLER, 1999, p. 29).

É interessante notar que a expressão árbitros culturais, trazida por Culler, atenta que a literatura
é legitimada por grupos autorizados, a saber, críticos, teóricos, escritores e o mercado editorial. Ou
seja, em vez de perguntar "o que é literatura?", precisamos perguntar "o que faz com que nós (ou
alguma outra sociedade) tratemos algo como literatura?” (CULLER, 1999, p. 29).

Aqui flagramos um dos pontos cruciais desta nossa primeira aula: o que faz com que nós
tratemos algo como literatura? Assim, como dito anteriormente, a literatura está longe de ser um
conceito estático, imutável e preciso. Muito pelo contrário, é um conceito complexo e movediço.

Paisagem 1: literatura, um campo aberto

Até fins do século XVIII, a noção que se tinha de literatura era, se comparada à de hoje, mais
ampliada. Quer dizer, não somente um poema era considerado um texto literário, como também uma
carta, um texto científico e as crônicas dos viajantes. Não havia uma separação nítida entre texto
literário e o histórico.

Por exemplo, as crônicas escritas no século XV pelo cronista-mor da Torre do Tombo, Fernão
Lopes, tinham a mesma força histórica ficcional que os autos escritos por Gil Vicente. Na epopeia
(poema épico) Os Lusíadas, publicada em 1572, o ficcional e o real estão imbricados. Muitos
estudiosos apontam o texto de Luís de Camões como um texto híbrido e no campo do “indecidível” –
ele é, ao mesmo tempo, um texto literário-histórico e histórico-literário. Na epopeia, os lusos (os
portugueses) são liderados por Vasco da Gama, ou seja, há aqui um dado concreto da realidade, pois
ele realmente existiu. Ele foi um navegador e explorador português, comandante dos primeiros navios
a navegar da Europa para a Índia. A epopeia, ao narrar a história de Portugal, também faz dela uma
ficção. Nessa perspectiva, a literatura é um campo aberto. A fronteira entre o literário e o não literário
é um fio frágil e incipiente até o século XVIII.

Paisagem 2: literatura, territórios demarcados


Até fins do século XIX, a fronteira entre o literário e o não literário ganha contornos definidos.
A literatura, como campo aberto, passa a funcionar como um território demarcado. Se antes, tudo, ou
quase tudo, podia ser entendido como literatura, agora, dentro de uma organização social dualista
burguesa, ela estaria atendendo à classificação de gêneros literários organizadas por Platão e
Aristóteles, na Grécia antiga. De acordo com essa concepção clássica, há três gêneros literários básicos:
o lírico, o épico e o dramático.

A organização dessa taxinomia implica um pensamento dicotômico – existem textos que


atendem a uma finalidade estética/artística e outros não. A vida e a arte literária, antes confundidas,
agora se bipartem. A vida é uma coisa, a arte é outra. Teremos, assim, o sujeito comum e o escritor ou
o sujeito comum e o artista. Mais: teremos a vida e a representação dela. A ficção ganha um status
inédito e a mimésis, noção importante na poética de Aristóteles, é reinterpretada por uma elite
intelectualizada, a serviço de uma lógica burguesa, produtora de valores moralizantes e territórios
muito bem definidos.
Quando, nesse período, é produzida uma diferença entre o literário e o não literário,
operacionaliza-se outra divisão: o texto ficcional do não ficcional. O texto literário cumpre uma função
de representar (mimetizar) o mundo das ideias.
Não por acaso, nesse momento, aparece o romance. Ele surge para entreter e atender a uma
demanda burguesa e gerar a impressão (falsa) de que a vida e a literatura são categorias diferentes e
irreconciliáveis. Essas narrativas romanescas de entretenimento, aparentemente inofensivas,
demarcavam e naturalizavam as performances sociais/políticas de gêneros (masculino/feminino) e de
classe (burguesia/operário).

Na metade do século XIX, o livro Madame Bovary rompe com esse padrão de romance-
entretenimento e se torna uma espécie de denúncia da lógica capital/burguesa. Escrito por Gustave
Flaubert, publicado em 1857, Madame Bovary apresenta a personagem Emma Bovary, leitora de
romances folhetinescos. Ela é uma sonhadora e, completamente influenciada pela ficção, passa a trair
Charles Bovary. Entre muitos recortes que poderíamos fazer aqui, um é salutar – Flaubert usa a
narrativa Madame Bovary para denunciar a hipocrisia da sociedade vigente e para tensionar a divisão
realidade versus ficção.
É nesse momento, próximo do fim da nossa primeira aula, que Culler reaparece. Lembra que
faltava falar de um dos cinco tópicos mais importantes elaborados pelo teórico? Ele é o mais importante
por fazer a articulação da literatura como ficção:

Uma razão por que os leitores atentam para a literatura de modo diferente é que suas elocuções
têm uma relação especial com o mundo, uma relação que chamamos de "ficcional': A obra literária é
um evento linguístico que projeta um mundo ficcional que inclui falante, atores, acontecimentos e um
público implícito (...). As obras literárias se referem a indivíduos imaginários e não históricos (Emma
Bovary), mas a ficcionalidade não se limita a personagens e acontecimentos. (CULLER, 1999, p. 37)

Para Culler, há uma espécie de pacto ou acordo entre leitor e escritor. Esse acordo ratifica a
literatura como ficção. Na contemporaneidade, isso se complexifica. Vejamos a última parte da aula.

Paisagem 3: literatura, fronteiras expandidas.

No século XX, o conceito de literatura, de certa forma, revisita aquela noção de literatura
própria da Antiguidade (retorne a paisagem 1). Ou seja, agora as fronteiras do que é literário e do que
não é literário voltam a se confundir – não há mais a dualidade própria dos séculos XVIII e XIX. No
início do século XX, as vanguardas (dadaísmo ou cubismo, por exemplo) rompem com as convenções
do texto literário e jogam para o alto conceitos que cerceiam a prática artística. As primeiras décadas
desse século reverberam na contracultura da década de 1960. Aqui no Brasil, o tropicalismo resgata o
pensamento antropofágico de Oswald de Andrade e canta com Gal Costa, “Baby: você precisa tomar
um sorvete na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto, ouvir aquela canção do Roberto. Você
precisa saber de mim, baby”.

Ouça a música Baby, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa.

O século XXI expande a noção de literatura e, portanto, do que é ficcional. Atravessados pela
velocidade das mídias, a literatura se configura menos como uma essência e mais como trânsito. Ela
atravessa e é atravessada pelo audiovisual, pelo teatro, pela arte de rua, pela dança e pelas artes plásticas
(para citar apenas algumas séries culturais). A literatura, nos tempos atuais, vai pôr em xeque o status
do ficcional.

O sujeito da contemporaneidade está fraturado, dirá Giorgio Agamben. O que isso significa?
Significa que não podemos mais pensar o artístico em uma perspectiva representacional do mundo. O
artístico produz o mundo em vez de representá-lo.

E aqui vale, antes de concluirmos esta aula, refletir acerca de conceitos como autobiografia e
autoficção. Costumamos nos deparar com um texto tido como biográfico enquanto ele traz dados de
uma suposta verdade acerca da vida de alguém. Entretanto, de acordo com as discussões que tivemos
até aqui, já ponderamos acerca da existência de uma realidade única e homogenia, mas sim de haver
uma construção de mundo a partir de nossos pontos de vista culturais, políticos, sociais, religiosos,
dentre outros.

Assim, toda narrativa de sim é também uma ficção. Por isso, usamos o conceito de autoficção
para salientar não uma representação, mas uma construção de si também em textos que envolvem uma
escrita de si.
Para encerrar, indicamos três textos (experiências artísticas) contemporâneos que esgarçam o
limite entre a ficção e o real.

Exemplo 1: O escolhido foi você – Trata-se de um livro proposto pela cineasta/performer /


escritora Miranda July. Ela é norte americana e esse é seu segundo livro, publicado em 2015. Enquanto
escrevia o roteiro de seu segundo filme, O futuro, Miranda começou a fazer entrevistas com
anunciantes de um jornal de classificados. Ela nos “conta” em 10 entrevistas realidades (ou ficções?)
de diversas pessoas, desde a história de um transexual vendendo uma jaqueta de couro a de uma mulher
com álbuns de fotos de desconhecidos.

Exemplo 2: Jogo de cena – Filme documentário de Eduardo Coutinho, de 2007. A sinopse do


site Adoro cinema nos mostra o quanto esse filme está dentro da nossa discussão sobre o ficcional.
Atendendo a um anúncio de jornal, 83 mulheres contaram sua história de vida em um estúdio. Apenas
23 delas foram selecionadas, em junho de 2006, e filmadas no Teatro Glauce Rocha, na cidade do Rio
de Janeiro. Em setembro do mesmo ano, várias atrizes interpretaram, a seu modo, as histórias contadas
por essas mulheres, borrando as tênues linhas que separam a realidade da ficção. Esse filme está
disponível na plataforma YouTube.

Exemplo 3: Jacy – Peça do Grupo Carmin (RN) se configura na perspectiva do teatro


documental. A peça conta a história de Jacy, uma mulher nascida em 1920, cujos pertences foram
encontrados em 2010, dentro de uma frasqueira por Henrique Fontes (diretor e ator do espetáculo).
Você pode ver trechos do espetáculo pelo YouTube ou ver fotografias no site do Grupo Carmin.

Os três exemplos concluem nossa discussão sobre literatura e ficção e nos lança para nossa
próxima aula, quando discutiremos sobre Literatura e Tradução.

Aula 2 - Literatura e tradução

Tradução de si: tradução do outro

Acompanhemos esse movimento de amor, o gesto desse amante que trabalha na tradução. Ele
não reproduz, não restitui, não representa; no essencial ele não devolve o sentido do original, a não ser
nesse ponto de contato ou de carícia, infinitamente pequeno do sentido. (Jacques Derrida)

Traduzimos o tempo inteiro. A tradução é uma operação fundamental da linguagem. Toda e


qualquer comunicação pressupõe o exercício de tradução, utilize-se uma só língua ou várias. Ela é uma
operação linguística, mas não é apenas isso. A tradução é mais que isso: ela é inseparável da diversidade
cultural e da singularidade do tradutor.

Ao passar um texto de uma língua para outra, somos capazes de dizer quase a mesma coisa. E
esse quase faz toda diferença. É na brecha do quase que se amplia o entendimento da tradução,
passando a ser uma tecnologia criativa e não mecânica.

Paulo Ottoni, a partir de Steiner, resume quatro períodos sobre a teoria, a prática e a história da
tradução:

- Primeiro período
O primeiro período caracteriza-se por uma orientação essencialmente histórica, que vai de
Cícero (46 a.C.) até Hölderlin (1804).
- Segundo período
O segundo período tem preocupações teóricas e uma postura filosófica e hermenêutica no
contexto das teorias da linguagem. Inclui, entre outros, pensadores como Walter Benjamin e vai até
1946.

- Terceiro período
O terceiro período inicia-se com as reflexões sobre as máquinas de traduzir na década de 1940
e discute as teorias linguísticas e suas aplicações na tradução.

- Quarto período
O quarto período, paralelamente ao anterior, retoma as preocupações hermenêuticas e
filosóficas, e a tradução passa a abarcar várias outras áreas do conhecimento.

Conforme Michael Oustinoff, há a tradução literal, a tradução como adaptação e a tradução


como transformação. Ele diz que esse terceiro aspecto não consiste em “verter palavra por palavra, ou
sentido por sentido, mas transformar deliberadamente o texto original” (OUSTINOFF, 2011, p. 35). É
nesse vetor — tradução como invenção — que nos direcionamos nesse estudo.

Em um artigo fundamental, “Aspectos linguísticos da tradução”, Roman Jakobson distingue


três tipos de tradução:
1. A tradução intralingual ou reformulação – Consiste na interpretação dos signos linguísticos por
meio de outros signos da mesma língua. Por exemplo: um jornalista faz o tempo inteiro tradução
intralingual, assim como os dicionários.
2. A tradução interlingual ou tradução propriamente dita – Tradução de uma língua para outra.
3. A tradução intersemiótica – A tradução precisa ser examinada em um quadro mais amplo, o da
tradução intersemiótica, que não se trata mais de passar de uma língua para outra, mas de um sistema
de signos para outro. Essa modalidade de tradução assume uma importância toda particular no
momento em que as novas tecnologias nos mergulham em um mundo que muda frequentemente.

Acrescentaremos uma quarta — tradução como transcriação. Essa quarta maneira de pensar a
tradução expande o conceito utilizado pelo senso comum. Ela foi articulada pelo professor, teórico,
tradutor e poeta Haroldo de Campos.

Ao elaborar a teoria da transcriação, Haroldo de Campos inspirou-se, principalmente, na ideia


de tradutor como recriador, de Ezra Pound, na ideia da influência da língua-fonte sobre a língua-alvo,
de Walter Benjamin, na ideia de traduzir a forma da língua-fonte na língua-alvo, de Roman Jakobson,
e inspirou-se também na teoria dos signos de Peirce e em autores como T. S. Eliot e Paul Valéry.

Haroldo de Campos vai rasurar aquela operação que quer ter a tradução literal: língua de partida
-> língua de chegada. Ele desoperacionaliza essa lógica da tradução literal (de um significado para
outro), pois, para ele, traduzir não é conduzir, mecanicamente, um significado de um lado para outro
lado. A tradução é uma operação de natureza dinâmica, nunca estática. Portanto, o texto original não é
apenas traduzido, mas recriado, transcriado.

A tradução, como transcriação, tensiona as dicotomias tradicionais que opõem letra e espírito,
forma e conteúdo, estilo e sentido, original e tradução, autor e tradutor, sujeito e objeto, teoria e prática,
forma e conteúdo. Ela se inventa justamente para reler essas dicotomias como construções teórico-
filosóficas e políticas.

Pensa-se a tradução não como um decalque e entende-se que o próprio texto ‘original’ já é uma
tradução (a intralingual evidencia isso: traduzimos o tempo todo, mesmo falando com pessoas que
falam a nossa língua). Ou seja, a sacralização do original é abalada (se tudo é tradução, não há mais
um texto original). Com ela não se pensa a mimese como uma teoria da cópia, mas como a possibilidade
da diferença.

O procedimento transcriador, portanto, despreza o sentido pontual de uma palavra isolada. A


tradução transcriadora não se contenta apenas com a “imagem do significado”. Campos afirma que não
se traduz apenas o significado, mas também o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua própria
materialidade (propriedades sonoras, de imagéticas visuais). A tradução torna-se mais do significante
e menos do significado. A tradução transcriadora está no avesso da chamada tradução literal. É por isso
que no processo transcriador a obra é recriada. Ela é desmontada e remontada em outra língua.

O processo de tradução é uma arte e o tradutor é um poeta. Ele, como o poeta, é um artesão da
língua e da linguagem. No mecanismo transcriatório, os signos (as palavras e/ou os gestos) empregados
fabricam outros espaços, outras imagens, outros sentidos e outras estruturas.

Na perspectiva da transcriação, as coisas somente podem voltar como diferentes. A


interpretação/tradução não é um processo nostálgico e retrospectivo ou uma tentativa de recuperar os
conceitos que estavam presentes na consciência do escritor no momento da escritura. Ao ler-traduzir
um texto, o tradutor escreve seu próprio texto.

O tradutor não lida com uma finitude, nem com uma origem fixa, mas constrói uma
interpretação que, por sua vez, também vai ser movimento e desdobrar-se em outras interpretações
(RODRIGUES, 2000, p. 203).

É potente, também, pensar que a tradução é produtora de outros significados do texto de partida
e não protetora dele. Toda tradução coloca o original em risco. O texto traduzido, portanto, não quer
completar o de partida, mas suplementá-lo.

Um suplemento é uma parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo. É algo extra, não
essencial, acrescentando a algo que supostamente está completo. (RODRIGUES, p. 208).

A tradução não é a vida nem a morte de um texto, mas a continuação de sua existência.
Subverte-se sua concepção como igualdade de valores, de leitura como atividade protetora, do tradutor
como responsável pelo transporte de significados.

A partir desse pensamento da tradução como recriação, como transcriação, como um gesto de
alteridade, podemos entender como exemplo as seguintes produções artísticas:

Outra vez, podemos usar O escolhido foi você. Mas, dessa vez, o livro de Miranda July nos
serve para flagrá-lo como um livro-tradução. As entrevistas feitas pela escritora/performer/cineasta
funcionam como tradução na medida que ela edita as respostas ou faz fotografias dos entrevistados. O
livro também se excede – um dos entrevistados – Joe – se torna um dos personagens do terceiro filme
de July – O futuro. O escolhido foi você funciona como tradução transcriadora e translingual e tradução
intralingual. O futuro funciona, também, como tradução transcriadora e intersemiótica.

Também podemos, outra vez, pensar no livro Queria ver você feliz, e assim pensar a narrativa
de Adriana Falcão como um processo de tradução de si. Ao traduzir a história de amor de seus pais
(Maria Augusta e Caio), ela se traduz e encontra possíveis sentidos. Queria ver você feliz funciona
como tradução transcriadora e intersemiótica (Adriana transforma em narrativa as fotografias e as
cartas dos pais).

O mesmo ocorre com o documentário A paixão de JL. O diretor Carlos Nader vai traduzir a
vida de Leonilson para o audiovisual por meio de fitas cassetes deixadas pelo próprio Leonilson (as
fitas já são uma tradução que o artista plástico faz de si mesmo). Nesse caso, o filme pode ser
considerado uma tradução da tradução.

Outro exemplo é a série para a televisão Capitu — exemplo de tradução intersemiótica. Dirigida
por Luiz Fernando Carvalho, o livro de Machado de Assis (Dom Casmurro) é transcriado.
Diferentemente do filme, cujo narrador é o casmurro Bentinho, na tradução de Carvalho, a narrativa
tem Capitu como foco narrativo.

O musical Maré — Nossa história de amor. A diretora Lúcia Murat traduz/transcria a peça
Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Usando como cenário a favela carioca da Maré, a história
acompanha a paixão entre Analídia e Jonatha.

Para concluirmos, há um texto importante chamado Torres de Babel. Ele é um ensaio de Jacques
Derrida sobre A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin. Para Derrida e Benjamin, a tarefa do tradutor
é a tarefa daquele que se rende. Render-se é experimentar o outro numa intensidade máxima. Alteridade
que não se coloca no lugar do outro, mas o faz, experimentando-o (amando-o). Na operação do tradutor,
ele se inventa atravessado pelo o outro. A tradução é, assim, invenção de si e recriação do outro. Ela é
possibilidade de encontros e tecnologia da vida:

TRADUZIR-SE
Uma parte de mim Uma parte de mim
é todo mundo; é permanente;
outra parte é ninguém: outra parte
fundo sem fundo. se sabe de repente.

Uma parte de mim Uma parte de mim


é multidão: é só vertigem;
outra parte estranheza outra parte,
e solidão. linguagem.

Uma parte de mim Traduzir-se uma parte


pesa, pondera; na outra parte
outra parte — que é uma questão
delira. de vida ou morte —
será arte?
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

O poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, se encontra no livro Vertigem dos dias.

A tradução, questão de vida ou morte, é esse movimento amoroso. Retornemos a epígrafe desse
nosso texto-aula:

Acompanhemos esse movimento de amor, o gesto desse amante que trabalha na tradução. Ele
não reproduz, não restitui, não representa; no essencial ele não devolve o sentido do original, a não ser
nesse ponto de contato ou de carícia, infinitamente pequeno do sentido. (DERRIDA, 2002, p. 49)
Para concluir, interprete alguma produção artística como texto-tradução e articule com a
discussão feita.

Segue um exemplo:

Ó Paí, Ó. O filme é uma tradução/transcriação da peça homônima escrita por Márcio Meirelles.
Ó Paí, Ó é uma tradução intersemiótica – tradução de um signo (peça de teatro) para outro signo
(audiovisual). Não se trata mais de passar de uma língua para outra, mas de um sistema de signos para
outro. Ao mesmo tempo, podemos considerar o filme dirigido por Monique Gardenberg como uma
transcriação, já que não se pretende atender à ideia de cópia – a cidade de Salvador, ao mesmo tempo
que é reconhecida como tal, é e não é aquela que atende apenas aos estereótipos étnico-raciais da
comunidade do Pelourinho (espaço onde se passa o filme). A interpretação/tradução do filme não é um
processo nostálgico e retrospectivo ou uma tentativa de recuperar os conceitos que estavam presentes
na consciência do escritor, nesse caso Márcio Meirelles, no momento da escritura. Ao ler-traduzir a
peça Ó Paí, Ó, Gardenberg escreveu seu próprio texto, utilizando-se de outros signos, como a música,
por exemplo (a trilha sonora é feita por Caetano Veloso e também pode ser entendida como uma
tradução da peça e da cidade de Salvador), além de ser atravessada pela subjetividade dos atores e das
atrizes do Bando do Teatro Olodum.

Aula 3 - Literatura e clínica

Ao longo desta unidade, conversamos sobre conceitos como ficção, vistos na aula 1, e
transcriação, na aula 2, que não dissociam literatura da vida ao entendermos que, nas produções
literárias, nossa subjetividade atravessa nossa criação intelectual.

Também aqui, nesta aula 3, Literatura e Clínica, não dissociaremos a literatura da vida. Não
apenas pensamos o mundo, mas o sentimos, tanto individualmente quanto coletivamente. E nem
sempre reagimos bem a essas sensações diante da exterioridade do mundo.

Em alguns momentos, sucumbimos a pensamentos angustiantes. Entretanto, em outros, a vida


transborda em contentamento. E nem sempre os sentimentos e os pensamentos apontam para um único
estado de ânimo.

Podemos, por exemplo, estar tristes e serenos, alegres e insatisfeitos, eufóricos e angustiados.
Nosso corpo sente e pensa o mundo assim, “embrulhando” tudo, como escreveu o escritor Guimarães
Rosa em Grande sertão: veredas: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. [...]. A vida
inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. O mais importante e bonito, do
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão
sempre mudando.”

É desse jeito, por meio da reescrita e com a intervenção de muitos com os quais nos
relacionamos, amigos, familiares, amores, colegas de trabalho e de faculdade, profissionais da saúde,
da educação e tantos trabalhadores de serviços a que acessamos cotidianamente, que a vida nos toma.
Estamos em fluxo contínuo de transformação. Não estamos nunca prontos e acabados. Estamos,
portanto, em constante processo de mudança e isso reflete na maneira como pensamos e sentimos o
mundo, dependendo do momento de vida no qual nos encontramos.

Se lermos, hoje, um texto que escrevemos quando éramos criança, quanta beleza e quanto
estranhamento poderemos sentir com nossos olhos adultos. Do mesmo modo, um texto escrito durante
a época de escola e depois relido quando na universidade, pode fazer com que fiquemos tentados a
retirar algumas partes, reescrevê-las ou ainda acrescentar outras partes ao texto.

Mesmo enquanto escrevemos, quantas vezes deletamos e reelaboramos o pensamento com


novas construções sintáticas que se aproximem mais do que pretendemos comunicar a quem nos lerá.

Também sentimos e pensamos a escrita de outras pessoas de maneiras diferentes, dependendo


de nosso momento de vida. Um livro pode ser marcante durante um período de nossa existência e não
mais ser em outro. Sensação semelhante ocorre em outras linguagens artísticas, como, por exemplo,
uma música de amor pode causar saudade, dor ou felicidade, remexendo nossa memória afetiva de
maneiras diferentes no decurso do tempo.

Quantas vezes, um filme, um espetáculo de dança, um poema ou uma peça de teatro, para citar
alguns exemplos, faz com que repensemos uma situação difícil pela qual estamos passando e nos
estimula a superar desafios. Arte e vida estão assim interligadas e nos exigem coragem para enfrentar
às intempéries, ou seja, os enfrentamentos das dificuldades.

Contudo, como conversamos inicialmente, no mundo há ainda contentamentos. Essas


felicidades e belezas que nos acolhem são, juntamente com as adversidades, o que aqui denominamos
de exterioridade do mundo. Além de nossa subjetividade, estamos no mundo diante dessa
exterioridade, que não é por nós produzida, porém nos afeta.

Há, conforme aprendemos com os estudos sociológicos, regras, leis, imposições, atitudes e
ações de outras pessoas ou de coletividades, como grupos, ou de instituições, como o governo, com as
quais nos deparamos para o mal ou para o bem. Dependendo de como essa exterioridade afeta nosso
corpo, podemos não corresponder a contento o que esperam ou exigem de nós.

Podemos adoecer por não conseguirmos atender às expectativas, por não conseguirmos cumprir
as exigências. As tentativas malsucedidas de atender à exterioridade do mundo podem afetar nosso
corpo, deixando-o exaurido mentalmente e fisicamente. A sensação de fracasso, o cansaço e a ausência
de conquistas podem fazer muito mal à saúde.

Um corpo doente precisa de cuidados. Conversaremos aqui, portanto, sobre como se deixar
afetar, e também ser afetado, sem que isso implique em adoecer. Conversaremos sobre como nossos
corpos são afetados subjetivamente e politicamente. E, também, como a literatura pode funcionar,
enquanto produção discursiva e de sentidos, a fim de refletir acerca de nossa vulnerabilidade a essa
exterioridade do mundo.

Na contemporaneidade, em grande parte das sociedades ocidentais, o poder de consumo e a


acumulação de bens geram, ao mesmo tempo, a expectativa e a exigência de que sejamos quase que o
tempo inteiro eficientes, quer dizer, produtivos, rápidos e felizes.

O tempo do capital, isto é, de produção de bens materiais e de riquezas no sistema capitalista,


é veloz. Assim, necessita de produção constante de novos bens, já que essa velocidade também implica
um grande volume de descarte. Em pouco tempo, um produto perde seu poder de atrair novos
consumidores por já ter sido superado em termos de avanços tecnológicos e de design por outros
produtos.

No tempo do capital, necessitamos constantemente de novidades. Não por acaso, falamos,


atualmente, em tendências na indústria da moda, automobilística, de eletrodomésticos, de decoração
de interiores, de consumo de alimentos, para citar alguns setores. E essas tendências podem durar uma
estação, como no mundo da moda, ou somente um ano, como na fabricação de carros, que desvalorizam
e perdem muito o valor de venda de um ano para o outro.

Precisamos produzir e consumir mais e mais e mais. Um corpo infeliz e lento não participa da
dinâmica desse modus operandi do tempo do capital.

A infelicidade e a lentidão geram pouca, ou nenhuma, produção e pouco, ou nenhum, consumo.


Um corpo lento e infeliz pode deprimir. E a depressão, atualmente, é uma das doenças que mais afasta
as pessoas do mundo do trabalho. Logo, do mundo do consumo. Quem não trabalha, não terá capital
para consumir. E um corpo deprimido pode não conseguir trabalhar, sentindo que fracassou diante do
tempo do capital.

Para um corpo deprimido, pode não haver planos nem desejos que alimentem uma vida futura.

Corpos deprimidos estacionam no passado ou em um presente que rumina supostos fracassos e


perdas. A baixa autoestima e o desejos diminuem ou desaparecem. Corpos deprimidos perdem a pulsão
de vida. Adoecem: A ponto de, se nada alterar na ordem externa causadora da dificuldade (recusa,
perda, decepção etc), sucumbir até a morte. O corpo degenera-se rapidamente. Os fantasmas
subjetivos avolumam-se, excedem-se em qualidades e expõem-se de súbito nas fragilizações corporais.
A máquina deixa assim de valer-se de seus princípios básicos: ‘mal’ utilizada, engasga, transborda,
entope. Nisso, o corpo para. (SANTOS, 1999)

Mas e se nossos corpos não se adequarem a um modus operandi que exige velocidade,
produtividade e felicidade constantes? Como estar nesse mundo sendo um corpo pouco ou nada
adaptado a esse ritmo de vida acelerado do capital? Como se deixar afetar e afetar sem adoecer? Há
corpos que, embora inadaptados, inapropriados e infelizes diante da exterioridade do mundo, são
saudáveis. Como conseguem? Resistem a essa exterioridade, produzindo criativamente.

Em vez de ruminar o passado e suas dores, devoram traumas e lembranças malsucedidas e


fazem disso arte. O filósofo alemão Junger Habermas (2003) diz que é preciso reviver o trauma para
evitarmos novos horrores, tais como a violência nazista do Holocausto. E em países como Alemanha
e Estados Unidos, por exemplo, há inúmeros museus e monumentos que recordam as atrocidades de
um passado não muito distante. Para citar alguns, em Berlim, na Alemanha, o Memorial aos Judeus
Mortos da Europa ou, como é conhecido, o Museu do Holocausto. Nos Estados Unidos, no Estado da
Louisiana, o museu Whitney Plantation para não esquecer a história da escravidão. Revivemos o
trauma nesses monumentos e museus para que recusemos novas barbáries. Devoramos o trauma para
resistirmos sem adoecer.

A criação artística individual e coletiva pode ser uma forma de resistência saudável. Porque,
como estudamos na aula 1, literatura como ficção, há, na paisagem contemporânea, uma linha tênue
entre o mundo sensível e o ficcional.

Literatura e vida estão imbricadas, em trânsito contínuo. E uma reescrita do mundo e de si pode
disparar no corpo, afetado pela exterioridade do mundo, a pulsão de vida.

O corpo que resiste e é saudável produz, mas em um outro fluxo, resistindo a automatismos e
imposições com os quais diverge. O corpo saudável entra em uma produtividade criativa. Ele consome,
absorve, digere e resignifica discursos, produtos, valores, bens e sentidos.

Em vez de deprimir-se por suposta inadequação, o corpo resistente e saudável produz


artisticamente. Os traumas, as violências, as dores, por que passamos, podem ser reescritas,
ficcionalizadas. No filme Elena (2012), para ressignificar a dor sentida com o suicídio de sua irmã mais
velha, a cineasta brasileira Petra Costa revisitou gravações antigas da família, a partir de vídeos
caseiros, nos quais sua irmã mostrava desde criança o desejo de ser atriz. A cineasta fez trabalhar sua
memória afetiva e reconheceu situações e sensações esquecidas ou escondidas, recontando trajetórias
de sua vida, de sua mãe e de sua irmã, deslocando, assim, a dor da morte. Fez do luto arte.

Em suas escrevivências, a escritora Conceição Evaristo não dissocia escrever de viver. Ela não
escreve, ela escrevive. A escritora reage à violência do racismo, que corta seu corpo de mulher negra,
por meio de contos e poemas que revisitam o preconceito racial dolorosamente sentido e difícil de ser
recontado. Somente sabe do racismo aquele que sente. Por isso, o linguista/professor Rajagopalan
afirma que um ato de fala deve ser considerado um ato racista e, portanto, violento sempre por quem
sofre a violência do racismo e nunca pelo agressor. É porque é no corpo agredido que há a dor. E quem
ofende pode ter consciência de que seu ato é violento, porém não da intensidade com que essa violência
corta o corpo por ele afetado. Conceição Evaristo, em sua condição de mulher negra, como costuma
sempre ratificar, resiste ao racismo ao escreviver a violência do preconceito racial e fazer pulsar, em
sua produção literária, dores, belezas, prazeres e ancestralidade do corpo de uma mulher negra.

A clínica, em nossa paisagem contemporânea, costuma ser relacionada tão somente aos
procedimentos, aos protocolos e à produção do saber da medicina. A clínica, entretanto, pode ter, nessa
mesma paisagem contemporânea, um sentido mais expandido. Ela pode significar práticas,
procedimentos e saberes de cura. Como o pharmakon, quer dizer, o remédio como entendemos
contemporaneamente, dos gregos na Antiguidade, em sua dubiedade de antídoto e veneno. Ele cura e
faz mal, porque expurgar do corpo afetado o que dilacera, o que incomoda é um doloroso processo de
cura, mas que pode resultar em um corpo resistente e saudável. A cura pode vir, portanto, depois de
uma crise aguda.

A clínica, enquanto produção criativa, não sem dor, de bem-estar, de saúde. A clínica em
escrituras, escrevivências, em produções literárias e em resistência saudável à exterioridade do mundo.

Encerramento

1. A partir de quais perspectivas a prática literária pode ser compreendida enquanto produção ficcional?
A teoria da literatura há muito já tem discutido, a partir de distintos e nem sempre convergentes
referenciais epistemológicos, acerca do que é literatura. Ao pensarmos em textos literários,
enquanto produção ficcional, estamos, primeiramente, partindo de determinada perspectiva.
Isto é, de um ou mais referenciais teóricos, a fim de compreendermos o que entendemos por
ficção. Em debates contemporâneos, entende-se, por exemplo, que toda narrativa de si é uma
ficção, portanto, impregnada de “arranjos” (PUCHEU, 2012), isto é, articulações, relações,
produzidas por um corpo afetado, tanto por sua subjetividade, quanto por sua vulnerabilidade à
“exterioridade do mundo” (BUTLER, 2009). E é a partir de determinados modos de ler ou de
saber o mundo que se produzem modos de dizer e de escrever a respeito desse mesmo mundo.
Modos de dizer e escrever que produzem sentidos e discursos. Modos que não representam,
quer dizer, não reproduzem o mundo tal qual ele é, mas sim indicam uma perspectiva de um
sujeito situado historicamente. Uma perspectiva, portanto, parcial, fragmentada, um ponto de
vista subjetivo acerca dele. E, sendo a prática literária resultado de um ponto de vista, não
corresponde ao “real” e sim o (re)conta, cria, produz mundos ficcionalmente.

2. Como os textos literários têm sido traduzidos para outras linguagens artísticas?
Inicialmente, precisamos compreender o que vem a ser tradução. De uma maneira geral,
costuma-se associar o conceito de tradução somente a uma relação entre línguas. Sendo assim,
podemos dizemos que lemos a tradução de um conto de Edgar Allan Poe para a língua
portuguesa. Entretanto, ela também ocorre entre linguagens artísticas, ou seja, é possível
transformar um texto literário em um filme ou em um espetáculo de dança, de teatro, dentre
outras possibilidades. As fronteiras, atualmente, entre as linguagens estão cada vez menos
demarcadas. Os videopoemas, por exemplo, são audiovisuais e poesias, e também instalação
ou performance. Desse modo, falamos em literatura expandida “que inventa, gera uma nova
forma de literatura, não mais circunscrita à palavra, nem exclusivamente à comunicação
linguística, mas pluridimensional” (PATO, 2012) ou em intermidialidade para pensarmos essas
relações tão imbricadas entre literatura e outras artes.
Entendo que as fronteiras estão cada vez menos demarcadas. Mas gostaria de sua opinião.

3. De que maneira a literatura pode afetar nossos corpos subjetivamente e sociopoliticamente?


Como temos visto aqui, os textos literários produzem sentidos e discursos que, por sua vez, nos
afetam tanto na esfera íntima, quanto em uma dimensão sociopolítica. Nossos modos de ler, de
saber e de dizer o mundo podem criar tensões com outros modos de estar no mundo. Isso
impacta nas relações intersubjetivas, causando, muitas vezes, transformações em nossos modos
de ser e de estar, assim como nos modos do outro. Essas tensões podem implicar divergências
do ponto de vista político, por exemplo, e terem o poder de ressignificar valores e condutas
individuais e coletivamente. Podem, assim, criar novos modos de ver e de estar no mundo.
Corpos, portanto, vulneráveis à exterioridade do mundo e que se defrontam, a todo momento,
com outros corpos igualmente vulneráveis, reagindo com mais ou menos vigor, com maior ou
menor habilidade, com pouca ou muita intervenção no espaço público, abrindo, assim, fendas
nas esferas mais íntimas. Em tempos de crise, isto é, de inquietações que repensam modos de
saber, as fendas podem provocar rupturas, mudanças e curas, (re)erguendo os corpos em novos
saltos e deslocamentos de si e no mundo.

Midiateca

Vídeo

Jogo de Cena
Trailer do filme A Paixão de JL
Trailer do filme Mare, Nossa Historia de Amor
Trailer do filme Elena
Trailer do Filme Ó pai ó

Sites

Grupo Carmin
http://www.grupocarmin.com/

Conheça a poesia concreta de Haroldo de Campos


http://www.ebc.com.br/cultura/galeria/videos/2014/01/conheca-a-poesia-concreta-de-haroldo-de-
campos

Texto – Referências

CULLER, Jonathan. Teoria literária. São Paulo: Beca, 2000.


Unidade 2 - Apresentação das noções de arte e escritura a partir de obras visuais e audiovisuais

Introdução

1. O que é um dispositivo em arte e como ele impacta diferentes modos de escritura?

2. Por que pensar em literatura expandida?

3. Como pode a escritura fazer não adoecer?

Objetivo

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:


Analisar as forças e os modos de escritura convencionais e seus dispositivos de intervenção estética,
política, social e afetiva.

Conteúdo Programático

Esta unidade está dividida em:


Aula 1 - Arte e escritura
Aula 2 - Escrituras expandidas
Aula 3 - Escritura como clínica de artista

Aula 1 - Arte e escritura

Nesta aula, iremos analisar as forças e os modos de escrituras convencionais e seus


dispositivos de intervenção estética, política, social e afetiva.

Antes de iniciarmos, veja o que Roberto Corrêa dos Santos e Renato Rezende dizem sobre
escrever:

Escrever vai até o quase entendimento.


Escrever acentua os múltiplos.
Escrever ultrapassa soluções e sínteses e modelos.
Escrever faz florescerem pulsões esplêndidas.
Escrever situa-se indiferente às promessas de tempo.
Escrever depõe os estados morais.
Escrever desfaz códigos duros.
Escrever move ritmos centrífugos e centrípetos.
Escrever gera acasos acasos acasos.
Escrever gesta entradas e saídas e intermitências.
Escrever alarga tremores.
Escrever atinge diretamente o corpo.
Escrever atinge e gera diferentes temperaturas.
Escrever impõem rasgos.
Escrever irrompe texturas poros silêncios.
Escrever desfaz inexistentes destinos da história.
Escrever distribui angulagens desnorteantes.
Escrever racha encadeamentos teleológicos.
Escrever gera passeios nos lugares por sobre.
Escrever reforça os lisos e as densidades.
(SANTOS, REZENDE, 2011)
Esse texto se encontra no livro No contemporâneo: arte e escritura expandidas.
Você concorda que, quando ouvimos essa palavra, escritura, imediatamente nos remetemos à
escrita?

Alguns sinônimos de expandir são:


Ampliar Alargar Estender Aumentar Amplificar
Tornar mais conhecido Propagar Espalhar Difundir Alastrar

A escritura se dá quando se pensa no gesto da escrita como um gesto ampliado e amplificador.


Passamos a entender que todo leitor é um escritor. Todo leitor escreve o texto que lê, e todo texto
escrito alterou e ampliou a subjetividade do escritor. Poderíamos dizer, enfim, que todo texto, ao ser
escrito, escreve o escritor.

É importante observar que se alarga a condição do escritor e do leitor, e, inevitavelmente,


estende-se a noção de texto. Texto é tudo passível de leitura: a cozinha de uma casa, o seu livro de
cabeceira, o último filme a que você assistiu, aquela música de Caetano — tudo é texto. Até o mar
pode ser pensado como texto. Aliás, o mar é um texto infinito e sábio, fonte inesgotável de
autoconhecimento e tema de muitos poemas, como este, da mineira Ana Martins Marques (2015):

Ela disse
mar
disse
às vezes vêm coisas improváveis
não apenas sacolas plásticas papelão madeira
garrafas vazias camisinhas latas de cerveja
também sombrinhas sapatos ventiladores
e um sofá
ela disse
é possível olhar por muito tempo
é aqui que venho
limpar os olhos
ela disse
aqueles que nasceram longe
do mar
aqueles que nunca viram
o mar
que ideia farão do ilimitado?
que ideia farão do perigo?
que ideia farão
de partir?
pensarão em tomar uma estrada longa
e não olhar para trás?
pensarão em rodovias
aeroportos
postos de fronteira?
quando disserem
quero me matar
pensarão em lâminas
revólveres
veneno?
pois eu só penso no mar
Esse poema se encontra no livro O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques.

O mar é o grande motivo e o grande texto para o eu lírico. Escrever o mar é ter
coragem/escrever o ilimitado, o perigo e as despedidas. Escrever o mar é alargar tremores, atingir
diretamente o corpo, impor rasgos. O mar é escrito e escreve a poeta. O mar é escrito como uma vontade
ininterrupta — “eu só penso no mar” — e possibilidade de vida e morte.

Podemos, assim, dizer que, quando a poeta se disfarça no eu lírico do poema, ela comete o
gesto da escritura — ela lê e escreve o mar; ao mesmo tempo, o mar a lê e a escreve.

Falamos de escritura a partir de três cont(r)atos:


1. Aprendemos com o teórico Roland Barthes sobre escritura. A escritura recria a língua.
O poeta faz escrituras porque lança inusitados significados das coisas. A escritura, para Barthes,
dissemina olhares oblíquos do escritor sobre si mesmo e sobre o mundo. Ou seja, a escritura é
possibilidade de reinvenção de si mesmo e do mundo. Se você quiser saber mais sobre Roland Barthes
e escritura, leia o livro O grau zero da escritura.
2. Aprendemos sobre escritura também com Michel Foucault, a partir d’A escrita de si.
Foucault nos ensina como a troca de cartas e os cadernos de anotações (diários) abrem nossa percepção.
Quando escrevemos para o outro (cartas) ou para nós mesmos (o diário), criamos dispositivos de
escrituras, isto é, possibilidades de nos percebermos e nos recriarmos diante das circunstâncias. Leia o
texto A escrita de si, de Foucault, quando você puder! Falaremos mais sobre ele na próxima aula.
3. Continuamos a aprender e reaprender sobre escritura com a grande escritora
Conceição Evaristo. Evaristo inventou a noção de “escrevivências”. O que seria isso? Significa uma
escrita que é marcada pelas marcas do corpo. Só se pode escreviver. Acesse o blog: Nossa
EscreVivência. Falaremos mais sobre escrevivência na próxima aula.

Vamos pensar na relação de escrita e escritura a partir do grafite LUTO, criado pela artista
visual Talita Andrade?

Com esse grafite, elaboramos a noção de escritura e passamos a desconfiar que escritura é
escrita, mas também extrapola aquilo que chamamos de escrita. A escrita e a leitura passam a ser
entendidas de maneira extraordinária (diferente daquelas maneiras postas pelas instituições e
dicionários).

Quando me deparo com o grafite LUTO, minha velocidade é interrompida. O grafite LUTO,
como escritura, pode acelerar, frear, diminuir, dissolver a velocidade do meu cotidiano, a velocidade
dos meus pensamentos, a velocidade do meu corpo. A escritura é isto: um motor que altera e transforma
nossas velocidades e gera outros movimentos.

Por quê? Porque nos faz reler a cidade que habitamos, nos faz reler os sentidos que foram
dados para as palavras e as coisas.

Com o grafite LUTO, releio o sentido da palavra mulher, da palavra violência e da palavra
resistência.

Observe as ambiguidades da palavra e da imagem de LUTO:

Primeiro, a palavra luto aqui é ambígua — esse luto é substantivo e se refere a alguém que
está de luto pela morte de alguém (quantas mulheres são assassinadas diariamente em SSA, na Bahia,
no Brasil e no mundo apenas por serem mulheres?). Luto também é verbo conjugado na primeira pessoa
do singular — eu luto! Luto e lutar. Lutar para que mulheres não continuem morrendo por serem
mulheres, vítimas do machismo, da misoginia e da transfobia.
Se fizermos uma leitura atenta da imagem LUTO, a mulher produzida por Talita lembra
aquelas mulheres que usam burcas e, ao mesmo tempo, lembram mulheres guerrilheiras. Aliás, é assim
que Talita se define: como uma artista guerrilheira.

A arte de rua tem uma função que ultrapassa a apreciação estética. Não se trata de apenas
considerar a arte como expressão do belo, mas, com o grafite, desloca-se a noção de belo.

O que é belo? Quem determinou que determinadas imagens sejam belas e outras não? Você
já parou para pensar nisso?

Com o grafite, desloca-se, também, a noção de arte e artista. É apenas arte aquilo que
encontramos em museus, galerias, teatros, cinemas? Artista só é aquele homem, quase sempre burguês,
que pôde estudar nas melhores escolas e viajar pela Europa, preferencialmente?

Você já parou para pensar nisso também?

O grafite vai dizer que aquilo que é considerado feio pode ser bonito ou, ainda, que aquilo que
é considerado feio tem vísceras e passa fome. O grafite (a arte do grafite) vai dizer que a arte não
precisa estar mofando entre as quatro paredes de uma galeria ou um museu.

A arte do grafite multiplica os leitores, porque os leitores do grafite não precisam ser leitores
especializados, não precisam estar bem vestidos, não precisam falar o bom português rebuscado.

Com o grafite, um viver junto acontece nas diferenças étnico-raciais, nas diferenças de
gêneros, nas diferenças das classes, nas diferenças daquilo que é dito como normal e daquilo que é dito
como loucura. E essas diferenças não são minimizadas, mas evidenciadas.

Por fim, o grafite, ao mesmo tempo que singulariza o leitor, interfere também na subjetividade
do artista.

A artista Talita não é apenas uma escritora de imagens, mas ela mesma se inscreve pelas ruas
da cidade. É isto: ela não só desenha suas imagens nas paredes, mas se inscreve como mulher e ativista
feminista nas ruas sangrentas da cidade — e é bom lembrar que os números são alarmantes; a violência
contra mulheres cis e trans em SSA só tem aumentado. É nesse sentido que a escritura acontece! Ao
desenhar LUTO, Talita politiza a vida. A escritura existe quando a experiência passa a funcionar como
uma escrita da vida, como uma politização da vida.

Não se esqueça:
Escrever não é apenas manusear palavras no papel ou em alguma outra plataforma (tela de
computador ou tela de celular, por exemplo). Ler não é apenas observar as coisas como um transeunte
com pressa em chegar em casa depois de um dia cansativo de trabalho.
A leitura e a escrita são funcionamentos (têm uma função). Qual função? Conforme queremos
entender aqui, sua função é a de reorganizar os modos do viver junto.
A leitura e a escrita interrompem a mesmice das paisagens fixas.

Aula 2 - Escrituras expandidas

Você lembra que discutimos as noções de arte e escritura a partir do grafite LUTO, da artista
visual Talita Andrade?
Nesta aula, vamos analisar formas ampliadas na contemporaneidade de produção de escritos.
Portanto, vamos continuar a investigar sobre arte e escritura.

Vamos analisar um outro grafite, dessa vez criado por Tainá Lima (mais conhecida como
Criola).

De maneira análoga à Talita, Criola também usa as paredes da cidade para desenhar e,
poderíamos também dizer, escrever. Ela usa as paredes de Belo Horizonte para escrever mensagens de
resistência e questionar os padrões de beleza impostos às mulheres. Em entrevista concedida à Revista
Capitolina, ela é questionada sobre a importância de falar sobre a representatividade da mulher negra.
Ela responde o seguinte:

Acredito em exemplos. Pra mim a melhor maneira de ensinar algo é através deles. E o tempo
todo a mulher é violentada ao ser mal representada. Ou pela mídia ou por homens ou por quem não a
represente na essência. Então, ser mulher negra vai além de tom de pele, de textura de cabelo etc. Ser
mulher negra é principalmente ter postura, orgulho e respeito pelos ancestrais que um dia tiveram sua
liberdade cerceada por conta da sua origem africana. Por isso, acredito que quanto mais mulheres
negras se sentirem bem representadas, mais mulheres negras se representarão da maneira que realmente
são, e assim, serão exemplos pra outras. Acredito na história contada por quem viveu ou sofreu. Para
uma criança negra, por exemplo, é muito importante se ver representada positivamente nas revistas, na
novela, nos jornais etc. Eu busco levantar essa autoestima através da construção dessa identidade negra.
Somos lindas do jeito que fomos criadas. Quem definiu que cabelo liso é o cabelo bom? Quem definiu
que cabelo crespo é difícil de cuidar? Quem definiu que mulher negra não pode usar o cabelo crespo
em qualquer tipo de emprego? Temos que destruir todas essas “regras” estúpidas definidas por quem
quer rebaixar a nossa estima. Por isso a representatividade da mulher negra é algo tão importante:
porque vai no cerne da construção da identidade e da autoestima. Um povo que conhece a sua história,
tem orgulho da sua história e da sua estética é inabalável. Encontrei no graffiti a maneira de resistir a
tudo isso e propagar as mensagens que acredito.

Ora, observe que, quando Criola dá essa resposta, somos mobilizados pela noção de
escrevivências e pela noção de escrita de si. Essas duas noções são importantes para entendermos o
que quer dizer escritura e arte na contemporaneidade.

Michel Foucault foi um dos pensadores que pensaram sobre escrita de si. Foucault sugere uma
vida de autoria de si mesmo. No texto A escrita de si, Foucault irá centrar-se no ato da escrita como
estratégia prática na constituição de si. Ele flagra três tecnologias do cultivo de si.

Falando de uma maneira bem didática e trazendo para nossas práticas na contemporaneidade,
o caderno de notas ou o diário funciona como um arquivo pessoal de coisas lidas e ouvidas: uma letra
de música, um poema, um trecho de um livro que você anotou ou guardou na sua memória, um trecho
de um diálogo de um filme — esses textos vão nos produzindo subjetivamente. Quando escrevemos
cadernos de anotações, escrevemos fragmentos de nós mesmos e movimentamos aquilo que nos afeta.

Roland Barthes escreveu Fragmentos de um discurso amoroso.

Lá, ele movimenta e é movimentado por citações de escritores que o comoveram durante a
vida. O caderno de notas tira o autor do centro da estrutura literária. Os fragmentos amorosos do
arquivo pessoal de Barthes lembram a técnica de colagem — ele primeiro recortou trechos de diversos
textos que gostava e depois os colou. A colagem transformou esses trechos em um novo texto.
Quero te propor uma coisa: que tal você montar seus fragmentos amorosos? Ou fragmentos
de dor de cotovelo, ou fragmentos de resistência? São muitas possibilidades! Comece a colecionar
textos, músicas, poemas, citações que afetam você. Recorte-os.

O que vai acontecer quando você juntá-los? Em que tipo de mosaico seus fragmentos se
transformarão?

Além do caderno de anotações, um outro tipo de treino de si é a escrita de cartas. Escrever


cartas serve para comunicar a alguém as frustações e conquistas do nosso cotidiano; serve também para
exortar nossos destinatários ou para pedir conselhos. A escrita de cartas constitui uma forma de cada
um se manifestar a si próprio e aos outros. Escrever é, pois, “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer
o rosto próprio junto ao outro; é uma forma de sair da solidão e se oferecer à contemplação dos outros.
As cartas geram abertura do sujeito para o outro. E essa abertura tem um nome: amizade. Por causa
das trocas de cartas, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade foram grandes amigos.

Pensar em cartas hoje em dia parece uma prática muito antiga, no entanto podemos pensar em
outras maneiras de enviar cartas, como utilizando nossas redes sociais, por exemplo. Vai mais uma
sugestão aqui: que tal você começar a se corresponder com um grande amigo ou com alguém que você
gostaria de ser amigo?

Bem, o que Foucault vai chamar de escritas de si passa pelo menos por estas duas tecnologias:
os cadernos de notas ou diários e as trocas de cartas.

O que seria, então, “escrevivências”? Vamos voltar a pensar nessa noção criada pela escritora
Conceição Evaristo? Antes de tentarmos definir o que é escrevivências, recomendo o Blog de Evaristo.
Você visitou o blog dela?

A própria Evaristo nos conta, em entrevista, sobre como veio este nome, escrevivências. Ela
dirá:

O termo surgiu quando estava num seminário de Literatura numa mesa de escritoras negras e
tínhamos que dar um depoimento, com Miriam Alves, Lia vieira, Esmeralda Ribeiro e Mãe Beata de
Iemanjá. Eu disse o seguinte: “A nossa Escrivência, ela não pode ser para adormecer os da casa grande
e sim para acordá-los dos seus sonos injustos.” Quando eu usei este termo, queria contrapor a nossa
escrita à imagem da mãe preta. Que era aquela mãe que ficava na casa grande e contava as histórias
para adormecer a prole colonizatória. A nossa escrevivência, que é uma escrita da vivência, ela não é
mais para adormecer os senhores, pelo contrário, ela é para acordar, para incomodar. E a base da minha
escrita, ela vem mesmo do cotidiano, das situações. O que eu assisto, o que eu vivo, o que já ouvi dizer.
Então ela é muito marcada pela vivência, pelas condições da comunidade afro-brasileira.

A noção criada por Evaristo faz um desdobramento da escrita de si pensada por Foucault.
Evaristo, em seus contos, romances e poemas, escreve suas vivências de mulher negra, assim como
Criola desenha seus grafites nas ruas de Belo Horizonte.

Você pode estar se perguntando: e em qual lugar fica a escritura nisso tudo?

A noção de escritura pode ser entendida como escrita de si e escrevivência. A escritura é a


escrita como um cuidado de si mesmo e como uma maneira política de contar suas vivências. A
escritura não se trata apenas de uma escrita individual, também não se trata apenas de uma escrita
coletiva. São as duas coisas! A escritura é um modo ético e político do viver junto, resistindo e
reexistindo.
Aula 3 - Escritura como clínica de artista

Nesta aula, iremos analisar as forças da obra de arte e seus variados efeitos no sujeito a partir
de noções como arte e saúde e da clínica de artista, isto é, campo artístico como espaço de cura e
invenção dos afetos (PE).

Vamos começar esta nossa Aula 3 problematizando a discussão acerca da escritura como
clínica de artista a partir de uma questão: como uma escritura pode funcionar enquanto processo de
não adoecimento? Uma possível resposta pode partir de uma perspectiva acerca de escrituras
produzidas por poetas. Para tanto, recorremos aqui ao poeta português Herberto Helder, que traz para
o poema o conceito de paisagem:

Ver sempre o poema como uma paisagem. Esta paisagem é dinâmica. [...] a paisagem move-
se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é
vulnerável. [...]. Pela ameaça e vulnerabilidade é ela viva. E é também uma coisa do imaginário, porque
uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem. Aquilo que lhe firma a existência situa-se nas
condições do desejo: o movimento entre nascença e morte.
(HELDER, 2013, p. 133)

E essa paisagem é resultado de um corpo que escreve e produz sua escritura a partir de dentro
— logo, carregada de subjetividade — e que está atento ao que está por fora, isto é, em atenção à
exterioridade do mundo. “Porque (é verdade) existia uma ‘força’, uma ‘vontade de expressão’, e o
mundo estava ali.” (HELDER, 2013, p. 127). Por isso dizer que a paisagem é movimento, porque,
como vimos, estamos em fluxo contínuo de transformação.

O poema enquanto paisagem acentua tanto a nossa vulnerabilidade de leitores quanto a do


poeta. Vulneráveis estamos todos à exterioridade do mundo, uma vez que a escritura é resultado de
nossa interação com o mundo, sempre a partir de um ponto de vista; quer dizer, interagimos com essa
exterioridade em uma perspectiva subjetiva, imersa em outras tantas perspectivas de outras pessoas,
considerando questões políticas, sociais, culturais, entre outras.

Enquanto lemos um poema, acionamos temporalidades múltiplas, complexas e imbricadas.


Nossa memória afetiva pode acessar um passado recente, também pode projetar um futuro a depender
de como nos sentimos e estamos no presente momento da leitura de um poema. Há, ainda, as
temporalidades do poeta: o momento em que escreveu e os acessos de sua memória afetiva naquele
momento. Desse modo, nosso pensamento, ao ler um poema, estaria sujeito a constantes
deslocamentos. O poema é, assim, um intercessor, conceito entendido na perspectiva do filósofo Gilles
Deleuze, conforme interpretação dada pelo professor Jorge Vasconcellos (2006, p. 7):

[...] intercessor é qualquer encontro que faz o pensamento sair de sua imobilidade natural, de
seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento.

Esse entendimento destaca o quanto nossa produção discursiva e o quanto nossa leitura acerca
do mundo estão atravessadas por nossos corpos escreviventes, para utilizar um conceito que temos
discutido ao longo da Unidade 2, ou, como escreveu o poeta Herberto Helder (2013, p. 129):

A escrita nasce diretamente do corpo, do seu movimento.

Sendo assim, a escritura pode ser um ato de resistência para não adoecer diante das violências
que nos atravessam ao nos depararmos com a exterioridade do mundo.
Estudamos como a literatura pode funcionar como processo de produção de saúde.
Conversamos sobre como a literatura pode resultar em resistência saudável à exterioridade do mundo.
Agora, voltamos a conversar sobre essa relação entre literatura e saúde. Portanto, continuamos na
discussão que atravessa nossa disciplina, que é a respeito da relação entre literatura e vida. E, sendo a
vida um sem-fim de dores e contentamentos, a escritura pode redimensionar o processo de
enfrentamento do que nos faz sofrer, pode ressignificar nosso processo de enfrentamento dos, para usar
uma expressão popular, leões de cada dia. Dito de outro modo, a escritura pode fazer parte do processo
de enfrentar leões e nos ensinar a não adoecer, como no poema Dragão, de Karina Buhr (2015, p. 102):

Enfrentar leões
Enfrentar
Passar por cima de uma coisa
Que está no lugar

Mordida
E a pele fica ferida
Prossiga no rastro, no pasto e siga a vida
No fim a tristeza é amiga da onça
Que ensina a enfrentar leões

O poema é, desse modo, uma escritura que, ao enfrentar leões, produz saúde. Por isso a
escritura como clínica do poeta, do artista. Nesta Aula 3, conversaremos mais, portanto, sobre o
conceito de clínica, também já estudado na Unidade 1, a fim de pensarmos a escritura enquanto uma
reelaboração saudável de si. Ao longo do processo de escrita, as subjetividades são repensadas,
resultando em um produto artístico que pode ressignificar as dores, as violências, ou fazer transbordar
os contentamentos que experienciamos em nossas vidas.

Em nossa paisagem contemporânea, costumamos pensar os processos de cura tanto a partir de


procedimentos médicos quanto religiosos, para citar alguns procedimentos possíveis. Assim, algumas
pessoas acreditam encontrar a cura para doenças e dores na medicina alopática, aquela que prescreve
remédios da indústria farmacêutica. Há outras pessoas que acreditam que a cura poderá ser obtida por
meio de uma medicina natural, que, em vez de remédios, prescreva tratamentos considerados, por
outras tantas, como alternativos, a exemplo de tratamentos realizados mediante processos de
reeducação alimentar. Há, ainda, aquelas pessoas que, tendo uma crença religiosa, acreditam estar a
cura na fé. Há também pessoas que buscam a cura por meio da arte.

Estudamos artistas como a cineasta brasileira Petra Costa, que ressignificou a dor de ter
perdido sua irmã realizando o filme Elena (2013).

Também, de acordo com o que já vimos, as escrevivências da escritora Conceição Evaristo


são outro exemplo de como uma escritura pode resistir às violências do racismo. As escrevivências de
Evaristo funcionam enquanto clínica de escritora para salvaguardar sua saúde diante de tanto
preconceito racial. Evaristo e Petra Costa são artistas, em diferentes linguagens, literatura e cinema,
respectivamente, que produzem uma resistência saudável à exterioridade do mundo.

Também, de acordo com o que já vimos, as escrevivências da escritora Conceição Evaristo


são outro exemplo de como uma escritura pode resistir às violências do racismo. As escrevivências de
Evaristo funcionam enquanto clínica de escritora para salvaguardar sua saúde diante de tanto
preconceito racial. Evaristo e Petra Costa são artistas, em diferentes linguagens, literatura e cinema,
respectivamente, que produzem uma resistência saudável à exterioridade do mundo.
Sendo assim, o conceito de clínica, assim como o de cura, é visto de modo expandido nessa
nossa paisagem contemporânea. Podemos pensar em clínica enquanto o espaço de consultórios
médicos, também enquanto protocolos e procedimentos realizados e prescritos na medicina em suas
diversas especializações. A clínica pode, ainda, ser entendida em uma perspectiva de produção estética
acerca do mundo e de si que nos livraria de sucumbirmos diante das infelicidades. E, assim, pensando
cura e clínica enquanto conceitos expandidos, chamamos de clínica de artista esses processos artísticos,
processos de escrituras de si e do mundo que permitem um processo de cura, ressignificando afetos.

Dito de outra maneira: a clínica de artista é um processo por meio do qual afetamos outros
corpos e a nós mesmos em nossas escrituras à medida que somos afetados tanto por nossas dores quanto
por nossos encantamentos, por nossa reação diante da exterioridade do mundo.

Logo, uma escritura pode funcionar como clínica de artista ao ressignificar vivências. Uma
escritura é, portanto, um processo que repensa e sente diferente e esteticamente a vida. A escritura
enquanto clínica reconecta energeticamente o corpo, sendo, assim, um processo a ativar e (re)ativar
afetos, como um “feixe de energia”:

Eu pergunto se o poeta cria as coisas, pergunto se as reconhece, ou então se as ordena.


Sei que há este intento: o da relação, segundo uma forma básica, entre a intensidade pessoal e
a intensidade do mundo.
Essa forma básica é o ritmo orgânico, a imposição rítmica do corpo. Talvez seja esse ritmo
que cria as coisas [...].
Porque o que vê no poema não é a apresentação da paisagem, narrativa das coisas, a história
do trajecto,
mas
um nó de energia como um nó de um olho ávido,
o fulcro de uma corrente eletromagnética,
um modelo fundamental de poder,
de alimentação.
(HELDER, 2013, p. 131)

Poderíamos sentir o poema como uma alimentação de pulsões de vida. Quando escrevemos
ou lemos um poema, fazemos, como visto, no pensamento, deslocamentos temporais e espaciais. Isso
é o que muitos jovens chamam de viagens, referindo-se a alguém que faz articulações aparentemente
sem sentido, entretanto, o que pode parecer sem sentido hoje poderá fazer muito ou algum sentido
posteriormente.

Já conversamos acerca de como nos transformamos ao longo do tempo. Acumulamos saberes


e experiências que, ao longo da vida, fazem com que os sentimentos diante de um acontecimento ou
de uma lembrança, por exemplo, também se modifiquem.

Uma escritura é, ao mesmo tempo, uma produção intelectual e de afetos. Tentamos articular
argumentos a respeito do que queremos comunicar ou registrar em uma escritura, assim como nossa
memória afetiva faz com que viajemos em temporalidades distintas. E esse processo nos permite sentir
com mais ou menos intensidade ou, até mesmo, ter um sentimento completamente diferente do que
tínhamos anteriormente em relação a um acontecimento ou a uma lembrança ocorrida em um tempo
passado.

Assim, podemos dizer que a escritura é, ao mesmo tempo, aproximação e distanciamento.


Voltamos a um tempo passado, projetamos situações futuras, logo estamos, temporalmente, afastados
do acontecimento, que a memória faz retornar, e, desse modo, aquele acontecimento, outrora
longínquo, também nos aproxima. Escrevemos em um presente atravessado por essas temporalidades.
A clínica de artista possibilita atravessar essas temporalidades e ressignificar uma lembrança,
um sentimento ou acontecimento doloroso. E, ao contrário de ficarmos paralisados diante da dor vivida,
a clínica de artista pode movimentar e problematizar subjetiva e politicamente (pensando que há várias
situações externas que nos violentam), a depender do contexto e momento de vida, outros afetos que
impulsionem o corpo para uma resistência saudável, isto é, que permitam existir sem adoecer, ainda
que com alguma dor. Portanto, uma existência saudável que permita não sucumbir diante do
sofrimento.

A escritura enquanto clínica de artista é espaço de cura, de reinvenção de afetos. A escritura


possibilitaria, desse modo, atravessar os percalços que temos na vida e funcionaria enquanto um
processo de reconstrução de si, de cura, de transformação, de pulsão e de (re)ativação de afetos.

Encerramento

1. O que é um dispositivo em arte e como ele impacta diferentes modos de escritura?

Pensando acerca de dispositivo em termos filosóficos, já há um relativamente longo percurso


na problematização do conceito:

A grande vantagem de se pensar o dispositivo é que se escapa das dicotomias [...]. O


dispositivo é, portanto, por natureza rizomático, o que, de certa forma, nos permite dissolver certas
clivagens e oposições.

[...] O conceito de dispositivo tem uma história filosófica forte na obra dos grandes filósofos
pós-estruturalistas, em particular, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard. Para eles,
o efeito que o dispositivo produz no corpo social se inscreve nas palavras, nas imagens, nos corpos,
nos pensamentos, nos afetos. (PARENTE, 2007, p. 10)

Tomando Foucault como um “intercessor”, isto é, como alguém ou algo que faz o pensamento
deslocar-se, Agamben (2005) mobiliza seu pensamento para um conceito de dispositivo que funcione
ao debate que propõe acerca de um outro conceito, também seu, o de profanação, que restituiria ao uso
comum o que antes havia sido segregado a uma esfera sagrada — religiosa, jurídica, econômica —,
desativando dispositivos de poder, tornando-os abertos a outros usos (AGAMBEN, 2007, p. 68-79).
Agamben atrela, assim, apropriando-se, no que a ele interessa, de Foucault, dispositivos de relações de
poder. Os usos e desusos que fazemos de dispositivos é um ato político à medida que nos submetemos
à sua sacralização ou os profanamos: “Por isso é importante toda vez arrancar dos dispositivos — de
todo dispositivo — a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação [...] tarefa política
da geração que vem.” (AGAMBEN, 2007, p. 79).

2. Por que pensar em literatura expandida?

Segundo o teórico W. J. T. Mitchell (2009), a estrutura de departamentos das universidades


costuma separar as mídias visuais e verbais enquanto campos distintos, entretanto, em sua perspectiva
de teoria da imagem, todas as artes seriam mistas, combinando diversas discursividades, códigos
sensoriais e cognitivos. Historicamente, a poesia já surgiu relacionada com voz e corpo, isto é, com
outros meios — música e dança (MÜLLER, 2012). Contemporaneamente, a literatura projeta-se com
força no campo audiovisual, em videoinstalações nas ruas, videomappings, em espaços virtuais, em
livros de artista, entre outros. Nesse sentido, as fronteiras entre os meios parecem cada vez mais tênues.
Por isso, é necessário hoje pensar a literatura em articulação com diferentes meios, mídias, suportes,
linguagens artísticas.
3. Como pode a escritura fazer não adoecer?

Há uma imagem de Herberto Helder em Photomaton & Vox de poema enquanto paisagem,
acentuando vulnerabilidade e constante deslocamento, destacando o quanto nossa produção discursiva
e leitura acerca do mundo estão atravessadas por nossos corpos. Sendo assim, a escritura pode ser um
ato de resistência para não adoecer diante das violências que nos atravessam ao nos depararmos com a
exterioridade do mundo, ajudando-nos a atravessar os percalços por meio de um processo de
reconstrução de si, de cura, de transformação, de pulsão e de (re)ativação de afetos.

Midiateca

Textos

Referências

BRAVO, Taís. Entrevista com Criola. Revista Capitolina, [S.l.], 22 jan. 2015.
BUHR, Karina. Desperdiçando rima. Rio de Janeiro: Fábrica231, 2015.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
p. 129-160.
HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. Porto: Assírio & Alvim, 2013.
MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
PARENTE, André. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo.
In: PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara. (Orgs.). Estéticas do digital: cinema e tecnologia.
Covilhã: Livros Labcom, 2007.
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Clínica de artista 1: face ao reto o lobo. Rio de Janeiro:
Circuito, 2011.
______. Clínica de artista 2: seis livros treze mil vezes treze mil ossos. Rio de Janeiro:
Circuito, 2011.
______; REZENDE, Renato. No contemporâneo: arte e escritura expandidas. Rio de Janeiro:
Circuito, 2011.
______. Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
SOUZA, Kelly. Entrevista com Conceição Evaristo. Beleza Black Power, [S.l.], 6 set. 2016.

FÓRUM AVALIATIVO

Leia, atentamente, os textos abaixo:


TEXTO I TEXTO II

RODA VIVA O AMOR FAZ-ME FOME

(Chico Buarque) (Matilde Campilho)

Tem dias que a gente se sente Hoje temos mais de trinta anos e da minha janela dá
Como quem partiu ou morreu para ver
A gente estancou de repente os disparos dos incontáveis snipers das barricadas de
Ou foi o mundo então que cresceu Kiev
A gente quer ter voz ativa Desta varanda podem ouvir-se os gritos das ruas
No nosso destino mandar venezuelanas
Mas eis que chega a roda-viva se sobrepondo ao viejo papá que só quer ouvir dizer
E carrega o destino pra lá pásame el pan
Daqui dá para cheirar a ameaça de pólvora semi-
Roda mundo, roda-gigante invisível saindo
Rodamoinho, roda pião do documento que declara o estado de exceção no sul
O tempo rodou num instante da Bahia
Nas voltas do meu coração Parece que a primavera do mundo é um trabalho em
progresso
A gente vai contra a corrente mas o caminho até lá está sendo todo feito entre as
Até não poder resistir veredas
Na volta do barco é que sente e entre os galhos de fogo de um gigante inverno
O quanto deixou de cumprir No nosso tempo eu acreditava muito nas notícias e na
Faz tempo que a gente cultiva televisão
A mais linda roseira que há Hoje eu acredito nas experiências que me contam os
Mas eis que chega a roda-viva homens
E carrega a roseira pra lá Ontem éramos os filhos dos netos da revolução
E explicaram-nos que a tabuada e a paixão alucinante
Roda mundo, roda-gigante eram tudo
Rodamoinho, roda pião o que precisávamos e precisaríamos para o exercício
O tempo rodou num instante da construção
Nas voltas do meu coração Hoje somos pais de algumas crianças e pais de nós
mesmos
[...] e já vamos sabendo algumas coisas sobre a palavra
desconstrução
Roda mundo, roda-gigante O amor ainda é o estandarte onde vamos pendurando
Rodamoinho, roda pião as bandeiras
O tempo rodou num instante A coragem ainda é o ferro onde vamos pendurando as
Nas voltas do meu coração roupas
Sim ainda rasgamos nossas roupas Sim ainda
O samba, a viola, a roseira esfolamos os joelhos
Um dia a fogueira queimou Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança
Foi tudo ilusão passageira universal
Que a brisa primeira levou Onde andarás tu e teu sonho nesta manhã eu já não
No peito a saudade cativa sei
Faz força pro tempo parar Muito menos que espécie de alimento entregas ao
Mas eis que chega a roda-viva domicílio
E carrega a saudade pra lá Seja como for o amor ainda me faz bastante fome
e o relento ainda me parece o asfalto justo para toda
Roda mundo, roda-gigante revolução
Rodamoinho, roda pião [...]
O tempo rodou num instante Extraído de: CAMPILHO, Matilde. Jóquei. São
Nas voltas do meu coração Paulo: Editora 34, 2015.

Tendo-se em vista as discussões que tivemos ao longo das Unidades acerca das relações entre
literatura e vida, responda:

As escrituras presentes no texto I, a música Roda Viva de Chico Buarque, e no texto II, o poema
O amor faz-me fome de Matilde Campilho, aproximam-se ou se distanciam em relação à maneira como
enfrentam a exterioridade do mundo? Justifique sua resposta com trechos dos aludidos textos.
Unidade 3 - Crítica de arte

Introdução

1. “A crítica, como operação de tensão e desconstrução, de vibração e movimento, é também


criação.” Indique por que esse enunciado se afasta do jeito tradicional de fazer crítica e se aproxima da
crítica performativa.
2. Por que se pode chamar a crítica de Ana Chiara sobre a escritora Carolina de Jesus de escrita
performativa?
3. Por que a produção cênica/literária de Regurgitofagia produz fronteiras indecidíveis entre
escritura, arte e crítica.

Para iniciar nosso estudo, observe as imagens a seguir:


Imagem I: o crítico é uma pedra jogada na superfície de um lago com águas paradas.
Imagem II: uma pessoa tensionando uma corda para fazê-la vibrar.

Guarde essas duas imagens, falaremos delas no decorrer do estudo.

Objetivos

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:


Identificar o lugar da crítica convencional entre o leitor/espectador, o espaço e o artista.

Conteúdo Programático

Esta unidade está dividida em:


Aula 1 - Arte e crítica
Aula 2 - Crítica performativa
Aula 3 - Crítica de artista

Aula 1 - Arte e crítica

Essa aula abre a unidade, apresenta a temática crítica de arte e é movida pelo seguinte
questionamento:

Qual o lugar da crítica convencional entre leitor/espectador, espaço e artista?

Para responder o questionamento apresentado, precisamos compreender o que é a crítica.


Ao longo do tempo, a palavra “crítica” passou a ser sinônimo de interpretação, análise e
julgamento da obra de arte ou de qualquer outro objeto. No uso mais coloquial, a palavra “crítica” foi
ainda corrompida e passou a ter um sentido negativo.

Dizemos comumente: “só aceito críticas construtivas”. No entanto, a função da crítica no campo
literário e artístico, ao contrário do que acontece ordinariamente, é desconstruir paradigmas e conceitos
postos.

Desconstruir significa ampliar perspectivas e apontar diferentes pontos de vista.

No Glossário de Derrida, a definição de desconstrução aparece assim:


Operação que consiste em denunciar num determinado texto [...] aquilo que é valorizado e em
nome de quê e, ao mesmo tempo, em desrecalcar o que foi [...] dissimulado nesse texto (SANTIAGO,
1976, p. 17).

Neste contexto, todo texto é feito de silenciamentos. Se a crítica acontece como uma operação
de desconstrução, ela se faz num duplo movimento: denunciar/apontar o que é dito e o que foi
silenciado no texto.

Eis, portanto, uma das funções da crítica: desconstruir.

Você se lembra das duas imagens que abrem nossa aula? Vamos retornar a elas:

Imagem I – Uma pedra jogada na superfície de um lago, com águas paradas.


A perturbação na água causada pelo impacto da pedra causará um movimento de ondas em
forma de circunferências com o mesmo centro, ondas que se afastam do ponto do impacto no centro.
O crítico é aquele que lança a pedra na água parada e, ao mesmo tempo, é a pedra lançada. O texto que
será criticado é uma espécie de lago com águas paradas.

Imagem II – Uma pessoa tensionando uma corda para fazê-la vibrar.


Para uma corda vibrar é necessário que algum agente externo a tensione. O crítico é também
aquele que tensiona o texto para fazê-lo vibrar. A crítica causa tensão, movimento e vibração no texto.

Portanto, num sentido extraordinário, podemos concluir: a crítica é aquele texto que coloca em
crise (desconstrói, tensiona, movimenta e vibra) qualquer produção literária-artística.

Genealogia da crítica

Atualmente, a crítica envolve atividades diferenciadas desde o artigo de jornal, incluindo a


resenha, até a tese universitária, passando por monografias, ensaios, artigos de revistas, conferências.

A crítica literária-artística, especificamente, tem a missão de apreciar o valor estético de uma


obra em todas as fases de sua realização, julgando sua literariedade, sua excelência e a hierarquia do
seu valor.

O crítico literário tem como objeto constante de estudo e avaliação a obra literária. Essa relação
gera uma mútua dependência entre o escritor e o crítico, já que ao escritor interessa, em muitos casos,
a divulgação e o alcance proporcionado pela análise de sua obra, e ao crítico interessa a obra
propriamente dita.

- Crítica descritiva ou analítica.


- Crítica avaliativa ou justificativa.
Jérôme Roger faz outra divisão da Crítica Literária. Para ele, o papel da crítica não é só o de
julgar a obra literária, mas também o de se preocupar com os critérios desses julgamentos. Roger divide
a crítica literária em:

Crítica da Criação ou Crítica Biográfica


Ressalta a importância da personalidade do autor na construção do texto literário.

Crítica Temática
Parte da noção de tema, o qual corresponderia a um universo sensível abrigado pela imaginação
que produz imagens, sons, palavras, signos e sentimentos que, na linguagem, por vezes, não têm nome.
Gaston Bachelard é um importante nome da Crítica Temática.

Sociocrítica
É voltada para a leitura da obra como produção social. Para a Sociocrítica, o texto literário teria
o papel de produzir uma visão de mundo por intermédio das relações do indivíduo com as condições
“reais” de sua existência.

Estética da Recepção
O autor passa a ter menos significância do que o meio que forma o leitor.

Atualmente, a crítica literária apresenta-se como crítica-escritura. O artista/escritor e o crítico


se juntam na mesma condição difícil, diante do mesmo objetivo: a linguagem. A crítica-escritura é a
possibilidade de o crítico ser também um artista. Mais uma dicotomia é quebrada — o crítico e o artista
se confundem.

O importante é você, estudante, começar a se construir como um crítico-artista. Guarde o


principal argumento da nossa aula: a crítica, como operação de tensão e desconstrução, de vibração e
movimento, é também criação. A crítica prolonga e suplementa a obra criticada, além de analisá-la e
avaliá-la.

Aula 2 - Crítica performativa

Você conhece a escritora Carolina Maria de Jesus?

Ela é a autora de um famoso livro chamado Quarto de despejo – Diário de uma favelada. Em
2016 foi lançada a biografia da escritora em quadrinhos. O HQ chamado Carolina é fruto de uma
parceria entre Sirlene Barbosa, doutoranda em educação pela PUC-SP e professora de língua
portuguesa, e o artista visual João Pinheiro.

No HQ Carolina encontramos importantes informações sobre a escritora e o livro Quarto de


despejo – Diário de uma favelada. Reproduzimos aqui trechos do texto que se encontra no final do HQ:

A menina Bitita, mineira de Sacramento, arrombou a porta estreita e branca da elitista literatura
brasileira ao tornar-se Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora de Quarto de despejo: diário de
uma favelada. O livro, quando lançado em agosto de 1960 em sucessivas edições, alcançou a marca de
100 mil exemplares vendidos em poucos meses, superando em vendas, naquele ano, Gabriela cravo e
canela, de Jorge Amado, e foi publicado em 40 países e 14 línguas. [...] Quarto de despejo chegou à
marca de um milhão de exemplares vendidos no mundo todo.
A escritora não dominava a norma padrão da língua, mas a arte da escrita. Foram mais de cinco
mil páginas entre memórias, relatos, romances, poemas, contos, provérbios, letras de música etc.
Tentaram deixá-la na alienação da favela, mas ela conseguiu superar sua condição imediata e mostrou,
por fim, para que veio: para ser escritora, conforme se autodenominava. Ela coletava materiais
recicláveis para manter o sustento dos filhos. Separa os papéis que servem para escrever. E escreve.
Em julho de 1955 começa Quarto de despejo. Nesse livro, Carolina se posiciona como grande escritora.
Por meio dessa leitura, é possível sentir o suor, o cheiro do chorume, ver a cor da fome, que, como ela
dizia, era amarela. Ela constrói uma narrativa demonstrando na pele o quanto o racista é ignorante e o
quanto o racismo continua sendo o responsável por tantas mortes, principalmente pelo fato de nem
estes nem sua prole fazerem parte dessa lamentável estatística.

Sim, a escritora registrou suas incoerências humanas em seu livro e essa constatação não serve
para criticar sua obra, mas para apresentar o ser humano completo que foi essa mulher, inclusive com
suas incoerências.

Carolina Maria de Jesus “problematiza a literatura e, por seu intermédio, também a sociedade,
ao apresentar a tensão entre o alto e o baixo, o lixo e o livro, a figura do escritor e a favelada”.

Você lembra da divisão da Crítica Literária feita por Jérôme Roger? Roger divide a crítica
literária em: Crítica Biográfica, Crítica Temática, Sociocrítica e Estética da Recepção.

Diante da história de Carolina Maria de Jesus, como você produziria uma crítica sobre o livro
Quarto de despejo – Diário de uma favelada?

Essa aula pretende mostrar que além da divisão estabelecida pelo teórico Jérôme Roger há um
tipo de crítica contemporaneamente chamada de Crítica Performativa. No entanto, antes de definir o
que é Crítica Performativa, vamos ver um exemplo a seguir.

O exemplo corresponde a uma parte de um ensaio feito pela teórica/crítica Ana Cristina Chiara
sobre Carolina de Jesus. O nome do texto é “Quem trabalha como eu tem que feder” e está no livro
Ensaios de possessão (irrespirável):

“Dear Deleuze,
Procuro estar junto a você dentro desta bolha asséptica, procuro respirar no seu ritmo este ar
rarefeito, nossas bocas embaçando de ar cálido o plástico, procuro seu rosto desviante, tento segurar
suas mãos. [...] Na bolha, o tempo — o cristal tempo — está em suspensão. [...] Estou aqui e quero
fixá-lo em mim, engatá-lo ao meu corpo e você não precisa temer. [...] A bolha começa a ficar mais e
mais apertada. Do espasmo de um ectoplasma insólito — uma força confinada prestes a se libertar —
começa a surgir a figura da negra. [...] Vinda de esquálidas mitologias, do sujo das favelas, do pouco,
da privação, reconheço a escritora Carolina de Jesus. O corpo da negra, tenso e magro, meu corpo
frouxo e expectante e o seu, dear Deleuze, concentrado e crepuscular. Suas unhas podiam ameaçar
minha pele sensível, mas não a curtida pele da negra. Seu corpo, my dear, fede um pouco a mofo, a
cinzas, a civilização. O da negra exala o cheiro dos esgotos a céu aberto, odor de carne podre, a
viande putrefata do seu pintor preferido. Carolina avisa “às oito e meia da noite eu já estava na favela
respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre”; mas eu... eu disfarço o meu cheiro
com um suave CK. [...] Ao contrário de você, ela ama os gatos, porque não se entregam aos seus
donos... para ela “o gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravizá-lo. E
quando vai embora não retorna, provando que tem opinião”. [...] Carolina literalmente arranca do
invivível o alimento do diário. Ela quer agarrar o sol com as mãos. Ela torna a falta um excesso. Ela
tem de catar a sobrevivência no lixo. [...] Começo a sentir culpa. Não deveria ter deixado Carolina se
meter aqui na bolha com a gente, não deveria ter metido v. nessa embrulhada, eu poderia tê-lo
simplesmente amado? Foi tudo um erro. Não é possível fazer essa mediação, estou para desistir. Nem
você entende Carolina, nem a negra quer entender você. A rústica e bela poesia deste diário nos afetou
sem remédio. Sinto que corremos perigo. [...] Talvez agora nossa bolha esteja realmente se deslocando
para o Quarto de Despejo da cidade de São Paulo. Talvez agora nosso ar rarefeito já tenha começado
a se contaminar com o cheiro da favela e, querido, talvez já estejamos realmente começando a feder...”
Você encontra o ensaio completo de Ana Cristina Chiara sobre Carolina de Jesus no link: “Quem
trabalha como eu tem que feder”.

A autora Chiara em vez de escrever "sobre" Carolina de Jesus, escreve "com" ou mesmo "em",
compondo uma leitura que é uma "sobre-escrita". O texto de Chiara, destinado ao filósofo Gilles
Deleuze, performatiza-se no indecidível entre o ensaio e a ficção e há uma inseparabilidade entre o
ensaio e o gênero textual carta, um desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a ficção e a carta,
entre o gesto e o conceito, entre o conceito e a imagem.

O texto de Chiara é um exemplo de crítica performativa, pois esse tipo de crítica se aproxima
muito do gênero textual chamado Ensaio. Neste contexto, veja a seguir algumas características da
crítica performativa:
- A crítica ensaística ou performativa apresenta uma linguagem que se teatraliza, se adensa e se
intensifica.
- A crítica ensaística pretende provocar o pensamento em vez de torná-lo claro.

O texto performativo, além de rarefazer os limites entre a crítica e a própria literatura, entende
a crítica como objeto do inapreensível, garantindo, assim, a própria inacessibilidade da arte como seu
bem mais precioso.
- O texto performativo é autoral e se dá no indecidível.
- No texto performativo, o crítico é tão criador quanto o autor do texto ou da obra criticada.
- O texto performativo é um texto amoroso. Leia na sequência um exemplo de texto amoroso.

Amor é sempre ensaio ou será ele a prática de uma escrita amorosa onde a crítica está encantada
pela alegria enquanto o poema está apaixonado pelo saber? O corpo dele preenche o corpo dela,
enquanto ela, morada ou estância, reveste, com a sabedoria dos astros, o corpo do ser amado. Para
Agamben, o que fica fechado na "estância" da crítica é nada, mas esse nada contém a inapreensibilidade
como "o seu bem mais poderoso". Amor é sempre um enigma. O ensaísmo entendido como prática
erótica ou como a fala de uma pessoa apaixonada. Nesse sentido, o ensaísta pode ser apontado como
amador, não necessariamente como alguém que não sabe o que fala, mas que não descola a sua escrita
de seu objeto de desejo, seja para dele falar bem ou mal. Talvez possamos aprender com Derrida que
não há fundo na escritura, mas apenas escrita sobre escrita. A crítica não pode pretender encontrar o
fundo da obra, "pois esse fundo é o próprio sujeito, isto é, uma ausência", ensaiou Barthes.

Aula 3 - Crítica de artista

Vimos anteriormente que o texto crítico contemporâneo apresenta o traço do indecidível. A


respeito dessa insinuação, não se pode, ao contrário de um texto crítico convencional, categorizar o
limite da crítica e da criação na crítica contemporânea. Por isso vimos, no exemplo da crítica
performativa ou carta-ensaio de Ana Cristina Chiara, a escrita de uma cena na qual, dentro de uma
bolha, estava a crítica, Carolina de Jesus e o filosofo francês Gilles Deleuze.

O texto performativo se aproxima muito da crítica de artista. Neste sentido, leia a seguir a
declaração de amor que o professor-artista Ricardo Basbaum faz para o artista:

“Amo os artistas-etc. Talvez por que me considere um deles. Artistas-etc. não se moldam
facilmente em categorias e tampouco são facilmente embalados para seguir viagens pelo mundo,
devido, na maioria das vezes, a comprometimentos diversos que revelam não apenas uma agenda
cheia, mas sobretudo fortes ligações com os circuitos locais em que estão inseridos. Vejo o ‘artista-
etc.’ como um desenvolvimento e extensão do ‘artista-multimídia’ que emergiu em meados dos anos
1970, combinando o ‘artista-intermídia’ fluxus com o ‘artista-conceitual’ – hoje, a maioria dos
artistas (digo, aqueles interessantes…) poderia ser considerada como ‘artistas-multimídia’, embora,
por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura
especializadas. ‘Artista’ é um termo cujo sentido se sobre-compõe em múltiplas camadas (o mesmo se
passa com ‘arte’ e demais palavras relacionadas, tais como ‘pintura’, ‘desenho’, ‘objeto’), isto é,
ainda que seja escrito sempre da mesma maneira, possui diversos significados ao mesmo tempo.”
(BASBAUM, 2013, p. 168)

Ricardo Basbaum vai publicar o livro Manual do Artista-etc. O livro é composto por diversos
pequenos textos ensaísticos que transitam no binômio pesquisador-artista, professor-artista, curador-
artista, crítico-artista etc. No livro encontramos Basbaum escrevendo, além da declaração vista
anteriormente, o tópico artista como crítico:

“Hoje, um projeto de intervenção crítica que leve em conta os limites da escrita em sua
articulação com a obra de arte, em sentido amplo, haverá de lidar com uma escrita táctil (o agregado
obra de arte + texto), compreender a organização espacializante do componente discursivo [...].
evidenciar a presença do dispositivo operacional que se configura a partir do agregado obra + texto
[...], operar a partir da dupla captura sensação/conceito [...]” (BASBAUM, 2013, p. 239)

Um exemplo de uma crítica de artista acontece no livro Regurgitofagia e no espetáculo teatral


de nome homônimo de Michel Melamed.

Melamed ressignifica o conceito de antropofagia, de Oswald de Andrade, e faz uma crítica ao


excesso de informações dos dias de hoje.

Há uma falência da antropofagia vulgarizada. A toda hora há artistas falando em entrevistas


que devemos absorver as informações e transformar a realidade. Mas esse sistema não dá mais conta.
Não temos ferramentas para deglutir tantas coisas. É preciso vomitar o que é horrível e da náusea
colher a flor, diz Melamed, citando Carlos Drummond de Andrade.

Para Melamed, o tropicalismo "é a obra mais bem-acabada da antropofagia" de Oswald, mas
não pode ser adotado como uma bíblia.

O tropicalismo é o nosso projeto mais bem-acabado de cultura brasileira. Mas não dá para
operar a realidade atual só com seus instrumentos. É preciso buscar outros expedientes, que eu não
sei quais são. Estou fazendo uma crítica ao que vem acontecendo ainda com um resultado tropicalista,
feito de colagens, avalia Melamed.

"Regurgitofagia" é uma palavra criada por Melamed, que mistura regurgitar com fagia.
Significa, como ele escreve no texto da peça, "vomitar os excessos a fim de avaliarmos o que de fato
queremos redeglutir”.

Não temos por que engolir [o apresentador da Rede TV!] João Kléber. Temos que construir
uma consciência crítica e buscar formas de negociar com a realidade, já que transformá-la
integralmente é uma ideia revolucionária que não faz mais sentido, afirma Melamed.

Em uma cena inspirada em João Kléber, Melamed representa uma disputa, em um programa de
auditório, entre dois homens para ver quem tem mais males, de verruga a câncer. Mas também há
momentos delicados, como os poemas sobre relações amorosas.
O que está sendo dito pode se aplicar a qualquer nível: amor, política, economia, teatro. Tudo
se une pelo sentido de urgência, de falarmos essas coisas para sairmos da perplexidade e renovarmos
nosso olhar, diz Melamed.

Encerramento

1. “A crítica, como operação de tensão e desconstrução, de vibração e movimento, é também criação.”


Indique por que esse enunciado se afasta do jeito tradicional de fazer crítica e se aproxima da crítica
performativa.
Para o crítico performativo não há diferença entre crítica e o crítico. Na crítica performativa, o
crítico está tão implicado na obra quanto o próprio artista-autor do texto. Na crítica performativa nos
deparamos com o crítico que não quer julgar/valorar a obra, mas sim colocar-se nela como dois
jogadores em um jogo. O crítico torna-se um artista, portanto. Encontramos no enunciado “A crítica,
como operação de tensão e desconstrução, de vibração e movimento, é também criação” o vetor que
desestabiliza o pensamento de uma crítica como resultado de uma análise descritiva e julgamento
valorativo. Essas seriam maneiras de fazer crítica, conforme nos mostra o teórico Massaud Moisés.
Para a crítica performativa há um embaralhamento das categorias mapeadas por Jérôme Roger:
ressaltam-se a importância do autor na construção do texto literário, o imaginário sensível do objeto a
ser criticado, a leitura da obra como produção social e o leitor/crítico como criador. O crítico
performativo é como uma pedra que se lança e é lançada nas águas paradas de um lago.

2. Por que se pode chamar a crítica de Ana Chiara sobre a escritora Carolina de Jesus de escrita
performativa?
Conforme discutido na Unidade I e na Unidade II, além de rarefazer os limites entre a crítica e
a própria literatura e outras produções artísticas, o texto performativo trata de entender a crítica como
objeto do inapreensível. Em vez de escrever "sobre" Carolina de Jesus, Chiara escreve "com" ou
mesmo "em", compondo uma leitura que é uma "sobre-escrita". O texto de Chiara, destinado ao filósofo
Gilles Deleuze, se performatiza no indecidível entre o ensaio e a ficção e há uma inseparabilidade entre
o ensaio e o gênero textual “carta”, um desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a ficção e carta,
entre o gesto e o conceito, entre o conceito e a imagem. O texto performativo é autoral e se dá no
indecidível. No texto performativo, o crítico é tão criador quanto o autor do texto ou da obra criticada.
O texto performativo de Chiara é um texto-declaração de amor.

3. Por que a produção cênica/literária de Regurgitofagia produz fronteiras indecidíveis entre escritura,
arte e crítica?
Se a crítica performativa é uma escritura que rasura a obra artística como texto original e a
forma fixa da crítica tradicional como resultado, ela se encontro no entrelugar ou no lugar do
indecidível. Ela não é estável. Regurgitofagia, de Michel Melamed, é um exemplo pulsante de crítica
performativa. A crítica de Melamed aparece dentro da plataforma tradicional do livro e se desdobra em
espetáculo teatral. No espetáculo, Melamed se coloca menos como um ator que constrói personagens
facilmente identificáveis e mais como um performer ou alterego (um segundo eu) altamente crítico de
um pensamento antropofágico elaborado pelo poeta Oswald de Andrade. Regurgitofagia é um
neologismo, resultado dos verbos “regurgitar” e do sufixo “fagia” (sufixo que expressa ação de
alimentar-se de alguma coisa ou de alguém). Para Melamed, antropafagiamos, durante muito tempo,
conceitos, jeitos, literaturas, plasticidades, práticas artísticas e culturais. Agora, faz-se necessário
expelir o excesso, ressignificar o que nos alimenta e lançar para fora aquilo que está nos impedindo de
produzir identidades insubmissas e criativas.
Resumo da Unidade

Esta unidade mostrou a disseminação da prática performativa do texto. Identificamos o lugar


da crítica convencional entre leitor/espectador, espaço e artista — por isso a leitura e a análise da
crítica/teórica Ana Chiara, Quem trabalha como eu tem que feder, sobre a escritora Carolina de Jesus.
No final, apareceu o texto literário/espetáculo performativo Regurgitofagia como um exemplo de uma
crítica que acontece no indecidível entre a escritura, a arte e a crítica.

Midiateca

Vídeo

Maria Carolina de Jesus


https://www.youtube.com/watch?v=Chl-lg87LVQ

Regurgitofagia 2009
https://www.youtube.com/watch?v=k1ce0q-JHEo

Antônio Abujamra entrevista o ator Michel Melamed


https://www.youtube.com/watch?v=V0qO5kXXSsA

Textos

Livros

Manual do artista – etc.


Quarto de despejo: diário de uma favelada
Regurgitofagia
Carolina
A crítica literária
Glossário de Derrida
Artigos
www.jornalplasticobolha.com.br.

Referências

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista – etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
CHIARA, Ana Cristina de Rezende. Ensaios de possessão (irrespirável). Rio de Janeiro: Caetés,
2006.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed. Série Sinal Aberto.
São Paulo: Ática. 2005.
Melamed, Michel. Regurgitofagia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
PINHEIRO, João; SIRLENE, Barbosa. Carolina. São Paulo: Veneta, 2016.
ROGER, Jérômer. A Crítica Literária. Rio de Janeiro: Difel, 2002 (Coleção Enfoques Letras).
SANTIAGO, Silviano (Org.). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
Unidade 4 - Tecnologias do eu

Introdução

1. Como podemos analisar o filme Diários de motocicleta, longa de Walter Salles?


2. A vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer?
3. Como as performances de artistas como Eleonora Fabião e André Penteado constroem e
interferem em formas de vida e em espaços no tempo presente?

Nesta unidade, analisaremos os modos e efeitos da experiência estética e quais são as formas
tradicionais e contemporâneas de estar em relação a obras de arte, espaço, corpos, paisagens. Como o
estético se confunde com o ético nas produções artísticas contemporâneas?

Objetivo

Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de:


Analisar os modos e efeitos da experiência estética.

Conteúdo Programático

Esta unidade está dividida em:


Aula 1 - Apresentação de conceitos de experiência estética
Aula 2 - Tecnologias do eu: sujeito, subjetividade, subjetivação
Aula 3 - Produção de subjetividades contemporâneas

Aula 1 - Apresentação de conceitos de experiência estética

Durante o curso, expandimos a noção de literatura e percebemos o quanto a arte literária se


conecta, na contemporaneidade, com outras práticas artísticas. Experiências subjetivas de
ficcionalidade, tradução, escritura e crítica potencializam o trânsito entre as artes.

Expandir a noção de literatura implica expandir a noção do eu. O leitor é tão artista quanto o
artista escritor. O leitor e o escritor se confundem: o escritor é um leitor-artista-crítico-tradutor, e o
leitor é um escritor-artista-crítico-tradutor.

A noção de escritura, portanto, performatiza um eu subjetivo e articula a arte (literária etc.)


como uma possibilidade de saúde e de cura.

Passeamos por muitas escrituras artísticas: a série de grafite Luto, de Talita Andrade; o
documentário A paixão de JL, de Carlos Nader; a exposição/instalação Cuide de você, de Sophie Calle;
o documentário Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho; lemos a poeta Ana Martins Marques, o livro
Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, o livro O escolhido foi você, de Miranda July, a poesia-música
de Karina Buhr, a peça de teatro e o livro Regurgitofagia, de Michel Melamed etc.

Foi tanta coisa... Tudo para chegarmos até aqui nessa nossa tentativa de experienciar a
multiplicidade literário-artística da vida. Tulipa canta:
Tudo afiado na ponta da língua
Tudo decorado de cabeça
Você permanece muito combinado, calculado
Mesmo sem medida
Nesta aula, vamos movimentar outras noções para continuar investigando as muitas
possibilidades das práticas artísticas. Nas aulas seguintes, falaremos mais sobre vestígios de
experiências artísticas (tecnologias do eu).

Tulipa canta outra vez:


Vou ficar mais um pouquinho
Para ver se eu aprendo alguma coisa
nessa parte do caminho.
Martela o tempo pr'eu ficar mais pianinho
Com as coisas que eu gosto
E que nunca são efêmeras
E que estão despetaladas, acabadas
Sempre pedem um tipo de recomeço.

A imagem a seguir é uma pista para continuarmos infinitos depois do nosso curso:

Imagem do flâuner — aquele que flana.

Flanar: caminhar sem rumo e sem pressa, só pelo


prazer de apreciar o que está à sua volta, parando
aqui e ali para observar algo que chamou sua
atenção ou para tomar um sorvete sentado em um
banco de praça.

João do Rio (2002) diz: “Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o
inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias,
imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.”

João do Rio continua:


O flâneur é ingênuo quase sempre. Para diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno”
de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada
rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos,
acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo
próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo sobe para seu prazer; as bandas de música tocam
nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e
os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur
reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas
vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu
uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é
então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da
poesia de observação… (RIO, 2002)

No século XIX, o poeta francês Charles Baudelaire e o filósofo alemão Walter Benjamin
definiram como flâneur a figura que vaga na cidade a fim de experimentá-la. Esse ser nasceu justamente
na modernidade, sentindo-se incomodado com as transformações geradas pela Revolução Industrial e
não se identificando com o novo estilo de vida que surgia. O flâneur é um observador que caminha
tranquilamente pelas ruas, absorvendo cada detalhe sem ser notado, sem se inserir naquele contexto, e
que busca uma nova percepção da cidade, tomando-a como fonte de inspiração.

A imagem acima é do filme História Real. Nesse filme, lançado em 1999, David Lynch mostra
a estrada e as transformações que essa experiência traz ao personagem. O protagonista é um senhor
que decide ir visitar o irmão, que mora longe e não vê há anos, após receber a notícia de que este sofreu
um derrame. Pilotando um carrinho de cortar grama, ele pega a estrada sozinho e vai lentamente
repensando as experiências de sua vida e conhecendo pessoas que vão trazendo várias questões à tona.

O livro é uma estrada? Todo texto é uma estrada?

O artista-escritor-leitor-tradutor-crítico é como as amigas Thelma e Louise, que decidem deixar


tudo para trás, ou como a pequena Olive, que leva toda sua problemática família para uma viagem de
Kombi pelos Estados Unidos, ou como Sal Paradise, um aspirante a escritor de Nova York que, após
a morte de seu pai, cai na estrada com o selvagem e carismático ex-presidiário Dean Moriarty, ou como
Che Guevara fazendo uma longa viagem pela América Latina ao lado de seu amigo Alberto Granado,
ou, ainda, como Dora, uma mulher que parte em uma jornada para ajudar Josué a voltar para o Nordeste.

Todos esses personagens citados são personagens, respectivamente, dos filmes Thelma e
Louise, Pequena Miss Sunshine, Na estrada, Diários de motocicleta e Central do Brasil. Esses filmes
fazem parte de um gênero de filme chamado “filme de estrada” (movie road, em inglês). Nesse gênero,
não há uma única situação-problema, mas várias situações-conflitos, que são resolvidas ou não durante
a história. É o que acontece em Central do Brasil.

O filme conta a história de Dora, uma mulher que ganha dinheiro escrevendo cartas para
analfabetos na Central do Brasil. Depois de escritas, Dora decide quais cartas deverão ser enviadas ou
não. Dora se vê envolvida com o triste destino de Josué, um garoto de nove anos cuja mãe é atropelada
e morta em frente à maior estação da América Latina — Central do Brasil —, onde Dora trabalha. Dora
se vê “presa” ao menino, com quem — e em função de quem — irá vivenciar uma bela transformação
e viajar do Rio de Janeiro até o sertão da Bahia (VILLAÇA, 1998). Esse deslocamento não é apenas
geográfico/espacial, mas acontece na subjetividade de Dora e de Josué. Os dois erram e flanam pelas
estradas em busca de um interior de um Brasil profundo. A busca do interior de um Brasil profundo é
também a busca do interior de cada um dos personagens. Dora e Josué encontram, cada um, a si
mesmos porque encontram um ao outro. Central do Brasil, portanto, é uma história de construção de
si e um conto de amizade. Amizade de uma mulher com um menino. Amizade parecida com a de uma
mãe com um filho. Amizade de amor. Amizade de amigo que ao aconselhar se aconselha. Amizade
que acontece nas tensões e nos abraços. Amizade de despedida. Amizade feita na estrada e na errância.
O encontro de Dora e Josué tem a potência e a força do afeto da amizade. A amizade funciona como
uma maneira de reexistir e resistir. Nem Josué é o mesmo depois de encontrar Dora. Nem Dora é a
mesma depois de encontrar Josué. A amizade se configura como uma prática de existência ética. Tanto
o menino quanto a mulher abrem para si a possibilidade de um caminho singular.

Falamos da amizade de Dora e Josué e apontamos a amizade em filmes de personagens errantes


que flanam pelas estradas da vida na companhia de amigos e amores para indicarmos a aventura em
estar assumindo essa identidade de artista (identidade expandida de leitor/escritor) — assumir a vida
como aquele que flana pela estrada, construindo paisagens, microdesvios, e escolhendo para si um
modo ético e singular de existência. Entendemos que o movie road e a imagem do flâneur nos
possibilitam a entender a arte como uma estrada ou como um espaço para se ter experiência, querer a
vida como aquele que está aberto para a experiência. Dora e Josué tornaram-se sujeitos da experiência.
A vida do artista é a vida do sujeito da experiência.
O sujeito da experiência é algo como um território de passagem. Ele produz afetos, e afetos são
produzidos nele. Ele inscreve algumas marcas, e marcas são inscritas nele. Ele deixa vestígios, e alguns
vestígios são deixados nele.

O amigo e o flâneur não seriam, portanto, sujeitos da experiência?

Essa nossa prosa sobre “experiência” continuará na Aula 2. Por enquanto, ficamos com a carta
que Dora deixa para seu amigo Josué:

Josué
Faz muito tempo que eu não mando uma carta pra alguém.
Agora eu tô mandando essa carta pra você.
Você tem razão. Seu pai ainda vai aparecer e, com certeza, ele é tudo aquilo que você diz que
ele é. Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele deixou eu, uma menininha,
dar o apito do trem a viagem inteira. Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão
enorme, espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a mão no volante.
Também vai ser melhor pra você ficar aí com seus irmãos. Você merece muito muito mais do que eu
tenho pra te dar.
No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho que a gente tirou junto.
Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me esqueça.
Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.
Dora

Ampliando o Foco
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a arte de flanar, leia as páginas 12 a 25 do livro:
JACQUES, P. B. Elogio aos errantes. Salvador: Edufba, 2012.
Para ler João do Rio: objdigital.bn.br
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a noção de experiência, leia o texto: BONDÍA, J. L.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. Revista
Brasileira de Educação, n. 19, jan./abr. 2002. Acesso em: 18 jun. 2017.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre movie road, assista aos filmes Thelma e Louise,
Pequena Miss Sunshine, Na estrada, Diários de motocicleta e Central do Brasil.

Aula 2 - Tecnologias do eu: sujeito, subjetividade, subjetivação

Estamos analisando os modos (maneiras) e efeitos da experiência estética.

A noção de experiência estética ratifica o desejo de permanecermos no estético mesmo quando


saímos da presença dos objetos artísticos.

A noção de experiência estética extrapola a experiência contemplativa de um objeto artístico.


A percepção do que é arte é alterada. A experiência estética é uma experiência ética, ou seja, um modo
artístico de estar na vida ou um modo artista de querer a vida. Diz respeito a um cuidado do sujeito
consigo mesmo. Fazer do artístico uma decisão para sair de uma vida de descuido e voltar a ter um
cuidado consigo mesmo.

Por isso, na aula anterior, falamos sobre esse sujeito que anda pela cidade como um artista que
anda para encontrar a si mesmo no outro. Encontrar o outro é ter um cuidado consigo mesmo. Por isso
falamos de amizade. A amizade como um cuidado de si. A amizade como uma experiência estética e
como um modo ético de vida. Enquanto um pensamento alicerçado na moral nos diz qual vida você
tem que levar, o pensamento ético pergunta qual vida você quer levar.

Estamos falando de experiência estética para falarmos de um cuidado de si. A ética do cuidado
de si consiste em um conjunto de regras de existência que o sujeito dá a si mesmo, promovendo,
segundo sua vontade e desejo, uma forma ou estilo de vida, culminando em uma estética da existência.
Essa concepção de ética do cuidado de si foi agenciada pelo filósofo Michel Foucault.

A vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer? Para Foucault, sim. O sujeito é
compreendido por Foucault como um “eu” ético em uma relação consigo mesmo, sendo, assim,
compreendido como transformável, modificável: é um sujeito que se constrói, que se dá regras de
existência e conduta. A ética consiste, para Foucault, no direcionamento da própria subjetividade
reflexiva para si, visando a formas de se reinventar, de se elaborar a própria vida.

O sujeito da experiência seleciona para si, à sua maneira, regras de existência, para que constitua
sua vida de maneira agradável aos seus próprios olhos. Veja o que nos diz o artigo A ética em Michel
Foucault: do cuidado de si à estética da existência:

Para Foucault, o cuidado de si corresponde a uma postura ética diante do mundo em que o
indivíduo, antes de agir sobre este, volta-se para si reflexivamente, agindo sobre si e depois sobre o
mundo. A atitude para consigo corresponde a um cuidado com a própria vida tanto em seu sentido
biológico quanto subjetivo, ou seja, o homem, num embate com padrões de existência normalizantes,
movido por sua vontade de vir a ser algo que esteja de acordo com seu desejo de vida, molda sua
subjetividade através de suas escolhas. Moldar a vida segundo a vontade própria configura-se num
processo de transformação do sujeito em que este busca “purificar-se”, ou seja, abandonar tudo o
que torna a vida como algo meramente ordinário e cotidiano como um horizonte fechado para uma
única possibilidade. Então o homem, amarrado e aprisionado em diversas prisões simbólicas e
subjetivas, entra em confronto com forças externas que tentam lhe dobrar e lhe tornar dócil, lapidando
e esculpindo sua vida como obra de arte a ser feita e refeita a cada instante. Então, conclui-se que a
ética do cuidado de si, enquanto atitudes do sujeito para consigo mesmo, constitui-se em um conjunto
de práticas e regras de existência que o sujeito dá a si e esse cuidado para consigo, transformando
suas atitudes e sua subjetividade, torna a vida, metaforicamente falando, “bela”, culminando na
compreensão desta como “estética da existência”. (GALVÃO, 2014)

O artigo dessa citação pode ser encontrado na íntegra no link: revistaseletronicas.pucrs.br

A pergunta que fazemos a você é:


Qual vida ética você quer levar?
Como fazer da vida uma obra de arte?

Resta, ainda, compreender em que as práticas de si culminará. As práticas de si têm como


objetivo alcançar momentos de “liberdade”. Cuidar de si é criar para si, como um artista cria uma obra
de arte, uma liberdade para agir, é escolher formas de pensamento que nem sempre obedecem às
práticas de controle de nosso corpo.

Voltemos à imagem do flâneur — aquele que caminha sem rumo e sem pressa, só pelo prazer
de apreciar o que está à sua volta, parando aqui e ali para observar algo que chamou sua atenção ou
para tomar um sorvete sentado em um banco de praça. O flâneur é a nossa metáfora para se pensar a
vida como um artista. É a nossa imagem-dispositivo para nos ajudar a fazer da vida uma obra de arte.
Se o flâneur é em si mesmo o sujeito da experiência, se ele afeta o outro e se deixa ser afetado pelo
outro, ele é o artista dos caminhos, das encruzilhadas, é o sujeito da ação. O flâneur, ao caminhar,
transforma-se, transforma o outro, é transformado pelo outro e modifica a paisagem por onde anda.
Ele é um agente de transformação de si mesmo, do outro e das coisas. A desobediência do
artista, daquele que tem um cuidado consigo mesmo, do sujeito da experiência, é a desobediência de
quem quer tomar seus próprios direcionamentos e atitudes, esculpindo, assim, sua própria subjetividade
à medida que vai produzindo seu próprio estilo de vida.

O personagem Riobaldo, criado por Guimarães Rosa no livro Grande sertão: veredas, também
é uma espécie de flâneur — aquele que decide andar pelo sertão para ser tanto, para “ser-tão”. No
caminho do sertão, ele encontra inimigos, amigos e sua grande amizade de amor: Diadorim.

Riobaldo é o narrador do livro, e é ele quem conta a sua história. Em uma das belas passagens
do livro, Riobaldo diz:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega
e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo
a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!
A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de
continuação porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. O mais importante e
bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas
que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. Viver é muito perigoso; e não é
não. Nem sei explicar estas coisas. (ROSA, 1994)

Para concluir, uma curiosidade: anualmente, no mês de julho, acontece O caminho do Sertão
pelo cerrado de Minas Gerais. Cerca de 50 caminhantes flanam pelas veredas de Riobaldo e Diadorim.
O caminho é literário e também ecossocioliterário. Além de fazerem o caminho que está no livro de
Rosa, os caminhantes se deparam com as questões ecológicas e sociais do caminho. Esse projeto é um
bom exemplo de homens e mulheres que caminham para reencontrar a narrativa de Riobaldo, para
encontrar a si mesmos e fazer amigos.

Se você quiser saber mais, visite a página do projeto. Lá você encontrará vídeos, fotografias e
depoimentos dos participantes caminhantes.

Agora, para completar nossa aula e aquecer o final do nosso curso, sugerimos escutar o álbum
Refazenda, de Gilberto Gil.

Ampliando o Foco
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a noção do cuidado de si, leia o artigo:
GALVÃO, B. A. A ética em Michel Foucault: do cuidado de si à estética da existência. Intuitio,
Porto Alegre, v. 7, n. 1, jun. 2014. Acesso em: 19 jun. 2017
Para saber mais sobre O caminho do sertão, acesse o site.
Para escutar o álbum Refazenda completo.

Aula 3 - Produção de subjetividades contemporâneas

Estamos nos aquecendo para o final do nosso curso. Este curso tentou propor uma atmosfera
muito diferente daquelas encontradas nos livros didáticos e nos compêndios de orientação teórico-
didática. O objetivo foi aliar uma escrita mais diluída com conceitos teóricos para ativar uma
compreensão do caráter transdisciplinar das artes na contemporaneidade. Poderíamos nos arriscar e,
no lugar de transdisciplinar, chamar as produções artísticas de indisciplinares — as produções
artísticas, se pensadas na clave do indisciplinar, convocam-nos a pensar como a arte é uma operação
de insubmissão e instabilidade (e, talvez, nessa instabilidade, encontremos as potências para a produção
de outros modos e outras lógicas de vida ou de estar na vida). Disciplina, de uma maneira geral, indica
ordem ou conduta que assegura o bem-estar dos indivíduos ou o bom funcionamento dos espaços.
Pensar na arte como um procedimento indisciplinar não significa fazer apologia à desordem, mas sim
desconfiar que o discurso da ordem (e do progresso) quase sempre é usado para cercear nossos corpos
e desejos.

Esta aula funcionará como uma lista de artistas e obras que desmontam as grandes verdades e
que se conectam a uma vontade de vida. Vamos nos conectar com artistas que fazem da arte uma
produção potente de si, de suas singularidades, e que potencializam o estar no mundo.

Você escutou o álbum Refazenda, de Gilberto Gil? Não foi por acaso que pedimos que ele
completasse a Aula 2 e anunciasse o clima do final desta disciplina. Sugerimos que você ligue seu som
em Refazenda e nos acompanhe até o finalzinho do curso.

Vamos falar um pouco de Gilberto Gil antes de falar de Refazenda. Gil tem tudo a ver com
aquilo que discutimos até aqui: a estetização da experiência e a politização do cotidiano. Conforme a
professora Cássia Lopes, “a grafia corporal do artista projeta-se na zona de fronteiras entre a politização
do estético e a estetização do político” (LOPES, 2012, p. 22, grifo nosso).

Gil é o amigo de Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. Os quatro participaram do
movimento tropicalista. Não saberíamos dizer, ao certo, como seria o Brasil sem a produção poético-
política desses quatro artistas, que se inventaram, em 1976, como os “doces bárbaros”. Um ano antes,
em 1975, Gil lançou o álbum Refazenda, que comporia com os álbuns Refavela (1977) e Realce (1979)
uma trilogia. No meio da trilogia, Gil se juntou a Rita Lee e, juntos, fizeram o show Refestança. Uma
grafia visual nos chama atenção nos álbuns da trilogia: o prefixo re-. O que esse prefixo nos sinaliza?
Inicialmente, indica repetição ou um eterno retorno.

Eterno retorno é um conceito filosófico, talvez o mais importante, do filósofo Friedrich


Nietzsche. Nietzsche nos faz uma provocação no livro A gaia ciência:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse:
“Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda
inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro
e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na
mesma ordem e sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo
modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu
com ela, poeirinha da poeira!” Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o
demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe
responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder
sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de
cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos
sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar
nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2001a)

Parafraseando a citação, o filósofo nos pergunta:

“Se fosse para você retornar e viver a vida exatamente como foi — com todas as alegrias e
tristezas — e se isso se repetisse infinitamente, você aceitaria?”

Essa pergunta é feita para gerar uma autorreflexão:


A vida que eu tenho é a vida que eu quero ter?

O eterno retorno pode ser sintetizado assim: tudo vai e passa, e tudo volta — e volta até mesmo
o ir e passar.

A vida é feita de repetições. Ora estamos tristes, ora estamos felizes. Ora ascendemos, ora
desanimamos. Ora queremos, ora nos afastamos do querer. Ora fracassamos, ora desfazemos os nós.

Como, no entanto, nas repetições, potencializamos aquilo que nos tira o desejo de viver em
mais vida? Como não se ressentir da vida? Como entender que é no repetir que podemos nos construir
diferentes? Como entender que é no eterno retorno (na repetição infinita da nossa finitude) que as
diferenças acontecem?

Nietzsche vai se performatizar em um dançarino andarilho chamado Zaratustra. Em uma das


passagens de Assim falou Zaratustra, ele dirá: “Retornarei eternamente para esta mesma e idêntica
vida, nas coisas maiores e também menores, para novamente anunciar os homens o super-homem.”

O super-homem, anunciado por Nietzsche por meio de Zaratustra, não é um homem superior,
mas uma subjetividade transformada pelo desejo infinito pela vida.

No eterno retorno, o super-homem acontece.

Para nos ajudar a pensar sobre esse amor pela vida (ou o amor pelo destino — amor fati), a
filósofa Marcia Tiburi escreveu um artigo chamado O peso mais pesado: ódio e meios de produção do
ressentimento. Selecionamos três trechos-chave do artigo, que pode ser lido na íntegra pelo link.

Trecho 1 - “Nietzsche escreveu sobre sua famosa teoria do eterno retorno em um parágrafo de
A gaia ciência intitulado 'O peso mais pesado'. Trata-se, no caso dessa doutrina de caráter amplamente
psicológico, do peso do ressentimento, daquilo que não se pode esquecer. Do afeto que, denso e
pesaroso, de algum modo é preciso carregar por toda a vida.”

Trecho 2 - “Cada pessoa tem alguma dor, ou talvez várias dores que são, no sentido do que a
psicanálise chama de trauma, constitutivas de sua condição subjetiva. Mas o modo como cada um
experimenta o que podemos chamar de ferida pessoal […] depende de muitos fatores.”

Trecho 3 - “Amar o destino seria, antes de mais nada, um ato de desapego. Seria o ato de
aceitação do peso das coisas, não de sua negação abstrata. Essa aceitação permitiria deixar as coisas
no meio do caminho, abandoná-las a si mesmas.”

Observe o início do trecho 3: “Amar o destino [a vida] seria, antes de mais nada, um ato de
desapego.” Parece-nos que Gil está dialogando com esse pensamento filosófico da vida. Na palavra re-
fa-zen-da, encontramos a palavra zen. O pensamento de amar o destino como um ato de desapego, a
filosofia do eterno retorno, a vontade em potencializar a dor da vida em felicidade, é um pensamento
também compartilhado pela prática zen. Assim, podemos articular uma relação entre a prática artística
de Gil, traduzida no álbum Refazenda, com a prática filosófica e potente de Nietzsche e com a prática
do zen. Um dos caminhos para atingir o zen e o desapego da finitude é a meditação. O último poema-
canção do álbum Refazenda se chama Meditação:

Meditação
Dentro de si mesmo
mesmo que lá fora
fora de si mesmo
mesmo que distante
e assim por diante
de si mesmo, ad infinitum
Tudo de si mesmo
mesmo que pra nada
nada pra si mesmo
mesmo porque tudo
sempre acaba sendo
o que era de se esperar

Observe que o poema meditar é encontrar o caminho do meio, o


caminho que é o lugar onde as coisas opostas não se excluem: o dentro e o fora,
o que está distante e o perto, o si mesmo e o ad infinitum fazem parte do
movimento circular e paradoxal da vida, como indica a imagem-símbolo do
zen, chamada ensô:

Ensô é uma palavra japonesa que significa “círculo” e tem um conceito fortemente associado
ao zen. Ensô é, talvez, o tema mais comum na caligrafia japonesa. Ele simboliza iluminação, esforço,
elegância, o universo e o vazio. Ele é também uma “expressão do momento” — a presentificação do
aqui e agora é um desejo zen. Gil vai cantar um poema lindo, no álbum Refavela:

Aqui agora
O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora bis
Aqui onde indefinido
Agora que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui de onde o olho mira
Agora que ouvido escuta
O tempo que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora bis
Aqui onde a cor é clara
Agora que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui longe em Nova Deli
Agora sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui,
E agora bis
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui fora de perigo
Agora dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
Encontramos muitas relações nos três álbuns – Refazenda, Refavela e Realce (sugerimos que
você os escute).

Uma outra coisa nos chama atenção no neologismo refazenda. Além de encontrarmos aí a
palavra zen, encontramos uma outra — fazenda. A palavra fazenda é polissêmica: ela sugere um espaço
e também um tipo de tecido. Quando se diz refazenda, escutamos algo como fazer renda de novo. O
prefixo re- tem aquilo que já identificamos como eterno retorno. Parece que Gil desenha na palavra
refazenda o círculo ensô do zen. Encontramos nela, rapidamente, duas notas musicais: ré e fá. Se
perguntarmos a um violeiro quais notas corresponderiam à palavra zen e à sílaba da, ele certamente
nos dirá que correspondem, respectivamente, às notas si e ré. Assim, ficaríamos com a seguinte
correspondência entre palavra e notas musicais:

RE FA ZEN DA (PALAVRA) = RÉ FÁ SI RÉ (NOTAS MUSICAIS)

Observe que a palavra, quando traduzida em notas musicais, mostra-nos um esquema — o


prefixo re- é o som da última sílaba. Gil constrói, portanto, um eterno retorno na própria palavra.

Esse álbum também é uma releitura do sertão. É um retorno, uma ressignificação de um sertão
que pode ser urbano e que pode estar no urbano. Um sertão que pode estar em uma paisagem externa
ou em nós mesmos. Vamos ler/ouvir a música que dá nome ao álbum?

Refazenda
Abacateiro, acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro, teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro, sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também
Abacateiro, serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar
Abacateiro, saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba

Agora, ainda com o som de Refazenda, mostraremos dois artistas que ressignificam suas vidas
escrevendo outras lógicas de abordar o cotidiano, a cidade, o coletivo, a dor, o luto, a vida.

ARTISTA I – Eleonora Fabião

Fabião criou o projeto Mudano, que consistiu em livro, exposição de rua e performances. Ela
foi selecionada pelo projeto Rumos do Itaú Cultural.
Veja o que nos diz a página do Rumos:
O que você faria se estivesse andando pela rua e encontrasse uma mulher empunhando o
seguinte cartaz: “Converso sobre qualquer assunto”? Aceitaria o convite? Falaria sobre o quê?
Desde 2008, quando essa ação foi feita pela primeira vez no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro,
muitas pessoas sentaram-se na cadeira vazia disposta à frente da performer Eleonora Fabião,
interessadas em vivenciar essa experiência inusitada.
Teve o senhor que falou da infância e da adolescência e comoveu-se ao se lembrar da mãe
adotiva. O jovem que dividiu a alegria de conseguir o primeiro emprego como veterinário. Três
adolescentes que debatiam sobre como pedir uma garota em namoro. Teve também gente curiosa
sobre o que significava aquilo e quem era aquela mulher. Foram muitas as histórias ouvidas e
compartilhadas ali. Mas, afinal, com qual objetivo?
Segundo Eleonora, a ideia, não só desta, mas de outras performances que vem desenvolvendo
ao longo dos últimos seis anos, é propor e experimentar um novo modo de relação com as pessoas e
com a cidade.
O tipo de ação varia conforme a necessidade do instante, mas atende momentaneamente a uma
questão recorrente: “Que ações geram o mundo em que quero viver e que ações impedem o
desenvolvimento desse mundo? Então, crio o mundo que desejo a partir das ações que realizo”,
explica. (RUMOS…, 2014)

Você pode ver o texto completo em: www.itaucultural.org.br

Tomemos a questão de Fabião para nós:

Que ações geram o mundo em que quero viver e que ações impedem o desenvolvimento desse
mundo?

Artista II – André Penteado

Figura 1 – Políptico com 52 autorretratos em que o artista veste as roupas de seu pai.

José Octávio tinha 72 anos quando cometeu suicídio, em 31 de janeiro de 2007, em São Paulo.
Quando isso ocorreu, seu filho, André Penteado, vivia há um ano em Londres. Logo após receber a
notícia, André pegou sua câmera e começou a fotografar. Foi uma maneira impulsiva e imediata de
lidar com o acontecido.

Figura 2 – Políptico com 36 fotos dos cabides vazios que sobraram ao final da criação dos
autorretratos.
Quando André Penteado recebeu a notícia da morte de seu pai, em um momento de dor e
confusão, a sua reação foi colocar um filme preto e branco na sua câmera analógica e sair para andar
um pouco, tentando digerir tudo aquilo1.

Esse ato natural de fotografar acompanhou todo o seu processo de luto e resultou no ensaio O
Suicídio de Meu Pai, que foi vencedor do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger 2012/2013 na
categoria Livre Temática e Técnica.

Na exposição do fotógrafo, é possível acompanhar três momentos do luto vivido por ele.

O primeiro é a dor e o choque pelo recebimento da notícia, passando pelo velório e funeral com
seus familiares. A segunda etapa do ensaio é o processo de despedida vivido nas semanas seguintes,
quando ele experimentou as roupas do pai e resolveu fotografar a si mesmo vestindo-as (veja a primeira
imagem). Quando viu os cabides vazios jogados no estúdio (veja a segunda imagem), também decidiu
fazer uma série de registros. A última parte apresenta as consequências emocionais da perda a longo
prazo. O artista reuniu imagens que fotografou no seu entorno e cotidiano ao longo dos anos seguintes.

Conforme Penteado conta: É um trabalho sobre o impacto do suicídio na vida de pessoas


próximas a quem se suicidou. Sentimos um misto de culpa e raiva, ficamos pensando no que
poderíamos ter feito para evitar e por que a pessoa fez aquilo com você.

O fotógrafo explica que, apesar de hoje parecer algo organizado e racional, foi um processo
intuitivo, natural e involuntário. “Não tinha uma explicação para fotografar, acho que queria me ocupar
e entender tudo aquilo. Sendo fotógrafo é assim que eu lido com essas questões, sempre fotografei
muito o meu cotidiano.”

Ele relembra, por exemplo, o momento em que precisou se desfazer dos pertences do seu pai e
decidiu experimentar todas as suas roupas. “Eu senti o perfume dele, as roupas ainda estavam com
cabelos. Foi uma sensação muito intensa, como se ele estivesse ali e eu precisasse me despedir.”

Depois que voltou para Londres, Penteado começou a frequentar um grupo de apoio para
familiares de suicidas. Conhecendo pessoas que passaram pelo mesmo que ele, começou um trabalho
para que eles expressassem seus sentimentos. Ele fez um vídeo que mostra as mãos dos participantes
enquanto eles falam o que sentem. André é quem faz o último depoimento.
Veja o vídeo: How do you feel?.

O que esses dois artistas — Eleonora Fabião e André Penteado — refazem, ressignificam,
reconduzem? Qual a refazenda desses dois artistas? Qual a potência que podemos encontrar, de
maneiras diferentes, nos dois?

A refazenda de Fabião nos recoloca com a alteridade — escutar um outro estranho no cotidiano
da cidade, arriscar-se no cotidiano da cidade para se ajustar à velocidade do outro. Essa seria uma
maneira de escrever a cidade com outra pessoa?

A refazenda de Penteado é ressignificação da dor do luto. A fotografia, para o artista, antes de


ser um dispositivo que representa a dor ou alguém, significa possibilidade de se reconstruir nos
fragmentos, roupas, cabides, cartas do pai.

O que nos interessa aqui é afirmar a vida, daí trazer as duas escritas performáticas dos dois
artistas. Tanto Fabião quanto penteado disseram sim à vida. Dizer sim. O mesmo sim que fez John
Lennon se apaixonar por Yoko Ono. Lennon contou sobre a obra que o fez apaixonar pela performer
para o repórter Jonathan Cott:
Mas havia outra obra que realmente me fez decidir se era contra ou a favor da artista: uma
escada que levava a um quadro pendurado no teto. Parecia uma tela preta com uma corrente e uma
lupa pendurada na ponta. Subi a escada, olhei pela lupa, e estava escrito em letrinhas pequenas:
‘YES’. (COTT, 2013, p. 44)

Mais tarde John comporia: “Sim é a resposta, e com certeza você sabe disso. / Sim é a rendição,
você tem que aceitar.” 2

Terminaremos o curso com um grande sim. O mesmo sim que encontramos nas duas primeiras
frases e nas duas últimas frases do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector:

O início:
Tudo no mundo começou com um sim.
Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.

O fim:
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.

Encerramento

Como podemos analisar o filme Diários de motocicleta, longa de Walter Salles?


O sujeito da experiência é algo como um território de passagem. Ele produz afetos, e afetos são
produzidos nele. Ele inscreve algumas marcas, e marcas são inscritas nele. Ele deixa vestígios, e alguns
vestígios são deixados nele. O filme Diários de motocicleta é uma história de aventura de dois amigos:
Che Guevara e Alberto Granado. Ernesto Guevara de La Serna, às vésperas de se formar médico, decide
viajar com o amigo e bioquímico Alberto Granado. Na viagem, os dois amigos têm o objetivo de
conhecer a fundo a América Latina a bordo da “Poderosa”, a motocicleta de Granado. Esse é um
exemplo do gênero fílmico movie road. Nesse tipo de filme, a transformação da vida dos personagens
se dá à medida que o percurso do caminho acontece. Os dois amigos são flâuners da estrada — eles
erram para descobrir a América e, como sujeitos da experiência, constroem possibilidades de afeto.

A vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer?


A vida como obra de arte a se fazer ecoa na noção de “cuidado de si” do filósofo Michel
Foucault. Para o filósofo, sim, a vida pode ser compreendida como obra de arte a se fazer. As práticas
de si têm como objetivo alcançar momentos de “liberdade”. Cuidar de si é criar para si, como um artista
cria uma obra de arte, uma liberdade para agir, é escolher formas de pensamento que nem sempre
obedecem às práticas de controle de nosso corpo. Daí a imagem do flâuner — aquele que caminha para
se conhecer.

Como as performances de artistas como Eleonora Fabião e André Penteado constroem e


interferem em formas de vida e em espaços no tempo presente?
Os dois artistas interseccionam o estético com o ético, o privado e o público. Em Fabião,
encontramos a força do encontro, a amizade que se dá no instante, na politização da cidade. Fabião
desacelera o olhar e o passo do transeunte sobrevivente da cidade. Como uma costureira que faz a
renda, ela recostura o cotidiano de quem sequer trocaria olhares. As performances de Fabião se
conectam com a pergunta anterior, e a vida é compreendida como obra de arte a se fazer.
Em Penteado, as práticas da fotografia têm como objetivo alcançar momentos de cura. Cuidar
de si é criar para si operações de transformações subjetivas. Penteado traz para a cena contemporânea
a discussão de um tema tabu — o suicídio. Vestir as roupas do pai que se matou é fazer um investimento
estético como um transformador da dor infinita em potência — vontade de destino.

Resumo da Unidade

Esta unidade pretendeu analisar os modos e efeitos da experiência estética. Fomos agenciados
pela pergunta: como o estético se confunde com o ético nas produções artísticas contemporâneas?
Encontramos no flâneur o corpo da experiência. Aprendemos que o flâuner erra com amigos,
para encontrar amigos, ressignificar a cidade e descobrir mapas e paisagens quase nunca mostrados.
Escutamos e falamos sobre Refazenda, de Gilberto Gil.
Identificamos como obras de arte constroem e interferem em formas de vida e em espaços no
tempo presente, especialmente na produção ético-estética dos artistas Eleonora Fabião e André
Penteado.

Midiateca

Vídeo
Central do Brasil - Filme
Diários de Motocicleta - Filme
Pequena Miss Sunshine - Filme
O suicídio de meu pai
Thelma e Louise – Filme

Sites
Os caminhos do sertão

Artigos

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley


Geraldi. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./abr. 2002. Acesso em: 18 jun. 2017.
GALVÃO, B. A. A ética em Michel Foucault: do cuidado de si à estética da existência. Intuitio,
Porto Alegre, v. 7, n. 1, jun. 2014. Acesso em: 19 jun. 2017.
PERL, L. O Suicídio de Meu Pai retrata o luto de um fotógrafo. A Tarde, Salvador, 14 mar.
2014. Acesso em: 10 jul. 2017.
RUMOS 2013-2014: a arte de criar o mundo que se deseja. Itaú Cultural, São Paulo, 18 ago.
2014. Acesso em: 20 jun. 2018.
TIBURI, M. O peso mais pesado: ódio e meios de produção do ressentimento. Revista Cult,
São Paulo, 28 out. 2014. Acesso em: 18 jun. 2018.
VILLAÇA, P. Central do Brasil. Cinema em cena, [S.l.], 3 maio 1998. Acesso em: 22 jun. 2017.

Referências

COTT, J. John Lennon, Yoko Ono e eu. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
JACQUES, P. B. Elogio aos errantes. Salvador: Edufba, 2012.
LOPES, C. Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo: Perspectiva, 2012.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001a.
______. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2001b.
RIO, J. A alma encantadora das ruas. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 12 abr.
2002. Disponível em: <https://goo.gl/kFfHQw>. Acesso em: 15 jun. 2017.
ROSA, G. Grande sertão: veredas. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1994. 2 v.
AVALIAÇÃO
CARTA PARA UM AMIGO

O objetivo dessa atividade é proporcionar a você, estudante, a criação de um pensamento a


partir da noção de escritura. Você fará uma produção crítica e criativa do conto Olhos D´água da
escritora Conceição Evaristo.

Escreva uma carta para seu melhor amigo analisando o conto Olhos D´água. Essa carta precisa
apresentar uma discussão teórica apreendida nas discussões feitas nas aulas do nosso curso.

De qual maneira a narrativa do conto Olhos D´água pode se conectar com a narrativa da sua
vida?

Procedimentos para elaboração do TD

Instrução 1 – Ler com atenção o conto Olhos D´água tomando nota das cenas que mais
chamam sua atenção, nome das personagens, situações etc. O conto Olhos D´água pode ser encontrado
no seguinte link:

https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/nossas-
publicacoes/revista/paginas-literarias/artigo/2261/olhos-dagua (Links para um site externo)Links para
um site externo

Instrução 2 – Fazer o resumo conto Olhos D´água e conectá-lo com narrativas que você
escutou, viveu ou viu. Articule essas narrativas com poemas, outros contos, filmes ou músicas, por
exemplo.

Instrução 3 – Escreva uma carta para seu melhor amigo contando sobre sua experiência em
ler o conto Olhos D´água e articule-o com a teoria apreendida nas aulas do nosso curso.

Você também pode gostar