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ARTIGOS Analiso Ritológici (19iB), 11, 3337-344

Análise institucional e mudança social

MARIA B. MONTEIRO
M. TAVARES D A SILVA
3. PEREIRA BASTOS
JORGE VALA *

aonde está o desejo imenso está a imensa ale- ideologicamente em desagregação, assistimos às
gria, onde a transgressão, suportada até ao primeiras importações da teoria e técnicas psi-
limite do possível, encontra-se o vector do
paraíso perdido.» cossociológicas, e $ sua
i introdução nos sectores
MARIAVELHO DA COSTA, in Maina Mendes das organizações produtivas e do ensino médio
e superior.
I -INTRODUÇÃO O quadro da página seguinte apresenta uma
leitura integrada da dinâmica do contexto poli-
1. A análise institucional, teoria e método de tico-económico português, e da introdução da
intervenção psicossociológica nas organizações teoria e intervenções de carácter psicossocioló-
-produtivas, de ensino e de saúde- provoca gico nas organizações de ensino, de saúde e in-
e analisa os confrontos manifestos e latentes dustriais.
entre os diversos grupos de poder e contrapoder Por nossa parte podemos enunciar as acições
atravessados pela complexidade do multi-sis- a que alguns de nós estivemos associados desde
tema indivíduo-sociedade. aquela data até ao presente:
2. Interessa, nesta perspectiva, localizar his- -Nas organizações industriais e de serviços,
toricamente a intervenção psicossociológica em nomeadamente numa instituição bancária, em
Portugal, introduzindo a sistematização do seu Lourenço Marques (1968/69), numa com-
quadro histórico e teórico-prático, de modo a panhia de navegação (1968/70) e numa com-
situar algumas das questões mais pertinentes panhia de seguros (1974/75);
que a reflexão sobre esse contexto levanta. -Nas organizações de ensino médio, nomeada-
3. Reportamo-nos A década de sessenta. No mente em escolas de enfermagem (Lourenço
seu cenário político conservador-ditatorial e Marques, 1972; Coimbra, 1972; Lisboa,
1972/75; Viseu, 1975; Braga, 1976) e de
* M.B. M. é docente do I.S.P.A. e assistente do ensino secundário (Lisboa e Porto, 1976;
I.S.E.F.; M.T. S. é docente do I.S.P.A.; J. P. B. é do-
cente do I.S.P.A. e assistente na Faculdade de Letras; Lisboa, 1978);
J V. é docente e coordenador da Secção de Psicologia
Social do I.S.P.A. e assistente no I.S.C.T.E. A pri-
-Nas organizações hospitalares não-psiquiá-
meira e os dois últimos são membros do G.E.P.S. tricas (Évora, 1973; Braga, 1972/73; Beja,
Este artigo, ligeiramente modificado, foi apresentado 1974/75/76; Vila Real, 1975; Lisboa, 1975;
como comunicação livre no VI1 Congresso de Psi-
quiatria Social (Lisboa, Outubro de 1978). Bragança, 1975/76 /77).

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Estas intervenções situam-se a níveis diver- Metodologicamente, passa-se da dinâmica
sos, abarcando ora grupos profissionais, ora intragrupal ii intergrupal e ao sócio-drama orga-
sectores das organizações, ora a sua totalidade; nizacional com produção de crise e, por outro
do ponto de vista formal, tentam superar pedi- lado a monitoragem individual e dual centrada
dos feiios no campo da formação em psicope- sobre os grupos sucede-se a intervenção em
dagogia, dinâmica de grupos, psicoIogia cdinâ- equipa interdisciplinar, que atinge cinco a seis
mim, relações de trabalho, arelações huma- elementos.
nasm, etc.

Década de 60 1970/74 1974176 1977178

Conservadorismo- Conservadorismo- Crise generalizada Crise económico-


ditatorial com ditatorial; aceleração das instituições -ideológico-política;
tolerância A de experiências ideológicas, políticas introdução
modernização de modernização e económicas; de esquemas
económica; económica; crise mobilização popular. reorganizativos
primeiras crises geral do regime. autoritários.
nos aparelhos
ideolónicos.
~

Introdugo do ensino Alargamento do ensino I Encontro dos Criação da AEIP.


da Psicologia Social, da Psicologia Social; Profissionais de Criação do GEPS.
I
Dinâmica de Grupos Ensino da Psico- Psicologia com uma Reintrodução da
e Psicossociologia das sociologia das secção de Psicologia especialização em
1
Organizações ISPA, Organizações Social. Psicologia Social
TSSS. no ISCTE e ESOCT. n o ISPA.

Início de experiências Introdu@o da Crise geral das Aceleração cautelosa


de formação Direcção por organizações e quebra da formação com
tecnocrática de Objectivos; difusão nos pedidos incid." em problemas
gestores, c/ introdução da informática; de intervenção. psicossociológicos.
da O.M.,Dinâmica introdução de técnicas
de GNPOSe Manage- de pedagogia activa
rnent. Constituição com simulação
do INII e de empresas industrial.
de organização e
*Oo- formaçáo.

2: Ensino tradicional Ensino tradicional Ensino em crise. Tentativa de reposição


autoritário. autoritário. do sistema de ensino
............................................. .............................................. ............................................... e repressão pedagbgica
Modernização das Experiências de Continuação de tradicionais (sob a
Escolas Superiores passagem da Dinâmica experiências de capa da competência).
de Enfermagem com de Grupos A produção produção de crises ...................... "
introdução da de crises organizacio- organizacionais
Dinâmica de Grupos. nais e institucionais. e institucionais.
I-
Psiquiatria tradicional. Psiquiatria tradicional. Crise. Crise.
.............................................................................................................................................. ..............................................
Início de experiências Introdução da noção Difusão dos Centros Início de experihcias
de animação de Psiquiatria Social; de Saúde Mental. de psiquiatria da
organizacional e de primeiras experiências família; criação dos
terapia de grupo. de comunidades Centros de Profilaxia
terapêuticas. da Droga.

ISPA - Instituto Superior de Psicologia Aplicada.


ISSS - Instituto Superior do Serviço Social.
ISCTE- Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
-
AEIP Associação de Estudos e Intervenção Psicossociológica.
GEPS - Grupo de Estudos de Psicologia Social.
ESOCT- Escola Superior de Organização Científica do Trabalho.

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Os anos de 1976 e 1977 marcam uma reces- do-as positivamente, corno lugar, por excelência,
são nos pedidos de intervenção organizacional da ordem e do progresso, e do controle e res-
(que podemos interpretar como factor de uma posta as necessidades humanas, ora idealizan-
crise social mais vasta, mas que provoca nas do-as negativamente, como lugar de repressão,
organizações uma resposta de busca do aumento de loucura, de restrição da liberdade, da criati-
de consistência estrutural), e a criação por vidade e da espontaneidade, que caracterizam
parte de alguns dos autores, da Associação de o desejo de felicidade do homem.
Estudos e Intervenção Psicossociológicos, com Em ambas as visões a organização sai ilesa;
abertura de debate desta problemática entre os justificada, no primeiro caso, inexplicavelmente
profissionais de Lisboa e Porto. destrutiva, no segundo, estas visões permitiriam
Paralelamente, há que referir a tentativa dos evitar-nos o trabalho de pesquisar cporque é
autores de marcarem uma orientação própria que as insttituições, das quais nós próprios so-
no sector da Psicologia Social, que vem a ser mos os autores, não nos dispensariam a todos
incorporada nas conclusões do Primeiro Encon- protecçZo e benefícios» (Freud).
tro Nacional dos Profissionais de Psicologia Afirmação do narcisismo humano, que trans-
(Lisboa, Março de 1976). forma o Homem em «Deus protésicm, e nesse
O convite feito por alguns dos autores a caso intocáveis, ou intocáveis como sua obra
Georges Lapassade para a condução de uma negativa, ameaçando radicalmente esse mesmo
acção de formação junto de profissionais da narcisismo, as organizações surgiriam como
psicossociologia, constituiu mais um esforço de objecto a salvaguardar ou a destruir, mas não
clarificação da prática interventiva na sociedade a questionar.
portuguesa em crise.
A estada de Georges Lapassade em Portugal, 2. Colocado, pelo seu próprio desejo, ? escuta
i
prevista para uma duração de dez dias, com do discurso organizacional, o psicossociólogo
vista a realização de um seminário de Análise não pode deixar de renovadamente se espantar
Institucional e de uma conferência sobre o eom as diversas e incongruentes representações
mesmo tema na Reitoria da Universidade Clás- da organização que lhe são oferecidas. Cor-
sica de Lisboa, vem a alargar-se a um mês, e rendo o risco de caricatura (como acontece,
cifra-se em tentativas de intervenção sócio-ana- aliás, com todas as tipologias), poderíamos di-
lítica em duas escolas superiores de Lisboa, zer que três discursos se evidenciam:
numa do Porto e numa instituição de saúde -No discurso da pusitividade orgunizacio-
em Lisboa. nal, a crise não existiria. Descrita em termos da
A teoria e a prática de Georges Lapassade
sua função social, que simultaneamente a iden-
«ao vivo» (ambivalência e contradições pessoais
tifica e «justifica», a organização apareceria
e pessoa-interventor), torna-se de certo modo o
como evidentemente útil e até imprescindível, e
detonador do processo, acompanhado pelos
autores, e provoca a reflexão sumariada nesta em si mesma benéfica. Teríamos assim, neste
comunicação. discurso, que o governo governa, a assembleia
legisla, a polícia defende a ordem, as escolas
educam, os tribunais repõem a justiça e punem
I1- MODELO DE ANALISE DAS os atropelos aos direitos humanos, os hospitais
REPRESENTACÕES SOCIAIS DAS permitem o tratamento dos doentes, etc. Neste
ORGANIZAÇõES modelo a descrição é globalizunte e pressupõe
1. Tal como em relação a natureza, a Deus, uma adequação aos fins enunciados e uma
ao sexo, & civilização, também em relação às efectividade funcional inquestionável. Os indi-
organizações sociais os homens apresentam uma víduos que integram a organização, ou não são
atitude fortemente ambivalente, ora idealizan- referidos ou aparecem como um meio que

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permite a realização desse fim positivo. Os dade dos homens que ocupam as chefias. Qua-
I
problemas humanos resumem-se aqui a proble- dros e grupos profissionais intermédios assumem
mas disciplinares, e quando a imagem de uma frequentemente este discurso.
organização entra em crise, essa crise é atri- Em relação a um hospital psiquiátrico, o
buída a uma entropia associada B renovação discurso da negatividade salientaria a total
das gerações, atribuição essa que justifica a au- ineficácia da organização, ou até a sua preju-
to-imagem da dedicação premiável. A mudança dicialidade. O hospital seria a organização que
consistiria apenas no retorno aos «bons velhos permitiria aos psiquiatras (e por arrastamento.
tempo=. As chefias e quadros superiores tra- a outros profissionais) a sua afirmação e en-
dicionalistas assumem frequentemente este dis- grandecimento, B custa dos ardoentes mentais,,
curso de positividade. produtos de uma sociedade destrutiva, adoen-
Aplicado a um hospital psiquátrico, o dis- tes, que, aliás, os psiquiatras se encarregariam
curso da positividade afirmaria que se trata da de afabricars, já que a psiquiatrizaçáo da so-
organização através da qual a ciência seria colo- ciedade seria a condição do seu próprio poda
cada ao serviço dos doentes mentais (e da rio. A um nível de maior particularidade, este
sociedade), visando a sua recuperação e rein- tipo de discurso incidiria em acusações aos
tegração social. administradores (que adesviam fundosr>), aos
-No discurso da negatividade organizacio- psiquiatras («que entram às onze e meia, to-
nal a representação é radicalmente diversa. A mam café e conversam até ao meio-dia e tal,
organização aparece agora como um meio onde e que ZI uma já se foram embora, e isto quando
e pelo qual indivíduos e grupos aoportunistas, aparecem»), aos enfermeiros («que exploram
e aregocêntricosn, cávidos de podem, caprovei- os doentes e os brutalizam,), e não deixaria de
tando-sem das necessidades alheias e da aliena- indicar nomes, datas, casos concretos-adoen-
ção da maioria, e a coberto de uma fachada po- tes mortos de frio ou de fome, comida podre,
sitiva e do verniz da respeitabilidade garantido faIsas experiências de renovação terapêutica
pelo papel que ocupam, obteriam regalias e que só serviriam para aumentar os cunicula
prestígio, esmagando e explurando os que se dos técnicos», etc., etc., etc. Os resultados posi-
ihes encontram submetidos. tivos da organização seriam aqui denegados.
Nesta perspectiva, «a luta pela vida, trans- -Um terceiro tipo de discurso não seria au-
formaria a organização numa «selva» onde os dível, provavelmente, em Portugal, neste tipo de
mesmos deões, de sempre obtêm sempre o organizações. já que, nas organizações ideoló-
melhor pedaço. gicas, de repressão, modelação e tutela, os dis-
Nesta idealização negativa da instituição, a cursos, aliás complementares, tendem a idealizar
inefectividade e até a prejudicialidade desta positiva ou negativa a organização. De facto,
seriam inerentes A existência de relações hierar- o discurso da efectividade surge mais frequente-
quizadas, o que justificaria assim a necessidade mente nas organizações industriais e de serviços
de mutações radicais das estruturas sociais ou, modernizadas, centrado sobre as estruturas, cir-
mais simplesmente, uma exclusão do pólo da cuitos e métodos de trabalho, numa abordagem
negatividade. Oscilando entre o pessimismo e o analítica que oculta os os problemas humanos
messianismo redentor, o discurso da negativi- das organizações, entgo reduzidos a problemas
dade organizacional protela constantemente uma de selecção, formação, remuneração, etc. A crise
análise mais rigorosa da crise, ora exigindo a é atribuída B irracionalidade da organização, e
passagem ZI acção, ora refugiando-se no cinismo uma suposta ciência administrativa é oferecida
e no desencanto. Na sua dimensão messiânica, para melhorar a efectividade da organização,
este discurso exigiria, também ele, uma «mordi- numa perspectiva de aumento relativo de resul-
zaçúo organizacionaln, centrada sobre a quali- tados, em relação aos custos. Em relação a um

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hospital psiquiátrico, este tipo de discurso seria exige mudanças), magicamente projectado no
escutável, provavelmente, apenas a partir do seu «suposto sabem, e com a positividade latente
administrador hospitalar. inerente ao discurso de negatividade de outros;
e, em simultâneo, assumese paradoxalmente
3. Ao psicossociólogo atento, a incomunica- como negatividade, já que a sua presença cons-
bilidade destes discursos indicaria o próprio titui uma crise narcísica para os actores sociais
lugar da crise, e não seria difícil prever que eles em presença, crise essa que tenderá a ser sim-
poderiam ser vistos como estratégias de autojus- bolizada sobre a negatividade da sua «excessiva»
tificução disruptivas, arrastando o estilhaça- remuneração (já que, idealizadamente, o psicos-
mento das duas dimensões sobre as quais as soci6logo deveria ser «desinteressado»), e que
organizações assentam - a divisão social do só sarará com a sua expulsão idealizante (posi-
trabalho e a cooperação (mediada pela comuni- tiva ou negativa), ou com a produção específica
cação produtora de efeitos de feedback). Inco- -que é o objectivo ideal da sua intervenção -
municabilidade, aliás, paradoxalmente permeá- e que consistiria, no limite, na integração crisa-
vel a jogos triangulares- organizando alianças nulificados quatro discursos, tornando analítica
e oposições instáveis, decorrentes das antíteses a positividade, emocionalizando o desejo de
e convergências que animam esses discursos: efectividade, enraizando na actividade repara-
conservador e globalizante, o primeiro, analíti- dora a negatividade, e projectando o desejo inte-
cos e interessados em mudanças, de índole bem grativo sobre os restantes discursos, de molde
diversa, os dois últimos; ahumanistasn, os dois a permitir a desintervenção.
primeiros, tecnocrático, o último; reformistas, o
primeiro e o último, rutacionista, o segundo. 5 . Fugindo ao modelo infegrativo atrás enun-
Colocados os diferentes papéis organizacionais ciado, o psicossociólogo vê-se frequentemente
uns contra os outros, e clivado cada grupo orga- substituído, na prática, por interventores de po-
nizacional em «bons» e «maus» profissionais, sitividade, encarregados de prelecções supostas
perdida a possibilidade de encontrar uma fala reordenadoras da organização; por intervertto-
comum, a organização apareceria então vista de res da neguíividade, que na sua militância só
fora como uma torre de Babe1 inacabada e encontram como desejo uma «nova, sociedade,
abandonada, dirigida a um céu inatingível. Fénix magicamente renascida das cinzas da sua
própria combustão; ou por interventores de
4. Vista a crise no campo das comunicações efectividade, importadores cegos de knav-how
organizacionais disruptivas, alimentadas por re- e de técnicas administrativas. Neste contexto, o
presentações e projectos tão distintos, e não, psicossociólogo vê-se tentado a fazer coincidir
como mais habitualmente é vista, como crise a sua actuação com a que decorre daquelas di-
externa (de perda da competitividade, geradora ferentes estratégias, contraditórias e parciais.
de uma crise de positividade) ou como uma
crise interna situada nas estruturas (irracionais)
111-0s SÁBIOS, OS CAMELOS
ou nos homens (imorais), o psicossociólogo
E A INTERVENCÃO
defronta-se com o paradoxo de se encontrar,
PSICOSSOCIOL6GICA
também ele, portador de um novo discurso não
partilhado, um discurso analítico e interpreta- Talvez que a melhor maneira de esclarecer o
tivo que se arrisca a não ter auditores ou a que é intervenção seja recorrer a uma definição
aumentar a babeZização organizacional. Portador simbólica, feita h custa da matemática. E aquela
de um desejo de «reparação», no sentido klei- velha história que alguém, um dia, nos dizia
niano, o psicossociólogo oferece-se então, no conhecer de um livro que não recordamos o
melhor caso, como coincidente com o desejo de nome e nos reescreveu num papel para nossa
positividade de uns (já que a crise latente utilização.

34 I
«Era uma vez um viajante que deu boleia actores; o social instituinte (o campo libidinal,
no seu camelo a um homem com fama de as relações pragmáticas da situação, o conflito)
grande calculador. A certo passo do caminho e a tensão entre o instituído e o instituinte (o
encontraram três irmãos, que tendo recebido nível tópico, o «esquartejamento») constituem
como herança do pai trinta e cinco camelos, o <«ião sabem dos actores que requer o «ar-
deviam, em obediência ao testamento, dividi-los ranjo» do interventor.
entre si da seguinte maneira: metade para o -De facto, o aspecto pragmático relaciona1
mais velho, um terço para o do meio e um recua para um plano secundário quanto mais
nono para o mais novo. Não querendo esquar- espontânea e «saudável» é a relação, e eviden-
tejar um dos bichos, entraram em conflito que cia-se no conflito (assumido ou de que se foge)
não conseguiram resolver. O calculador ofere- nas relações «doentes». O «arranjo» do mão
ceu-se então para os ajudar. Pediu emprestado sabem exige uma transferência institucional (a
o camelo ao viajante e juntou-o aos outros presença do novo actor e camelo provoca essa
completando trinta e seis. transferência).
-«Agora podem dividi-los», disse-lhes. - -Por outro lado, a elucidação acerca do
«Para ti, filho mais velho, ficam dezoito came- «não sabem exige, para possibilitar uma nova
los, com o que ficas em vantagem, pois, como interpretação analítica, que essa transferência
metade de trinta e cinco, terias apenas direito seja provocada de crise (perigo + oportuni-
a dezassete camelos e meio; ganhaste meio dade); essa nova interpretação analítica será
camelo. Para ti, segundo filho, ficam doze ca- a crisanálise (juntando o camelo criou-se a opor-
melos; ganhaste também, já que um terço de tunidade de solução agradável e a ameaça de
trinta e cinco camelos seria menos do que doze. agravamento).
Para ti, terceiro filho, ficam quatro camelos; -É ainda necessária na intervenção a elu-
também tu ficaste a ganhar, pois que um nono cidação da transversalidade. isto é, de que toda
de trinta e cinco seriam três camelos e mais e qualquer parte da instituição está relacionada
qualquer coisa e, assim, recebes quatro». de tal modo com as demais partes que uma
E continuando, o calculador concluiu: mudança numa delas provocará uma mudança
- «E agora permitam que devolva o camelo em todas as partes e no sistema total que é a
emprestado ao meu amigo viajante, para que instituição, (o discurso do calculador relativa-
não fique em prejuízo. Assim ficam todos satis- mente & distribuição dos trinta e cinco mais um
feitos e, como ainda sobra um outro, fica esse camelos elucida essa transversalidade interna).
para mim, para meu contento e resposta ao -A restituição do nãodito institucional-
interesse que me levou a ajudá-los,. mente (o desejo de cada um obter o máximo de
As dimensões características do mundo da camelos, que o calculador restitui ao sublinhar
intervenção estão apresentadas nesta história: a vantagem individual) é essencial como meio
-0 interventor é um actor social; não se de elucidação do «arranjo do não sabem.
confunde com o mero técnico actuante. Embora -A elaboração e o aproveitamento dos ana-
na posse de conhecimentos de «calculador», não lisadores, quer em termos crisanalíticos (o juntar
hesita em «envolver-se» pedindo emprestado de mais um camelo que é do viajante), quer
um camelo, fazendo desse camelo uma parte do em termos facilitadores do «acting-outn colec-
conjunto em causa. tivo, é uma dimensão essencial do papel do
- O interventor olha as relações que os indi- interventor -«semeador da dúvida radical».
víduos mantêm como, «acima de tudo, um -A elaboração de uma contra-transferência
arranjo do não-saber dos actores em relação ci institucional é outro dos constituintes da inter-
organização social>. (Lourau, R.). Por outras venção. Isto implica que o interventor se integre
palavras, o social instituído (o campo organiza- na estrutura do trabalho da instituição com um
cional, o «testamento») constitui o «saber» dos posto de trabalho definido («ofereceu-se para

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os ajudar»), que não subestime a clarificação zações não se mostrem sensíveis, interessadas
da mediação que é a relação financeira («fica nesta oportunidade que Ihes é oferecida?
esse para mim, para meu contento e resposta -E será que este discurso de positividade
ao interesse que me levou a ajudá-los»), o que (esta «promessa») terá uma contrapartida nos
implica a clarificação dos próprios desejos do comportamentos de intervenção realmente efec-
interventor, bem como o prestar contas A insti- tuados? Feito o saldo de ganhos e perdas, qual
tuição-cliente (o discurso que resume toda a é a situação actual?
actuação do calculador prestando contas), e -Não serão as intervenções novas terapias
ainda o esclarecer da resposta que dá A insti- de choque, cegas, capazes tanto de produzir a
tuição e as partes da instituição. clarificação e reordenaçáo de sistemas organiza-
-Pôr em jogo o poder do interventor, que cionais, como de produzir novos bloqueamen-
existe mas é problemático («um homem com tos e até sequelas graves que anulariam aque-
fama de grande calculadom), o ambíguo do seu les efeitos positivos?
papel na estrutura Zibidinal da instituição (apara -E por outro lado, para além do psicosso-
os ajudam) e a ambiguidade na sua posição ciblogo quem mais deseja essa intervenção e
no sistema institucional: defensor do instituído em nome de quê?
(cumprir o testamento) e encarregado do insti- -Não será que as defesas orgattizmiom's
tuinte (alterando a situação de aplicação do contra a crise latente (v.g. o isolamento comuni-
testamento). cacional, a crítica negativa, a idealização posi-
tiva ou negativa da organização elou dos seus
&@os de direcção, a denegação ou a racional&
IV - BABEL DO DESEJO E DO PODER
za@o negativa dos desvios entre os resultados
E TERAPIA SOCIAL
ideais esperáveis no discurso da positividade e
1. Confrontados com um histórico de que os realmente obtidos, o ensimesmamento a ní-
também somos sujeito, com uma proposta iipo- vel do papel ou de subestrutura organizacional
lógica de análise das representações sociais das como auto-limitação do envolvimento organiza-
organizações e dos comportametos de interven- cional, a projecção de negatividade sobre uma
ção psicossocioldgica. com que coincidimos, outra subestrutura, etc.) -defesas que levam A
bem como com uma parábola sobre o simbo- criação d o poder negativo na organização (po-
lismo da intervenção de que somos os asábiom, der envolvido na resistência A mudança e na
os «sujeitos supostos sabem. eis-nos face A relativa inefectividade organizacional) -, serão
nossa representação e ao nosso desejo, viden- obstáculos suficientemente fortes para que a in-
tes e cegos, na Babe1 que nos construímos. tervenção psicossociológica não possa sequer
ser desejada? E a sê-10, apesar disso, com que
2. Decorre desta reflexão todo um conjunto forças positivantes pode a equipa de interven-
de problemas fundamentais que exigem uma ção contar?
tentativa de resposta Aqueles que se situam ao
2.2 -Programar a mudança, ou seja, contro-
nível do desejo, como actores de acções de mu-
lar o fluxo dos equilíbriosdesequilíbrios e a re-
dança que visam a terapia social. Vejamos algu-
lação conflito-harmonia não será uma acção de
mas dessas questões:
defesa dos sistemas sociais instituídos e da sua
2.1 - Se, numa representação de positivi- função de produção e reprodução das relações
dade, a intervenção psicossociológica pode tra- sociais dominantes? Ou será que a integração
zer ajuda aos problemas derivados dos bloquea- dos discursos organizacionais não poderá -su-
mentos do desenvolvimento organizacional a peradas as clivagens que convergem com a es-
que, atingido um certo grau de gravidade, cha- tratégia política de «dividir para reinam- li-
mamos crises, de onde decorrerá que as organi- bertar nas organizações energias que possam

343
ser investidas na mutação social ou, menos opti-
misticamente, contribuam para acelerar as con-
tradições do sistema?
-Como fazer da teoria e da prática do
psicossociólogo uma prática para a mudança,
sabendo que, do ponto de vista do poder e dos
contrapoderes, ele está investido de um papel
de agente de controlo social?
-Não será que as organizações normativas
Leia
e de controlo, que no modelo de positividade
são apenas vistas como forças de manutenção
do instituído social, contra a útdegenerescên- O '
I
cim que, de dentro, o ameaça, não serão tam-
bém os primeiros lugares permeáveis às forças
de mudança que atravessam as organizações e
o jornal
instituições e, portanto, lugares desencadeadores da educaqão
d o instituinte? E sendo-o, não serão lugar privi-
legiado de intervenção?

3. Num país tão marcado por uma positivi-


dade e por uma negatividade delirantes, contra
as quais o recurso à «competência, e à efecti-
vidade surge como contrapartida «inevitável»,
uma prática que publicamente se interroga,
obterá os ganhos que se propõe se o debate
que provocar contribuir para diminuir as UMA PUBLICAÇAO
eáreas cegas e inconscientes, que limitam o seu NECESSARIA
p rojecto.
SAI NA PRIMEIRA QUINTA-FEIRA
DE CADA MÉS

A\\ M ULT I NOVA


Av. Sta. Joana Princesa, 12-E Tel. 883365 1700 Lisboa
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AS BANCAS DE JORNAIS

René Lourau
A O
ANÁLISE
INSTITUCIONAL
Uma obra básica
e um verdadeiro clássico, Distribuído por
por um dos expoentes D IJ ORNAL
do movimento institucionalista

344

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