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A literatura e a formação das sensibilidades

Ou: com quantas histórias se faz uma pessoa?


Efigênia Alves*

É muito comum que numa sociedade capitalista e mercadológica, se busque o valor


das coisas a partir do preço que elas estampam em suas embalagens. E por vivermos
também num mundo imagético e muitas vezes regido pelas aparências, essa embalagem
acaba contando muito na definição do valor do produto. Essa sociedade mercadológica e
imagética, é também imediatista, nos impulsionando a exigir uma resposta imediata, dos
processos que vão constituindo a nossa existência.
E dentro desse lugar pragmático, nessa sociedade do consumo e da velocidade, qual
o lugar do produto chamado literatura? Como se mensura o seu valor? Para que serve? Que
efeitos provoca? Qual a sua durabilidade?
Sabemos que a existência é composta de materialidades sim, mas em grande parte
é feita do simbólico, do imensurável, de essencialidades que não aceitam códigos de barra.
“O simbólico é o espaço onde o mundo se faz pleno de significados. É o pleno sempre
incompleto porque é representação.” (CAVALCANTI, 2002, p. 26). A própria linguagem
é representação de que somos simbólicos.
Pela linguagem vamos apreendendo o mundo, as representações, os sentidos das
coisas. As palavras, sejam elas faladas, sinalizadas ou escritas, traduzem o cotidiano e as
instâncias mais subjetivas. E as crianças nascem no âmbito da materialidade, mas também
do simbólico. E vão aos poucos construindo uma representação de si mesmas.
Assim, considerando a dualidade: materialidade e simbólico, realidade e fantasia,
vamos registrando no nosso tempo de permanência a nossa própria narrativa, que é, em
grande medida, a narrativa também do outro, por sermos sujeitos sociais e nos formarmos
nesse processo de interação com o outro e com o mundo.
Se temos um corpo físico que precisa de água e comida para existir, também temos
uma instância subjetiva que necessita do simbólico, e por assim dizer, da arte. Somos homo
sapiens e homo faber, aquele que sabe e aquele que faz. Mas somos também homo ludens:
o ser do jogo, da brincadeira e homo imaginarus, aquele que imagina. Talvez seja essa a
nossa maior riqueza, ter a capacidade de imaginar, de fabular, de criar, o que nos diferencia
dos outros animais.
É essa dimensão subjetiva que nos faz escapar da mecanização, da automatização
que as necessidades materiais nos impõem. Necessitamos desses elementos práticos e
tangíveis. Mas, “é a nossa capacidade de escapulir pelo simbólico para dar sentido à vida
que nos coloca na dimensão do outro e, portanto, humana.” (CAVALCANTI, 2002, p. 26).
Na literatura, seja oral ou escrita, o simbólico se presentifica, possibilitando a
criação de imagens, ampliando sentidos e ressignificando o mundo físico.

O próprio da literatura é a análise das relações sempre particulares que reúnem


as crenças, as emoções, a imaginação e a ação, o que faz com que ela encerre um
saber insubstituível, circunstanciado e não resumível sobre a natureza humana,
um saber de singularidades.” (COMPAGNON, 2012, p.59).

Como criação humana, a literatura dialoga com a materialidade do mundo e as


subjetividades dos sujeitos, refazendo caminhos, mobilizando saberes, provocando
sensações. A literatura traz detalhes que o olhar cotidiano não alcança. Evidência
ausências, conduz a memória para lugares aparentemente perdidos. Mas quando o texto
nos toca, provoca eco, alcança as lembranças ou os sonhos. “A literatura desconcerta,
incomoda, desorienta, desnorteia mais do que os discursos filosófico, sociológico ou
psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. (COMPAGNON, 2012, p. 64).
Por mexer com nossas estruturas intrapsíquicas, a literatura mobiliza as nossas
emoções, nos comove. “O texto literário me fala de mim e dos outros, provoca minha
compaixão; quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seu destino; suas
felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente os meus.” (COMPAGNON, 2012, p.
62). Dessa forma, podemos dizer que a literatura tem um potencial humanizador, como
defendia Antonio Candido (1989).

Embora a literatura não seja um produto de efeito visível e imediato, como é


esperado dos produtos que estão nas estantes dos supermercados ou nas lojas virtuais, ela
tem um valor que não se compra. Os livros são compráveis, mas o produto estético, que é
adquirido através do texto, tem valor imensurável.
A literatura vai nos conectando com diferentes temporalidades, e pessoas, e
processos, e realidades, nos (re)conectando com as nossas subjetividades, muitas vezes
embotadas pelas emergências do pragmatismo da vida. Portanto, é necessário a sua
presença na escola desde a educação infantil.

Fonte de inspiração, a literatura auxilia no desenvolvimento de nossa


personalidade ou em nossa educação sentimental, como as leituras devotas o
faziam para nossos ancestrais. Ela permite acessar uma experiência sensível e
um conhecimento moral que seria difícil, até mesmo impossível, de se adquirir
nos tratados dos filósofos. Ela contribui, portanto, de maneira insubstituível,
tanto para a estética prática como para a ética especulativa.” (COMPAGNON,
2012, p. 59).

À medida que uma criança (ou adulto) vai tendo contato com o texto literário, vai
desenvolvendo as suas sensibilidades, a sua empatia para com o mundo externo, seja ele
representado por coisas, bichos ou gentes. “Crianças sensibilizadas desde cedo para o
universo da linguagem, como também para a utilização da capacidade simbólica, se tornam
pessoas capazes de ter para o mundo um olhar de doação, generosidade e transformação.”
(CAVALCANTI, 2002, p. 38).
Nos apólogos ou contos fabulosos, por exemplo, as crianças “conseguem” acessar
os pensamentos e sentimentos dos animais e das coisas. Estas perdem as características de
inanimadas e “ganham vida”. Através desse contato simbólico, é possível a criança se
identificar com as dores do outro e ser capaz de se colocar em seu lugar, desenvolvendo
assim a empatia.
[…] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação,
entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual
e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais,
estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação
dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
(CANDIDO, 1989, p. 113).

A literatura também promove em seus enredos a imbricada luta constante do


homem com seus sentimentos, desvelando-os. Ela tem como uma de suas características
conduzir o homem para um mundo interior, longe da realidade e imersa nela.
(CAVALCANTI, 2002). Podemos dizer, de modo geral, que a literatura tem como função
maior preencher o vazio existencial do homem. Nela encontramos o que de mais essencial
compõe a humanidade. As histórias traduzem as angústias, os sonhos e os desejos mais
secretos da alma humana.
Para Betelheim (2012), os contos servem para aliviar as tensões mentais que são
provocados por constantes necessidades de diferentes ordens psíquicas e sociais. “Percorrer
tais narrativas é de certa forma penetrar nos mais insondáveis conflitos que nos fazem
penetrar na dor, no medo, na solidão, nas angústias, enfim, naquilo que de fato representa
a nossa condição lacunar.” (CAVALCANTI, 2002, p. 42).

No caso das crianças, os contos possibilitam que elas tenham contato direto, através
das histórias, com os seus próprios medos, as ansiedades e conflitos interiores. Os contos
nos falam de muito próximo dos nossos sentimentos escondidos. Experienciar sentimentos
de perdas numa história, contribui para o enfrentamento das perdas reais. Através das
narrativas as crianças vão ganhando experiências para enfrentar problemas reais.

É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes, como a


tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a
insegurança, a tranquilidade, e tantas outras mais, e viver profundamente tudo o
que as narrativas provocam em quem as ouve – com toda amplitude,
significância e verdade que cada uma delas fez (ou não) brotar... Pois é ouvir,
sentir e enxergar com os olhos do imaginário.” (ABRAMOVICH, 1989, p. 17).

Mesmo diante do sofrimento infantil, seja porque não tem um pai ou uma mãe;
seja pela presença de um irmãozinho que acabou, na sua cabeça, tomando seu lugar; seja
por um desejo de posse de um objeto que não o pertence, ou tantas outras situações de
sofrimento, os contos declaram para a criança que uma vida compensadora é possível e
que, no final, tudo vai dar certo.

Nas histórias para crianças, o “Felizes para sempre” saltam da história para a vida
da criança, lhe enchendo de esperanças. Fica a promessa de que o bem sempre vai vencer
o mal. As crianças se veem nos conflitos dos personagens e vão se projetando nos seus
próprios conflitos. Já nas histórias para adolescente ou adultos, por triste que sejam os
finais, nos faz pensar que a vida tem seus altos e baixos, e que o percurso vivido pode fazer
toda a diferença.

As histórias para as crianças vão criando a ilusão do real e mexendo com todas as
estruturas psíquicas desse sujeito em formação. Para o psicanalista Bruno Bettelheim
(2012), a literatura infantil oferece uma válvula de escape. As crianças vão fantasiando
suas compreensões e encontrando soluções para seus conflitos interiores. Mesmo os
sentimentos que julgamos nocivos, como a raiva, é importante que a criança sinta ao estar
imersa numa narrativa. É uma raiva transfigurada, que não encontra causa real imediata,
mas diz de suas próprias angústias e visões de mundo.
Nessas experiências, ela vai se constituindo, elaborando subjetivamente os próprios
conceitos. Ainda para Bettelheim (2012), quando o contador de histórias ou o leitor dá
tempo para as crianças falarem sobre a narrativa, esta tem muito mais a oferecer emocional
e intelectualmente. No entanto, nesse momento o adulto não pode imprimir suas verdades
ou se aproveitar da história para dá lições de moral.

Cada criança retira das narrativas o que necessita. E uma mesma história pode
causar diferentes sensações em diferentes momentos da vida. “Cada texto é único nas suas
diferenças, assim como também cada leitura é única na sua possibilidade de dizer o outro
do texto”. (CAVALCANTI, 2002, p. 24). As histórias influenciam também na construção
da identidade da criança, ajudando no desenvolvimento do seu caráter. “A criança iniciada
no mundo da leitura é alguém que pode ampliar sua visão do outro, que pode adentrar o
universo do simbólico e construir para si uma realidade mais carregada de sentido.”
(CAVALCANTI, 2002, p. 31).

No caso dos adolescentes, mesmo estando em processo de dissociação com a


infância, requer temas relacionados ao social, mas também gostam de aventuras e de
histórias que envolva mistério e temas místicos. Podemos perceber isso observando, por
exemplo, o sucesso de Harry Potter (J.K. Rowling), Crônicas de Nárnia (C.S. Lewis) e
Senhor dos anéis (J.R. R. Tolkien). Sobre esses livros (e séries), Cademartori (2009, p. 62)
afirma que “esse tipo de ficção recorre ao forte apelo dos temas místicos que opõem, de
modo maniqueísta, convém frisar, a existência de forças e do mal.”

Assim, considerando os valores que são veiculados nesse tipo de história, os


arquétipos que vão configurando as personagens, fortalece a construção de certos valores,
como “coragem, persistência, amizade e lealdade” (CADERMATORI, 2009, p. 62), temas
que atravessam as narrativas e constitui o arcabouço de construção social e afetiva dos
adolescentes.

Boas narrativas e bons poemas, sem trair a perplexidade e a confusão dos


sentimentos e desejos humanos, são matrizes de reflexões sobre a vida. Podem
nos levar a reconhecer, apreciar e até reformular as experiências que temos. Os
sonhos dos outros estimulam os nossos sonhos. (CADERMATORI, 2009, p. 63).

De acordo com Cavalcanti (2002), por meio do simbólico a literatura possibilita


uma ressignificação do real. Por ela é possível desenvolver um prazer estético e a
sensibilidade. Ela ressalta ainda que ler sempre representou uma das ligações mais
significativas do ser humano com o mundo, pela leitura o homem trona-se presente na
história, reflete sobre ela, e reproduz o seu estar-no-mundo.

Pelas narrativas, as pessoas são tocadas de maneira diferente, de acordo com suas
experiências e sentimentos. A literatura nos permite representações. As histórias contam e,
ao mesmo tempo, perguntam sobre os mistérios que constitui as nossas subjetividades. A
literatura transcende tempo e espaço, por ela é possível fazer diferentes representações do
homem e seu meio social, cultural e simbólico, por tratar de questões referentes a tudo que
constitui o que é de ordem humana.

A literatura pode ser para a criança o espaço fantástico para a expansão do seu
ser, exercício pleno da sua capacidade simbólica, visto trabalhar diretamente
com elementos do imaginário, do maravilhoso e do poético. Amplia o universo
mágico, transreal da criança para que esta se torne adulto mais criativo, integrado
e feliz. (CAVALCANTI, 2002, p. 39).

Tudo isso parece muito subjetivo e não teria como ser diferente. A literatura é
constituída de subjetividades e os leitores ou ouvintes vão se (re)construindo por esses
caminhos, entre o real e o imaginário, entre o pragmático e o subjetivo, entre o palpável e
o imensurável. Não é demais reforçar que as crianças e adolescentes precisam de narrativas
e poesias para sua formação pessoal, afetiva, social e intelectual.

Somos sujeitos materiais e simbólicos, pragmáticos e emocionais, racionais e


imaginativos, sociais e subjetivos. Cada um vai construindo a sua própria narrativa,
envolvida em outras. E de muitas histórias, reais ou ficcionais, se faz uma pessoa.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo, Scipione,


1989.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra,
2012.

CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos
humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.

CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e Juvenil: dinâmicas e


vivências na ação pedagógica. São Paulo: Paullus, 2002.

COMPAGNON. Antoine. Literatura para quê. Tradução: Laura Taddei Brandini. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2012.
*Efigênia Alves é doutoranda em Literatura Comparada, pela UFC, é Professora do
IFCE, Contadora de histórias, Mediadora de leitura, Escritora e Consultora do Eixo de
Literatura e Formação do Leitor (PAIC-SEDUC).

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