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DAVID FERNANDES RODRIGUES

CORTESIA LINGUÍSTICA
UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

LISBOA
2003
DAVID FERNANDES RODRIGUES

CORTESIA LINGUÍSTICA
UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL
(Formas verbais corteses e descorteses em Português)

Dissertação de Doutoramento em Linguística – Teoria do Texto


apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa
sob a orientação das Professoras Doutoras
Maria Antónia Coutinho e Fernanda Miranda Menéndez

(Cofinanciamento do Estado Português


e do Fundo Social Europeu,
PRODEP III, Medida 5, Acção 5.3.)

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

LISBOA
2003
Agradecimentos

Seríamos justamente considerados descorteses, isto é, incompetentes em


cortesia, se não reconhecêssemos que este estudo não é obra dum homem só, apesar das
horas e horas de trabalho solitário que lhe dedicámos. Cabe, por isso, agradecer a
quantos connosco foram solidários.

Às pessoas que aceitaram orientar-nos na apresentação, desenvolvimento e


concretização do projecto:
- Professora Doutora Luísa Soares Opitz, que patrocinou a candidatura e de cuja
orientação beneficiámos até meados de 2000, altura em que, por razões de saúde, não
pôde continuar a fazê-lo;
- Professora Doutora Maria Antónia Coutinho e Professora Doutora Fernanda
Miranda Menéndez, que assumiram a continuação dessa responsabilidade;
agradecemos a disponibilidade sem limites, os incentivos permanentes, as
sugestões oportunas, as críticas necessárias, a paciência generosa e a amizade sem
adjectivos.

Aos colegas do departamento e aos amigos, agradecemos as ajudas e os


incentivos que, de diversas maneiras, incondicionalmente nos deram, em particular ao
longo destes últimos duros quatro anos. Seja-nos permitido nomear, pelas suas preciosas
ajudas, a Maria de Lurdes Magalhães e o Vítor Oliveira.

À Professora Doutora Sandi Michele Oliveira agradecemos a cedência e o envio


da sua tese de doutoramento e os incómodos que, para o efeito, lhe causámos.

Agradecemos, por último, ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo e à sua


Escola Superior de Educação, bem como à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, as condições para a realização desta dissertação.

Muito obrigado!
Para

a Conceição, o David Manuel, o Eugénio Miguel e a Eva Sofia

com novo pedido de perdão, pela reincidência.


ÍNDICE

INTRODUÇÃO GERAL 11
0. Notas prévias 12
0.1. Uma continuação 12
0.2. Cortesia linguística – breve nota sobre a designação 13
1. O problema, a tese, o projecto 15
2. O corpus 22
2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado
do que qualquer outro?» 24
3. Resumos 29

PRIMEIRA PARTE
CORTESIA LINGUÍSTICA
Quadro Teórico Geral

Cap. I – INTERACÇÃO VERBAL E CORTESIA LINGUÍSTICA 35


1. Interacção verbal em sentido estrito 36
1.1. Conversa vs. diálogo 37
1.2. Unidades e composição duma interacção verbal em sentido estrito 41
2. Interacção verbal em sentido lato 51
2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally) 51
2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine) 54
2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste) 63
2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize) 65
2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação 66
2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem 69
2.3.3. A importância da situação ou contexto 71
2.3.4. Esquematizar é representar 74
2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais 78
2.4. Esquematização e competência discursivo-textual 80
2.5. Esquematização e Linguística Textual 86
2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos 93
2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia 98
Cap. II – CORTESIA LINGUÍSTICA – Teoria(s) 105 105
1. As teorias fundadoras 105 105
1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff 107 107
1.2. A teoria de Geoffrey Leech 112 112
1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson 121 121

Cap. III – O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA DE C. KERBRAT-


-ORECCHIONI - Uma proposta ecléctica 131
1. Críticas e melhorias da teoria modelo 131 131

2. O «sistema de cortesia» 132 132

2.1. Processos linguísticos de cortesia 136 136

2.2. A importância das variantes sociais 143 143

3. Observações críticas 152 152


155

SEGUNDA PARTE
CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS EM PORTUGUÊS

Cap. IV – INTRODUÇÃO 161 161

Cap. V – CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA


167
EM PORTUGUÊS - Principais estudos 167
167
1. M. H. Araújo Carreira. Cortesia verbal - proxémia e modalidade 167
169
1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias 169
173
1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva 173
176
1.3. Cortesia verbal e modalização 176
181
2. Outros estudos 181
2.1. R. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português
181
LE 181
184
2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia 184
189
2.3. M. E. Ricardo Marques: cortesia e deferência 189

193
Cap. VI – TEMPOS E MODOS VERBAIS DE CORTESIA / DESCORTESIA 193
193
1. Os modos 193
193
1.1. O imperativo 193
1.2. Indicativo vs. Conjuntivo 199 199
1.3. Conjuntivo, modo de cortesia 204 204
2. Os tempos 211 211
2.1.Tempos / modos do presente 211 211
2.1.1. Presente do conjuntivo 211 211
2.1.2. Presente do indicativo 213 213
2.2. Tempos / modos do futuro 219 219
2.2.1. Futuro do indicativo 219 219
2.2.2. Futuro do conjuntivo 225 225
2.3. Tempos / modos do passado 226 226
2.3.1. Imperfeito do indicativo 226 226
2.3.2. Imperfeito do conjuntivo 229 229
2.3.3. Mais-que-perfeito 230 230
2.3.4. Condicional 230 230
2.3.5. Pretérito Perfeito 233 233
2.4. Formas verbais nominais 234 234
2.4.1. Infinitivo 234 234
2.4.2. Gerúndio 236 236
2.4.3. Particípio 237 237
3. Construções passivas 237 237

Cap. VII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL E DIRECTIVIDADE 241


241
1. Noção e classificação dos actos directivos 241
241
2. Impositividade e cortesia / descortesia 251
251
Cap. VIII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL – FORMAS
SUBSTITUTAS DO IMPERATIVO E INTERJEIÇÕES 259
1. Formas substitutas do imperativo 259 259
2. As interjeições 262 259
3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa 266 262
266
TERCEIRA PARTE
CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL

FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS

Cap. IX – INTRODUÇÃO 281

Cap. X – TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS - Principais estudos 291


1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização

(diacrónica e sincrónica)
291
2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico – entre a variação e

(re)negociação 297

3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos» de


311
mudanças ou rupturas sociais
322
4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções sociais
5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das distâncias 325
interpessoais

Cap. XI – AS PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO EM 341


PORTUGUÊS EUROPEU. Uma história de cortesias 343
1. Tu e vós 347
2. Você 352
3. Senhor / a 359
O senhor, pronome? 361
«Minhas senhoras e meus senhores» 362
Valores interjectivos de senhor / a 367
Seu / sua, formas reduzidas de senhor / a ou possessivos? 373
Senhor / a, dom / dona como insultos 375
4. Vossa senhoria e vossa excelência

379

Cap. XII – AS FORMAS DE TRATAMENTO NO QUADRO DA CORTESIA 379


LINGUÍSTICA 385
1. Tratamentos alocutivos
2. Tratamentos elocutivos e delocutivos

QUARTA PARTE
CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA
UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL
Práticas e Análises 395

Cap, XIII – INTRODUÇÃO


403
Cap. XIV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS 404
EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO 409
1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas 412
2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas 417
2.1. Construções corteses e descorteses 422
2.2. Processos de figuração
2.3. Da figuração descortês à figuração cortês

Cap. XV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS


EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO. 429
AS FORMAS DE TRATAMENTO (Aspectos retórico-argumen- 431
tativos e polifónicos) 431
1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta 452
1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo
2.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo 464
2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual. Breves
observações 475

487
CONCLUSÕES FINAIS

BIBLIOGRAFIA
DAVID FERNANDES RODRIGUES

CORTESIA LINGUÍSTICA
UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL
(Formas verbais corteses e descorteses em Português)

Dissertação de Doutoramento em Linguística – Teoria do Texto


apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa
sob a orientação das Professoras Doutoras
Maria Antónia Coutinho e Fernanda Miranda Menéndez

(Cofinanciamento do Estado Português


e do Fundo Social Europeu,
PRODEP III, Medida 5, Acção 5.3.)

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

LISBOA
2003
Agradecimentos

Seríamos justamente considerados descorteses, isto é, incompetentes em corte-


sia, se não reconhecêssemos que este estudo não é obra dum homem só, apesar das
horas e horas de trabalho solitário que lhe dedicámos. Cabe, por isso, agradecer a quan-
tos connosco foram solidários.

Às pessoas que aceitaram orientar-nos na apresentação, desenvolvimento e con-


cretização do projecto:
- Professora Doutora Luísa Soares Opitz, que patrocinou a candidatura e de cuja
orientação beneficiámos até meados de 2000, altura em que, por razões de saúde, não
pôde continuar a fazê-lo;
- Professora Doutora Maria Antónia Coutinho e Professora Doutora Fernanda
Miranda Menéndez, que assumiram a continuação dessa responsabilidade;
agradecemos a disponibilidade sem limites, os incentivos permanentes, as suges-
tões oportunas, as críticas necessárias, a paciência generosa e a amizade sem adjectivos.

Aos colegas do departamento e aos amigos, agradecemos as ajudas e os incenti-


vos que, de diversas maneiras, incondicionalmente nos deram, em particular ao longo
destes últimos duros quatro anos. Seja-nos permitido nomear, pelas suas preciosas aju-
das, a Maria de Lurdes Magalhães e o Vítor Oliveira.

À Professora Doutora Sandi Michele Oliveira agradecemos a cedência e o envio


da sua tese de doutoramento e os incómodos que, para o efeito, lhe causámos.

Agradecemos, por último, ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo e à sua


Escola Superior de Educação, bem como à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, as condições para a realização desta dissertação.

Muito obrigado!
Para

a Conceição, o David Manuel, o Eugénio Miguel e a Eva Sofia

com novo pedido de perdão, pela reincidência.


ÍNDICE

INTRODUÇÃO GERAL 11
0. Notas prévias 12
0.1. Uma continuação 12
0.2. Cortesia linguística – breve nota sobre a designação 13
1. O problema, a tese, o projecto 15
2. O corpus 22
2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado
do que qualquer outro?» 24
3. Resumos 29

PRIMEIRA PARTE
CORTESIA LINGUÍSTICA
Quadro Teórico Geral

Cap. I – INTERACÇÃO VERBAL E CORTESIA LINGUÍSTICA 35


1. Interacção verbal em sentido estrito 36
1.1. Conversa vs. diálogo 37
1.2. Unidades e composição duma interacção verbal em sentido estrito 41
2. Interacção verbal em sentido lato 51
2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally) 51
2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine) 54
2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste) 63
2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize) 65
2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação 66
2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem 69
2.3.3. A importância da situação ou contexto 71
2.3.4. Esquematizar é representar 74
2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais 78
2.4. Esquematização e competência discursivo-textual 80
2.5. Esquematização e Linguística Textual 86
2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos 93
2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia 98
6

Cap. II – CORTESIA LINGUÍSTICA – Teoria(s) 105


1. As teorias fundadoras 105
1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff 107
1.2. A teoria de Geoffrey Leech 112
1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson 121

Cap. III – O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA DE C. KERBRAT-


-ORECCHIONI - Uma proposta ecléctica 131
1. Críticas e melhorias da teoria modelo 132
2. O «sistema de cortesia» 136
2.1. Processos linguísticos de cortesia 143
2.2. A importância das variantes sociais 152
3. Observações críticas 155

SEGUNDA PARTE
CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS EM PORTUGUÊS

Cap. IV – INTRODUÇÃO 161

Cap. V – CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA


EM PORTUGUÊS - Principais estudos 167
1. M. H. Araújo Carreira. Cortesia verbal - proxémia e modalidade 167
1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias 169
1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva 173
1.3. Cortesia verbal e modalização 176
2. Outros estudos 181
2.1. R. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português
LE 181
2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia 184
2.3. M. E. Ricardo Marques: cortesia e deferência 189

Cap. VI – TEMPOS E MODOS VERBAIS


DE CORTESIA / DESCORTESIA 193
1. Os modos 193
7

O imperativo 193
Indicativo vs. conjuntivo 199
Conjuntivo, modo de cortesia 204
2. Os tempos 211
Tempos / modos do presente 211
2.1.1. Presente do conjuntivo 211
2.1.2. Presente do indicativo 213
2.2. Tempos / modos do futuro 219
2.2.1. Futuro do indicativo 219
2.2.2. Futuro do conjuntivo 225
2.3. Tempos / modos do passado 226
2.3.1. Imperfeito do indicativo 226
2.3.2. Imperfeito do conjuntivo 229
2.3.3. Mais-que-perfeito 230
2.3.4. Condicional 230
2.3.5. Pretérito Perfeito 233
2.4. Formas verbais nominais 234
2.4.1. Infinitivo 234
2.4.2. Gerúndio 236
2.4.3. Particípio 237
3. Construções passivas 237

Cap. VII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL


E DIRECTIVIDADE 241
1. Noção e classificação dos actos directivos 241
2. Impositividade e cortesia / descortesia 251

Cap. VIII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL – FORMAS SUBSTI-


TUTAS DO IMPERATIVO E INTERJEIÇÕES 259
1. Formas substitutas do imperativo 259
2. As interjeições 262
3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa 266
8

TERCEIRA PARTE
CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL
FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS

Cap. IX – INTRODUÇÃO 281

Cap. X – TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS - Principais estudos 291


1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização (diacrónica
e sincrónica) 291
2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico – entre a variação e
(re)negociação 297
3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos» de
mudanças ou rupturas sociais 311
4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções sociais 322
5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das distâncias
interpessoais 325

Cap. XI – AS PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTU-


GUÊS EUROPEU. Uma história de cortesias 341
1. Tu e vós 343
2. Você 347
3. Senhor / a 352
O senhor, pronome? 359
«Minhas senhoras e meus senhores» 361
Valores interjectivos de senhor / a 362
Seu / sua, formas reduzidas de senhor / a ou possessivos? 367
Senhor / a, dom / dona como insultos 373
4. Vossa senhoria e vossa excelência 375

Cap. XII – AS FORMAS DE TRATAMENTO NO QUADRO DA CORTE-


SIA LINGUÍSTICA 379
1. Tratamentos alocutivos 379
2. Tratamentos elocutivos e delocutivos 385
9

QUARTA PARTE
CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA
UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL
Práticas e Análises

Cap, XIII – INTRODUÇÃO 395

Cap. XIV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS


EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO 403
1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas 404
2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas 409
2.1. Construções corteses e descorteses 412
2.2. Processos de figuração 417
2.3. Da figuração descortês à figuração cortês 422

Cap. XV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS


EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO.
AS FORMAS DE TRATAMENTO (Aspectos retórico-argumen-
tativos e polifónicos) 429
1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta 431
1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo 431
2.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo 452
2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual. Breves observa-
ções 464

CONCLUSÕES FINAIS 475

BIBLIOGRAFIA 487
INTRODUÇÃO GERAL

Não sabe que há palavras soltas da boca que ferem como pedras?
Aquilino Ribeiro1

A sociedade tem tambem sua grammatica, que é necessario estu-


dar, e os que desprezão suas regras se não levão palmatoadas, ou
outro qualquer castigo, são olhados como homens sem educação,
e muitas vezes rejeitados. [...] E não penseis que estas regras são
arbitrárias: [...] eu as encontrei escritas em livros, e rigorosamen-
te observadas nas sociedades e no trato do mundo.
J.-I. Roquette2

Le langage est un élément primordial dans le domaine du savoir-


-vivre: en effet, la compétence linguistique rejoint souvent
l’exigence de la distinction. Le langage est à l’évidence une des
clés de la “rhétorique sociale” que constitue le savoir-vivre. Le
savoir-vivre est en effet un “art de persuader” dont le langage
est un vecteur essentiel, avec les gestes et les “manières” en gé-
nérale. Le langage est aussi le lieu par excellence de la recon-
naissance sociale.
Emmanuel Bury3

Il ne sera point ici question des mille et une façons de se tenir à


table, mais uniquement de ce qu’on appelle communément la po-
litesse linguistique.
Catherine Kerbrat-Orecchioni4

1
RIBEIRO, 1983: 266. Após a primeira referência a um autor ou grupo de autores, pelos respectivos
nomes completos, passaremos a utilizar, apenas, os últimos apelidos.
2
ROQUETTE, 18592: 7. Respeitámos e respeitaremos, nas citações, a grafia das edições consultadas.
3
BURY, 1995: 531.
4
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 162.
12

0. Notas prévias

0.1 Uma continuação

Este estudo é uma exigência e uma continuação da nossa dissertação de mestra-


do em Teoria do Texto.5 Ao analisarmos, aí, as diferentes sequências dialogais represen-
tadas num conto para crianças,6 concluíamos que «as personagens num diálogo, através
das falas e só por elas», além dos actos ilocutórios que realizam, com ou sem a felicida-
de perlocutória desejada, estabeleciam também, por isso e para isso, «relações especiais
de aproximação ou afastamento, de persuasão ou poder, de sedução ou anulação.» E
acrescentávamos que este aspecto das relações interpessoais constituía «um novo e
recente ramo da investigação linguística e pragmática» - a cortesia verbal - que seria «a
via aberta e entrevista» de futuros estudos que viéssemos a realizar, no quadro teórico
alargado da Linguística Pragmática.7
Esta dimensão de natureza relacional ou interpessoal, os meios da sua expressão
e o seu funcionamento, nas interacções verbais, não puderam ser suficientemente descri-
tos e analisados, nesse estudo, dados os limites de tempo e de páginas concedidos. Cen-
trámo-nos, por isso, sobretudo nos planos da textualidade (sequencialidade e configura-
cionalidade8) da narrativa / conto e, com particular desenvolvimento, na textualidade
das sequências dialogais, em virtude da quantidade e diversidade de diálogos nesse con-
to configurados. Além disso, aquela dimensão, embora reconhecida, não se nos apresen-
tava, de início, com a importância que, com o desenvolvimento do estudo e a elaboração
da respectiva tese, viemos a confirmar.
Ficaram, assim, por desenvolver e aprofundar aspectos que se prendem com as
relações interpessoais que os interlocutores estabelecem e gerem, segundo os
co(n)textos de comunicação, através das diferentes práticas discursivo-textuais9 que
realizam. A partir de meados de 1995,10 passámos, por isso, a recolher dados e informa-

5
Cf. RODRIGUES, 1994. Dissertação elaborada sob a orientação da Professora Doutora Luísa Soares
Opitz, apresentada à Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em finais
de 1994.
6
«Mestre grilo cantava e a giganta dormia», primeiro conto de Arca de Noé, III Classe. Cf. RIBEIRO,
1989a: 11-28.
7
Cf. RODRIGUES, 1994: 177.
8
Cf. ADAM, 1990 e 1992.
9
É através de discursos realizados em textos que a capacidade e a actividade de comunicação verbal se
concretiza. Para explicação mais desenvolvida sobre esta questão, ver, infra, cap. I, particularmente sub-
secção 2.4.
10
A defesa da nossa dissertação de mestrado ocorreu em 29 de Maio de 1995.
13

ções que nos permitissem apresentar, logo que possível, um projecto de investigação de
candidatura a doutoramento, centrado no estudo dos fenómenos verbais corteses e des-
corteses, o que veio a concretizar-se em meados de 1997.11
Foi, porém, só a partir de Janeiro de 1999, data em que passámos a beneficiar da
situação de equiparação a bolseiro (no âmbito das medidas do PRODEP), que, em dedi-
cação exclusiva e absorvente, pudemos entregar-nos ao desenvolvimento do projecto.
Até então, as actividades docentes e académicas não o permitiam: membro dos Conse-
lhos Científico e Pedagógico; Responsável Pedagógico pelo FOCO e pela Biblioteca da
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo; leccionação
de várias disciplinas e supervisão teórico-prática (preparação, reflexão, observação em
diferentes escolas e avaliação) de aulas de Língua Portuguesa, realizadas por alunos do
4.º ano das variantes Português / Francês e Português / Inglês.

0.2. Cortesia linguística - breve nota sobre a designação

Esta dissertação é sobre a cortesia verbal ou linguística, expressão que designa


tanto os fenómenos verbais de cortesia e as suas regras, como, pela sua ausência ou
negação, os de descortesia. Designa também a teoria linguística que os estuda.
Tomamos aqui cortesia como arquilexema que recobre sentidos expressos tam-
bém por termos como boa educação, boas maneiras, bons modos, bom tom, cavalhei-
rismo, cerimónia, civilidade, civismo, comedimento, conveniência, deferência, delica-
deza, etiqueta, homenagem, honraria, modéstia, polidez, respeito, reverência, protoco-
lo, tacto, urbanidade, etc. A lista que apresentámos, por ordem alfabética, baseada em
definições e remissões encontradas em dicionários de Português europeu, não é, eviden-
temente, exaustiva.12 Os termos mais utilizados para referir o que entendemos por corte-
sia, tomados como quasessinónimos, são delicadeza e polidez, com predomínio do pri-
meiro.13 Preferimos, todavia, cortesia, por se tratar de termo cuja definição lexical com-
preende os valores que em delicadeza e polidez se encontram, mas também porque

11
A inscrição no referido doutoramento deu-se em 12 de Junho de 1997, por despacho do Presidente do
Conselho Científico da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.
12
Paula Bobone faz uma breve abordagem da noção de politesse e doutros termos com idênticos sentidos
(civilidade, cortesia, etiqueta, protocolo...), no quadro dos comportamentos sociais correctos, em BOBO-
NE, 1999: 49-51.
13
É o que se verifica, por exemplo, em CARREIRA, 2001; CASANOVA, 1996; GOUVEIA, 1996;
PEDRO, 1993; SEARA & LEITÃO, 2000; SILVA, 1994.
14

remete, na sua etimologia, para a origem e história dos comportamentos assim conside-
rados.14

«E porque todas estas cerimónias se inventaram nas cortes dos Príncipes, por nelas
haver precedência de dignidades e estas súbditas a um príncipe, chamamos a todas estas
cerimónias cortesia, derivando de corte onde tiveram seu nascimento».15

Como se verá, ao abordarmos a história das principais formas de tratamento por-


tuguesas,16 a vida da corte foi sempre modelo de comportamento seguido e ambicionado
(mesmo quando criticado) pelas pessoas que a ela não tinham acesso directo nem diário.
Em Portugal, como noutros países ocidentais, tal modo de vida era sinal de distinção
social, privilégio reservado a uns tantos que, para o efeito, chegavam a receber educação
especial. Eram os cortesãos, cujos tratamentos distintivos, seus e dos outros, regulamen-
tavam, através de provisões e outros normativos régios.17 Cortês passou a designar tanto
a vida da corte como a vida em sociedade que a ela se assemelhava. O léxico regista,
aliás, dois termos para a definição de cortesia, que correspondem, precisamente, à
noção de cortês, no sentido alargado da vida social, e de cortesão, no sentido restrito da
vida privativa da corte:

«Cortesia é a demonstração externa de respeito, comedimento, urbanidade e bom modo,


para com todos os nossos semelhantes, conforme prescreve a boa educação. Cortesania
é a prática das civilidades da corte e o requinte da cortesia segundo os usos, estilos e
maneiras mais apuradas dos que frequentam a corte. O primeiro é próprio do homem
cortês; o segundo é só próprio do cortesão.»18

14
Como nós, também se verifica preferência por cortesia, em FONSECA (J.), 1994: 32 e 1996: passim;
LAPA, 19758: 151 e passim; MAÇÃS, 1976: passim; MEYER-HERMANN, 1984: passim; OLIVEIRA,
1995: passim; SOARES, 1996: passim. Há autores que utilizam ora delicadeza, ora cortesia, ora polidez,
por exemplo, em CUNHA & CINTRA, 1984: passim; LUZ, 1956-59: passim.
15
João de Barros, Décadas II, 5, cit. por SILVA, 195110: 610.
16
Ver, infra, cap. XI.
17
«Posto que estes nomes [palacianos e cortezãos] sejão quasi sempre tomados á má parte por isso que
nas côrtes e palacios é onde mais reina a intriga, a duplicidade e a lisonja, devemos reconhecer que é esta
a melhor escola para se aprender as bôas maneiras, as expressões escolhidas, a polidez, a urbanidade e um
certo ar e bom tom, que annuncião o illustre nascimento e a boa criação. Não imiteis, meus filhos, os
defeitos dos palacianos e dos cortezãos, mas imitai sua polidez e suas maneiras agradaveis.» [ROQUET-
TE, 18592: 11]
18
SILVA, 195110 (vol. 3): 610.
15

Para designar o reverso da noção, preferimos, morfo-logicamente, o termo des-


cortesia, em cuja definição incluímos a simples ausência de cortesia e a sua negação
ostensiva, em graus diferentes, de que a calúnia, a grosseria, a injúria e o insulto19
serão a expressão máxima e mais nítida. Dizemos serão, porque o contexto é fundamen-
tal para se avaliar tanto as descortesias como as cortesias verbais.
Cabe ainda observar que polidez poderia ser também um termo adoptado. A
adopção justificar-se-ia pelo léxico e pela proximidade que tem com os termos francês
(«politesse») e inglês («politeness»).20 Na sua etimologia, encontra-se o verbo latino
polire, acção de polir. Catherine Kerbrat-Orecchioni invoca-a, para observar que «la
politesse a pour fonction d’arrondir les angles et de “polir” les rouages de la machine
conversationnelle, afin d’épargner à ses utilisateurs de trop vives blessures.»21

1. O problema, a tese, o projecto

Em virtude da natureza intrinsecamente interaccional da actividade da lingua-


gem, toda a prática discursivo-textual, enquanto processo e produto de comunicação
verbal, é sempre condicionada pelas e condicionante das relações interpessoais (existen-
tes, presumidas ou desejadas) entre aquele que fala ou escreve e aquele a quem se diri-
ge, bem como por aquele de quem se fala ou escreve, em contextos correntes ou ficcio-
nais e literários. Sintetizando-se ainda mais o que já em síntese se acaba de dizer, mas
que ao longo desta dissertação, com mais desenvolvimento, se procurará mostrar, em
particular no capítulo I, há sempre um mútuo condicionamento e influência, com refle-
xos mais ou menos claros, tanto numas como noutras, entre as relações interpessoais
dos indivíduos, directas e/ou indirectas, e as suas práticas de comunicação verbal.
A adequação das relações às práticas e destas àquelas manifesta-se em desempe-
nhos que pressupõem ou implicam diferentes tipos e níveis de competência discursivo-
-textual (é através de discursos concretizados em textos que a capacidade de comunica-
ção verbal se desempenha). Tal competência conjuga conhecimentos e saberes de natu-

19
Como curiosidade, eis a lista das descortesias verbais e paraverbais, em meados do século XIX:
«calumnia, maledicencia, murmuração, mentira, graças pesadas, palavras injuriosas, revelação de segredo
confiado, espirito de contradicção, porfias, teimas, remoques, chascos, sotaques, graçolas, dichotes, chu-
fas, zombarias e facecias indecentes ou burlescas». [ROQUETTE, 18592: 149]
20
Refira-se que os brasileiros preferem o termo polidez, enquanto os espanhóis preferem o termo corte-
sía. A título de exemplo, o volume La Politesse, colectânea de artigos dirigida por Régine Dhoquois (cf.
DHOQUOIS (dir.), 1992), foi traduzido, no Brasil, por A Polidez (Porto Alegre: L&PM, 1993), em Espa-
nha, por La Cortesía (Madrid: Cátedra, 1993) e, em Portugal, por A Delicadeza (Lisboa: Difel, 1992).
21
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 65.
16

reza psicossocial e sociocultural diversos, por um lado, e de natureza linguística, para-


linguística e metalinguística, por outro.
Esses tipos e níveis de competência são naturalmente diferentes entre os locuto-
res (falantes, escreventes, escritores) e os alocutários (ouvintes e leitores), e em cada um
deles. Trata-se de capacidades adquiridas e desenvolvidas através de aprendizagens
formais e informais, também elas diferentes e diversas, intra e interculturalmente. São
essas competências que explicam a diversidade e a criatividade relativa dos diferentes
desempenhos individuais e interindividuais, mas simultaneamente a relativa unidade de
formas e formatos (géneros) de cada um desses desempenhos, pois só assim pode haver
alocução, interlocução, interacção, numa palavra, comunicação. É, por isso, duma
macrocompetência que se trata, a que, na sequência das reflexões e proposta de Dell H.
Hymes, se dá o nome de competência de comunicação ou comunicativa.22

«Falamos e escrevemos para comunicar algo a alguém num espaço e num tempo deter-
minados, em situações específicas, localizadas institucionalmente, sujeitas, portanto, a
regras que nos transcendem como sujeitos falantes individuais, sem que, no entanto, nos
anulem como indivíduos.»23

Comunicar é, sem dúvida, participar, cooperar e interagir, mas é também e


acima de tudo, partilhar, como a etimologia da palavra sugere e a experiência da vida
confirma. A comunicação é uma partilha de sentidos e sentimentos, ideias e opiniões,
afectos e crenças, conhecimentos e saberes, vozes e silêncios, presenças e ausências. Ou
a recusa de tudo isto, incluindo as vãs tentativas de negar a própria comunicação, por-
que, ao tentar fazê-lo, está-se, ainda assim, a comunicar, a partilhar que não se deseja
comunicar, pelo menos segundo determinados moldes, naquelas circunstâncias, tempo-
rária ou definitivamente. Observa Hymes que «la “communication” n’est pas un but
mais un attribut du langage»24 e, por isso, sempre que se utiliza a linguagem, mais que
entrar em comunicação, é estar em comunicação, em partilha com o outro, que pode ser

22
Sobre a noção de competência de comunicação, segundo Hymes, cf. HYMES, 1991. O autor agrupa em
três tendências principais os tipos de «competência linguística alargada», conforme o termo é utilizado
por vários estudiosos, segundo se interessam (i) «à la littérature et à l’art verbal d’un point de vue linguis-
tique»: poética, literária, mitológica, retórica, narrativa, do enigma; (ii) «à l’usage interpersonnel du
langage»: de conversação, de interacção, de situação, social, sociolinguística, pragmática; (iii) «sur
les différences entre individus et entre rôles individuels»: de recepção, de produção, ou não as tendo,
uma incompetência de comunicação. [cf. id.: 126-127]
23
PEDRO, 1996: 450.
24
HYMES, 1991: 129.
17

o próprio, num desdobramento dialógico e polifónico, impossível de ignorar, depois de


conhecidas as reflexões de Mikhail Bakhtine.25
Não é só através de palavras organizadas em discursos-textos que se comunica.
Também se participa, interage, coopera e partilha através de comportamentos paraver-
bais (entoação, altura, suavidade e velocidade de fala) e não verbais (gestos, atitudes,
posturas corporais, contactos físicos devidos ou indevidos, formas de vestir e andar, de
sentar e comer, de estar e viver, etc.) A competência discursivo-textual inclui tanto as
capacidades, os processos, os factores e os moldes ou modelos de produção, como os
seus correlatos, aos diferentes níveis de recepção, onde os da análise e interpretação não
são menos complexos e exigentes.
Neste quadro, a cortesia verbal é um fenómeno transsemiótico, pois que, como
observa Robin Tolmach Lakoff, «las máximas de cortesía funcionan al mismo tiempo
para el habla y para las acciones». Assim sendo, «las reglas del lenguaje y las reglas
para otros tipos de transacciones humanas cooperativas [ou não cooperativas, acrecen-
tamos nós] son partes de un mismo sistema; es inútil situar el comportamiento lingüísti-
co separado de otras formas de comportamiento humano.»26
Mas é da cortesia linguística que tratamos. Saber falar e escrever é saber realizar
práticas discursivo-textuais, cumprindo, melhor, sabendo cumprir, consoante os contex-
tos e a sua dinâmica, as regras sociais, linguísticas, paralinguísticas e extralínguísticas,
que governam a vida em sociedade – a sua gramática – numa comunidade ou num gru-
po. É, portanto, ser-se possuidor duma competência que em diferentes desempenhos ou
práticas se efectiva e/ou que os diferentes desempenhos ou práticas constroem e mani-
festam. E porque assim é, tal competência confunde-se com o saber ser ou não cortês,
porque saber falar ou escrever, realizar práticas discursivo-textuais, actos de comunica-
ção adequados aos contextos, é também um «savoir-vivre» que através dum «savoir-
-dire» (que também é um «savoir-faire») se concretiza. O sucesso ou o insucesso dum
acto de comunicação é, portanto, também uma competência ou incompetência discursi-
vo-textual de cortesia.
Saber falar e escrever é saber, não só, o que se diz, mas também o que se pode
ou não dizer, o que se deve dizer e como dizer o que se tem a dizer, segundo as circuns-

25
Ver, infra, cap. I, 2.2. e 2.7. Os números que seguem a numeração do capítulo remetem para as respec-
tivas secções ou subsecções. Assim, por exemplo, na caso anterior, o tema é abordado no capítulo I, sec-
ção 2. e subsecções 2.2. e 2.7. Serve esta observação para as restantes indicações.
26
LAKOFF, 1998: 275. Servimo-nos da tradução espanhola, por não ter sido possível consultar a versão
em Inglês. Cf. também CARREIRA, 1995: 194.
18

tâncias materiais (quadro espácio-temporal) e psicossociais (quadro interpessoal), e os


fins desejados, isto é, o contexto e as dinâmicas interpessoal e discursiva nele desenvol-
vidas.27 Tal competência de cortesia consiste também na vigilância que aquele que fala
ou escreve mantém sobre as interacções verbais em que intervém. Como observa, em
feliz afirmação de síntese, Bernard Pottier, «mon intention de politesse va surveiller
constamment mon discours».28

Nas diferentes práticas discursivo-textuais, os comportamentos verbais corteses


e descorteses são escalares. As suas realizações situam-se, por isso, ao longo dum eixo
imaginário, ou num cruzamento dum eixo vertical («poder») com um eixo horizontal
(«solidariedade»), em cujos pólos se situam, respectivamente, as ocorrências de mais
elevado nível ou grau. Há autores que consideram existir uma zona neutra, onde situam
formas que não expressam nem cortesia nem descortesia.29 Em nosso entender, segundo
a concepção alargada que defendemos de cortesia verbal, situamos nessa zona o que
designamos por grau zero dos comportamentos verbais corteses e descorteses. Zona
cuja fronteira entre a cortesia e a descortesia – concordamos - é muito ténue e subtil,
mas que, a nosso ver, não constitui razão suficiente para que haja comportamentos ver-
bais neutros. Quando se encontra uma prática discursivo-textual adequada ao contexto
de realização, não acompanhada de fórmulas e/ou formas30 de cortesia ou de descorte-
sia, estamos perante comportamentos corteses ou descorteses mínimos. Com Henk
Haverkate dizemos, portanto, que «ningún hablante, cualquiera que sea su lengua ma-
terna, es capaz de expresarse de forma neutra: sus locuciones son corteses o no lo son,
lo cual equivale a afirmar que la cortesía está presente o está ausente; no hay término
medio.»31

Os fenómenos ou comportamentos verbais corteses e descorteses, a par dos


valores que as suas formas e fórmulas representam ao nível da língua (lexicais, morfos-
sintácticos, semântico-pragmáticos) e sobretudo ao nível das diferentes práticas discur-
sivo--textuais, constituem o objecto da cortesia linguística. Trata-se de domínio recente

27
Seguimos uma concepção ampla de contexto, de acordo com o descrição que se encontra em KER-
BRAT-ORECCHIONI, 1990: 75-111, ou, para resumo, 1996: 16-22.
28
POTTIER, 1992-93, cit. por CARREIRA, 1995: 197.
29
Cf., v.g., LAKOFF, 1989: 103 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 165 e 2000b: 32.
30
Sobre a distinção que fazemos entre fórmulas e formas, ver, infra, cap. IV.
31
HAVERKATE, 1994: 17.
19

de investigação linguística, com início datado nos princípios dos anos 70 do século pas-
sado e desenvolvimento surpreendente a partir da década seguinte.
O interesse pelos fenómenos da cortesia em geral, e dos verbais, em particular,
tanto a nível intracultural como intercultural e mesmo transcultural, é de tal ordem, que
Kerbrat-Orecchioni chega mesmo a afirmar que «la politesse est à la mode».32 Ludmila
Kastler é de opinião que este renovado e crescente interesse pela cortesia linguística se
fica a dever a duas ordens de razões principais. Em primeiro lugar, ao «cruzamento de
culturas», em virtude do qual, «l’aspiration à comprendre l’Autre […] à travers son
comportement langagier habituel est tout à fait compréhensible.» Depois, tal interesse
«est la suite logique de l’attention privilégiée que les linguistes portent actuellement à la
communication, aux interactions verbales, à l’analyse conversationnelle».33 As noções
actuais de «aldeia global», de «comunicação sem fronteiras», de «sociedade de infor-
mação» e de «globalização» ajudarão a compreender também este fenómeno, que mos-
tra, além disso, como a cortesia linguística é, de facto, uma questão também de compe-
tência discursivo-textual.

Kerbrat-Orecchioni situa, na noção alargada de cortesia linguística, «tous les


aspects du discours qui sont régis par des règles, et dont la fonction est de préser-
ver le caractère harmonieux de la relation interpersonnelle».34 Ao linguista cabe,
por isso, «décrire non plus les relations qui s’établissent entre les différents constituants
du texte conversationnel, mais celles qui se construisent, par le biais de l’échange ver-
bal, entre les interactants eux-mêmes».35
É, pois, no campo das interacções verbais em sentido estrito36 que a autora situa
o estudo dos fenómenos linguísticos corteses e descorteses, entre outros.37 Os actos de

32
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 161.
33
KASTLER, 1998 : 31-32. Além doutras manifestações do renovado interesse pela cortesia, em geral, e
pela cortesia linguística, em particular, refira-se que, a par de congressos, seminários, colóquios, encon-
tros, se vem realizando cada vez mais estudos sobre esta matéria, inclusive em Portugal. De referir, a
propósito, que o n.º 21-5 de Journal of Pragmatics (1994) apresenta uma recolha bibliográfica sobre a
cortesia linguística que contém 900 títulos, publicados só em Inglês. Se se lhe juntar os títulos publicados,
desde aquela data, e os títulos publicados também noutras línguas, nomeadamente em Francês, o número
ultrapassará, certamente, o milhar. O interesse renovado doutras ciências sociais e humanas pelos fenó-
menos da cortesia verifica-se na publicação de estudos como os de BURY, 1996; DHOQUOIS (dir.),
1992 e de PERNOT, 1996. Cf. também WAUTHION & SIMON (ed.), 2000. Ao nível da sociedade em
geral, veja-se o sucesso editorial de manuais de etiqueta e boas maneiras, por exemplo.
34
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50-51.
35
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50-51 e 41. Cf., também, 1992: 163-164. Sobre o modelo de análise
do sistema de cortesia linguística, proposto por esta autora, ver, infra, cap. III.
36
Estabelecemos uma distinção entre interacção verbal em sentido estrito e em sentido amplo, no cap. I.
37
Kerbrat-Orecchioni situa, ainda, no âmbito dos estudos das relações interpessoais, outros fenómenos
«qui ont d’ores et déjà fait l’objet d’études approfondies», destacando «les procédés instaurant entre les
20

discurso destinados a proteger e a reparar (por atenuação e/ou compensação) eventuais


ameaças das faces (positiva e/ou negativa) do alocutário como do locutor («Face Threa-
tening Act» - FTA), por um lado, e os actos de discurso destinados a valorizar as faces
do alocutário («Face Flattering Act» – FFA) e, por uma questão de cortesia, a desvalo-
rizar as faces do locutor, por outro, constituem os principais meios discursivo-textuais a
que os interlocutores / interactantes recorrem.38
O inventário e descrição das fórmulas e formas linguísticas, bem como os valo-
res e as funções que realizam, estão ainda pouco estudados em Portugal. Entre nós, só
muito recentemente a cortesia verbal (e apenas a cortesia) começou a merecer a atenção
dos linguistas. O elenco dos processos de manifestação de cortesia verbal que apresen-
tamos,39 fornecendo uma listagem bastante completa, é baseado fundamentalmente nos
trabalhos de Kerbrat-Orecchioni.40 Esta linguista francesa inventaria e descreve tais
processos tendo em consideração, por um lado, a sua realização em interacções verbais
em sentido estrito e, por outro, segundo a sua orientação de referência essencialmente
alocutiva e elocutiva.41
Cabe referir, a este respeito, que um locutor pode ser cortês ou descortês tam-
bém em relação a um terceiro (ausente, ou presente, mas considerado como ausente ou
terceiro excluído). O estudo de Maria Helena de Araújo Carreira42 complementa, neste
aspecto da delocução, o «sistema de cortesia» proposto por Kerbrat-Orecchioni. Além
disso, a linguista francesa não trata com desenvolvimento os valores de cortesia e de
descortesia que certas fórmulas e formas apresentam já inscritos no sistema linguístico
de cada língua, ou como certos mecanismos de construção linguística se prestam à
expressão de cortesia, aspectos que a linguista portuguesa considera com especial
desenvolvimento. Em síntese, Carreira observa:

«La politesse linguistique ne s’exprime pas seulement par des formes dites de politesse
telles que les salutations, les présentations, les remerciements, les félicitations, les ex-
cuses. Il faut tenir compte également des procédés variés de modalisation et

interactants un certain type de distance horizontale (degré de familiarité) et verticale (rapport hiérar-
chique ou de “dominance”) [1996a: 31], bem como «l’émergence récente en analyse du discours d’un
intérêt porté à une autre composante encore de l’interaction: la composante affective, ou émotionnelle»
[Id.: 32] Sobre esta última temática, cf. PLANTIN et al. (dir.), 2000.
38
Sobre as noções de face e FTA e FFA, ver, infra, cap. II, 1.3, e cap. III.
39
Ver, infra, cap. III, 2.
40
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992 e 1996.
41
Para as noções de alocução, elocução e delocução, cf. CARREIRA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. V, 1.2.
42
Ver, infra, cap. V, 1.
21

d’indirection, ainsi que des stratégies mises à l’œuvre, telles que la façon d’encourager
son interlocuteur, de lui exprimer son accord ou son désaccord, etc.»43

Definida como competência discursivo-textual, isto é, como capacidade que os


utilizadores duma língua têm para, conforme os contextos, realizarem actos de comuni-
cação bem sucedidos, através do recurso a processos verbais corteses ou descorteses,
colocamos as seguintes questões principais, as quais constituem, no seu conjunto, a tese
desta dissertação:

a) Que meios e mecanismos linguísticos e discursivo-textuais são utilizados na


realização e expressão de cortesias e descortesias verbais, adequados aos contextos de
cada acto de comunicação?
b) Que influência exercem as relações pessoais e sociais (existentes, presumidas
e/ou desejadas) entre quem fala ou escreve e o(s) seu(s) destinatário(s) directo(s) e indi-
recto(s), e destes para com terceiro(s), na selecção daqueles meios e mecanismos e,
inversamente, que influência exercem estes naquelas?
c) Como se reflecte na organização e configuração discursivo-textual das dife-
rentes práticas discursivo-textuais, in prœsentia ou in absentia realizadas, o uso de
construções corteses e descorteses?

Como teremos oportunidade de verificar, consiste a cortesia linguística (de acor-


do, aliás, com a regra que vem nos manuais de boas maneiras, segundo a qual devemos
honrar os outros, enquanto nos humilhamos a nós próprios, e ao fazê-lo mostrar que,
assim procedendo, estamos felizes44), em recorrer a formas de indirecção e impessoali-
zação, ao apagamento do eu face ao tu, à valorização do outro e à desvalorização de nós
próprios. Como explicar esta aparente contradição, quando a cortesia recomenda, que o
respeito que se deve às faces do outro passa também, segundo o efeito de boomerang,45
pela defesa das nossas próprias faces? Consideramos que a solução se encontra ao nível
da enunciação polifónica que a realização contextualizada das formas de cortesia e de

43
CARREIA, 2001: 57.
44
«E na verdade, em que consiste o ser perfeitamente polido, senão em experimentar o desejo de ser util,
e agradavel; e de resolver-se a fazer, para o conseguir, muitissimas concessões e sacrificios agradaveis
aos outros, e que os convenção de que preferimos sua satisfação á nossa?» [ROQUETTE, 18592: 10]
«As boas maneiras são fundamentalmente a atitude mental duma pessoa que se esquece de si mesma
para poder ser agradável aos outros, e para que os outros sintam que esta intenção de lhes agradar é
genuína, terá de haver da nossa parte naturalidade e espontaneidade.» [GIÃO, 1988: 10]
45
Ver, infra, cap. III, 1.
22

descortesia também encerra. Por outro lado, tais processos visam obter do alocutário,
manipulando estrategicamente essas formas, consoante o desenrolar da interacção, que
ele se aproxime ou afaste, atraí-lo ou repeli-lo, convencê-lo e persuadi-lo, provocar a
sua adesão ou impedi-la, favorável ou desfavorável, relativamente a ideia, causa, acção,
crença, comportamento, etc. As formas de cortesia e de descortesia servem, por isso,
também efeitos retóricos e/ou argumentativos. São estes, em nosso entender, os dois
principais contributos que esta dissertação propõe. Contributos que acompanham ou
vêm na sequência lógica de que a cortesia / descortesia verbal é uma (sub)competência
de comunicação que inclui uma dimensão fundamental de natureza discursivo-textual
que em formas mais ou menos explícitas e implícitas se manifesta, nas diferentes práti-
cas da interacção verbal, isto é, da actividade da linguagem.
Responder as estas e outras questões exige ter já algumas respostas, reuni-las e
sistematizá-las, procurar outras e prová-las. Há aquelas que se prendem, fundamental-
mente, com os valores gramaticalizados e lexicalizados que as chamadas fórmulas de
cortesia e de descortesia representam ao nível da língua, bem como os valores que
adquirem e as funções que exercem em novos usos. Implica, por outro lado, saber reco-
nhecer, para depois descrever, aos diferentes níveis da análise linguística, formas e
construções de cortesia e descortesia, resultantes da maior ou menor capacidade verbal
(incluindo a criatividade discursivo-textual46), segundo os contextos formais ou infor-
mais, correntes ou literários. Além disso, exige que, depois de se analisar criticamente
teorias e estudos, se opte por um modelo teórico de descrição e análise.
Às questões postas e às reflexões que a seu respeito se poderão colocar, procura-
remos responder com esta dissertação, conscientes, porém, de que a complexidade do
tema e dos problemas não foi esgotada, exigindo continuação e aprofundamento de
outros estudos. Até porque, entre nós, a cortesia linguística dá ainda os primeiros pas-
sos.

2. O corpus

46
Entendemos, aqui, por criatividade discursivo-textual construções de formas verbais que, consoante os
contextos, não se enquadram nos processos habituais de expressão de cortesia ou de descortesia, ou cons-
tituem reconstruções originais desses processos (fórmulas, rotinas, convenções, protocolos, ritos...).
23

A elaboração do projecto desta investigação e o seu desenvolvimento comportou


exigências metodológicas. Estudos especializados, de natureza teórica e teórico-prática,
sobre os fenómenos verbais de cortesia e de descortesia, passaram a constituir as nossas
principais leituras. No campo da Linguística, destacamos trabalhos em domínios da
Pragmática (textual, discursiva, conversacional) e Sociolinguística. Doutros campos são
de referir estudos nas áreas da Filosofia (não só) da Linguagem e Lógica Natural,
Semiótica Literária e Narratologia, Retórica e Argumentação, Sociologia e História. A
cortesia verbal, dada a sua natureza psicossocial e sociocultural, só pode ser estudada e
compreendida segundo uma perspectiva inter e multidisciplinar.
Cabe aqui uma breve nota acerca da bibliografia especializada sobre a cortesia e
a descortesia verbal em Português. São reduzidíssimos (e de acesso nem sempre fácil),
os estudos sobre esta(s) matéria(s),47 tanto a nível teórico como teórico-prático, mas
sobretudo a nível discursivo-textual. É de relevar, por isso, o estudo (a bem dizer único)
de Carreira, pela descrição e análise abrangente das diferentes formas de cortesia,
segundo uma dupla perspectiva: de língua (morfossintáctica e semântico-pragmática) e
de discurso (interlocutória).48 A situação parece, todavia, estar a evoluir positivamente,
uma vez que têm vindo a ser realizados vários estudos sobre esta temática, ao nível
sobretudo de dissertações de mestrado, segundo várias perspectivas de análise.49 Ao
mesmo tempo, alguns artigos têm sido publicados sobre fenómenos verbais corteses e
descorteses em Português europeu.50
Além da leitura de estudos especializados, em textos de lazer ou prazer (literá-
rios, culturais, jornalísticos, etc.), fomos descobrindo e arquivando ocorrências de com-
portamentos verbais, paraverbais e não verbais, classificados ou classificáveis como
corteses ou descorteses (geralmente descorteses, porque são estes que, por excepção às
regras sociais da sã convivência, isto é, da cortesia, mais se fazem notar e são notícia51).

47
Ver, infra, caps. V e X, para apresentação crítica dos principais estudos sobre, respectivamente, a corte-
sia / descortesia e os tratamentos, em Português europeu actual.
48
Sobre este estudo, dissertação de doutoramento da autora, ver, infra, cap. V, 1. e cap. X, 5., respectiva-
mente, sobre as formas de cortesia e as formas de tratamento, em Português europeu contemporâneo.
49
Podemos referir, como dissertações de mestrado que tratam ou abordam aspectos da cortesia verbal,
ALMEIDA, 1996; ALVES, 2000; BENTO, 2000; SILVA, 1994 e SOARES, 1996.
50
Cf., v.g., CARREIRA, 2001: 45-171 (vários estudos); RODRIGUES, 2000; SEARA, 1999 e SEARA &
LEITÃO, 2000.
51
A título de exemplo (porque se trata também de título exemplar daquilo a que, actualmente, os órgãos
de comunicação social mais noticiam), veja-se como jornal português anuncia, na primeira página, notícia
que desenvolve em página interior: «NUNO CARDOSO ATACA ACTUAÇÃO DE RUI RIO //
“ENGANADORA IGNORANTE / MALICIOSA MESQUINHA / TENDENCIOSA LEVIANA VIL... /
MENTIROSA”» [Jornal de Notícias, 6 de Fevereiro de 2002] É de referir que o jornal, além da citação
que selecciona, imprime as palavras em caixa alta e a cores, tonalidades e corpo de letra diferentes, desta-
24

Por outro lado, idênticos comportamentos, ocorridos em contextos diversos da


vida portuguesa contemporânea, foram objecto de observação, ao mesmo tempo que
recordávamos outros pessoalmente vividos ou presenciados em tempos mais ou menos
remotos. Elaborámos, assim, fichas bibliográficas e de leitura, procedemos a registo e
arquivo de fenómenos corteses e descorteses, ocorridos em contextos de comunicação /
interlocução / interacção52 diversos.
Nas leituras específicas e especializadas encontrámos os fundamentos teóricos e
metodológicos para a elaboração da presente dissertação. Nos diversos comportamentos
verbais, corteses e descorteses, com ocorrência próxima ou remota, ordinários ou fic-
cionais, orais ou escritos, descritos ou praticados, narrados ou presenciados, encontrá-
mos formas, construções e práticas discursivo-textuais que acabaram por constituir o
corpus desta dissertação, de que nos servimos ora para exemplificar descrições, ora para
realizar análises que, no fundo, outras formas de exemplificação também são. Um cor-
pus naturalmente heterogéneo, portanto, como heterogéneas são as formas verbais de
cortesia e de descortesia, como heterogéneos são os seus efeitos, como heterogéneos são
os contextos em que são realizadas e a que também dão origem.

2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado do que
qualquer outro?»53

Predominam, nesta dissertação, segmentos e sequências colhidos em textos lite-


rários. Alguns são os que os autores dos trabalhos consultados fornecem. É o caso, prin-
cipalmente, de Celso Cunha & Luís F. Lindley Cintra, nas descrições gramaticais que
fazem dos valores corteses e descorteses que também reconhecem nos tempos e modos
verbais.54 Os restantes exemplos ou sequências literários foram colhidos por nós, fun-
damentalmente, na obra narrativa de Aquilino Ribeiro.55

cando «MENTIROSA», em corpo maior e a vermelho. Nuno Cardoso (do Partido Socialista) havia sido
presidente da Câmara Municipal do Porto, cargo que Rui Rio (do Partido Social Democrata) passou a
exercer, na sequência dos resultados das últimas eleições autárquicas.
52
Consideramos que ao nível da análise linguística das práticas discursivo-textuais, estas três dimensões
se encontram sempre presentes. Comunicar é sempre, por um lado, falar / escrever com outro, mesmo em
situações de solilóquio ou monólogo, e, por outro, influenciar e ser influenciado, interagir. Desenvolve-
remos este aspecto no cap. I, particularmente em 2.3.
53
RIBEIRO, 1995: 77.
54
Ver, infra, cap. VI.
55
Sequências dialogais ou excertos colhidos sobretudo em Arca de Noé III Classe, Uma Luz ao Longe,
Terras do Demo, O Malhadinhas, A Via Sinuosa e Romance da Raposa.
25

Relacionadas com este ponto, cabem as seguintes observações, quanto à nossa


preferência por excertos e sequências dialogais aquilinianas, em particular, e à validade
e interesse de se tomar, como exemplo e objecto de análise linguística, fragmentos e
sequências literários, em geral.
Em primeiro lugar, confessamos o prazer estético-literário (incluindo aspectos
lúdicos e ideológicos) que a leitura da narrativa aquiliniana em geral nos proporciona.
Prazer que resulta também da riqueza e variedade de processos linguísticos e discursivo-
-textuais utilizados por Aquilino, na construção dos seus romances, novelas e contos.
Processos que constituem, a nosso ver, um contributo importante para a renovação e
valorização da Língua Portuguesa, a nível do sistema e sobretudo do uso, ainda não
suficientemente estudados.
É sabido, por outro lado, que as narrativas aquilinianas são construídas em
comunicação, muito próxima da coloquialidade, com os seus leitores. O autor conversa
constantemente com eles, através dos narradores e dos narratários intra ou extradiegéti-
cos que, em certa medida, respectivamente, os representam e de que são uma espécie de
porta-voz.56 Comunicação que se manifesta, de forma mais realista e veraz, nas frequen-
tes sequências dialogais representadas, reproduzindo encontros e desencontros, fáticos e
transaccionais,57 de vária ordem e a diferentes níveis. As intervenções das personagens
apresentam frequentes e abundantes marcas de oralidade (interjeições e outras fórmulas
interlocutórias, por exemplo), que o narrador faz acompanhar, também, de informações
de natureza prosódica e paraverbal.
Diálogos espertos e verazes, que procuram imitar as interlocuções / interacções,
mais ou menos pacíficas ou conflituosas que ocorrem na vida quotidiana. Dizemos pro-
curam imitar, porque, apesar do seu realismo e verosimilhança, dificilmente correspon-
dem a trocas verbais orais, habitualmente ditas reais ou autênticas. A passagem duma
interacção verbal oral à sua apresentação escrita (mesmo que transcrita ipsis verbis)
pressupõe e exige sempre um trabalho de interpretação (por vezes de decifração) da
parte do transcritor / redactor, por mais sequencialmente organizados e claramente arti-
culados que tenham sido os turnos de fala e as intervenções de cada interlocutor. 58
Não se pode esquecer, todavia, que o mundo construído por uma / numa narrati-
va literária, por mais mimética que pretenda ser, nunca é a cópia ou o retrato do mundo

56
Sobre a comunicação literária e narrativa, segundo uma perspectiva linguística discursivo-textual, ver,
infra, caps. XIII e XIV, 1.
57
Sobre a distinção que fazemos entre fático e transaccional, ver, infra, cap. I, 1.2.
58
Sobre turno de fala e intervenção, como unidades das interacções verbais, ver, infra, cap. I, 1.2.
26

real. É sempre a representação discursivo-textual dum mundo alternativo ou possível


que, todavia, para ser verosímil (i. e, inteligível, compreensível, mesmo como absurdo,
irreal ou surreal) tem de manter sempre alguma relação de semelhança com as realida-
des que se conhecem deste mundo e dos outros que culturalmente já foram construídos,
como são os casos, por exemplo, dos mundos mitológicos, maravilhosos, religiosos, de
ficção científica, etc.
Querer ler e interpretar uma prática discursivo-textual literária, como se lê e
interpreta uma prática discursivo-textual não literária é confundir planos discursivo-tex-
tuais diferentes, com intenções e efeitos de comunicação também diferentes. A realida-
de dos textos literários, orais ou escritos, e dos diálogos neles construídos, situa-se a um
outro nível da realidade, aí ganhando a sua autenticidade, a sua verdade. Os seres fic-
cionais que nele interagem realizam actos de discurso com idênticos valores pragmáti-
cos aos das pessoas reais, os quais, como estas, também podem intensificar ou atenuar,
em graus diferentes, através de meios linguísticos mais ou menos corteses e descorteses.
As relações que esses seres de ficção estabelecem só podem ser vistas e interpretadas
como mais ou menos pacíficas ou conflituosas, mais ou menos corteses ou descorteses,
se a sua configuração ficcional corresponder aos padrões socioculturais que a esses
níveis se encontram numa dada sociedade, comunidade ou grupo. Bakhtine observava,
já em 1930, que o escritor, ao moldar a personagem, não pode nunca esquecer que «la
force expressive de l’œuvre littéraire dépend pour une très large mesure de ce qu’il y a
de vérité de la vie en elle», acrescentando que é «seulement là, dans les énoncés les
plus simples, que nous trouverons la clé de la structure linguistique des énoncés litté-
raires.»59
Posto isto, consideramos que os textos de ficção literária, escritos ou orais, bem
como as sequências dialogais que os constituem, podem e devem ser objecto de análises
linguísticas, nomeadamente ao nível da análise discursivo-textual da sua coconstrução e
das suas leituras, simples ou especializadas. Harald Weinrich observa, a propósito, que é
desejável uma «linguística da literatura». Explica, todavia, que entre os dois domínios
não devem existir relações de subordinação mútua, ou seja, que

«la science linguistique ait à se placer tout entière au service de l’interprétation litté-
raire, pas plus que les études littéraires n’ont à recourir exclusivement, ni même préfé-
rentiellement, aux méthodes linguistiques. Mais l’application de certaines méthodes lin-

59
BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 298 e 301.
27

guistiques à des textes littéraires est féconde: elle permet d’en faire surgir certains as-
pects, intéressant aussi bien les linguistiques que les spécialistes de littérature.»60

Idênticas observações podemos encontrar noutros estudiosos da linguagem


humana (Linguística, Literatura, Semiótica, Narratologia), como Charles Bally,61 Bakh-
tine,62 Roman Jakobson,63 Roland Barthes,64 Gérard Genette65 e Dominique Maingue-
neau,66 entre outros.67 São de referir, dada a sua natureza linguística no quadro das teo-
rias do discurso-texto,68 as observações de Jean-Michel Adam. Considera este autor, em
síntese nossa, que o núcleo normativo das diferentes práticas discursivo-textuais se
encontra nas gramáticas (da frase, do texto, dos géneros) de cada língua, mas que as
suas variações estilísticas, isto é, as suas diferentes realizações empíricas, se situam à
volta desse núcleo, com dois pólos principais - de um lado, as práticas discursivo-
textuais estético--literárias, de outro, as práticas correntes ou ordinárias.69 Para este
linguista a Literatura é uma prática discursivo-textual como as outras, propondo por isso
que, entre a análise literária e a análise linguística, se estabeleça um indispensável
movimento de vaivém, já que o estudo duma contribui sempre, de algum modo, para o
conhecimento de aspectos da outra.70
Fernanda Irene Fonseca argumenta também que a ficção e os fenómenos literá-
rios são, «antes de mais», linguísticos e cognitivos.71 Considerando que «qualquer
fenómeno linguístico não exclui a tomada em consideração do texto literário», antes «a
implica e a exige»,72 defende que «nenhum modelo do funcionamento da linguagem

60
WEINRICH, 1973: 60.
61
Cf. BALLY, 19653: 61-62. Para uma exposição das principais ideias de Bally sobre as relações da lin-
guagem corrente, face à linguagem literária, cf. DURRER, 1998 : 82-91.
62
Cf. BAKHTINE (VOLOSNINOV), 1981: 298 e passim e BAKHTIN, 1992: 289 e ss.
63
Cf. JAKOBSON, 1963: 27 e 248. É conhecida a paráfrase que este linguista, como síntese do seu pen-
samento sobre esta questão, aí faz da conhecida máxima de Terêncio: «Linguista sum; linguistici nihil a
me alienum puto.»
64
Cf. BARTHES, 1980: 9-16.
65
Cf. GENETTE, 1991: 41-62.
66
Cf. MAINGUENEAU, 1986, 1995a, 1996a e 1996b.
67
Cf., v.g., ADAM, 1985 e 1991a, ADAM & LORDA, 1999; DURRER, 1994; GARDES-TAMINE &
PELLIZZA, 1998; GOUVARD, 1998; JEANDILLOU, 1997; RODRIGUES, 1994; TISSET, 2000;
VIDAL, 1993: 235-247 e YVANCOS, 1993: 73-86. Alguns destes autores abordam a questão em termos
puramente teóricos e outros em termos teórico-práticos e mesmo didácticos.
68
Ver, infra, cap. I, 2.5., sobre a questão, ainda polémica, entre as disciplinas Análise do Discurso e Aná-
lise do Texto ou Textual.
69
Cf. ADAM, 1997: 33 e 1999: 93.
70
Cf. ADAM, 1991: 5.
71
FONSECA (F.), 1994: 87.
72
FONSECA (F.), 1992: 236.
28

(linguagem “tout court”, sem adjectivos) será completo e adequado se não incluir, ao
menos potencialmente, a explicação do fenómeno literário.» E conclui:

«Toda a teoria da linguagem é também teoria da literatura (e vice-versa). E a própria


criação literária, enquanto manifestação de uma vivência da língua, enquanto conheci-
mento poético da linguagem, enquanto teorização produtiva, representa já, só por si, um
importante contributo para a teoria da linguagem.»73

A questão da validade dos textos literários como corpora de análises linguísticas


continua a gerar alguma polémica, consoante as perspectivas dos autores. A tendência é
para considerar os actos de discurso literários sérios74 e autênticos,75 no mundo possível
ou alternativo que constroem e em que são realizados. Neste sentido, subscrevemos a
seguinte afirmação de Adam:

«Il faut dépasser ce faux débat: les assertions des personnages d’un roman ou d’une
pièce de théâtre font certes partie de la fiction, mais, à ce niveau diégétique, ils fonc-
tionnent exactement sur le même modèle que les actes de discours dits “sérieux” de la
vie ordinaire.»76

Os textos literários apresentam, em princípio, uma construção discursivo-textual


mais atenta e cuidada. Os escritores, além de conhecerem melhor, em extensão e pro-
fundidade, a língua e o seu funcionamento, exploram e desenvolvem, criativamente, as
suas potencialidades, a todos os níveis da expressão. Encontram-se, por isso, nos seus
textos construções que raramente se encontram nas práticas ordinárias. Menor atenção e
cuidado presta às construções quem ordinariamente fala ou escreve, até porque de
menor competência é, em princípio, dotado, a nível linguístico e discursivo-textual. Não
cremos nem queremos que só pela leitura, análise e estudo de textos literários se atinge

73
FONSECA (F.), 1992a: 17. Veja-se também 1992: 235 e ss. A propósito, lembre-se que a linguista
toma, nestes títulos, como corpus de análise (mais desenvolvidamente em 1992, dissertação de doutora-
mento), obras romanescas do escritor Vergílio Ferreira.
74
Recorde-se que John Searle, na sequência de John Langshaw Austin [cf. AUSTIN, 1970: 55, 108 e
116], considera o discurso literário e de ficção, além de «parasitário» e «não sério», como «não pleno»,
uma vez que o narrador, além de apropriar-se de palavras que não são suas, emprega-as em circunstâncias
em que estão suspensas as condições habituais de realização de um acto de fala normal, a que chama
«sério», e onde deixam de actuar as regras de satisfação ilocutória. [Cf. SEARLE, 1982: 101-119]
75
Eddy Roulet considera que são discursos autênticos «les dialogues de la vie quotidienne ou du discours
romanesque», de que exclui os enunciados isolados ou fabricados «dans le cadre d’une description de
linguiste». [ROULET, 1999: 187 e ROULET et al., 19913: 4, respectivamente]
76
ADAM, 1990: 106, nota 21. Cf. também ADAM & LORDA, 1999: 28.
29

a cortesia77 de bem comunicar, escrevendo e falando, em Português. Mas sem eles é


muito mais difícil conseguir vencer os índices de aliteracia e de iliteracia que são reco-
nhecidos.
Nos textos literários e, em particular, nos narrativos e dramáticos, encontram-se,
por isso, em maior quantidade, melhor construídas e discursivo-textualmente melhor
utilizadas e exploradas, nos seus diferentes valores e potencialidades, as diferentes for-
mas e fórmulas de cortesia e de descortesia, algumas delas em construções surpreenden-
temente originais. Não tomar, portanto, como corpora de estudos e análises linguísticos,
as diferentes construções corteses e descorteses que, nas diversas interacções verbais
literárias e ficcionais, em sentidos estrito e lato tomadas, se encontram representadas, é
ficar com uma visão redutora e limitada das capacidades discursivo-textuais e das
potencialidades que a Língua também oferece a esse nível.

3. Resumos

Organizamos o estudo Cortesia Linguística - Uma Competência Discursivo-


-textual (Formas verbais corteses e descorteses em Português) em quatro partes, cada
um delas constituída por vários capítulos, apresentados em numeração seguida, podendo
cada um deles estar, por seu turno, subdividido em secções e estas em subsecções.
A primeira parte - Cortesia Linguística - Quadro teórico geral - é essencial-
mente teórica. Consta de três capítulos. No primeiro - Interacção verbal e cortesia -
consideramos a natureza intrinsecamente interaccional da linguagem. Neste sentido,
descrevemos as noções de interacção verbal, em sentidos estrito e lato, oportunidade
para, quanto à primeira, distinguirmos e aproximarmos noções que apresentam o mesmo
ar de família, concretamente, conversa e diálogo, por mais frequentes. Apresentamos e
descrevemos, ainda, as unidades textuais que compõem, em teoria, as interacções ver-
bais em sentido estrito, na sua composição prototípica. A parte mais desenvolvida e, a
nosso ver, mais importante diz respeito à descrição da noção de interacção verbal em
sentido lato. Percorremos, de Bally a Adam, passando por Bakhtine, Émile Benveniste,
Oswald Ducrot, Maingueneau e sobretudo Jean-Blaise Grize, os contributos teóricos
fundamentais que estes autores trouxeram ao estudo da linguagem como interacção ver-

77
Recomendam os manuais de etiqueta e boas maneiras que falar e escrever correctamente a língua é uma
regra de cortesia. Cf., v.g., BOBONE, 1999: 40 e 80-82; GIÃO, 1988: 142-143.
30

bal, nas suas dimensões linguísticas, interpessoais, retóricas, cognitivas e socioculturais,


as quais se encontram sempre presentes e interdependentes na realização de qualquer
prática discursivo-textual, oral ou escrita, corrente ou literária. Interacção que exige, por
isso, na produção como na recepção, uma competência de comunicação alargada que
congloba saberes de todas aquelas dimensões, como subdomínios ou subcompetências,
e onde o/a de cortesia / descortesia é fundamental. No capítulo II – Cortesia linguística
– Teoria(s) - apresentamos as linhas fundamentais dos modelos de análise «fundado-
res», propostos por Lakoff, Geoffrey Leech e Penelope Brown & Stephen C. Levinson.
Com base nestas propostas, Kerbrat-Orecchioni, integrando-as, melhorando-as e desen-
volvendo-as, elaborou um «sistema de cortesia», que consideramos, por isso, uma pro-
posta ecléctica, cujas linhas fundamentais apresentamos no capítulo III.78
A segunda parte – Cortesias / Descortesias Verbais em Português – é dedica-
da, depois duma breve introdução (capítulo IV), à apresentação crítica dos principais
estudos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português europeu (capítulo V) e à
descrição de algumas das suas manifestações linguísticas, a nível semântico-pragmático
e discursivo-textual (capítulos VI a VIII). O capítulo VI é dedicado à análise dos valores
corteses e descorteses que os tempos e modos verbais podem expressar, aos níveis mor-
fossintáctico e semântico-pragmático. As formas do imperativo (próprias, supletivas e
substitutas) são as mais utilizadas na realização dos actos directivos, nomeadamente da
ordem (considerada descortês por natureza). A imprecisão que, por vezes, se encontra
quanto à noção de cada um dos actos directivos, conduziu-nos, no capítulo VII, à pro-
blemática da directividade. Procuramos clarificar esta noção pragmática e relacionar os
valores de cortesia e/ou de descortesia que os actos directivos podem ou não expressar.
Entre as formas substitutas utilizadas para realizar e/ou intensificar actos directivos,
com intenções corteses e descorteses, encontram-se as interjeições, habitualmente mar-
ginalizadas, apesar da sua abundância e frequente ocorrência, nas diferentes práticas
discursivo-textuais. Abordá-las-emos, por isso, no capítulo VIII.
A terceira parte – Cortesia / Descortesia e Formas de Tratamento em Portu-
guês - é dedicada, exclusivamente, ao estudo dos tratamentos em Português europeu e
aos valores corteses e descorteses que, já lexicalizados ou não, podem expressar em
práticas discursivo-textuais. Depois duma breve introdução (capítulo IX), faremos um

78
Um desenvolvido estudo sobre estas e outras teorias ou modelos de cortesia linguística encontra-se em
EELEN, 1999. Análises mais breves das teorias fundadoras e outras encontram-se também em FRASER,
1990; KASPER, 19982 e WERKHOFER, 1992.
31

balanço crítico dos principais estudos que linguistas nacionais e estrangeiros dedicaram
ao estudo dos tratamentos portugueses (capítulo X). Perante a riqueza e variedade dos
tratamentos ainda em uso e na impossibilidade de os descrever a todos, seleccionámos
as fórmulas e formas que consideramos mais representativas, dentro das categorias do
tuteamento e do voceamento, descrevendo os valores de cortesia e de descortesia que
expressam e/ou podem expressar, tendo em consideração a história linguística e socio-
cultural de cada uma (capítulo XI). As formas de tratamento, a par dos valores linguísti-
cos e relacionais que expressam, são também formas de referência alocutiva, elocutiva e
delocutiva (capítulo XII).
A quarta e última parte – Cortesia / Descortesia Linguística, uma Competên-
cia Discursivo-Textual (Práticas e Análises) - tem um objectivo prático e exemplifica-
tivo. Tomaremos como corpus sequências discursivo-textuais completas, inscritas em
narrativas aquilinianas. Descreveremos, no capítulo XIV, depois duma breve introdu-
ção sobre a complexidade da comunicação narrativa literária (capítulo XIII), como o
locutor (narrador-editor d’O Malhadinhas), realiza construções implícitas e explícitas de
cortesia e de descortesia, num contexto de interacção verbal em sentido lato, ao nível da
alocução (dirigindo-se, indirectamente, ao leitor modelo e ao leitor real), da delocução
(referindo-se a terceiros, objecto do seu discurso-texto) e elocutivo (referindo-se a si
próprio). No capítulo XV, trataremos, particularmente, os valores corteses e descorteses
que as formas de tratamento expressam, em interacções verbais em sentido estrito, con-
figuradas em sequências dialogais no Romance da Raposa. Num caso como noutro,
serão analisados mecanismos linguísticos e discursivo-textuais de construção de cortesia
e descortesia utilizados pelos interactantes (interlocutores ou não), com especial atenção
à reutilização de fórmulas e formas de tratamento, sua diversidade, referência e funções
sobretudo retórico-argumentativas, como processos de hetero e autofiguração favorável
ou desfavorável. Funções estas que incluem também uma dimensão enunciativa de natu-
reza polifónica.
Terminaremos esta dissertação referindo e reflectindo sobre as principais ques-
tões levantadas e as soluções propostas ou perspectivadas, em Conclusões Gerais.

Do trabalho de investigação que desenvolvemos sobre a Cortesia Linguística,


entendida como uma competência discursivo-textual na (re)construção de formas explí-
citas e implícitas corteses e descorteses em Português europeu, esta dissertação constitui
apenas o seu resultado mais visível.
PRIMEIRA PARTE

CORTESIA LINGUÍSTICA
Quadro Teórico Geral

A informação é-nos infinitamente disponível, mas onde


poderemos encontrar a sabedoria?
Harold Bloom1

1
BLOOM, Harold, 2001: Como Ler e Porquê. Lisboa: Caminho (Trad. port. de How to Read and Why,
2000); p. 15
Capítulo I

INTERACÇÃO VERBAL
E CORTESIA LINGUÍSTICA

La manière personnelle dont un homme construit son dis-


cours est dans une large mesure déterminée par sa sensibi-
lité au mot d’autrui et par sa façon d’y réagir.
Mikhail Bakhtine1

A cortesia e a descortesia linguística, de cujos processos de expressão verbal os


tratamentos corteses e descorteses constituem as formas mais evidentes, ocorrem sobre-
tudo em situações de interlocução face-a-face, como exercício primeiro e mais frequente
da capacidade discursivo-textual2 dos seres humanos. É, por isso, em situações sobretu-
do de comunicação oral, onde dois ou mais locutores (interlocutores, portanto) se encon-
tram em presença, que as trocas verbais se concretizam e as formas de cortesia e de des-
cortesia, mais ou menos fixas ou originais, ganham sentidos. Formas de que os interlocu-
tores também se servem para criar relações de proximidade ou afastamento, sincera ou
fingidamente, e assim melhor poderem agir uns sobre os outros. Neste sentido, as inter-
locuções constituem-se em interacções verbais e os interlocutores em interactantes.
Em nosso entender, não é só em contextos de comunicação face-a-face, seja em
práticas discursivo-textuais correntes ou ficcionais, que a interacção verbal se concretiza,
mas também através da comunicação diferida, incluindo a literária, particularmente a
narrativa. Da actividade discursivo-textual, entendida como interacção verbal em sentido
estrito e em sentido lato, se tratará ao longo deste capítulo. Procurar-se-á integrar, num
quadro teórico alargado, as diferentes manifestações de cortesia e de descortesia que,
explícita ou implicitamente, os interactantes realizam, as razões por que o fazem e os
efeitos mais ou menos conscientes que visam. Trata-se, por isso, de integrar tais proces-

1
BAKHTINE, 1970: 271.
2
As razões por que optámos por reunir nesta justaposição as dimensões fundamentais de toda a actividade
de comunicação verbal encontrar-se-ão ao longo de todo este capítulo, em particular nos pontos 2.5 e 2.6.
36

sos na complexidade da comunicação / interlocução / interacção humana. Abordaremos,


para tal, um conjunto de problemas de natureza teórica, de que destacamos: tipos mais
ou menos prototípicos de interacções verbais e unidades que as constituem; noções e
relações entre discurso e texto e respectivas disciplinas que os estudam; descrição dum
novo modelo de comunicação verbal; competências discursivo-textuais ao nível da pro-
dução e da recepção; importância do(s) contexto(s) a nível social, físico e cultural; valo-
res retóricos, dialógicos e polifónicos.

1. Interacção verbal em sentido estrito

Muito antes dos primeiros estudos sobre a pragmática dos actos de discurso e o
valor argumentativo da actividade discursivo-textual, já o linguista suíço Bally, aluno e
sucessor de Saussure, escrevia que a linguagem humana é uma forma de poder simbóli-
co, uma força de acção sobre o interlocutor, intensificada ou atenuada por construções
mais ou menos corteses. A linguagem é «arma de combate», através da qual o locutor
visa impor o seu pensamento e para o efeito «on persuade, on prie, on ordonne, on dé-
fend; ou bien, parfois, la parole se replie et cède: on ménage l’interlocuteur, on esquive
son attaque, on cherche à capter sa faveur, ou bien ou lui témoigne son respect, son ad-
miration.»3 Um jogo de ataques e defesas, de avanços e recuos, de tácticas e estratégias
corteses ou descorteses. Não se trata, porém, dum combate de vida ou de morte, mas
apenas de luta, como uma das dimensões sociais da linguagem, a da argumentação, a
qual se manifesta mesmo nas interacções verbais de natureza afectiva, ou psicológica.
Entre os humanos não há nunca adaptação completa, harmonia perfeita de pensamento e
mentalidade.

«Ainsi la lutte, telle qu’elle est définie ici, n’est pas incompatible avec la solidarité et la
sympathie; elle suppose simplement concordance incomplète des croyances, des désirs
et des volontés; elle se rencontre jusque chez les êtres qui se cherchent dans l’amitié et
dans l’amour; elle résulte d’un conflit entre le moi du sujet et son instinct social.»4

Neste sentido, podemos definir interacção verbal, em sentido estrito, como uma
sequência de trocas verbais entre dois ou mais indivíduos, acerca dum ou mais temas ou

3
BALLY, 19653: 18.
4
Id.: 20.
37

assuntos, realizadas num determinado contexto de interlocução, mais ou menos pacífica


ou conflituosa, para conseguir ou impedir a realização de determinados fins, intra e/ou
extradiscursivos. As interacções verbais inscrevem-se, assim, no quadro pragmático
mais vasto da acção humana que, segundo Denis Vernant, se caracteriza por ser realiza-
da «par un agent possédant croyances et connaissances, désirs et intentions, valeurs et
interdits, sentiments e émotions». Tal agente é, «d’un point de vue pratique comme épis-
témique, minimalement rationnel», o que o define, por isso, «comme l’un des acteurs
d’un jeu régi par des règles de coopération et de compétition», pois que agir «est
d’emblée relation des hommes entre eux et relation des hommes au monde.»5
A noção de interlocução / interacção verbal abarca, todavia, um amplo leque de
realizações discursivo-textuais, às quais subjaz, não obstante as características particula-
res que tipologicamente as diferenciam, uma estrutura sequencial e hierárquica prototí-
pica (uma construção teórica). É essa estrutura ideal, construída a partir de ocorrências e
práticas, que, como género, modeliza cada uma dessas realizações a que se dão nomes
como audiência, conversa, conversação, consulta, debate, diálogo, discussão, encontro,
entrevista, exame oral, reunião profissional, etc.

1.1. Conversa vs. diálogo

Por se tratar de subgéneros discursivo-textuais mais frequentes e porque neles


encontramos as principais características que definem os outros, descreveremos apenas a
conversa e o diálogo. A conversa é considerada, pela generalidade dos estudiosos,
nomeadamente por aqueles que trabalham no domínio da Análise Conversacional,6
como a forma mais comum e representativa do falar quotidiano.

5
VERNANT, 1997: 45-46. O autor situa o seu estudo no quadro teórico mais amplo da Pragmática que
concebe, não como disciplina ancilar da Semântica Linguística - «un développement annexe et plus ou
moins accessoire» - mas como «le cadre générale dans lequel les analyses traditionnelles du langage doi-
vent être réinterprétées», porque é «le moyen privilégié d’étudier enfin les phénomènes discursifs et com-
municationnels dans toute leur richesse et complexité.» Neste sentido, é de opinião que «la pragmatique
peut devenir ce carrefour où se rencontrent, coopèrent et se fécondent toutes les disciplines actuelles qui
traitent du langage, du discours, du dialogue, des relations interhumaines et de l’action, telles la philoso-
phie du langage et de la communication, les logiques, les linguistiques, la sémiotiques, la psychologie
cognitive, la psycholinguistique, la sociologie des interactions et l’intelligence artificielle.» [Id.: 1-2] Mais
que defender e subscrever o pressuposto de que a pragmática passou de escrava a imperatriz, interessa
sobretudo relevar o problema da interdisciplinaridade que hoje em dia se exige a/de cada uma das ciências
humanas e sociais, no respeito pelas especificidades de objecto, objectivos e método de cada uma. Inter-
disciplinaridade que, como observa Luísa Opitz, «só ela autoriza uma visão interessante do conhecimento
do conhecimento.» [OPITZ, 1997: 78]
6
Em RODRIGUES, 1994: 90-94, estabelecemos os principais aspectos deste modelo, face ao seu «con-
corrente» Análise do Discurso. Os pontos de contacto entre os dois modelos são cada vez maiores. Hoje
38

Irving Goffman, depois duma noção geral (i.e., «comme équivalent de parole
échangée, de rencontre où l’on parle»), define conversa, em sentido estrito, como

«la parole qui se manifeste quand un petit nombre de participants se rassemblent et


s’installent dans ce qu’ils perçoivent comme étant une courte période coupée des (ou pa-
rallèle aux) tâches matérielles; un moment de loisir ressenti comme une fin en soi, du-
rant lequel chacun se voit accorder le droit de parler aussi bien que d’écouter, sans pro-
gramme déterminé; où chacun reçoit le statut de quelqu’un dont l’évaluation globale du
sujet en train – les notes de lecture, en quelque sorte – doit être encouragée et traitée
avec respect; où enfin il n’est exigé aucun accord ni synthèse finals, les différences
d’opinion étant réputées ne pas porter préjudice à l’avenir de la relation entre les partici-
pants.»7

Kerbrat-Orecchioni encontra nesta definição as «propriedades específicas» da


conversa, como «tipo particular de interacção verbal», as quais resumimos como segue:

a) carácter imediato, tanto no tempo como no espaço: proximidade física dos interac-
tantes; contacto directo; resposta instantânea;
b) carácter familiar ou informal, espontâneo, improvisado e descontraído, pois nenhum
dos seus componentes é fixado previamente: número de participantes (geralmente
reduzido); temas, sua importância e desenvolvimento; duração global; tempo a gas-
tar nos turnos de fala;
c) carácter gratuito e não finalizado: visa o puro prazer de conversar, cuja finalidade
reside nisso mesmo;8

em dia, o termo Análise do Discurso tende a ser a designação mais frequente. Para um tratamento mais
amplo, a nível conceptual, inter e transdisciplinar da Análise do Discurso, cf. MENÉNDEZ, 1997, em
particular cap. I: 37-73. Maingueneau situa a Análise do Discurso «au carrefour des sciences humaines»,
interessando-se pelos mesmos copora, adoptando, todavia, «un point de vue différent.» E acrescenta:
«L’étude d’une consultation médicale, par exemple, amène à prendre en compte les règles du dialogue
(objet de l’analyse conversationnelle), les variétés langagières (objet de la sociolinguistique), les modes
d’argumentation (objet de la rhétorique), etc., mais ces divers apports sont intégrés par l’analyse du dis-
cours.» [MAINGUENEAU, 1996: 12 e 11] Nesta obra, o linguista descreve os principais termos da Análi-
se do Discurso. Alguns destes termos encontram-se também definidos em MENÉNDEZ, 1997: 371-382.
7
GOFFMAN, 1987: 20, nota 8.
8
Repare-se também nesta caracterização de Marc Fumaroli, ainda que a propósito das conversas de salão,
segundo a qual «la conversation suppose une certaine sécession, d’ordre privé, soutenue par des affects
privés (amitié, bienveillance) en marge des affaires, des negotia de la vie publique et politique. Elle reste
de l’ordre de l’otium, du loisir, du convivium, de la fête et de son temps de luxe.» [FUMAROLI, 1997:
XII] Grize observa, todavia, «qu’on ne parle ni n’écrit jamais sans quelque raison et que l’on n’écoute ni
ne lit sans motif», porque, mesmo que «on peut parler “pour ne rien dire”» e que «on peut écouter la radio
ou lire “pour tuer le temps”», trata-se «encore-là des finalités.» [GRIZE, 1990: 31]
39

d) carácter simétrico e igualitário: os interactantes, mesmo não tendo um mesmo esta-


tuto, comportam-se como tendo idênticos direitos e obrigações, ocupando um mes-
mo “lugar” (poder), ainda que no decurso duma conversa possam ocorrer alterações
e daí resultar distanciamentos ou aproximações.9

A conversa foi considerada mesmo uma «arte»,10 «a flor estética das civiliza-
ções», cujos «primeiros botões», no dizer lírico de Gabriel Tarde, começaram a florir
logo nos encontros terra-à-terra dos primitivos. Daí que ela se encontre associada tam-
bém à cortesia: «Par conversation, j’entends tout dialogue sans utilité directe et immé-
diate, où l’on parle surtout pour parler, par plaisir, par jeu, par politesse.»11 Mesmo que
entendida e/ou praticada como mentira, mais ou menos descarada, mas sócio-psico-
discursivamente necessária e útil: «la politesse est une stratégie socialement acceptée de
mensonge visant perlocutoirement à faciliter le jeu transactionnel entre interlocuteurs»,
já que «un petit mensonge évite de “froisser” inutilement l’autre.»12
Em princípio, ninguém se entrega a uma conversa para ofender ou maltratar, ou
ser ofendido e maltratado (ainda que tal seja uma possibilidade), a não ser em contextos
muito particulares. Por exemplo, nas sessões lúdicas de «insultos rituais» entre jovens
das comunidades negras de Nova Iorque, estudados, a nível sociolinguístico, por Wil-
liam Labov e analisados, no quadro da linguística textual, por Adam.13 Kerbrat-Orec-
chioni observa, todavia, que «dans toutes les sociétés il existe des formes, parfois elle-

9
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 114-115 e 1996: 8.
10
Face aos estudos teóricos que têm vindo a ser publicados, no quadro das diferentes disciplinas sociais e
humanas, bem como a edição de clássicos e de antologias sobre esta capacidade e actividade essencial da
condição humana, pode-se dizer que se assiste a um renovado interesse por esta arte. Veja-se, a título de
exemplo, CAHEN (dir.), 1999; HELLEGOUARC’H (org.), 1997; PÉCORA (org.), 2001; e as recentes
traduções para Português dos clássicos O Cortesão (1528), de Baldassare Castiglione, e de Galateo ou
Dos Costumes (1554), de Giovanni Della Casa, ambos editados pela Martins Fontes, S. Paulo, Brasil. Este
renovado interesse pela arte da conversa ou da conversação acompanha também um renovado e crescente
interesse pela Retórica e pela Argumentação. A propósito do Galateo, observa Fumaroli que naquele tra-
tado de civilidade «les relations avec autrui, et donc la parole, sont régies par deux normes dominantes: ne
rien dire de “malséant” pour les personnes qui écoutent, même si ce que l’on est tenté de dire est en soi
“bon et pieux”; ne rien dire que puisse attrister les personnes avec lesquelles on parle.» E acrescenta, pou-
cas linhas depois, que a preocupação do autor italiano reside em «régler les gestes et les propos, les formes
et les manières, de tel sorte que rien ne heurte jamais autrui, et qu’une harmonie douce et contagieuse
préside à tous les rapports sociaux.» Todavia, a arte da conversa(ção), «soumis à la civilité, n’efface pas
les rivalités, ne déracine pas les passions: elle leur impose une règle du jeu commune qui rend la lutte des
amours-propres plus indirecte, plus spirituelle, sous l’harmonie apparente des gestes et des voix.»
[FUMAROLI, 1997 : XXI e XII] Della Casa propunha, assim, em meados do século XVI, uma concepção
de cortesia negativa, como veio a ser definida, há cerca de escassos trinta anos, por Brown & Levinson.
Ver, infra, cap. II, 1.3 e cap. III.
11
TARDE, 1987: 3
12
VERNANT, 1997: 73-74.
13
Cf., respectivamente, LABOV, 1978: 223-288 e ADAM. 1999: 157-173.
40

mêmes ritualisée, de transgression humoristique des rituels de politesse.»14 A simples


procura e participação numa conversa, segundo as regras da convivência social, aceites e
praticadas numa comunidade, são, só por si, aliás, manifestações de cortesia (pense-se
nas visitas de amizade, também ditas de cortesia).
Esta é, em princípio, a regra, mas há excepções. Nem todas as conversas são e/ou
se desenvolvem de forma pacífica e cortês. Há autores que incluem, por isso, na própria
definição de conversa(r), tanto a concórdia como a discórdia. Adriano Duarte Rodrigues,
por exemplo, define a conversa como sendo «por excelência a produção e a reprodução
da sociabilidade», pois conversa-se «tanto para estabelecer e intensificar, como para
romper e restabelecer os laços sociais que formam a nossa identidade individual e
colectiva.»15
A citação de Gabriel Tarde dá, porém, como quasessinónimos conversa e diálo-
go, conceitos que, em nosso entender, podem e devem ser distinguidos. Diálogo, como
observa Maingueneau, é entendido, geralmente, em duas acepções. Uma, a nosso ver
demasiado restrita, encara diálogo como «toute forme d’échange, le plus souvent entre
deux personnes», opondo-o assim ao monólogo. Outra entende-o como «des échanges
plus formels que la conversation, où il y a une volonté mutuelle d’aboutir à un résultat»
e neste sentido fala-se de «dialogue pour le théâtre, la philosophie, etc.»16
Adam, por seu turno, entende o diálogo e a conversa como dois pontos de vista
diferentes sobre o «discurso alternado», considerando a última «comme un point de vue
psycho-socio-discursif ou comme un genre de discours au même titre que le débat,
l’interview, la conversation téléphonique, etc.» e o primeiro como «une unité de com-
position textuelle (orale ou écrite).»17 Neste sentido, o autor considera caber na noção de
diálogo «aussi bien le produit textuel des interactions sociales que les échanges des per-
sonnages d’un texte de fiction (pièce de théâtre, nouvelle ou roman).»18
É neste sentido mais alargado de prática discursivo-textual alternada, colectiva-
mente coconstruída, por dois ou mais interlocutores / interactantes, reais ou imaginários,
que entendemos a noção de diálogo.19

14
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 60.
15
RODRIGUES, 2001: 176. Itálicos da nossa responsabilidade.
16
MAINGUENEAU, 1996: 27. Ver também, infra, citações de Vernant, onde o autor apresenta uma defi-
nição estritamente dialogal de diálogo.
17
ADAM, 1992: 148.
18
Id.: 149.
19
Em RODRIGUES, 1994: 49-73, tratámos mais desenvolvidamente as noções de diálogo e conversa,
relacionando-as também com a noção de conversação, enquanto realizações discursivas e textuais de inte-
41

1.2. Unidades e composição da interacção verbal em sentido estrito

Enquanto interacção verbal, a conversa e o diálogo, não obstante as diferenças,


são constituídas pelas mesmas unidades discursivo-textuais, organizadas segundo uma
estrutura mais ou menos comum, ainda que, nas suas realizações empíricas, nem sempre
se encontrem todas concretizadas. Vamos descrever, de seguida, tendo em conta a
herança teórica e prática deixada, sobre esta matéria, pela Análise Conversacional, as
unidades e a composição da interacção verbal estrita prototípica.
Uma interacção verbal é formada, quando estruturalmente completa, por unida-
des dialogais e monologais, seus constituintes, respectivamente, de maior e menor
dimensão.20 As primeiras são formadas, segundo a ordem decrescente da sua dimensão,
por uma ou mais sequências e estas por uma ou mais trocas verbais; as segundas,
seguindo a mesma ordem, são constituídas por uma ou mais intervenções e estas por um
ou mais actos de discurso. Observe-se as figuras seguintes (FIG. 1 e FIG. 2).

Sequência
Unidades dialogais
INTERACÇÃO Troca verbal

VERBAL Intervenção
Unidades monologais
Acto de discurso

FIG. 1 – Unidades discursivo-textuais constitutivas duma interacção verbal.

[# IV # [Sequência(s) [Troca(s) verbal(is) [Intervenções [Acto(s) de discurso]]]]]

FIG. 2 – Unidades discursivo-textuais duma interacção verbal. (IV = Interacção Verbal)

racções verbais. Apresentámos aí também uma proposta de tipologia dos diálogos, baseada na teoria dos
actos de discurso, seguindo DURRER, 1994.
20
As unidades duma interacção verbal recebem a designação de dialogais e de monologais, porque as
primeiras ocorrem sempre numa situação de interlocução / interacção, isto é, entre pelo menos dois inter-
locutores / interactantes, enquanto as segundas podem ser produzidas, mesmo numa situação de interlocu-
ção / interacção, sem que o alocutário a elas reaja, verbal ou paraverbalmente. Ou seja, as unidades dialo-
gais não existem sem as unidades monologais, mas estas podem existir sem aquelas.
42

Todas estas unidades21 mantêm entre si relações de hierarquia, ou seja, uma inte-
racção verbal, como um todo discursivo-textual, é composta por uma sequência (ou
mais) que, por sua vez, é (são) constituída(s) por uma troca verbal (ou mais), que por sua
vez é (são) constituída(s), no mínimo, por duas intervenções (ou mais), que, por sua vez,
é (são) formada(s) por um ou mais actos de discurso.
Além da sua constituição, ao nível das unidades de maior e menor dimensão,
uma interacção verbal completa desenvolve-se, em princípio, segundo três tipos de
sequências, simples ou complexas, conforme se designa e representa a seguir (FIG. 3):

{# IV # [Sequência de abertura] [Sequência(s) transaccional(is)] [Sequência de fecho]}

FIG. 3 – Tipos de sequências na composição duma interacção verbal completa.

As sequências de abertura e fecho são assim designadas, em virtude da função


discursivo-textual que desempenham (sobretudo) a nível relacional, sendo por isso cha-
madas sequências fáticas. A(s) sequência(s) transaccional(is) constitui(em) o corpo da
interacção verbal.22 As sequências fáticas de abertura e de fecho são constituídas, fun-
damentalmente, por actos de saudação (encontro ou despedida), de apresentação, de es-
tabelecimento ou manutenção do contacto e de agradecimento.23 São trocas verbais
ritualizadas, mais ou menos convencionais, também chamadas rotinas.
Bakhtine observava, nos princípios da década de cinquenta do século passado,
que os «diversos gêneros [de discurso] fáticos, das felicitações, dos votos, das trocas de
novidades – sobre a saúde, os negócios, etc.», além de «mais difundidos na vida cotidia-
na», apresentam «formas tão padronizadas que o querer-dizer individual do locutor qua-
se que só pode manifestar-se na escolha do gênero». E antecipando observações de natu-
reza relacional, ao nível da horizontalidade (distâncias proxémicas) e da verticalidade

21
Para outras propostas, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 213.
22
Há quem chame interaccionais às sequências fáticas. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 12, nota 1]
23
Kerbrat-Orecchioni distingue processos fáticos, «dont use le parleur pour s’assurer l’écoute de son des-
tinataire», de sinais reguladores que o receptor produz para que a interacção verbal se realize. Tanto uns
como outros podem ser de natureza verbal, paraverbal ou não verbal. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI,
1990: 18-20] Além das sequências fáticas de abertura e fecho, há também uma gama variada de elementos
linguísticos e paralinguísticos que desempenham igualmente funções fáticas de manutenção, recuperação e
orientação dos discursos e das relações interpessoais, no decurso duma interacção verbal.
43

(distâncias taxémicas),24 que só muitos anos depois começariam a ser tidas em conside-
ração pelos analistas das práticas discursivo-textuais, em particular, os da cortesia lin-
guística, refere que a diversidade desses géneros se fica a dever ao facto de «eles varia-
rem conforme as circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos parcei-
ros». Resulta daí haver «o estilo elevado, estritamente oficial, deferente», por um lado, e
«o estilo familiar que comporta vários graus de familiaridade e de intimidade (distin-
guindo-se esta da familiaridade)»,25 por outro.
As sequências fáticas, que podem ocorrer autonomamente ou integradas em tur-
nos de fala26 ou intervenções transaccionais, têm como função principal, além dos aspec-
tos relacionais, marcar o início ou o fim duma interacção, e preparar, introduzir, manter
ou concluir as sequências transaccionais. Uma sequência fática pode passar a transaccio-
nal, quando, por exemplo, os interlocutores / interactantes transformam os actos estritos
de «comunhão fática» (para usarmos a expressão introduzida pelo antropólogo Mali-
nowski27) em tema de conversa. Por exemplo, quando se transforma os actos corteses de
saudação «Como está(s)?», ou «Como vai(s) de saúde?», em tema de conversa sobre o

24
Sobre estas noções, ver, infra, cap. III.
25
BAKHTIN, 1992: 302. (Servimo-nos da tradução portuguesa na variante brasileira, cuja grafia respei-
támos.) Não cabendo, aqui e agora, discutir se as sequências fáticas cabem na designação de género de
discurso, questão a esclarecer juntamente com a problemática das noções de discurso e de texto e os seus
géneros ou tipos, remetemos para COUTINHO, 1999: 41-113. Sobre os géneros do discurso, segundo
Bakhtine, cf. BAKHTIN, 1992: 279-326.
26
Traduzimos «tour de parole» por turno de fala. Pense-se no trabalho por turnos. «A un premier niveau
d’analyse, que l’on peut dire “formel”, toute interaction verbale se présente comme une succession de
“tours de parole” - ce terme désignant d’abord le mécanisme d’alternance des prises de parole, puis par
métonymie, la contribution d’un locuteur déterminé à un moment déterminé du déroulement de
l’interaction (production continue délimitée par deux changements de tour, qui peut du reste avoir une
longueur extrêmement variable, allant du simple morphème à l’ample “tirade”)». [KERBRAT-OREC-
CHIONI, 1990: 159] Os espanhóis utilizam as expressões «turno de habla», «turno de palabra» e «turno
conversacional». [Cf. VARÓ & LINARES, 1997: 575-576] Em Portugal, utilizam-se também as expres-
sões «vez» [RODRIGUES, 1998: 29] e «turno de palavra». [RODRIGUES, 2001: 184]
27
Em 1923, no artigo «The Problem of Meaning in Primitive Languages», publicado em The Meaning of
Meaning por C. K. Ogden e I. A. Richards (Londres: Kegan Paul), Malinowski introduziu a noção de
«comunhão fática», como «tipo de discurso», segundo informa Maingueneau, cujo fim essencial é o de
«maintenir le lien social (échanges sur le temps qu’il fait, salutations, compliments...): “Un type de dis-
cours dans lequel les liens de l’union sont créés par un simple échange de mots" (1923 : 315).» [MAIN-
GUENEAU, 1996 : 62] A proximidade etimológica entre «comunicação» e «comunhão» (de dar e receber,
de troca, de pôr em comum) faz com que Grize aproxime a comunicação (discursiva) da communio cristã
e da troca simbólica do potlatch. [Cf. GRIZE, 1990: 27] «O termo potlatch significa, na língua indígena,
“comer, consumir” e é utilizado pelos índios para designar uma prática ritual que consiste na obrigação de
dar, receber e retribuir, no decurso de um processo interminável de trocas e de circulação de bens entre
tribos e famílias aliadas, sendo desta tríplice obrigação que depende precisamente o estabelecimento de
vínculos entre parceiros de aliança» - assim define Adriano Duarte Rodrigues potlatch, cuja noção e práti-
ca depois descreve e aproxima da prática discursiva como interacção conversacional, dada a «natureza
paradoxal» de liberdade e obrigação que tanto na troca de bens (potlach) como da palavra (conversa) se
encontra. [Cf. RODRIGUES, 2001: 176 –179] Cf., sobre o potlatch, MAUSS, 1988.
44

bem estar ou estar bem de cada um. Uma conversa destas, fático-transaccional, dir-se-á,
é, por isso, mais um exemplo de cortesia verbal.
Recorde-se que é precisamente a propósito das conversas destinadas a passar o
tempo, sem outro objectivo que não o prazer da conversa, que Malinowski introduz a
noção de comunhão fática, cuja função é, por isso, essencialmente social e, daí também
a sua relação com a cortesia verbal, cuja importância de cooperação entre os interlocuto-
res destaca:

«Uma simples frase de cortesia, tão usada entre as tribos selvagens como nos salões
europeus, cumpre uma função para a qual o sentido de suas palavras é quase completa-
mente indiferente. As perguntas sobre a saúde, os comentários sobre o tempo, as afirma-
ções de algum estado de coisas absolutamente óbvio – tudo são frases trocadas não com
a finalidade de informar, nem para coordenar as pessoas em ação e certamente não para
expressar qualquer pensamento...» 28

E o antropólogo introduz, de seguida, a famosa noção, intimamente relacionada


com a cortesia verbal, por isso:

«Não há dúvida de que temos aqui um novo tipo de uso lingüístico – que estou tentado a
chamar comunhão fática, instigado pelo demônio da invenção terminológica – um tipo
de discurso em que os laços de união são criados pela mera troca de palavras...» 29

A sequência transaccional constitui, como se disse, o corpo da interlocução /


interacção verbal e é, em geral, mais extensa e mais complexa que as sequências fáticas.
Ao contrário destas, constituídas, fundamentalmente, por actos de discurso de (maior ou
menor) cortesia (ou de descortesia, em casos de conflito ou polémica), as transaccionais
são formadas, sobretudo, por actos de discurso que visam, essencialmente, fornecer
informações e/ou realizar determinados objectivos ilocutórios. Nelas há, pelo menos, um
tema de conversa, mais ou menos aceite pelos interlocutores, os quais, durante o tempo
da interacção, permanecem, regra geral, os mesmos, interagindo na mira duma finalida-
de pragmática mais ou menos comum, ou como tal considerada.

28
MALINOWSKI, 1923 (ver nota anterior), cit. por BENVENISTE, 1989: 89. Utilizámos a tradução
portuguesa, variante brasileira, de Problemas de Linguística Geral, por não nos ter sido possível consultar,
em tempo útil, o original em Francês.
29
MALINOWSKI, 1923 (ver duas últimas notas), cit. por BENVENISTE, 1989: 89.
45

A unidade geral duma interacção verbal (como aliás outros aspectos com ela
relacionados) é questão ainda não totalmente consensual entre os estudiosos. Ker-
brat--Orecchioni, tentando uma solução, propõe (e o destaque também lhe pertence) que:

«Pour qu’on ait affaire à une seule et même interaction, il faut et il suffit que l’on ait un
groupe de participants modifiable mais sans rupture, qui dans un cadre spatio-temporel
modifiable mais sans rupture, parlent d’un objet modifiable mais sans rupture.»30

Tanto ao nível das sequências fáticas como das transaccionais se pode falar, por
isso, também no estabelecimento dum contrato, tal como o define Maingueneau:

«On utilise cette notion de contrat pour souligner que les participants d’une énonciation
doivent accepter tacitement un certain nombre de principes rendant possible l’échange,
et un certain nombre de règles qui le gèrent; ce qui implique que chacun connaît ses
droits et ses devoirs ainsi que ceux de l’autre.»31

Daí que, mesmo numa conversa ou diálogo polémico ou conflituoso, os interac-


tantes tenham necessidade de cooperar. Observa Pierre Bange que, mesmo quando dois
interlocutores se insultam, «recevoir et renvoyer des injures est aussi un cas de coopéra-
tion. Le gain est de pouvoir faire mal à quelqu’un qui vous fait mal. Le désir d’obtenir ce
gain rend la coopération nécessaire et elle s’opère par la coordination dans l’emploi de la
langue.»32

30
KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 216.
31
MAINGUENEAU, 1996: 22.
32
BANGE, 1992: 123. Vernant (só para citar outro estudioso) considera: «Sous peine de totale vacuité, la
parole est toujours parole pour, par et avec autrui, jeu créatif à partir de règles socialement déterminées. Le
dialogue se révèle la parfaite illustration d’une activité conjointe. Il compose un jeu coopératif qui, tou-
jours, suppose une différence et, sous des formes plus ou moins affirmées, un antagonisme entre les inter-
locuteurs.» [VERNANT, 1997 : 169] Registe-se que este autor fala sempre em diálogo, quando se refere à
interacção verbal, como acto de comunicação, negando que esta consista, como na concepção tradicional,
na transmissão «à l’auditeur de messages émanant d’un locuteur, souverain maître du sens et de la vérité.»
E observa, citando Francis Jacques, que é tempo de se entender «l’interaction comme mise en relation
interlocutive instaurant locuteur et allocutaire comme co-agents d’un procès dialogique», porque, se as
transacções humanas «sont bien souvent compétitives, il n’y a d’interaction discursive que coopérative.»
[Id.: 47. O autor remete para JACQUES, 1979] Convém referir que o autor utiliza dialógico no sentido de
dialogal : «Il est relativement aisé de distinguer le dialogue par sa forme. C’est pourquoi la tradition litté-
raire définit le dialogue comme genre. Par opposition au monologue où une seule personne monopolise la
parole, le dialogue procède par prises alternées de parole entre au moins deux personnes. Cette forme, que
nous qualifierons de dialogale, repose donc sur l’idée d’un échange verbal où chacun prend tour à tour
position de locuteur et d’auditeur.» [Id.: 91] A título de curiosidade, refira-se que Vernant apenas se refere
uma única vez (e em nota de roda-pé) ao dialogismo de Bakhtine, a propósito, apenas, da «dimensão dia-
lógica» das práticas discursivas, no âmbito da Teoria da Literatura. [Id.: 87 e nota 2]
46

A complexidade duma sequência transaccional verifica-se sobretudo quando ela


é constituída por mais que uma sequência (coordenadas; encaixada(s) na principal,
encaixante) e consequentemente por mais que duma troca verbal, cuja organização e
estruturação sequencial e hierárquica nem sempre são fáceis de reconhecer e de analisar.
As sequências fáticas simples, quando completas, dão origem a uma troca verbal
elementar do mesmo tipo, formando um par adjacente, conceito que se aplica também
às trocas verbais transaccionais, como se depreende da sua definição. Um par adjacente
é constituído por duas intervenções em posição de sucessão imediata, realizadas por dois
interlocutores / interactantes, de tal modo que

«il existe un élément reconnaissable comme le premier (first pair part) et un autre re-
connaissable comme le second (second pair part). La séquence est gouvernée par une
règle selon laquelle, lorsque le locuteur actuel a produit quelque chose qui est reconnais-
sable comme une première partie d’une paire déterminée, il doit s’arrêter de parler au
premier point de complétude et le locuteur suivant doit produire à ce moment une se-
conde partie possible de cette même paire.»33

Dizemos que uma sequência fática é completa e autónoma quando é constituída


por uma troca verbal em que a uma intervenção iniciativa se segue imediatamente uma
intervenção reactiva. Tem-se, neste caso, uma sequência binária (ou confirmativa,
segundo alguns autores).34 Há, porém, sequências fáticas onde alguns autores encontram
uma terceira intervenção, a que chamam avaliativa, com a qual o primeiro locutor “ava-
lia” a intervenção reactiva do interlocutor. Neste caso, a sequência diz-se ternária (ou
reparadora, também na opinião de certos estudiosos). Resumimos na figura seguinte
(FIG. 4) a breve descrição feita.
Convém esclarecer, todavia, que os termos intervenção iniciativa, reactiva e ava-
liativa não se aplicam apenas às trocas fáticas, mas também às transaccionais. Por outro
lado, como esclarece Kerbrat-Orecchioni, o termo avaliação, aqui, não deve ser tomado

33
BANGE, 1992: 40.
34
Intervenção é um termo frequentemente utilizado como sinónimo de turno de fala, mas remete para
conceito diferente. Sylvie Durrer, preferindo chamar-lhe «réplica», esclarece que «tour de parole» é uma
unidade «strictement temporelle», enquanto intervenção é «une unité à la fois typographyque et pragma-
tique, constitué d’un ou de plusieurs actes de langage» [DURRER, 1994: 83]. A intervenção, consensual-
mente reconhecida como a maior unidade monologal, pode, segundo Adam, «fort bien s’étendre en lon-
gueur et être constituée par un récit complet ou par une séquence d’explication enchâssée en un point de
l’échange en cours.» [ADAM, 1992: 158] Kerbrat-Orecchioni dedica um capítulo à complexidade dos
turnos de fala, em KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: cap. III e 1996: cap. V.
47

no seu sentido habitual: «il désigne simplement le troisième temps de l’échange, par
lequel L1 clôt cet échange qu’il a lui-même ouvert, en signalant à L2 qu’il a bien enre-
gistré son intervention réactive, et qu’il la juge satisfaisante.»35

intervenção iniciativa – L1
binária
intervenção reactiva – L2
SEQUÊNCIA FÁTICA
intervenção iniciativa – L1
ternária intervenção reactiva – L2
intervenção avaliativa – L1

FIG. 4 – Composição duma sequência ou troca fática (ou transaccional).

A realização duma intervenção avaliativa vai desde a retoma em eco da interven-


ção reactiva, ou parte dela, aos morfemas carregados de maior ou menor valor emotivo
ou valorativo, incluindo as reacções de natureza paraverbal ou mesmo não verbal.
Kerbrat-Orecchioni entende que as sequências ternárias são sequências compos-
tas por duas trocas verbais «imbricadas». A intervenção reactiva, por um lado, fecha a
primeira troca verbal e, por outro, abre uma segunda, a que uma nova intervenção do
primeiro locutor, desta vez reactiva, põe termo.36 Ter-se-á, então, utilizando-se um
exemplo trivial, a sequência apresentada na FIG. 5, em lugar da apresentada na FIG. 6.

L1–Que horas são? – Intervenção iniciativa -[a]


L2–Dez e meia. – Intervenção reactiva - [a’]--- Intervenção iniciativa ---------[b]
L1–Obrigado! – Intervenção reactiva ----------[b’]

FIG. 5 – Sequência de intervenções «imbricadas».

L1– Que horas são? – Intervenção iniciativa -- [a]


L2 – Dez e meia. – Intervenção reactiva --- [a’]
L1– Obrigado! – Intervenção avaliativa - [a’’]

FIG. 6 – Sequência ternária de intervenções.

35
KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 236. L1 = Locutor 1; L2 = Locutor 2.
36
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 239-240.
48

Cada intervenção, seja ela fática ou transaccional, é constituída por um ou mais


actos de discurso, como vimos. Directa ou indirectamente realizados, apresentam, dentro
de cada intervenção, estatuto interlocutivo e pragmático diferente, desempenhando papel
importante na organização do texto colectivo, bem como ao nível das relações interpes-
soais que se tem ou deseja ter.
Os actos de discurso realizados ao longo duma interacção verbal podem ser,
como se verá, de maior ou menor cortesia e/ou descortesia. Haverkate propõe mesmo
uma classificação em «actos corteses» e «actos não corteses» (estes últimos a não enten-
der simplesmente como «actos descorteses»), consoante os efeitos interaccionais de uns
e de outros tenham como «finalidade intrínseca», respectivamente, beneficiar ou não
beneficiar o interlocutor. Na categoria dos primeiros, o professor de linguística espanho-
la na Universidade de Amsterdão coloca, como exemplos «prototípicos», «los actos
expresivos y comisivos» e na categoria dos segundos «los actos asertivos y exhortati-
vos».37
Em cada intervenção, além das classificações ilocutórias, segundo as teorias
«clássicas» ou outras, distinguem-se, dentro de cada intervenção, actos directores de
actos subordinados. Um acto é director quando encerra o sentido geral duma interven-
ção, ou seja, a sua força ilocutória. Os actos subordinados destinam-se a apoiar, justifi-
car, preparar, argumentar (a favor ou contra) o objectivo do acto director. Tal acto direc-
tor não pode, por isso, deixar de ser constituinte duma intervenção.38
É geralmente o acto director que o interlocutor toma em consideração na inter-
venção reactiva, se quiser manter e/ou situar uma conversa no quadro da cortesia, ou no
quadro da descortesia. Como se verá, não é indiferente tomar como tema de intervenção
reactiva o acto director ou o acto subordinado duma intervenção iniciativa, tanto ao nível
da sequencialização e configuração, como das relações de maior ou menor cortesia ou
descortesia que se tem ou deseja ter ou não com o interlocutor. Formas de maior ou
menor descortesia (depende do contexto) são, por exemplo, aqueles segmentos de des-
conversa, em que o interlocutor não toma em consideração, na intervenção reactiva, o
acto director do locutor. Ou nenhum dos actos que constituem a intervenção iniciativa,
37
HAVERKATE, 1994: 77.
38
Cf. MOESCHLER, 1985: 88. Esta classificação não invalida a classificação dos actos de discurso, seja a
que foi proposta pelos filósofos da linguagem e seus continuadores [cf., AUSTIN, 1970; SEARLE, 1982:
39-70; e VANDERVEKEN, 1988, entre outros], seja a que foi proposta por linguistas que se inspiram,
sobretudo, nos tipos de frase [cf. DURRER, 1994: 76-77]. Merece especial referência a nova classificação
de Vernant, assente na natureza interaccional do discurso. [Cf. VERNANT, 1997: 49-58.] Para uma sínte-
se das principais classificações das propostas ditas «clássicas» e de natureza «mais linguística», cf.
RODRIGUES, 1994: 75-90.
49

agravando desse modo ainda mais a interacção ao nível das relações interpessoais e de
cortesia, situação que, a continuar sem reparação, pode levar à ruptura, mais ou menos
imediata, pela redução ao silêncio ou pela manifestação explícita de desacordo. Os
seguintes comentários podem manifestar tais situações: (1) «Não desconverses»; (2)
«Contigo não se pode / não se consegue / é impossível / conversar / falar.» Mas se (1) é
ainda uma tentativa de recuperação do equilíbrio perdido ou em riscos de se perder, uma
proposta de renegociação de direitos e deveres discursivos e conversacionais, já (2)
aponta mais para a «morte» da conversa ou diálogo.
Representamos, no diagrama seguinte,39 a estrutura prototípica duma interacção
verbal em sentido estrito, cuja realização, total ou parcial, e complexidade, maior ou
menor, se encontra em cada uma das práticas discursivo-textuais construídas ou em
construção pelos interlocutores / interactantes ou co-agentes (depois de Vernant40), con-
soante os contextos de ocorrência.

INTERACÇÃO VERBAL

SEQUÊNCIAS

SFA ST SFF

ST1 STn

TVFA TVt1 TVtn TVt1 TVtn TVFF

Ii Ir Ii Ir Ii Ir Ii Ir Ii Ir Ii Ir

Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As Ad As

LEGENDA: SFA = sequência fática de abertura; SFF = sequência fática de fecho; ST = sequência tran-
saccional; TVFA = troca verbal fática de abertura; TVFF = troca verbal fática de fecho;
TVt = troca verbal (transaccional); Ii = intervenção iniciativa; Ir = Intervenção reactiva;
Ad = acto director; As = acto subordinado.

FIG. 7 – Estrutura hierárquica geral (teórica) das unidades duma interacção verbal.

39
De referir que a complexidade das relações humanas afecta sempre as interacções verbais que elas pro-
movem e/ou que delas resultam, devido à dinâmica e à dialéctica que as percorre. Os esquemas que procu-
rem representá-las serão sempre, por isso, incompletos e imperfeitos.
40
A propósito, é de referir que as formas co-acção e co-agentes mostram, em nosso entender, os aspectos,
aparentemente contraditórios, de cooperação e persuasão que qualquer interacção verbal, em sentido estri-
to ou alargado, encerra, como elementos fundamentais da sua definição.
50

Cabe ainda efectuar as seguintes observações. Os actos da SFA podem ocorrer


integrados nas primeiras intervenções da primeira TVt, da primeira (se houver mais) ST,
podendo ainda anteceder ou não os actos directores e subordinados das primeiras Ii e Ir
transaccionais. Pode até acontecer que uma SFA tenha lugar, se bem que mais raramen-
te, no decurso duma ST. Quando ocorre depois do Ad transaccional, o locutor, para ser
cortês, pede desculpa por não ter, por exemplo, cumprimentado previamente o(s) alocu-
tário(s) e/ou pela invasão do território ou face negativa41 do(s) mesmo(s).
Eis um caso (de outros falaremos mais à frente) de como a cortesia, ou a falta
dela, tem influência, desde logo, na sequencialização das unidades mínimas do discurso
e do texto duma conversa, o que revela, ao mesmo tempo, um menor ou insuficiente
domínio da competência discursivo-textual da parte do co-agente. Como observa Antó-
nia Coutinho, «a organização dos textos em termos que se podem dizer, genericamente,
de ordem sequencial» é «um aspecto particularmente significativo da competência tex-
tual.»42 É também, a nosso ver, um domínio que cai no âmbito da competência de corte-
sia. Além disso, a SFF pode, igualmente, estar integrada nas intervenções da última TVt.
Cada intervenção, por outro lado, pode ser constituída apenas por um Ad. Neste
caso, ou se está perante contextos em que cada Ii do locutor não tem em consideração
cada Ir do alocutário, como acontece em provas ou entrevistas (sobretudo escritas), onde
o locutor se limita a formular perguntas ou questões previamente elaboradas, cuja
sequência e conteúdo nada têm a ver com as respostas a dar pelo(s) alocutário(s), ou se
passa em contextos onde a relação entre os interlocutores é muito pouco amistosa, ou,
então, porque são exigidas acções rápidas e urgentes. Mas se neste caso, a eficácia e
urgência não se compadecem com o recurso a formas mais ou menos desenvolvidas de
cortesia, já nos casos anteriores poderemos estar perante actos de maior ou menor des-
cortesia. Um coisa, porém, é certa: uma conversa assente apenas nos actos directores
está condenada a ser, mais troca menos troca, de curta duração e descortês.
Como dissemos, uma IV pode ser constituída apenas por uma ST e apenas por
uma TV. Tal não é, porém, o que geralmente acontece. Uma ST pode ser constituída por
várias TVt (por isso a indicação TVtn) e uma IV é formada, além das fáticas, por uma ou
várias ST (daí a indicação STn). Umas e outras podem estar sequenciadas e/ou articula-

41
Esclarecemos, infra, estas noções, no cap. II, 1.3. e cap. III.
42
COUTINHO, 1999 : 117. Sobre a problemática da noção de sequência textual, com análise da noção
nos principais estudiosos, cf. id.: 117-137.
51

das por coordenação ou encaixe. No casos de encaixe, haverá uma ST ou uma TVt
encaixante (ou mais) e uma ST ou uma TVt encaixada (ou mais).43

2. Interacção verbal em sentido lato

Há uma outra concepção de interacção verbal, em sentido lato, cuja primeira


formulação os estudiosos atribuem a Bakhtine.44 Encontram-se, porém, em Bally, lin-
guista suíço trinta mais velho que o pensador russo, as primeiras reflexões claras sobre a
problemática da interacção verbal, incluindo aspectos da cortesia verbal, e depois em
Benveniste, na sua teoria da enunciação. É, porém, na teoria da esquematização, desen-
volvida por Grize, no quadro da Lógica Natural, que se encontra, como bem observa
Adam, «un modèle de l’interaction verbale assez économique et assez fin pour présenter
une alternative intéressante aux schémas classiques de la communication.»45

2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally)

Bally, discípulo de Saussure e um dos editores do Curso de Linguística Geral


(1916),46 não teve conhecimento, certamente, do pensamento linguístico de Bakhtine,
mas o contrário aconteceu. O pensador russo critica a explicação que Bally dá do discur-
so indirecto livre, por considerá-lo «uma simples variante estilística».47 É possível, toda-
via, que Bakhtine só tenha lido o Curso e os artigos em que Bally aborda esta questão,

43
Para a representação esquemática das interacções verbais e respectiva descrição, baseámo-nos em
KERBRAT-ORECCHIONI, 1990 e ADAM, 1992: 153-163.
44
Por considerarmos de pouca importância, para este nosso trabalho, a controvérsia em torno de quem é
verdadeiramente o autor de alguns estudos publicados pelos membros do chamado «Círculo Bakhtine»,
optámos por referir sempre o nome do seu principal elemento, mesmo quando os textos citados ou referi-
dos sejam atribuídos a este e a outro elemento do referido «Círculo», em particular Volochinov, dado
como coautor de Marxismo e Filosofia da Linguagem e de outros estudos. Sobre esta questão, parece-nos
continuar válida a observação de Todorov, segundo a qual, não se podendo apagar os nomes de Volochi-
nov e de Medvedev de alguns títulos, é contudo impossível não reconhecer a influência de Bakhtine na
«unidade de pensamento» de todos esses textos. Sobre a biografia de Maikhaïl Mikhaïlovitch Bakhtine
(1895-1975), o seu «Círculo» e esta controvérsia, cf., entre outros, JAKOBSON, 19926: 9-10; TODO-
ROV, 1981: 13-26; YAGUELO, 19926: 11-19 e ZAVALA, 1991:11-15. Além de Bakhtine, os outros
principais elementos do círculo foram Pavel Nikolaévich Medvedev (1891-1938) e Valérian [Zaval escre-
ve Valentin] Nikolaévich Volochinov [ou Voloshinov] (1894 ou 1895-1936). A propósito, refira-se que as
edições brasileiras escrevem Bakhtin e as edições espanholas Bajtin. Nós escreveremos sempre Bakhtine,
excepto nas citações das obras consultadas, cuja grafia adoptada nas respectivas edições seguiremos.
45
ADAM, 1999: 101.
46
Para uma biobibliografia e sobretudo uma introdução à linguística de Bally, cf. DURRER, 1998.
47
BAHKTIN (VOLOCHINOV), 19926: 84 e 155. (Servimo-nos da tradução portuguesa, edição brasileira,
cuja grafia respeitamos, nas citações.) Bakhtine critica a Bally sobretudo o «objetivismo abstrato em lin-
güística», porque «hipostasia e torna vivas as formas da língua, extraídas, graças a uma abstração, das
ocorrências concretas de discurso (na prática cotidiana, na literatura, nas ciências, etc.» [Id.: 179]
52

pois são os únicos estudos que refere do autor suíço.48 Mas Bally publicou também
vários outros estudos linguísticos, com destaque para Le Langage et la Vie, em 1913,
muito corrigido e aumentado em edições posteriores pelo próprio autor.49 É sobretudo
neste livro que Bally tece reflexões que parecem aproximá-lo mais de Bakhtine (não
obstante as críticas que este dirige àquele) do que de Saussure. Estas reflexões prendem-
se com o valor social da linguagem, antecipando áreas de estudo que só anos mais tarde
começariam a merecer o interesse dos linguistas, a saber, o discurso como acção e inte-
racção, os fenómenos verbais da cortesia e das emoções, (segundo) uma nova perspecti-
va retórica, pois que situada ao nível da linguagem corrente e sobretudo oral.50

«Pour un observateur superficiel, elle [la conversation la plus anodine] n’offre rien de
particulier; mais examinez de plus près les procédés employés: la langue apparaîtra
comme une arme que chaque interlocuteur manie en vue de l’action, pour imposer sa
pensée personnelle. La langue de conversation est régie par une rhétorique instinctive
et pratique; elle use, à sa manière, des procédés de l’éloquence, ou, pour mieux dire,
c’est à elle que l’éloquence a emprunté ses procédés. En effet, pour l’énoncé des
moindres choses, il faut que la pensée devienne une action et s’impose par le langage; il
faut que celui-ci se fasse tantôt pénétrant, incisif, énergique, volontaire, tantôt vi-
brant, passionné, tantôt humble et suppliant, souvent même hypocrite.»51

Quanto às relações que o locutor estabelece com o enunciado, a realidade que


(n)ele representa e o seu interlocutor, e as relações intercondicionantes de todos estes
elementos, ou seja, o uso concreto da língua como interacção verbal, em sentido estrito

48
Quanto aos artigos, trata-se de dois estudos que Bally publicou, em 1912 e 1914, em Germanisch-
Roamnisch Monatsschrift, IV, intitulados, respectivamente, «Le style indirect libre en français moderne» e
«Figures de pensée et formes linguistiques». [Cf. BAKHTIN (VOLOCHINOV), 19926: 177-178 e DUR-
RER, 1998 : 9].
49
Em 1925, sob o título de Le Langage et la Vie, o autor reuniu o estudo que, sob o mesmo título, publica-
ra em 1913, já aí com importantes modificações, bem como outros artigos. O próprio autor considera, por
isso, que a edição de 1925 é a primeira. Novas e profundas alterações foram introduzidas também na
segunda edição, publicada em 1935, conforme indica o autor no respectivo prefácio. Durrer escreve que
esta obra «constitue probablement, parmi les ouvrages de Bally, celui qui est à l’heure actuelle le plus lu et
le plus cité». Trata-se dum texto que é «particulièrement intéressant dans la mesure où Bally l’a proposé
comme introduction vulgarisatrice aux grands thèmes de ses recherches et plus spécifiquement à son ou-
vrage majeur, Linguistique Générale et Linguistique Française [1932], qui représente son texte théorique
le plus abouti». [DURRER, 1998 : 16]
50
Quanto ao crescente interesse pelos fenómenos das emoções, na área da Linguística Pragmática, cf.
PLANTIN et al. (dir.), 2000. Trata-se de volume (acompanhado de CD Rom) que reúne as comunicações
apresentadas no colóquio intitulado Les Émotions dans les Interactions, realizado na Universidade de
Lyon 2, nos dias 17 a 19 de Setembro de 1997. Sobre a importância precursora de Bally no estudo das
emoções, como uma das partes da Linguística, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 2000a: 34-36.
51
BALLY, 19653: 21. Negritos da nossa responsabilidade.
53

sobretudo, o autor tece considerações nos domínios da Estilística Linguística, da Enun-


ciação e da Pragmática, que só muito recentemente encontramos desenvolvidas e siste-
matizadas no quadro de diferentes teorias.52 Por exemplo, nas teorias das faces, das dis-
tâncias (taxémicas e proxémicas), da cortesia linguística53 e da teoria grizeana da comu-
nicação. Segundo o linguista, a presença ou a simples representação mental do interlocu-
tor são coercivas sobre o acto de linguagem. Por isso,

«en parlant avec quelqu’un, ou en parlant de lui, je ne puis m’empêcher de me représen-


ter les relations particulières (familières, correctes, obligées, officielles) qui existent
entre cette personne et moi; involontairement je pense, non seulement à l’action qu’elle
peut exercer sur moi; je me représente son âge, son sexe, son rang, le milieu social au-
quel elle appartient; toutes ces considérations peuvent modifier le choix de mes expres-
sions et me faire éviter tout ce qui pourrait détonner, froisser, chagriner. Au besoin le
langage se fait réservé, prudent; il pratique l’atténuation et l’euphémisme, il glisse au
lieu d’appuyer.»54

Logicamente que estas reflexões só podiam levar Bally a reconhecer, implícita e


explicitamente, que a realização destas modalidades discursivo-textuais («nuances» esti-
lísticas, segundo ele) se encontram realizadas, em grande número, nas «formas ditas de
cortesia» (a expressão também é dele), exemplos que são do «instinto de sociabilidade»
do homem.55 Implicitamente, a propósito do «carácter activo» da linguagem, como
vimos acima.56 Explicitamente, quando exemplifica e comenta os diferentes modos de,
por exemplo, atenuar uma ordem (que para nós, no exemplo, é um convite) ou uma críti-
ca:

«Ainsi, au lieu du simple: Entrez! On dira : Veuillez entrer! – Donnez-vous la peine


d’entrer! – Faites-moi le plaisir d’entrer! Au lieu de Vous mentez! l’hypocrisie, la peur,

52
A importância e actualidade das reflexões linguísticas de Bally são reconhecidas por vários autores
contemporâneos, situados em diferentes áreas de investigação, segundo refere Durrer: «Aujourd’hui, des
chercheurs d’horizons aussi différents que Pierre Bourdieu, André Greene, Oswald Ducrot, Jean-Louis
Chiss, Andrè Meunier ou Jean-Michel Adam reconnaissent l’apport essentiel de Charles Bally et voient en
lui un des fondateurs des théories de l’énonciation et de la pragmatique française.» [DURRER, 1998 : 12]
53
Sobre estas teorias, ver, infra, caps. II e III.
54
BALLY, 19653: 21.
55
Cf. id.: 21-22.
56
Ver, supra, ou BALLY, 19653: 18.
54

les égards qu’on doit à quelqu’un incitent à dire: Vous exagérez ! – Ce n’est pas tout à
fait exact, etc.»57
Estamos claramente no domínio da cortesia linguística, a qual, segundo Bally,
«soit sincère ou hypocrite, elle contraint l’individu à un contrôle constant sur lui-même,
à une observation attentive de ceux à qui il a affaire».58 Apesar do linguista não conside-
rar a cortesia verbal um «fenómeno primário», uma vez que ela impede, até certo ponto,
conforme diz, a livre expressão individual, observa que ela tem não apenas

«un vocabulaire (exemple : "une personne forte" pour "une personne corpulente" […]),
une phraséologie (A qui ai-je l’honneur de parler ? […]), une titulature symbolique de la
hiérarchie sociale (comparez : Colonel ! Mon colonel ! Monsieur le colonel !); mais la
politesse imprime sa marque sur des parties profondes de la grammaire ; on peut citer en
français le pluriel de politesse, l’emploi de la troisième personne pour la seconde, toute
une gamme de nuances modales, par exemple l’emploi du futur et du conditionnel dans
les interrogations impératives (Vous me direz tout, n’est-ce pas ? Viendrez-vous ? Me
passeriez-vous le pain ? […]). / Beaucoup de ces tours ont été créés avec intention; leur
emploi demande souvent un choix minutieux, et, s’il est fautif, il entraîne la sanction du
ridicule».59

Ainda que nela não se encontre uma explícita noção de cooperação, devido, cer-
tamente, ao entendimento de que a linguagem é um combate, na teoria de Bally existe
uma das primeiras concepções (se não a primeira) segundo as quais a cortesia verbal se
encontra em todos os domínios da linguística. Tal como defendem Brown & Levinson e
Kerbrat-Orecchioni e seus continuadores, bem como Pottier e Carreira. Estes segundo
uma perspectiva ainda mais ampla, que vai do sistema linguístico e gramatical às práti-
cas discursivo-textuais.60

57
Id.: 22. Tendo em conta estas e outras «variações estilísticas» e os comentários que a seu propósito
Bally tece, Bourdieu situa-as no âmbito das tensões sociais existentes no mercado simbólico e suas
sanções, referindo que é também «todo o trabalho da cortesia» que está em jogo, na adequação da forma
do discurso às relações hierárquicas existentes na sociedade: «La forme, et l’information qu’elle informe,
condensent et symbolisent toute la structure de la relation sociale dont elles tiennent leur existence et leur
efficience (la fameuse illocutionary force): ce que l’on appelle tact ou doigté consiste dans l’art de prendre
acte de la position relative de l’émetteur et du récepteur dans la hiérarchie des différentes espèces de capi-
tal, mais aussi du sexe et de l’âge, et des limites qui se trouvent inscrites dans cette relation et de trans-
gression rituellement, si c’est nécessaire, grâce au travail d’euphémisation.» [BOURDIEU, 1982 : 80-81]
58
BALLY, 19653: 104.
59
Id., ibid.
60
Sobre estas teorias, ver, infra, respectivamente, caps. II, III e V.
55

2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine)

A noção de dialogismo é certamente aquela que mais fortuna conheceu, depois


de introduzida por Bakhtine, no âmbito das ciências humanas, em geral, e dos estudos
literários e linguísticos, em particular. Este pensador russo considera que os discursos,
orais ou escritos, quando não são diálogos em sentido estrito, são-no em sentido lato,
isto é, são sempre dialógicos. Todos os discursos e todas as interacções verbais contex-
tualizadas são essencialmente dialógicos, consequência natural do carácter profunda-
mente social do exercício da actividade da linguagem:

«A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas


lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de
sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enun-
ciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental
da língua.» 61

Bakhtine propõe, por isso, uma nova definição de diálogo, mais ampla, dialógica,
que inclui as noções tradicionais tanto de diálogo como de monólogo:

«O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é
verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a
palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo
que seja.»62

No que ao nosso objecto de estudo diz respeito, interessa-nos, agora, as reflexões


do autor sobre, por um lado, a enunciação discursivo-textual, como interacção verbal, e,
por outro, a importância do contexto nas suas concretizações.63 Num caso como noutro,
são realçadas as relações sociais entre o locutor e o(s) seu(s) interlocutor(es), real(is) ou
potencial(is) e as suas referências mais ou menos explícitas a questões da cortesia / des-
cortesia verbal, paraverbal e não verbal.

61
BAHKTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 123. Subjaz a esta reflexão uma crítica à teoria linguística de
Saussure, cuja importância o autor russo não deixa, todavia, de reconhecer. Cf. id.: 84.
62
BAHKTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 123. Veja-se também BAKHTIN, 1992: 298.
63
Mais à frente, regressaremos a Bakhtine, para nos referirmos a dois outros aspectos essenciais do seu
pensamento sobre a linguagem e o sujeito – a polifonia / pluridiscursivade e a alteridade.
56

Para Bakhtine, a enunciação é o resultado da interacção entre dois indivíduos


socialmente organizados, porque a palavra é sempre dirigida a um interlocutor e, por
isso, «ela é função da pessoa desse interlocutor», variando conforme «se tratar de uma
pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia
social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe,
marido, etc.)».64 O autor chama a atenção, na continuação imediata da citação anterior,
para o facto de não haver um «interlocutor abstracto», uma vez que há sempre, pelo
menos, um interlocutor hipotético, «representante médio do grupo social ao qual perten-
ce o locutor»,65 uma representação também construída pelo locutor, com base na vida
sociocultural do tempo e lugar em que um e outro vivem, incluindo os discursos / textos
já produzidos. O dialogismo inclui também esta dimensão interdiscursiva e intertextual,
como factores contextuais de natureza linguística, social, ideológica, histórica e cultural.

«Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na reali-
dade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social concreto
que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor além disso um certo horizon-
te social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da
época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa
ciência, da nossa moral, do nosso direito.»66

Segundo observa o autor, uma das características essenciais dum enunciado, por
oposição às unidades da língua (palavra e oração), é ele ter um autor (locutor) e correla-
tivamente um destinatário, podendo este

«ser o parceiro e interlocutor direto do diálogo na vida cotidiana, [...] o conjunto dife-
renciado de especialistas em alguma área especializada da comunicação cultural, [...] o
auditório diferenciado dos contemporâneos, dos partidários, dos adversários e inimigos,
dos subalternos, dos chefes, dos inferiores, dos superiores, dos próximos, dos estranhos,

64
BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 112. Repare-se, ainda, na seguinte passagem, onde o autor consi-
dera que qualquer enunciação, «mesmo que não se trate de uma informação factual», é, «na sua totalidade
[...] socialmente dirigida»: «Antes de mais nada, ela [a enunciação] é determinada da maneira mais ime-
diata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem preci-
sa; a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela, por exemplo a exi-
gência ou a solicitude, a afirmação de direitos ou a prece pedindo graça, um estilo rebuscado ou simples, a
segurança ou timidez, etc. A situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo
ocasionais da enunciação.» [Id.: 113-114. Cf. também id.: 124]
65
Id.: 112.
66
Id.: 123.
57

etc.; pode até ser, de modo absolutamente indeterminado, o outro não concretizado (é o
caso de todas as espécies de enunciados monológicos de tipo emocional).»67

A atenção, a nível relacional, isto é, de cortesia ou descortesia, que cada autor


(falando ou escrevendo) tem (não pode deixar de ter) em relação a cada um dos seus
destinatários, consoante os contextos («esferas da vida», diz Bakhtine), vai repercutir-se
também, inevitavelmente, nos géneros e nos estilos discursivos que ele vai ou está já a
utilizar:

«Nas esferas da vida cotidiana ou da vida oficial, a situação social, a posição e a impor-
tância do destinatário repercutem na comunicação verbal de um modo todo especial. A
estrutura da sociedade em classes introduz nos gêneros do discurso e nos estilos uma
extraordinária diferenciação que se opera de acordo com o título, a posição, a categoria,
a importância conferida pela fortuna privada ou pela notoriedade pública, pela idade do
destinatário e, de modo correlato, de acordo com a situação do próprio locutor (ou escri-
tor).»68

Em todo e qualquer discurso existe, assim, uma «orientação social» que reflecte
as relações interpessoais existentes ou desejadas entre aquele que fala ou escreve e aque-
le que o ouve ou lê, relações que se manifestam através de comportamentos não verbais,
paraverbais, verbais e discursivo-textuais. Comportamentos, uns e outros, que Bakhtine
situa claramente no âmbito da cortesia, que começam nos gestos e na postura do corpo, e
continuam na entoação, na escolha do assunto, do vocabulário, na organização intra e
interfrásica, no nível de língua utilizado, na composição e configuração do todo discur-
sivo-textual.
Na sequência da noção de dialogismo, há sempre, em qualquer discurso, porque
«orienté vers quelqu’un qui soit capable de le comprendre et d’y donner une réponse,
réelle ou virtuelle», uma «orientação social», isto é, uma «dépendance de l’énoncé à
l’égard du poids hiérarchique et sociale de l’auditoire».69 Orientação que «est précisé-
ment l’une de ces forces vivantes et constitutives qui, en même temps qu’elles organi-
sent le contexte de l’énoncé – la situation –, déterminent aussi sa forme stylistique et sa

67
Id.: 320-321.
68
BAKHTIN, 1992 : 322.
69
BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 298. A orientação social bakhtiniana corresponde aos factores
sociais, como seja, classe, fortuna, função, etc. [Cf. id.: 298-299]
58

structure strictement grammaticale.» Tal orientação manifesta-se, desde logo, nos aspec-
tos exteriores e físicos da conduta social – os gestos, a postura do corpo, o tom da voz –
que acompanham sempre uma produção discursiva, comportamentos extraverbais que
são a expressão das «boas maneiras» do locutor relativamente ao seu interlocutor, «qu’il
soit réellement présent ou simplement supposé».70 Esta orientação e consideração pelo
outro não se fica, contudo, por aí. As «boas maneiras» («la façon de se tenir en socié-
té»,71 «l’expression gestuelle de l’orientation sociale de l’énoncé»72) se determinam, em
primeiro lugar, a entoação, é através desta, enquanto «l’expression fonique de
l’évaluation sociale»,73 que «ont lieu le choix et la mise en ordre des mots, et que
l’énoncé dans son ensemble prend son sens».74
Ter ou não ter «boas maneiras», na realização duma qualquer interacção verbal,
é, no fundo, observa Bakhtine, uma questão de educação,75 mas que nós preferimos
designar como uma competência discursivo-textual de cortesia, dentro da macrocompe-
tência de comunicação, uma e outra adquiridas e desenvolvidas, naturalmente, em con-
textos socioeducativos formais e informais. Competência de cortesia que o pensador
russo, apesar de parecer situar sobretudo no domínio do gestual, também acaba por
reconhecer e mostrar ao analisar as «boas maneiras» paraverbais, verbais e discursivo-
textuais que Tchitchikov, protagonista de Almas Mortas, de Nicolai Gogol (1809-1852),
manifesta, consoante as diferenças sociais dos seus interlocutores e os objectivos que
pretende alcançar.76

70
Id.: 299.
71
Id.: ibid.
72
Id.: 306, nota 2.
73
Id.: 305.
74
Id.: 305. Bakhtine, partindo da noção musical de «tom» («c’est le ton qui fait la musique»), entende a
entoação dum enunciado como «son sens général, sa signification globale», tanto «dans la construction de
l’énoncé quotidien comme de l’énoncé littéraire.» [Id.: 304-305]
75
Bakhtine observa que «il ne faut pas oublier que l’éducation n’est elle-même nulle autre chose que
l’effort pour habituer l’homme à tenir constamment compte de son auditoire – on appelle cela “savoir se
tenir en société” -, à exprimer, par le geste et la mimique, mais de façon juste et avec tact, l’orientation
sociale de ses énoncés.» Mas se as «boas maneiras» consistem na consideração do estatuto do outro, as
«más» «reflètent l’absence de prise en compte de l’interlocuteur, la méconnaissance du lien social et hié-
rarchique qui existe entre le locuteur et l’auditeur, l’habitude, souvent inconsciente, de ne pas modifier
l’orientation sociale de ses énoncés – qu’ils soient exprimés par la parole ou par le geste – alors que les
conditions sociales et l’auditoire se trouvent modifiés.» [Id.: 300]
76
Cf. id.: 305-316, para verificação de análises que têm em consideração a entoação, a escolha das pala-
vras, a sua organização na frase e desta no discurso-texto, passando por aspectos estilísticos e níveis de
língua. Cf. também BAKHTIN, 1992: 323-325, onde o autor relaciona os géneros do discurso familiar e
íntimo com o tipo de relações interpessoais existentes, presumidas ou desejadas entre os interlocutores.
59

Bakhtine observa, por outro lado, embora sem lhe dar o desenvolvimento neces-
sário, que a não consideração do outro, do auditório, é também uma forma do locutor ter
pouco apreço por si próprio:

«un orateur qui s’écoute parler est un mauvais orateur; un professeur qui ne s’occupe
que ses notes est également un mauvais professeur. Ils désamorcent eux-mêmes l’impact
de leurs propos, ils brisent le lien vivant, le nature dialogique, qui les unit à leur audi-
toire et, ainsi, ils déprécient eux-mêmes leurs propres prestations.»77

Nesta ordem de ideias, a actividade discursivo-textual (oral ou escrita, corrente


ou estética, científica ou literária) não se situa apenas do lado do locutor, mas também
do lado do alocutário, o qual nunca é, por isso, um simples receptor passivo, um puro
receptáculo. A palavra tem duas faces, não as faces (conceito e imagem acústica) do
signo linguístico saussuriano,78 mas sim as faces sociais que condicionam qualquer acti-
vidade discursivo-textual.

«Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do
ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à colectividade. A
palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim
numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor.»79

Bakhtine não podia deixar, por isso, de se referir também ao «problema da com-
preensão» dos discursos, a qual só pode ser «activa e responsiva», «uma forma de diálo-
go», porque «está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra». Neste
sentido, compreender «é opor à palavra do locutor uma contrapalavra.»80 Não se pode
pensar em interacção verbal, sem se pressupor uma resposta do outro, que pode ser o
próprio, o interlocutor ou mesmo um «superdestinatário superior», «um terceiro invisí-

77
BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 293. Negritos da nossa responsabilidade.
78
Bakhtine, reconhece a importância da teoria de Ferdinand de Saussure e do seu Curso, mas critica-lhe
o «objetivismo abstrato», ao pôr em cena um locutor soberano, dono da sua língua e do discurso, sem ter
em consideração os aspectos sociais da linguagem. Cf. BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: caps. 4 e 5.
79
BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 113. Esta reflexão pode ser relacionado, até certo ponto, com a
teoria das faces de Goffman. Sobre esta teoria, ver, infra, cap. II, 1.3 e cap. III.
80
BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 131-132. Cf. também id.: 147 e BAKHTIN, 1992: 298.
60

vel, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participan-
tes do diálogo (os parceiros)».81 Por isso, a palavra / discurso «é um drama com três per-
sonagens»,82 porque ela / ele é «quase tudo na vida do homem»:83 é através dela / dele
que o homem participa «no grande diálogo da comunicação verbal.»84
Criticando o esquema saussuriano, em virtude da «imagem totalmente distorcida
[que dá] do processo complexo da comunicação verbal», transformando-a, por isso, em
«ficção científica», o autor observa:

«De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso


adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele con-
corda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar,
etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de
audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras
emitidas pelo locutor.»85

Esta compreensão responsiva, de natureza dinâmica, verifica-se também nos


«géneros secundários»,86 mesmo que pareça permanecer «muda», pois acaba sempre
por se manifestar, ainda que em «ação retardada».87 Esta atitude activa do destinatário
real ou imaginário, no processo de interacção comunicativa, é, por outro lado, um postu-
lado do próprio locutor ou escritor, pois o que cada um destes espera «não é uma com-
preensão passiva», porque, nesse caso, ela «por assim dizer, apenas duplicaria seu pen-
samento no espírito do outro». O que se espera «é uma resposta, uma concordância, uma
adesão, uma objeção, uma execução, etc.» Mais, remetendo para a intertextualidade,

81
BAKHTIN, 1992: 356.
82
Id.: 350.
83
Id.: 346.
84
Id.: 346. «O mais importante pensador soviético no domínio das ciências humanas» [TODOROV, 1981:
7] chega mesmo a admitir a possibilidade duma língua única, universal, «uma língua das línguas», a qual,
«claro, nunca pode tornar-se uma língua singular, uma das línguas». [BAKHTIN, 1992: 333]
85
Id.: 290. A concepção sausurriana de comunicação, criticada por Bakhtine, encontra-se em SAUSSU-
RE, 1984: 27-32.
86
«Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico,
etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais
evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação,
esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies,
que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao
se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma caracte-
rística particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados
alheios». [BAKHTIN, 1992: 281]
87
Id.: 291.
61

uma das dimensões do dialogismo (o diálogo entre textos próprios e alheios) e fazendo
adivinhar a noção grizeana de preconstruído cultural: 88

«O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro
locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe
não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enun-
ciados anteriores – emanantes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enuncia-
do está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles),
pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo da
cadeia muito complexa de outros enunciados.»89

É, por isso, através dos textos que concretizam géneros do discurso que, como
observa o autor, na complexidade interdisciplinar das suas reflexões,90 a comunicação
humana se realiza num conhecimento e reconhecimento mútuo de alteridades:

«O que nos interessa, nas ciências humanas, é a história do pensamento orientada para o
pensamento, o sentido, o significado do outro, que se manifestam e se apresentam ao
pesquisador somente em forma de texto. Quaisquer que sejam os objetivos de um estu-
do, o ponto de partida só pode ser o texto.»91

Texto que o autor entende essencialmente como um enunciado oral ou escrito,


cuja definição por isso, tendo em consideração o conjunto das reflexões expostas, pode-
mos encontrar na seguinte descrição:

«A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e


únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da actividade humana. O
enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada

88
Ver, neste capítulo, infra, 2.3.
89
Id.: 291.
90
«Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico sobretudo por razões negativas. Na verdade, não se
trata de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária, ou de alguma outra especialização. No
tocante às razões positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa nas zonas limítrofes, nas frontei-
ras de todas as disciplinas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento.» [Id.: 329]
91
O autor acrescenta que se interessa «unicamente» pelo «texto verbal», que vê como «o dado primário de
todas as disciplinas das ciências humanas, em particular nas áreas da lingüística, da filologia, da literatu-
ra.» [Id.: 330; cf. também id.: 341]
62

nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e


sobretudo, por sua construção composicional.»92

Acrescenta Bakhtine que é na fusão indissolúvel destes três elementos (conteúdo


temático, estilo e composição), marcados pela especificidade dum contexto de comuni-
cação, que se constrói um enunciado (discurso-texto, dizemos nós) como um todo. E de
novo entra em consideração o conceito de dialogismo, desta vez ao nível das relações
que, para serem compreensíveis, existem entre os enunciados concretos e os géneros de
discurso que os prefiguram.

«Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de


utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso
que denominamos gêneros do discurso.»93

Não vamos apresentar, apesar da sua importância e actualidade, as reflexões que


o autor russo faz sobre os géneros de discurso e as suas realizações concretas através de
enunciados (textos). Trata-se de questão sobre a qual se têm pronunciado, cada vez mais,
investigadores portugueses e estrangeiros, quer da área da Teoria da Literatura (onde
primeiro o problema se pôs e tentou resolver), quer da área linguística, em particular, da
Teoria e Análise do Discurso e/ou do Texto (onde só mais recentemente o problema
começou a ser estudado e analisado).94
Encontra-se referido, com relativa frequência, sobretudo em estudos de natureza
didáctica, que o objecto da Teoria ou Análise do Texto são as unidades superiores à frase
complexa. Em nosso entender, sendo certo que os textos são produtos sociodiscursivos
contextualmente construídos que, regra geral, apresentam uma composição e organiza-

92
Id.: 279.
93
Id., ibid.
94
Entre nós, merecem especial referência, no quadro teórico da Teoria do Texto, COUTINHO, 1999, e no
quadro teórico da Análise do Discurso, MENÉNDEZ, 1997. Convém referir que o primeiro estudo analisa
os géneros de discurso e os tipos de texto à luz das propostas mais recentes sobre a matéria, mas perspec-
tivando-os como sub-competências da competência textual, tanto ao nível da construção discursiva e tex-
tual (produção), como da sua reconstrução (recepção, interpretação). O estudo de Fernanda Menéndez é
uma aplicação da teoria e método da Análise do Discurso a «formações discursivas», ou melhor, metadis-
cursivas (porque de discursos de filólogos que reflectem sobre os usos mais correctos da língua se trata)
da segunda metade do século XVIII, nomeadamente ao nível do discurso polémico e normativo (escritos,
evidentemente), assim contribuindo também para uma análise da histórica da Língua Portuguesa, no qua-
dro daquela disciplina. Cabe referir ainda o trabalho académico e os estudos de OPITZ, FONSECA (J.) e
FONSECA (F.) [cf., infra, Bibliografia, além de outra], linguistas cuja investigação e obra devem ser
consideradas pioneiras, entre nós, nestas áreas. Entre os estrangeiros merecem especial referência ADAM,
1992 e 1999, no quadro da Análise Textual, e BRONCKART, 1996, no quadro da Psicolinguística.
63

ção superior à frase, isto é, em unidades situadas ao nível interfrásico e transfrásico, não
se pode esquecer que tais unidades são constituídas, por sua vez, também por unidades
menores, frases complexas e simples, sintagmas, lexemas, morfemas, etc., a entender,
naturalmente, como constituintes de unidades discursivo-textuais, com funções e estatu-
tos que não os estritamente linguísticos e gramaticais. Não podemos deixar, por isso, de
transcrever a seguinte reflexão de Bakhtine, cujo pensamento geral, apesar de não se
apresentar completamente coerente e sistematizado (ou talvez por isso mesmo), não dei-
xa de continuamente nos surpreender e apaixonar. Em princípio dos anos cinquenta, em
fragmento de estudo que não chegou a concluir, escreve:

«O estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância


fundamental para superar as noções simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam o
“fluxo verbal”, a comunicação, etc., noções estas que ainda persistem em nossa ciência
da linguagem. Irei mais longe: o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real
da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das uni-
dades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações.»95

2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste)

A vontade de con-vencer, numa prática discursivo-textual, releva da dimensão


argumentativa das interacções verbais que Benveniste (e muitos outros linguistas depois
dele) também encontra na definição de discurso, quer em sentido restrito quer em senti-
do lato, oral ou escrito, ficcional ou não. Definição que encerra também uma dimensão
dialógica, ainda que o linguista francês assim a não designe:

«É preciso entender discurso na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha
um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o
outro. É em primeiro lugar a diversidade dos discursos orais de qualquer natureza e de
qualquer nível, da conversa trivial à oração mais ornamentada. E é também a massa dos
escritos que reproduzem discursos orais ou que lhes tomam emprestados a construção e
os fins: correspondências, memórias, teatro, obras didáticas, enfim todos os gêneros nos

95
BAKHTINE, 1992 : 287.
64

quais alguém se dirige a alguém, se enuncia como locutor e organiza aquilo que diz na
categoria da pessoa.»96

Benveniste, no célebre artigo, publicado pela primeira vez em 1970 - «O apare-


lho formal da enunciação»97 - diz que esta consiste em «colocar em funcionamento a
língua por um ato individual de utilização», «um processo de apropriação [da lín-
gua]».98 O discurso (manifestação da enunciação sempre que alguém fala) é compreen-
dido, por isso, como «uma outra enunciação com retorno», isto é, como um diálogo, ou
seja, em termos bakhtinianos, uma interacção verbal dialógica.99 O locutor apropria-se
do aparelho formal da língua, mas ao fazê-lo assinala a sua posição, tanto através de
índices específicos como de procedimentos acessórios. Todavia, logo que assume a
posição de locutor, «ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de pre-
sença que ele atribua a este outro. Toda a enunciação é, explícita ou implicitamente, uma
alocução, ela postula um alocutário.»100
Neste sentido, o que caracteriza, em geral, a enunciação «é a acentuação da rela-
ção discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou colectivo».
Resulta daqui um «quadro figurativo da enunciação», que se aproxima também da
«estrutura do diálogo». Na enunciação, «cada locutor [é, por isso,] um co-locutor»:101

«Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias,


uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posi-
ção de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação.»102

Nessa estrutura cabe também o monólogo, «como uma variedade do diálogo»:

«O “monólogo” é um diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior”, entre


um eu locutor e um eu ouvinte. Às vezes, o eu locutor é o único a falar; o eu ouvinte
permanece entretanto presente; sua presença é necessária e suficiente para tornar signifi-

96
BENVENISTE, 19882: 267. (Edição francesa: 1966) Servimo-nos da tradução para Português (variante
brasileira), por não nos ter sido possível consultar edição na língua original.
97
O referido artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Langages, 1970, n.º 17: 12-18 e reproduzi-
do, depois, no volume II de Problémes, editado em 1974. (Na tradução por nós consultada, em BENVE-
NISTE, 1989: 81-90)
98
Id.: 82 e 84.
99
Cf. id.: 83-84.
100
Id.: 84.
101
BENVENISTE, 1989: 84.
102
Id.: 86.
65

cante a enunciação do eu locutor. Às vezes, também, o eu ouvinte intervém com uma


objeção, uma questão, uma dúvida, um insulto.»103

São claras as proximidades com a noção de dialogismo bakhtiniano, ao qual,


todavia, Benveniste não faz qualquer referência, bem como com reflexões de Bally, que
praticamente também ignora.104 (AQUI)

2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize)

A teoria da esquematização desenvolvida por Grize, no quadro da lógica natu-


ral,105 constitui, em nosso entender, uma proposta alternativa válida (e necessária) ao
tradicional esquema de comunicação jakobsoniano. Ao considerar a actividade discursi-
vo-textual como processo e como produto, o autor constrói um modelo coerente de des-
crição e análise, onde a comunicação (tanto oral como escrita) é entendida como interac-
ção verbal, onde são claramente reconhecidos e descritos os papéis e as funções dos nela
participam, bem como os factores de vária ordem que os condicionam. Além disso, este
modelo permite compreender a utilização das diferentes formas de cortesia e de descor-
tesia, nas diferentes práticas discurasivo-textuais. Deter-nos-emos, por isso, na sua apre-
sentação.
Na teoria da esquematização, fundada e desenvolvida pelo lógico e seus colabo-
radores, no Centre de Recherches Sémiologiques da Universidade de Neuchâtel, encon-
tramos sistematizados muitos aspectos abordados pelos autores anteriores, a par de
outros inovadores, os quais, no seu conjunto, permitem compreender e descrever com
mais rigor a complexidade da actividade discursivo-textual.
Não cabe, aqui e agora, um estudo comparativo dos vários pontos de contacto
entre as teorias anteriores e a teoria grizeana, apesar de considerarmos importante e
necessário que tal estudo seja levado a cabo. Quanto mais não seja, pela «história» do
conhecimento sobre o conhecimento que, neste domínio, segu(i)ndo perspectivas teóri-
103
Id.: 87-88.
104
Durrer estranha o facto de Benveniste continuar a ser visto como o linguista que promoveu o regresso
ao Homem, «le promoteur de l’approche énonciative», por um lado, e não encontrar, por outro, nos seus
textos «une quelconque allusion à une éventuelle influence des travaux du successeur de Saussure.»
[DURRER, 1998: 13-14.]
105
«En résume, on peut dire que la logique naturelle est la mise en évidence des opérations logico-dis-
cursives propres à engendrer une schématisation et qu’elle dégage deux familles d’opérations. Les unes la
caractérisent comme une logique des objets [“contenus”] et les autres comme une logique des sujets [“in-
terlocuteurs”].» GRIZE, 1996: 82. As indicações entre [ ] são palavras-chave que resultam da descrição
de cada uma das «lógicas» e que as poderão sintetizar. Cf. id.: cap. IV e 1990: 20-23.
66

cas e metodológicas distintas, se tem produzido. Tanto mais quanto Grize, dos três auto-
res que podemos considerar «fundadores» ou «precursores» da análise da linguagem
como interacção verbal, apenas cita Bakhtine e Benveniste, nunca referindo Bally, o que
não deixará de ser estranho, sabendo-se que ambos são suíços.
A Bakhtine vai Grize buscar a noção de dialogismo,106 e a Benveniste a confir-
mação da dimensão argumentativa do discurso, na medida em que este, enquanto tal,
implica não só um locutor e um alocutário, mas também a intenção do primeiro em que-
rer influenciar o segundo,107 aspecto já vincado por Bally, como vimos acima.

2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação

Para descrever e explicar a complexidade do fenómeno da comunicação humana,


face às insuficiências do conhecido modelo de Jakobson,108 o lógico de Neuchâtel
desenvolveu uma nova teoria que tem como principal fundamento a noção de esquema-
tização discursiva, porque nela se encontram reunidas, conforme diz, as ideias de repre-
sentação, de comunicação e de lógica. Daí, a definição:

«Une schématisation est une organisation de connaissances dont le locuteur prend cons-
cience en même temps qu’il les met en forme pour les communiquer.»109

Esquematizar é, por isso, uma actividade de pensamento ou cognitiva que se


manifesta em discurso situado, a entender como processo, que se concretiza em textos, a
entender como resultado. Falar e escrever, isto é, construir um discurso oral ou escrito, é
sempre, por isso, «une activité créatrice qui donne naissance à une schématisation»,110
que, enquanto processo, consiste «[dans] la création continue de sens à partir de la signi-
fication des termes utilisés» e, enquanto resultado, «quelque chose qui est placé devant le
destinataire, un spectacle qui lui est donné à voir, dans l’espoir qu’il le regarde.»111 Daí
que esquematizar um aspecto da realidade, construir uma representação discursiva dum

106
Cf. GRIZE, 1990: 28 e 1996: 61. Todavia, o autor cita Bakhtine (Voloshinov), via Todorov, quanto à
noção de dialogismo que adopta. [Cf. TODOROV, 1981: 292]
107
Cf. GRIZE, 1996 : 5. O autor cita BENVENISTE, 1988: 267.
108
Cf. JAKOBSON, 1963: 213-220.
109
GRIZE, 1996 : 143. Cf. também id.: 68 e 79.
110
GRIZE, 1990: 35.
111
GRIZE, 1996: 69. Cf. também 1990: 35 e 36.
67

microuniverso, ficcional ou não, é sempre também um acto semiótico, porque é, confor-


me refere, dar a ver.112
Comunicar é, assim, mais que informar, é também «pôr em comum» e sobretudo
«cooperar», por isso, interagir dialogal e dialogicamente.113 Grize propõe um novo
esquema que sintetiza um novo modelo teórico da comunicação, onde a noção de ima-
gem ocupa uma posição central (que não apenas ao nível do desenho representado), con-
forme reproduzimos na figura seguinte (FIG. 8) e a seguir descreveremos.

Situation d’interlocution

Place du locuteur Place de l’auditeur

Schématisation
A im(A), im(B), im(T) B
construit reconstruit

en fonction de en fonction de ce qui


PCC, rep, finalité est proposé, de PCC,
rep, finalité

FIG. 8 – Esquema da comunicação, segundo GRIZE, 1996: 68.

O essencial deste esquema pode encontrar-se resumido na seguinte descrição:

«si dans une situation donnée, un locuteur A adresse un discours à un autre locuteur vir-
tuel B, je dirai que A propose une schématisation à B, qu’il construit un micro-univers
devant B, univers qui se veut vraisemblable pour B.»114

Em qualquer situação de interlocução, um locutor e o alocutário ocupam, alterna-


damente, os lugares A e B, na construção e reconstrução (não codificação e decodifica-
ção, como no «circuito» tradicional) duma esquematização, em função dos preconstruí-
dos culturais (PCC) que cada (inter)locutor possui, bem como das respectivas represen-
tações (rep) e finalidades. Estas actividades e dados não são completamente simétricos,
uma vez que a finalidade de B nunca é igual à de A e, além disso, sendo A a tomar a ini-

112
Cf. GRIZE, 1996: 69 e 1990: 37.
113
Cf. GRIZE, 1996 : 57 e 61; 1990 : 28.
114
GRIZE, 1982: 172. Cf. também 1990: 29.
68

ciativa da comunicação (a começar uma esquematização), B fica fortemente constrangi-


do, na sua actividade de reconstrução, por aquilo que lhe é proposto no início e no decur-
so do discurso.115 Depois, porque nem os PCC, nem as rep, nem as competências são
iguais. Por isso, «la reconstruction d’une schématisation ne sera jamais véritablement
isomorphe à sa construction», pela simples razão (que nunca será assim tão simples
quanto se diz) de que «chaque individu réel est unique».116

«Les partenaires vrais d’une communication ne sont pas des machines issues d’un même
moule. Ce sont des individus avec leur vécu personnel, leur propre histoire, des individus
situés dans des contextes sociaux toujours un peu différents les uns des autres.»117

Para que haja, todavia, comunicação, tal como vem sendo descrita e deve ser
entendida, na sua complexidade, um mínimo de acordo é necessário entre os interlocuto-
res. Uma esquematização não é só a construção dum sentido, é também um convite à
reconstrução desse sentido, promovido e autorizado por ela própria.118 Grize compara,
por isso, a comunicação verbal (porque há outras formas de comunicação) aos fenóme-
nos da ressonância física, com a ressalva evidente, todavia, de que não havendo nunca
duas pessoas completamente iguais (nem completamente diferentes, acrescentemos), «la
communication ne peut apparaître finalement que comme le pari d’une ressemblance qui
suffit à l’action.»119 Subjaz a esta reflexão a concepção de que, num dado contexto de
comunicação, não só o locutor é activo mas também o alocutário. Grize fala, por isso, em
«parceiros» que, apesar das diferenças, não podem, deixar de cooperar: «Communiquer
est une activité partagée entre des partenaires, une activité qui leur est commune, ce que
le terme de communication laisse d’ailleurs entendre.»120
Esta especial atenção à actividade de reconstrução discursiva, ou melhor, de
coconstrução, centrada no interlocutor, encontra-se já insistentemente defendida e justi-
ficada, em Bakhtine, quando critica a concepção saussuriana de que só o locutor é activo,

115
Cf. GRIZE, 1996: 69.
116
GRIZE, 1990 : 30.
117
GRIZE, 1996: 60.
118
Cf. GRIZE, 1996: 118.
119
GRIZE, 1996: 71. Bakhtine também utiliza o termo «ressonância», quando se refere ao dialogismo,
sempre presente em qualquer discurso-texto. Por exemplo: «o enunciado é um elo na cadeia da comunica-
ção verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provo-
cam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica.» [BAKHTIN, 1992: 320]
120
GRIZE, 1996: 77.
69

«como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os outros parceiros da
comunicação verbal»,121 como vimos acima.

2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem

Na construção (produção) e reconstrução (audição, leitura, interpretação, com-


preensão) duma determinada esquematização discursivo-textual, são activadas e tornam-
se visíveis diversas imagens, individuais e em rede. Trata-se do aspecto argumentativo
da esquematização.

«Il en résulte que tout discours peut être une argumentation. Il propose certaines images,
images situées qui ont pour but de susciter chez le destinataire des inférences qui vont
dans le sens souhaité. / Offrir des images est argumentativement essentiel. Personne en
effet ne met en doute ce qu’il voit, tout au moins avant de se livrer à une activité cri-
tique.»122

Imagem é uma das noções principais nesta dissertação. Trata-se, por isso, de
noção sobre a qual nos devemos demorar, não só para descrever, com mais pormenor, a
concepção grizeana, mas também porque é termo intimamente relacionado com a noção
de face pública (e os processos discursivo-textuais de sua construção e preservação, seja
como figuração seja como desfiguração). Noção esta que, na sequência da teoria de Gof-
fman, retomada por Brown & Levinson e continuadores, é fundamental, no quadro do
sistema da cortesia linguística, em geral, e no subsistema das formas de tratamento, em
particular. Por outro lado, a imagem que se tem ou quer dar, sincera ou fingidamente,
do(s) outro(s), interlocutor(es), presente(s) ou ausente(s), de si próprio ou de terceiro(s),
vai marcar, decisivamente, a actividade discursiva e o texto empírico dela resultante, a
começar, desde logo, na selecção das formas de cortesia e dos tratamentos auto e heteror-
referenciais, com reflexos também na composição, organização e configuração das dife-
rentes unidades e do todo textual que integram.
Grize precisa a noção de imagem face à noção de representação, como segue:

121
BAKHTINE, 1992: 289.
122
GRIZE, 1996 : 18-19. Por comodidade de citação, anulámos a mudança de parágrafo.
70

«J’appelle représentation ce qui est relatif à A et à B et image ce qui est visible dans le
texte. Il s’ensuit que les images, en principe visibles par tout observateur d’un texte, sont
objectuelles (interprétations mises à part) et que les représentations sont fonction de A et
de B. Ainsi, tout le travail de l’analyste est d’inférer à partir des images les représenta-
tions de ceux qui s’en sont servis.»123
Tal como se mostrou na FIG. 8, são três os tipos principais de imagens que a
esquematização dá a ver, ou melhor, propõe ao olhar:

a) as imagens do tema ou assunto [im(T)];


b) as imagens do locutor [im(A)];
c) e as imagens do destinatário [im(B)].

Além destas, uma esquematização dá também a ver imagens das relações que
aqueles têm entre si, ou seja, uma imagem das relações de A com B e vice-versa, as ima-
gens das relações de A e de B com T, e a imagem que A dá a ver das imagens de B e vice-
versa. Note-se que, quando se diz imagem se deve entender uma certa imagem: a ima-
gem que se vê é uma construção de quem fala ou escreve e uma reconstrução ou inter-
pretação do ouvinte ou leitor, que é também um ser social como o outro. Os mundos
reais ou possíveis que os outros nos dão ou querem dar a ver são sempre vistos pelos
nossos próprios olhos, com maior ou menor atenção.
O autor considera, em GRIZE, 1996, que as im(T) «ne demandent guère de com-
mentaires», porque «constituent le contenu manifeste de la schématisation».124 Todavia,
em estudos anteriores, considerava que a im(T) levanta o problema importante da vero-
similhança. Segundo o autor, para que esta se verifique, são necessárias duas condições:
coesão e coerência. Sem entrar em explicações desenvolvidas, considera(va) que «la
cohésion est un phénomène interne au discours, donc de nature sémantique», enquanto
que «la cohérence est relative à l’extra-linguistique et, le cas échéant, le discours doit la
rétablir.»125
As im(A) como as im(B) podem dar-se a ver de múltiplas formas, no decurso do
discurso-texto. Umas e outras tanto se dão a ver por aquilo que é dito, como pelo modo

123
Id. : 69-70. Cf. também GRIZE, 1990: 33 e 37.
124
GRIZE, 1996: 70.
125
GRIZE, 1990 : 37. Em GRIZE, 1996, o autor abandona a «condição» de coesão e fala apenas em coe-
rência discursiva interna ou lógica («propre aux schématisations et tient à leur statut particulier qui les
relie tant aux objets des signes qu’à leurs référents») e coerência discursiva externa («relative aux réfé-
rents», que tem a ver com a verosimilhança). [Id.: 74] Que não há coesão sem coerência, é tempo de se
começar a defender e sustentar.
71

como é dito, pela selecção e tratamento do(s) tema(s), que até pode(m) ser o próprio
locutor, um terceiro ou o interlocutor, individual ou colectivo (auditório). Se bem que as
im(A) sejam mais imediatas («Quiconque en effet parle ou écrit s’offre nécessairement
au regard.»126) que as im(B), o autor esclarece, em síntese, que:
«Il est possible de faire une étude systématique de l’image de A dans les textes, de voir
apparaître le locuteur comme source de ses dits ou comme simple témoin, comme neutre
ou comme engagé […]. Les images de B sont plus diffuses, sauf en ce qui concerne les
marques pronominales qui tendent parfois à assimiler B à A, comme ce peut être le cas
de "nous". Le locuteur dispose de tout un jeu d’opérations […] qui lui permettent de ma-
nipuler sa propre image et celle de ses destinataires».127

As formas de cortesia e de descortesia, em geral, e os tratamentos corteses ou


descorteses, em particular, constituem, a nosso ver, um dos processos mais eficazes de
«manipulação» das imagens que os (inter)locutores podem fazer de si próprios como dos
outros. Não encontrámos na teoria da esquematização grizeana referências explícitas aos
fenómenos discursivos de cortesia ou descortesia. Ao referir-se, porém, ao facto de que
nem tudo o que se diz é para ser interpretado à letra, pois há situações em que se preten-
de precisamente esconder a finalidade última da interacção verbal, observa:

«Parler avec respect de quelqu’un, par exemple, est souvent beaucoup plus efficace que
de déclarer qu’il s’agit d’un grand homme et d’en énumérer les qualités. Cette sorte de
dissimulation, que permettent les images et en particulier le discours, n’est pas un aspect
secondaire. Je pense même qu’il est essentiel, dans la mesure où il constitue un frein im-
portant à tout contre-discours du destinataire.»128

De facto, muitas são as estratégias discursivas de cortesia a que um locutor pode


recorrer para fazer com que o(s) seus(s) alocutário(s) aceite(m) e adira(m) àquilo que ele
deseja. E uma delas consiste, precisamente, em valorizar-lhe(s) a imagem (no quadro da
cortesia linguística, chamar-lhe-emos face), explícita ou implicitamente, de forma osten-
siva ou dissimulada, sincera ou hipocritamente. O contexto o determinará e ajudará a
interpretar.

126
GRIZE, 1990 : 37.
127
GRIZE, 1996 : 70.
128
GRIZE, 1996: 19-20. Como é evidente, as imagens a que, nesta citação, o autor se refere são de nature-
za visual, não resultantes de esquematizações discursivo-textuais.
72

2.3.3. A importância da situação ou contexto

Um dos cinco postulados de base do esquema grizeano de comunicação é o de


situação de interlocução, sendo os outros quatro o dialogismo, as representações, os
PCC e a construção dos objectos. Quanto à situação (que admite chamar-se também con-
texto), Grize realça, por um lado, a sua importância e, por outro, a sua complexidade,
tanto na sua «dimensão concreta», onde situa as realizações orais, como na sua «dimen-
são teórica», onde situa as realizações escritas. A dimensão concreta verifica-se quando
«l’activité discursive se situe à un certain moment, dans un certain lieu et elle vise une
certaine fin». A dimensão teórica verifica-se «dans un cadre socio-historique donné», o
qual condiciona largamente o tipo ou género de discurso e texto em construção. Como
exemplo, o autor lembra as dificuldades que sente alguém que quer escrever um livro ou
um artigo «à la manière de».129
Indo mais longe nas suas reflexões, o autor aceita a existência inegável de rela-
ções de força entre os interlocutores. Tais relações, porém, ao contrário do que dá a
entender Bourdieu,130 não são fruto apenas da situação social, mas também da própria
actividade discursiva, sendo conveniente, por isso, ter em consideração o papel que ela
joga na elaboração do contexto.131 A propósito da teoria grizeana, Berrendonner observa,
quanto ao contexto, que «elle conduit à y voir non pas un cadre informationnel ou situa-
tionnel fixé à titre de préable, mais le produit dynamique de l’activité de communica-
tion». Trata-se, a nosso ver, duma actividade intimamente relacionada com os PCC, pois
que diz respeito a «un capital évolutif de connaissances, d’hypothèses et d’assomptions
partagées, assimilable à une sorte de mémoire collective des interlocuteurs.»132
Esta concepção dinâmica e dialéctica do contexto encontra-se já em Bakhtine,
quando sublinha que a «situação social mais imediata e o meio social mais amplo
determinam completamente e […] a partir do seu próprio interior, a estrutura da enun-
ciação».133 Esta concepção encontra-se, depois, noutros autores, como, por exemplo, em
Kerbrat-Orecchioni. Segundo esta linguista, a relação entre o contexto e o texto conver-
sacional «est non point unilatérale, mais dialectique: donné à l’ouverture de
l’interaction, le contexte est en même temps construit par la façon dont celle-ci se dé-
129
GRIZE, 1996: 61.
130
Cf. BOURDIEU, 1982.
131
Cf. GRIZE, 1996: 62.
132
BERRENDONNER, 1997: 220, cit. por ADAM, 1999: 104.
133
BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 113.
73

roule; définie d’entré, la situation est sans cesse redéfinie par l’ensemble des événe-
ments conversationnels.» Conclui, por isso, que o discurso «est une activité tout à la fois
conditionnée (par le contexte), et transformative (de ce même contexte).»134 Neste sen-
tido, pode-se dizer que o contexto inclui também uma dimensão cotextual.
A importância da situação ou contexto leva mesmo Grize a considerar que a qua-
se totalidade das verdadeiras ambiguidades «n’en sont que parce les énoncés incriminés
sont donnés hors situation et que l’observateur n’en est pas le destinataire naturel.»135 A
propósito, recorde-se a seguinte observação de Bally, tão válida nos princípios do século
XX, como nos princípios do século XXI:

«En général, la compréhension est facilitée par le milieu, la situation, les circonstances
où se déroulent la plupart des conversations en pleine vie; dans les trois quarts des cas,
les interlocuteurs parlent de faits qui sont connus des uns et des autres; ils opèrent sur
une situation matériellement claire: l’endroit où ils se trouvent leur offre souvent les
éléments d’information dont ils ont besoin (pat exemple um magasin où l’on va acheter
quelque chose); tout cela est comme un canevas sur lequel on peut broder à sa guise.»136

Se não se tiver na devida conta a complexidade dos factores contextuais, nas suas
dimensões concreta, teórica e histórico-social, exteriores e interiores a qualquer tipo de
interacção verbal, incluindo os resultantes da sua dinâmica interna, sem esquecer as dife-
rentes representações que se tem de cada um desses factores e das suas relações, os dis-
cursos-textos tornam-se incompreensíveis, por inverosímeis, observa também Grize.137
Se os interlocutores fazem parte do contexto duma interacção verbal realizada in
praesentia ou in absentia, é evidente que a(s) finalidade(s) daquele que fala ou escreve,
como a(s) finalidade(s) daquele que ouve ou lê, total ou parcialmente coincidentes ou
não, também fazem parte do contexto e do cotexto. Qualquer acção, seja a de produzir
um discurso, seja a da sua interpretação, tem sempre uma finalidade, pelo menos, finali-
dade que, como observa o autor, leva, relativamente aos dados a utilizar na sua esquema-
tização, a realizar, por um lado, processos de filtragem e, por outro, processos de saliên-
cia, tanto da parte de A como de B: «Filtrer, c’est retenir quelques aspects des représenta-

134
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 22.
135
GRIZE, 1996: 62.
136
BALLY, 19653: 23.
137
Cf. GRIZE, 1990: 42-43. Sobre a noção de «situação de comunicação», cf. também 1990: 32.
74

tions et en occulter d’autres; les faire saillir, c’est se servir des moyens de la langue pour
fixer l’attention.»138
Como veremos, filtrar dados, num acto de comunicação, pode consistir, por
exemplo, na evitação da realização de actos de discurso que ameacem as faces positiva
(autoestima, autoimagem, narcisismo) e negativa (os «territórios do eu» goffmanianos)
do destinatário. Salientar dados, por seu turno, pode consistir em dirigir formas de trata-
mento e de cortesia valorizadoras daquelas mesmas faces. Ou seja, para utilizarmos ter-
minologia específica da cortesia linguística, evitar ou compensar a realização de «Face
Threatening Acts» (FTA’s), por um lado, e/ou dirigir «Face Flattering Acts» (FFA’s),
por outro. Mas as formas verbais de cortesia negativa (evitação de FTA’s) e de cortesia
positiva (produção de FFA’s) podem revestir muitos outros e variados processos de natu-
reza linguístico-discursivo-textual, como se verá, ao longo desta dissertação.
Convém referir aqui o postulado dos objectos, como um dos elementos indispen-
sáveis ao estudo da comunicação entendida como esquematização discursivo-textual, o
que equivale a saber o que se entende por objecto de discurso. No quadro da lógica natu-
ral de Grize, os objectos de discurso são objectos de pensamento destinados a criar senti-
do a partir dos signos utilizados e das suas relações com os seus referentes.139 Trata-se,
por isso, como observa Antónia Coutinho, a propósito da mesma problemática, de objec-
tos selectivamente construídos no discurso e pelo discurso, consoante o contexto,140 o
que equivale a dizer, por outro lado, que tal construção está dependente do conjunto de
todos os outros elementos que intervêm num acto de comunicação como esquematiza-
ção, em particular dos interlocutores e que, por isso, se trata sobretudo duma coconstru-
ção. Coconstrução que tem em conta a diversidade, a complexidade e mesmo a delicade-
za das representações que os interlocutores têm, ora na posição A ora na posição B. 141

2.3.4. Esquematizar é representar

Como dissemos acima, as imagens que uma esquematização discursivo-textual


propõe ao olhar estão intimamente relacionadas com as representações que os interlo-
cutores têm de si próprios e do(s) tema(s) de que falam ou escrevem. A polissemia do

138
GRIZE, 1996: 68. Sobre as finalidades dum acto de comunicação, cf. também 1990: 31-32.
139
Cf. GRIZE, 1996: 67.
140
Cf. COUTINHO, 1999: 134.
141
Cf. GRIZE, 1996: 67.
75

termo, a nível lexical e das ciências humanas e sociais,142 leva Grize a propor uma noção
(aparentemente) ingénua («naïve»), bastando-lhe, ao que parece, entendê-la como repre-
sentação mental, ou seja, «comme ce qui est “dans la tête” de ceux qui communi-
quent».143 Ou, de forma mais clara:

«Il est évident que, pour tenir un discours sur n’importe que sujet, il faut en avoir une
idée, s’en être fait une certaine représentation. D’autre part […] il faut aussi avoir ou se
faire une représentation de celui auquel on s’adresse. […] De plus A, l’auteur d’un dis-
cours, doit aussi se faire une représentation de lui-même.»144

As representações que um locutor tem ou faz de si próprio [repA(A)], do seu


interlocutor [repA(B)] e do assunto ou tema [repA(T)] são, por um lado, incompletas e,
por outro, duplamente insuficientes. Incompletas, porque nunca se tem ou faz uma
representação completa duma pessoa ou dum tema, mas apenas de alguns dos seus
aspectos e, mesmo destes, também incompleta.145 No que toca, particularmente, a
repA(B) [e o mesmo se poderá dizer de repA(A), pois o clássico problema do autoconhe-
cimento continua eterno, como se sabe], o autor refere três espécies de «cautelas sociais»
que A deve ter em relação a B, como requisitos fundamentais de comunicação. Em pri-
meiro lugar, as representações que A tem ou presume ter dos (aspectos de) conhecimen-
tos de B, podem levá-lo a produzir discursos que pressupõem, nos seus auditórios, sabe-
res que nem os próprios desgraçados suspeitam. A este respeito, registe-se a pertinente
observação do autor, segundo a qual a representação que um professor «se fait des sa-
voirs de ses élèves peut être tellement inadéquate que les malheureux ne comprennent
pas grand-chose à ce qui leur est dit.»146 A segunda cautela, diz respeito à competência
linguística que, como representação, o (inter)locutor A reconhece ou atribui a B, porque
é ela que permite a B realizar as inferências necessárias que a esquematização propõe. A
terceira cautela prende-se com a representação que A deve ter ou fazer dos valores e
ideologias daquele(s) a quem se dirige, ou seja, das representações que o interlocutor B

142
Para diferentes noções de representação, segundo as diferentes áreas de saber, cf. Revista da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, 1997, n.º 10, dedicada precisamente ao tema «O conceito de representa-
ção.» Em VIGNAUX, 1995, também se encontram importantes descrições de representação no âmbito das
ciências cognitivas, nomeadamente, nas pp. 228-232, para a sua classificação.
143
GRIZE, 1996 : 63.
144
GRIZE, 1990 : 33-34. Bally e sobretudo Bakhtine também se referem à importância do destinatário,
explícito ou implícito. Além das citações já feitas, veja-se ainda BAKHTIN, 1992: 319 e ss., onde o autor
relaciona a representação do destinatário com os géneros de discurso.
145
Cf. GRIZE, 1990: 33-34 e 1996: 63.
146
GRIZE, 1996: 64.
76

tem do mundo, incluindo o mundo de comunicação em que se encontra(m) [repB(X),


onde X = (A, B, T, (A-B), etc.]147
Mas as três categorias de representações [repA(A), repA(B), repA(T)] são, além
disso, duplamente insuficientes, como se disse. Em primeiro lugar, porque a existência
dos três elementos faz com que entre eles existam também três relações diferentes, das
quais também o (inter)locutor A tem ou faz uma representação. Assim:

a) A tem uma representação das suas próprias relações com B [repA(A-B)]. Trata-
se de representação essencial, na medida em que reflecte as relações de força ou autori-
dade (que, no quadro da cortesia linguística, recebem a designação de poder, relações
verticais ou taxémicas, como veremos), consoante o contexto de realização. Recorde-se,
a título de exemplo, que um professor, por uma questão também de cortesia, não fala
nem trata os seus alunos como estes lhe falam e o tratam.
b) A tem uma representação das relações que B tem do tema [repA(B-T)], que se
prende com a atitude que B tem ou possa ter em relação àquilo que iremos chamar «cír-
culo de afectos (favoráveis ou desfavoráveis)».148 Como se sabe, por exemplo, «não se
fala de corda em casa de enforcado», por uma questão de cortesia, evidentemente.149
c) A tem uma representação das suas próprias relações com o tema [repA(A-T)],
de opinião, crença, certeza, mas também de maior ou menor cortesia ou descortesia,
acrescentamos nós. Apesar de não faltarem «treinadores de bancadas», ainda há quem,
por falsa ou verdadeira modéstia (cortesia), confesse não ter competência para discorrer
ou discursar sobre todas ou apenas determinadas matérias.

Há, ainda, uma segunda insuficiência na família das representações acima referi-
da. Como na FIG. 8 se mostrou, B reconstrói a esquematização discursivo-textual que A
lhe propõe. Assim sendo, B também tem ou faz representações dos diversos elementos
em jogo: repB(X), onde X = (A, B, T, (A -B), etc. Todas estas representações são impor-
tantes, consoante os contextos. Por exemplo, as representações mais ou menos funda-
mentalistas de B’s, anónimos e públicos (incluindo institucionais), relativamente aos
Versículos Satânicos de Salman Rushdie e ao Evangelho segundo Jesus Cristo de José

147
Id.: ibid.
148
Sobre o que entendemos por «círculo de afectos (favoráveis e desfavoráveis)», ver, infra, cap. XII, 2.
149
Em virtude dos interditos sociais, como lhes chamaria Foucault: «Numa sociedade como a nossa são
bem conhecidos, é certo, os procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o
interdito. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que não é qualquer um, enfim, que pode falar de qualquer coisa.» [FOUCAULT, 1997: 10]
77

Saramago [para não regredirmos aos temp(l)os do index], textos e autores proscritos,
ainda que em graus diferentes, por considerados ofensivos das tradições religiosas de
certas comunidades (e social e culturalmente descorteses, por isso; do mesmo modo que
tais reacções foram sentidas como fortemente descorteses pelos escritores), são casos
que revelam tanto a repB(T), como a repB(repA(T)), como a repB(repA(B-T)), como a
repB(repA(B-A), como a repB(repA(repB(X))); ou, em sentido inverso, a repA(repB(X)),
porque os discursos e os textos, mesmo os literários, são sempre dialógicos e interaccio-
nais. Convém ter presente, todavia, que tanto A como B nunca têm acesso directo e total
a essas representações. É através das imagens inscritas nos observáveis discursivo-
textuais que a elas se chega, de forma também incompleta, logicamente.150
É de observar um ponto, nesta descrição das representações, para o qual Grize
não chama a atenção e que, em nosso entender, deve ser realçado: as representações que
as esquematizações discursivo-textuais propõem e dão a ver podem ser, além de ficcio-
nais, falsas, de facto ou fingidamente. Um locutor, por razões de simpatia ou antipatia,
mais ou menos constante ou ocasional, pode dar de si próprio, do(s) outro(s) e/ou do(s)
tema(s) uma imagem ou imagens que não corresponde(m) às representações que efecti-
vamente têm. Além da questão da mentira, piedosa ou não, convém referir que as estra-
tégias de cortesia ou descortesia, que são também estratégias discursivo-textuais com
finalidades intra e extralinguísticas, ou melhor, intralinguísticas com efeitos extralin-
guísticos, as estratégias de cortesia ou descortesia, dizíamos, podem dar-nos imagens de
representações e de relações de representações que efectivamente não se tem. Pense-se,
por exemplo, nos gabinetes de imagem, nos boatos, nas formas de figuração e/ou de des-
figuração de determinados políticos, profissionais ou não, dentro e fora das campanhas
eleitorais, na oposição e no governo, etc. Ou, para nos situarmos melhor no âmbito do
nosso objecto e objectivo de estudo (porque também os exemplos anteriores no quadro
da cortesia se enquadram), pense-se nas cortesias e descortesias verbais, (incluindo os
tratamentos e os insultos como seus representantes mais evidentes), estrategicamente
construídas e utilizadas como processos de auto-humilhação e/ou de heterovalorização
ou desfiguração. A acusação de hipocrisia ou mentira que por vezes se faz ao uso das
formas de cortesia pode mais não ser do que processos dialógicos e polifónicos, através
dos quais os sujeitos interlocutores, desdobrando personalidades, visam alcançar os seus

150
Salvo exemplos e questões de pormenor, a descrição feita da noção de representações baseou-se, evi-
dentemente, em GRIZE, 1990: 33-35 e 1996: 63-65.
78

objectivos de comunicação / interacção, sem se lesarem gravemente uns aos outros, ou


procedendo à valorização do outro e, em contrapartida, desvalorizando-se a si próprios.

2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais (PCC)

Resta-nos, para concluir a descrição das principais noções que integram o novo
esquema e modelo de comunicação e a teoria de esquematização discursivo-textual que
propõe, enquanto interacção verbal, referirmo-nos aos preconstruídos culturais que
tanto A como B possuem, em graus ou níveis naturalmente diferentes, ainda que entre os
de um e os de outro haja naturalmente pontos de contacto, para que possa haver comuni-
cação.
Os PCC, na teoria da esquematização grizeana, remetem para termos, noções,
conceitos, expressões, lugares comuns, fraseologias, géneros de discurso ou texto, valo-
res, saberes, práticas quotidianas, memórias colectivas, ideologias, etc. Trata-se de dados
que os interlocutores têm como socialmente adquiridos e (re)conhecidos, anteriores a
qualquer actividade discursivo-textual, não sendo necessário referi-los, por isso; ou se
forem, permitem criar horizontes de expectativas e fazer inferências. Quando o
(inter)locutor A diz, por exemplo, que «de noite todos os gatos são pardos», B sabe mui-
to bem que gatos não é aqui o T, como também sabe que, neste como noutros provér-
bios, há sempre um «gato escondido com o rabo de fora», isto é, que o que se diz não é
para ser entendido à letra, mas para ser contextualmente interpretado.151 A propósito,
consideramos os provérbios bons exemplos discursivo-textuais de PPC, pois trata-se de
«fragmentos de uma sabedoria tradicional estereotipada [...] com um potencial surpreen-
dente de flexibilidade de adequação contextual»152 e cujo sentido, raramente literal, não
precisa, por isso, de ser explicitado, porque facilmente inferido.
Só há comunicação quando os interlocutores partilham representações mínimas
acerca dos estados de coisas, dos mundos e das situações. Partilha indispensável ao iní-
cio e desenvolvimento dos actos de comunicação, onde os PCC desempenham igualmen-
te papel fundamental, porque constituem um conhecimento dos sistemas linguístico e
cultural, uma espécie de património comum que os interlocutores, em contextos de
comunicação in præsentia ou in absentia, reconhecem e partilham.
151
Partindo de exemplo dado por Grize, adaptámo-lo à nossa cultura proverbial, i. é, sobre os provérbios.
[Cf. GRIZE, 1990: 30]
152
LOPES, 1992: 9. A propósito desta referência, seja dito que se trata, em nossa opinião, do estudo lin-
guístico mais rigoroso e completo até hoje realizado em Portugal sobre o «texto proverbial», segundo uma
perspectiva semântica e pragmática.
79

«Au moment de la plus banale prise de parole, et par cela même qu’il se sert de la
langue, le locuteur mobilise tout un ensemble de connaissances. Ces connaissances, s’il
les aménage par son discours, s’il les combinent entre elles, s’il les transforme parfois
profondément, n’en sont pas moins présentes comme préconstruites. Il n’est pas douteux
que, dans ses représentations, elles se colorent de toutes sortes de vécus. Elles n’en sont
pas moins de nature essentiellement culturelle, c’est-à-dire sociale, et il est étonnant de
153
voir à quel rythme elles se modifient.»

Como observa Grize, através dos PPC, um texto é, ao mesmo tempo, um produto
verbal e social, observação que não deixa de fazer lembrar reflexões de Bakhtine sobre a
influência que os ambientes socioculturais exercem na aquisição e desenvolvimento da
competência discursivo-textual e no conhecimento da língua como sistema. Para que não
se voltem a citar consabidas reflexões bakhtinianas, segundo as quais nenhum locutor ou
escritor não é o único, nem o primeiro a usar a palavra ou a construir um enunciado; que
aprendemos a falar aprendendo a estruturar enunciados; que falamos reproduzindo enun-
ciados que já foram e continuam a ser reproduzidos por outros; que aprendemos a mol-
dar a nossa fala / discurso em géneros relativamente estáveis de enunciados, cujo desco-
nhecimento tornaria impossível a comunicação,154 recordemos, agora, a que Bakhtine
deu, a qual consideramos intimamente relacionada com os PCC:

«A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos,


dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que ser-
vem de norma, dão o tom; são obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pes-
soas se apóiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração.
Toda época, em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradições acatadas que
se expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados,
das locuções, etc.»155

153
GRIZE, 1996: 65. Para a descrição que fizemos dos PCC, servimo-nos de id.: 65-67 e 1990: 30-31.
154
Enumerámos tópicos que se encontram mais ou menos desenvolvidos em BAKHTIN, 1992: 289-326.
155
Id.: 313.
80

Continuando, aproxima a actividade sociodiscursiva dos processos de assimila-


ção (tal como veio a fazer Grize, ao descrever os PCC, à luz das noções piagetianas de
assimilação e acomodação156):

«É por isso que a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o
efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. É
uma experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo de assimila-
ção, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua). Nos-
sa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de
palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimila-
ção, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalca-
do. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo,
que assimilamos, reestruturamos, modificamos.»157

2.4. Esquematização e competência discursivo-textual

Os PCC, como a esquematização discursivo-textual no seu todo, têm muito a ver


com as competências dos interlocutores. Estas são habitualmente descritas segundo a
perspectiva do locutor, mas que Grize situa (talvez por isso mesmo) no capítulo das acti-
vidades do destinatário. Parceiro activo na comunicação ou esquematização discursivo-
-textual, o locutor pressupõe um destinatário dotado das seguintes competências:

a) linguísticas (ao nível do léxico e da sintaxe);


b) pragmáticas (ao nível dos actos ilocutórios);
c) culturais («que certains linguistes appellent la compétence encyclopédique»);
d) retóricas (sobretudo ao nível da compreensão das metáforas);
e) lógicas (dependentes das três primeiras, «parce qu’il est question d’inférences»).158

O autor, situando-se no quadro da lógica natural, encontra nas competências


lógicas a súmula das restantes. Assim, por exemplo, em «En rentrant roulez lentement, il
gèle», Grize esclarece que se faz apelo ao Léxico, porque «"rouler" signifie conduire sa
156
«Les PCC fournissent ainsi le cadre obligatoire dans lequel le discours doit s’insérer et ce ceci par le
double mécanisme piagétien d’assimilation et d’accommodation. L’orateur doit assimiler les contenus déjà
là et les accommoder à ce qu’il a l’intention de dire.» [GRIZE, 1996 : 66]
157
BAKHTINE, 1992: 313-314.
158
Cf. GRIZE, 1996 : 71-72.
81

voiture», à Sintaxe, porque utiliza um imperativo, à Cultura, porque «lie le gel à un état
glissant des routes», à Retórica, porque «implique qu’un hôte se soucie du bien-être de
ceux qu’il a accueillis», e à lógica, porque «tout cela demande des raisonnements.»159
Repare-se que Grize situa no âmbito das competências retóricas160 a preocupação do
visitado com o bem-estar dos visitantes, preocupação que nós situamos, preferencial-
mente, no âmbito da competência da cortesia linguística, ainda que esta contemple tam-
bém uma dimensão retórica, como veremos.161
À actividade discursiva do destinatário pode dar-se, de facto, como também
entende Grize, o nome de interpretação, porque, ao realizá-la, um ouvinte ou um leitor,
perante uma esquematização discursivo-textual, parte efectivamente do princípio (de
generosidade, de cortesia, de coerência, de cooperação162, ou apenas de boa fé e bom
senso) de que aquele observável tem, de facto, um sentido. Sentido, contudo, mais ou
menos explicitamente autorizado pela própria esquematização discursivo-textual, ainda
que não total ou parcialmente previsto pelo autor (falante, escrevente ou escritor), sendo,
por isso, con-sentido, porque toda a interpretação tem limites, evidentemente.163

«Interpréter, c’est construire un sens pour soi, c’est reconnaître qu’il est possible
d’appliquer à ce qui est dit un schème que l’on possède […], c’est imaginer […] un con-
texte propice.»164

159
Id. : 72.
160
Recorde-se que Grize entende a esquematização, no quadro da Lógica Natural, também como argumen-
tação, pois esta consiste sempre em provar qualquer coisa a alguém. A Retórica, para este autor, consiste
não só nas três dimensões aristotélicas - ethos, pathos e logos - mas também como processo de alcançar a
adesão do destinatário e não apenas a sua aceitação. [Cf. id.: 10 e 76]
161
De referir, a propósito, haver autores que chamam à cortesia linguística Retórica Interpessoal [cf.
LEECH, 199610 e LABORDA, 1996], ou Retórica Conversacional [cf. WAUTHION & SIMON (ed.),
2000]
162
Sobre os princípios de cooperação e de cortesia, ver, infra, cap. II. Quanto ao «princípio de generosida-
de», Grize diz que o destinatário, perante um discurso-texto, o aceita e procura interpretá-lo, porque pensa
que ele tem sempre um sentido. [Cf. GRIZE, 1996 : 72] Quanto ao «princípio de coerência», a designação
é de Michel Charolles: «Les processus d’interprétation et de réinterprétation, parce qu’ils sont commandés
par le principe de cohérence, conduisent donc l’interprétant à construire des relations qui ne figurent pas
expressément dans le donné textuel.» [CHAROLLES, 1990 : 247, cit. por GRIZE, 1996 : 72--73]
163
Joga-se, aqui, obviamente, com o conhecido título de Umberto Eco, Os Limites da Interpretação, que
vem ao caso, não por acaso: «Depois de um texto ter sido produzido, é possível fazê-lo dizer muitas coisas
– em certos casos um número potencialmente infinito de coisas – mas é impossível – ou pelo menos criti-
camente ilegítimo – fazê-lo dizer o que não diz. Muitas vezes os textos dizem mais do que os seus autores
tinham intenções de dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes queriam que dissessem.»
[ECO, 1992: 120]
164
GRIZE, 1996 : 73.
82

Neste sentido, procurando-se lavrar em terra própria, ao conjunto das competên-


cias lógicas podemos chamar competência textual que, segundo a define e descreve Cou-
tinho, inclui todas aquelas competências, tanto do lado da recepção como da produção.
Competência que, devedora sendo também doutras competências reconhecidas (linguís-
tica, de boa formação gramático-textual, de comunicação165), outras mais específicas
inclui ainda, como sejam as de sequencialização e metassequencialização, articuladas
com as noções de tipo e género (de texto ou discurso), social, cultural e historicamente
aceites e que em objectos empíricos atestados se concretiza(m), isto é, em textos. Com-
petência que é, por outro lado, «conhecimento adquirido e desenvolvido na experiência
textual de um sujeito»,166 isto é, nos seus diferentes desempenhos, tanto ao nível da
construção (falar e escrever) como da reconstrução (ouvir e ler).
Também Coutinho considera que o interlocutor assume particular relevo, no
âmbito das questões que se prendem com a competência textual, enquanto actividade
sociodiscursiva, e que como tal inclui também uma dimensão argumentativa, activada
em cada acto de comunicação: «a representação (ou representações) que tem do interlo-
cutor quem escreve (ou fala) implica que a organização da experiência, longe de ser uma
actividade neutra, se constitua como argumentação».167 Argumentação na acepção lata
que lhe dão tanto Vignaux168 como Grize,169 que entendem como processo discursivo de
representação e apresentação de conhecimento, e que se encontra em toda a actividade
165
Cf. COUTINHO, 1999 : 16.
166
Id.: 328.
167
Id.: 209.
168
«Cada enunciado é uma maneira de apresentar as coisas e, deste ponto de vista é, à partida, argumenta-
tivo. Pode imaginar-se que a argumentação se identifica com as formas da persuasão e da convicção. Na
realidade, o primeiro sentido verdadeiro do termo “argumentação” é o de apresentação: apresentação das
coisas e apresentação, de cada vez, duma certa relação de um sujeito com o mundo e com os outros [...]. /
Argumentar, por conseguinte, é atribuir propriedades às coisas e determinar modos de existência dessas
coisas em situações. [...] Desde a origem, portanto, estamos sempre em situação de ter de representar por
meio da linguagem e de trabalhar com representações anteriores ou novas do mundo. Temos de argumen-
tar permanentemente os nossos próprios conhecimentos ou opiniões do mundo e, a partir daí, tentar apre-
sentar-nos, “afirmar-nos”. O que equivale a dizer que todo o discurso exprime uma certa inscrição cogniti-
va do seu sujeito no mundo sob a forma do trabalho de conhecimento que tem de assegurar através da sua
linguagem.» [VIGNAUX, 1995: 304]
169
Além das citações acima feitas, Grize defende: «D’une façon tout à fait générale, on peut dire
qu’argumenter c’est déployer une activité qui vise à intervenir sur les idées, les opinions, les attitudes, les
sentiments ou les comportements de quelqu’un ou d’un groupe de personnes. […] Argumenter est sans
doute une activité finalisée, mais c’est une activité discursive qui, en tant que telle, exige une participation
active de ceux auxquels on s’adresse, réclame même de leur part une certaine connivence.» Por isso «elle
est faite d’énoncés et non pas, comme la démonstration, de propositions. […] Elle vise à les [interlocu-
teurs] persuader et pas seulement à les convaincre. / Son problème n’est pas à travers son discours de
conserver une vérité supposée, mais de donner à voir – plus exactement de donner à regarder – des repré-
sentations vraisemblables, c’est-à-dire de manipuler des valeurs de croyance. Pour cela elle se sert de cette
propriété inhérente à la parole qui est de faire exister les choses dans l’esprit de ceux qui s’en servent par
cela même qu’elles sont dites.» [GRIZE, 1996 : 5 e 26] É interessante verificar-se que Grize já admite que
argumentar é também uma forma de manipulação do interlocutor, aspecto posto de parte em 1990: 40.
83

sociodiscursiva, ou seja, como esquematização.170 Quanto a esta problemática, interessa-


nos a aproximação que Coutinho faz entre a noção grizeana de esquematização e
sequencialização, como um dos aspectos fundamentais da competência textual, dado o
carácter logicodiscursivo que em ambas se encontra. Segundo observa, as noções de
esquematização e sequencialização prolongam a problemática que em torno da dicoto-
mia texto / discurso se tem posto, a qual «se presta, mais do que a uma resolução, a uma
complementaridade só dissociável em termos analíticos (como se faz sentir na oposição
sintética entre objecto de figura e objecto de dizer).»171 Tomando, por isso, a noção de
coerência, reclamada ora pelo discurso ora pelo texto, como exemplo de complementa-
ridade entre ambos, Coutinho defende que, se por um lado, a noção de esquematização
«veio afinar a perspectiva analítica, no que diz respeito à vertente discurso», por outro, a
noção de sequencialização é «susceptível [...] de restabelecer o equilíbrio, relativamente
à vertente texto.»172 Por sequencialização a autora entende «o processo de organização
textual que constitui e dá a ver, através de marcas inscritas ou recuperáveis na superfície
do texto, a sua coerência específica – como estabilização de descontinuidades de ordens
diversas, na contingência do género em que se baseia o texto empírico e na convergência
com os processos discursivos simultaneamente em causa.»173
Tratando-se dum processo textual, observa a autora que a noção de sequenciali-
zação, além do binómio texto / discurso, envolve também «a consideração de um nível
metatextual» que, na sequência da noção de metatextualidade proposta por Genette,174 se
propõe designar por metassequencialização. Aproximando e distinguindo esta noção
daquela, Coutinho clarifica que «se ambas, através dos marcadores que instituem e
manifestam os processos em causa, guiam a produção e a compreensão, a primeira
estabelece a organização intratextual que a segunda explicita, comenta ou mesmo
redefine - estabelecendo unidades textuais de cariz retórico (como introdução ou con-

170
Cf. COUTINHO, 1999: 209.
171
Id.: 214. Convém esclarecer que as noções sintéticas de «objecto de figura» e «objecto de dizer», res-
pectivamente, para texto e discurso foram propostas por Luísa Soares Opitz. [Cf. id.: 104]
172
Id.: 214.
173
Id.: 215.
174 Em 1979, em Introdução ao Arquitexto, Genette escreve: «é facto que para já o texto me interessa

(apenas) pela sua transcendência textual, a saber, tudo o que o põe em relação, manifesta ou secreta, com
outros textos. Chamo a isso a transtextualidade, e nela englobo a intertextualidade no sentido estrito (e
“clássico” depois de Julia Kristeva), isto é, a presença literal (mais ou menos literal, integral ou não) de
um texto noutro: a citação, ou seja, a convocação explícita de um texto ao mesmo tempo apresentado e
distanciado por aspas, é o exemplo mais evidente desse tipo de funções, que comporta muitas outras.
Acrescento ainda, sob o termo, que se impõe (sobre o modelo linguagem / metalinguagem), de metatex-
tualidade, a relação transtextual que une um comentário ao texto que comenta: todos os críticos literários,
desde há séculos, produzem metatexto sem saber.» [GENETTE, 1986: 97]
84

clusão) ou programático, delimitando unidades através do título e de subtítulos ou inter-


títulos, nomeando e comentando o género reproduzido ou recriado.»175
Limitando-se aos géneros expositivos, cujas práticas discursivo-textuais consti-
tuem o seu corpus de análise, a autora sintetiza as suas reflexões na figura seguinte:

Discurso Texto

Coerência
Objecto de dizer Objecto de figura

planos de enunciação / práticas discursivas géneros


Esquematização Sequencialização
Esquematizações expositivas Sequencializações expositivas

FIG. 9 – Esquematização e sequencialização, segundo COUTINHO, 1999: 214.

Esquematizar coerentemente um discurso é, assim, sequencializar também coe-


rentemente um texto, ou seja, dominar uma competência textual que se processa, toda-
via, em termos analíticos, a dois níveis: do discurso e do texto. Neste sentido, a compe-
tência textual implica uma capacidade dupla (discursiva e textual), simultaneamente
activada no momento da produção dum texto, segundo modelos ou géneros de discurso
e/ou de texto, uma vez que são eles que «dão forma, literalmente falando, ao controle
social e institucional da produção linguística, oferecendo um repertório de soluções para
diferentes práticas sociais».176 É que, como continua a observar Coutinho, «cada género,
enquanto “molde” prestabelecido, supõe um determinado tipo de organização, uma
selecção de planos de enunciados (tipos de discurso, na terminologia de Bronckart177)
em que se plasmam conteúdos temáticos e intenções pragmáticas de cada novo texto a
produzir». Este novo texto reproduz, por isso, também aquele molde, «dentro de uma
margem relativa de variação», também ela determinada, até certo ponto, «pelo próprio
género». A noção de género constitui-se, desta forma, «uma categoria fundamental, do
ponto de vista teórico», porque «permite ultrapassar a dicotomização entre discurso e

175
COUTINHO, 1999: 216-217.
176
Id.: 108-109.
177
«Tipos de discurso» é uma das três noções em que Bronckart distingue, ao nível terminológico, o
«aparelho nocional» de abordagem das actividades sociodiscursivas. O autor define-os, sumariamente,
como «formes linguistiques attestables dans les textes et traduisant la création de mondes discursifs spéci-
fiques ; ces types étant articulés entre eux par les mécanismes de textualisation et de prise en charge
énonciative, qui confèrent au tout textuel sa cohérence séquentielle et configurationnelle.» [BRONC-
KART, 1996 : 151]
85

texto», funcionando como «espaço de convergência» entre as duas entidades. O texto,


cada texto, emerge, assim, como «forma, palpável na sua materialidade específica (escri-
ta ou oral)», dum movimento que se situa «entre a reprodução e a inovação».178
A competência textual resulta, assim, da articulação entre todos estes factores,179
que a autora resume no «dispositivo» seguinte (FIG. 10), mas cuja complexidade con-
ceptual e descritiva, todavia, não traduz na sua totalidade, como é evidente. Articulação
de que «depende um desempenho textual eficaz»,180 tanto nas modalidades orais como
escritas, adquiridas e desenvolvidas em contextos de comunicação informais (naturais ou
extraescolares) ou formais (escolares),181 que não exclui a capacidade de lidar criativa-
mente com estruturas textuais socioculturalmente enraizadas e tipificadas.182

objecto de figura

DISCURSO GÉNERO TEXTO

objecto do dizer

Sequencialidade e (Meta)Sequencialização

Competência textual

FIG. 10 - «Dispositivo» da competência textual, segundo COUTINHO, 1999: 110.

Segundo a perspectiva sugerida na FIG. 10, o discurso, ou melhor, a actividade


discursiva, que podemos definir, a este nível, como a capacidade de discorrer sobre
determinado assunto, passa a ser uma componente ou dimensão da competência textual,
entendida como capacidade de organização / composição de textos. De facto, se se
comunica através de textos, produzir ou coproduzir um texto, consoante os contextos,
exige tal actividade / capacidade, porque não há texto sem discurso que o prefigure.

178
COUTINHO, 1999: 109.
179
E outras questões fundamentais com eles intimamente correlacionadas, como seja as de segmentação,
definição e hierarquização de unidades textuais; sequência, sequencialidade e linearidade; planos, estrutu-
ração e esquematização; coesão e coerência; valores retóricos e argumentativos, etc.
180
Id.: 110.
181
Id.: 17.
182
Cf. id.: 34.
86

2.5. Esquematização e Linguística Textual

Na ordem de ideias que se tem vindo a expor, compreende-se que cada vez mais
os conceitos de texto e de discurso sejam vistos, pelos estudiosos, como quasessinóni-
mos, verificando-se, consequentemente, uma crescente aproximação das disciplinas lin-
guísticas que os estudam. Com efeito, desde que Robert de Beaugrande e Wolfgang
Dressler definiram o texto como uma «ocorrência de comunicação»,183 observa Adam
que «la linguistique textuelle est devenue une sorte de pragmatique textuelle», por um
lado, e que «elle s’est considérablement rapprochée du champ de l’analyse de dis-
cours»,184 por outro.
Este especialista em Linguística Textual, depois de ter proposto uma quase radi-
cal separação entre texto e discurso, segundo a fórmula

«Discours = Texte + Conditions de Production


Texte = Discours – Conditions de Production»185

considera, a partir de 1999 (pelo menos), que a separação entre o textual e o discursivo é
sobretudo uma questão metodológica e mesmo arbitrária, uma vez que é «le fruit de
programmes de recherche qui mettent l’accent sur des composantes différentes des pro-
duits de l’activité langagière humaine et se dotent, pour le faire, de méthodologies
propres.»186
Não é de estranhar, por isso, que o autor utilize, por vezes, texto e discurso como
quasessinónimos187 e tenda a considerar a linguística, retomando e reinterpretando antiga

183
«A TEXT will be defined as a COMMUNICATIVE OCCURRENCE which meets seven standards of
TEXTUALITY. If any of these standards is not considered to have been satisfied, the text will not be
communicative. Hence, non-communicative texts are treated as non-texts». [BEAUGRANDE & DRESS-
LER, 19947: 3]
184
ADAM, 1999: 41.
185
ADAM, 1990: 23. Em ADAM, 1999: 39, o autor corrige esta fórmula por um esquema que enquadra o
texto no contexto, deixando de fora o discurso. A nosso ver, trata-se duma concepção imperfeita, na medi-
da em que o discurso, seja ele entendido como actividade verbal (oral ou escrita), seja ele entendido como
género, faz parte também do contexto.
186
ADAM, 1999: 40.
187
Por exemplo: «Si, comme le dit Saussure, “la langue n’est créée qu’en vue du discours”, alors on est en
droit de se demander si la linguistique n’a pas, non seulement pour objet empirique, mais pour objet théo-
rique cette unité de communication-interaction qu’on appelle un TEXTE (ou un DISCOURS) et la nature
des entrelacements dans lesquels Platon lui-même voyait déjà la clé des faits de discours.» «La mise en
évidence de l’action langagière accomplie au moyen d’un texte/discours éclaire ce qui se passe, par
87

proposta de Benveniste188 que já se encontra, todavia, em Bakhtine,189 como «translin-


guística», isto é, como disciplina que reúne a linguística do sistema ou da língua e a lin-
guística do uso ou do discurso-texto.190 Tal posição encontra-se também defendida e
fundamentada, mais recentemente, em estudos de Rastier e de Maingueneau.191
Adam considera, todavia, que a Análise do Discurso e a Linguística Textual não
se devem confundir. Trata-se de dois processos de análise, respectivamente, descendente
e ascendente, os quais, não obstante, confluem, de forma complementar, na análise das
práticas discursivo-textuais, consoante os respectivos contextos de comunicação, isto é,
como esquematizações, segundo a definição grizeana. Com esta noção, o autor visa
«neutraliser terminologiquement la séparation des deux dimensions complémentaires et
deux points de vue sur le même objet».192

«La linguistique textuelle a pour tâche de décrire les principes ascendants qui régissent
les agencements complexes mais non anarchiques de propositions au sein du système
d’une unité TEXTE aux réalisations toujours singuliers. L’analyse du discours – pour
moi analyse des pratiques discursives qui renonce à traiter comme identiques les dis-
cours judiciaire, religieux, politique, publicitaire, journalistique, universitaire, etc. –
s’attarde quant à elle prioritairement sur la description des régulations descendantes que
les situations d’interaction, les langues et les genres imposent aux composantes de la
textualité.»193

Interessa-nos verificar, agora, como Adam integra a teoria grizeana da esquema-


tização na sua teoria de Linguística Textual. Com base na breve descrição feita, ao nível
das relações teóricas e metodológicas, entre a Análise do Discurso e a Linguística Tex-
tual, o autor propõe um esquema que reproduzimos na FIG. 11.

exemple, avec “J’accuse!”» [Id.: 24 e 42.] «J’Accuse !» é artigo que Emílio Zola publicou, a 13 de Janeiro
de 1898, na primeira página do jornal L’Aurore.
188
Cf. BENVENISTE, 1989: 67.
189
Cf. BAKHTINE, 1970: 278.
190
Cf. ADAM, 1999: 28-30 e 86.
191
Cf. id.: 27-34. Sobre a concepção bakhtiniana de translinguística, cf. BAKHTIN, 1992: 302; sobre a
concepção benvenistiana, cf. BENVENISTE, 1989: 67 e 228-229; sobre a concepção rastieriana, cf.
RASTIER, 1997; sobre a posição de Maingueneau, cf. MAINGUENEAU, 1995: 61, cit. por ADAM,
1999: 32.
192
Cf. ADAM, 1999: 41. Sobre as concepções de texto, objecto teórico e empírico, discurso e géneros de
discurso, cf. ADAM, 1999: 40.
193
Id.: 35.
88

CHAMP DE L’ANALYSE DES DISCOURS

FORMATIONS INTERACTION ACTION(S)


SOCIODISCURSIVES SOCIODISCURSIVE LANGAGIÈRE(S)
(VISÉES, BUTS)
(dimention perlocutoire)
PARATEXTE
INTERDISCOURS

GENRES
(SOUS-GENRES)

D I S C O U R S

S C H É M A T I S A T I O N

T E X T E

Texture phrastique Structure Sémantique Énonciation Orientation


& transphrastique Compositionnelle (représentation (ancrage argumentative &
(grammaire (séquences & discursive) situationnel & actes de discours
& style) plans de textes) pris en charge) (illocutoire)

CHAMP DE LA LINGUISTIQUE TEXTUELLE

FIG. 11 – Campos da Análise do Discurso e da Linguística Textual segundo ADAM, 1999: 41.

Como vimos, a esquematização é modelo de análise lógica que descreve a activi-


dade sociodiscursiva como um acto de comunicação / interlocução / interacção verbal,
atribuindo e reconhecendo, assim, papéis de co-acção entre os locutores e alocutários,
condicionados pelos co(n)texto. Adam considera que os discursos e os textos, ou as
esquematizações textuais ou discursivas, para utilizarmos expressões que o autor adopta
e adapta de Grize, constituem interacções verbais.194
Ao reflectir sobre as noções de coerência e textualidade, observa o autor que
estas dependem do estabelecimento, pelo intérprete (ouvinte ou leitor), duma significa-
ção de conjunto, duma intencionalidade global, em estreita relação com a dimensão
sócio-discursiva de qualquer acção de linguagem. E acrescenta:

194
Cf. id.: 101. Escrevemos co(n)texto, porque não só o contexto age no próprio discurso a ser produzido
ou em produção (cotexto), como o próprio discurso (cotexto) age sobre o próprio contexto.
89

«L’interaction verbale est d’abord conscience du sens d’une activité langagière donnée,
dans une situation donnée, c’est-à-dire sentiment – plus au moins clair certes – de faire
quelque chose avec la langue, non seulement de dire, mais de modifier une situation (re-
lations à autrui, images de soi, de l’autre e de l’objet du discours, connaissance
d’autrui».195

Com a teoria da esquematização, Adam coloca, definitivamente, as práticas


sociodiscursivas, tanto na construção como na reconstrução, como uma coconstrução.
Trata-se, de facto, duma concepção dinâmica e dialéctica da interacção verbal, como
vimos. Observa: «Le fait qu’un texte soit une schématisation nous met dans l’obligation
de ne jamais oublier qu’il s’agit du produit d’une interaction verbale.»196 Produto que
resulta, evidentemente, dum processo, como vimos, e que Adam também refere. Aliás, o
linguista observa que a morfologia do termo esquematização sublinha «le double sens
d’un objet que les termes d’énoncé (résultat) et d’énonciation (processus, opération) sé-
parent et que les concepts de texte et de discours ne comportent, quant à eux, pas du
tout.» Por isso, acrescenta que, se se não tiver em conta a dupla face da noção de esque-
matização, falar apenas de texto ou de discurso «c’est toujours faire plus allusion, au
résultat de pratiques discursives qu’aux opérations complexes, inséparablement psycho-
sociales et verbales, qui l’ont produit.»197
Adam considera, todavia, que numa esquematização discursiva ou textual, ou
melhor, segundo preferimos, discursivo-textual, não se trata apenas duma interacção
mais ou menos explícita entre os seus interlocutores, mas também das relações que os
mesmos interlocutores, ao coconstruírem uma esquematização, activam sempre, de for-
ma mais ou menos consciente e criativa, segundo o «género de discurso» mais adequado
ao contexto geral do acto de comunicação.
Na linha das reflexões de Bakhtine, que frequentemente cita em abono das teses
que defende, também Adam afirma a influência e a importância dos «géneros» nas
esquematizações discursivo-textuais, sejam elas realizadas in præsentia ou in absentia,
tanto por quem fala-e-ouve [a justaposição procura indicar a simultaneidade das activi-
dades do(s) acto(s) em presença], seja por quem escreve e/ou lê. Se ler é, em certa medi-
da, reescrever, escrever é, também em certa media e correlativamente, ler. Recorde-se
que Bakhtine insistentemente defende que se aprende a falar e a escrever, aprendendo-se

195
Id.: 31.
196
Id.: 104.
197
Id.: 102.
90

a estruturar enunciados, segundo modelos ou tipos relativamente estáveis e normativos,


isto é, socioculturalmente instituídos e reconhecidos, porque é produzindo enunciados e
reproduzindo géneros que comunicamos. É repetindo formas e fórmulas de dizer que se
aprende a falar e a escrever, como todos sabemos, por experiências próprias.

«Portanto, o locutor recebe, além das formas prescritivas da língua comum (os compo-
nentes e as estruturas gramaticais), as formas não menos prescritivas do enunciado, ou
seja, os gêneros do discurso, que são tão indispensáveis quanto as formas da língua para
um entendimento recíproco entre locutores.»198

«Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de


criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de
nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.»199

Adam critica a tendência «profundamente errónea» de se falar em «tipos de tex-


tos», dada a grande complexidade e heterogeneidade que geralmente neles se encontram.
Prefere, por isso, situar as «regularidades» textuais ao nível da sequência,200 seguindo
Rastier, para quem «un genre est ce qui rattache un texte à un discours».201 Assim, «le
genre rattache – tant dans le mouvement de la production que dans celui de l’interpréta-
tion – un texte toujours singulier à une famille de textes.» Conclui, por isso, que um gé-
nero «relie ce que l’analyse textuelle parvient à décrire linguistiquement à ce que
l’analyse des pratiques discursives [Análise do Discurso, entenda-se] a pour but
d’appréhender sociodiscursivement.»202 Encontra-se nesta observação a dupla face –
textual e discursiva – de esquematização, na suas dimensões, respectivamente, de resul-
tado e de processo, bem como os factores ascendentes e descendentes que relevam, res-
pectivamente, da ordem do texto e da ordem do discurso, esquematizados acima na FIG.
11.203 A esquematização funciona assim como uma interface onde a linguística textual e
Análise do Discurso se encontram, mas não se detêm. Continuando uma e outra os seus
movimentos de análise, cada vez mais abrangente dos respectivos objectos, as invasões

198
BAKHTIN, 1992: 304.
199
Id.: 302.
200
Cf. ADAM, 1999: 82-83. Para uma abordagem crítica, actual e esclarecedora das principais noções e
relações, ao nível do texto e do discurso, entre género e tipo, segundo uma perspectiva linguística, cf.
COUTINHO, 1999: 41-113.
201
RASTIER, 1989 : 40.
202
ADAM, 1999 : 83.
203
Cf. ADAM, 1990 : 102.
91

dos respectivos campos dá-se inevitavelemente, sendo previsível que, mais tarde ou mais
cedo, as disciplinas que estudam as coproduções discursivo-textuais se fundem numa só.
Face às preferências que leva, em vários países e por diferentes autores, prevemos que a
Análise do Discurso acabe por ficar como a única senhora do domínio.204
Regressando à integração da teoria grizeana, no modelo de análise discursivo-
-textual, proposto em Linguistique Textuelle – Des genres de discours au textes, Adam
resume a quatro «definições» o essencial da esquematização lógico-discursiva:

1) «Une schématisation est, à la fois, opération et résultat»;


2) «Toute représentation discursive est schématique»;
3) «Toute schématisation est une coconstruction»;
4) « Une schématisation est une proposition d’images».205

A descrição de cada um destes pontos não difere, significativamente, da que foi


feita pelo autor do modelo – o lógico Grize – nem da que nós próprios fizemos acima. A
dois aspectos, todavia, devemos prestar um pouco mais de atenção. O primeiro diz res-
peito às imagens, pela caracterização e diferenciação que delas faz, bem como pela
complexidade das suas relações (em número superior ao apresentado por Grize, ainda
que este autor admita a existência de outras), relacionando-as também com a teoria gof-
fmaniana das faces.
Adaptando o esquema de comunicação / interlocução / interacção de Grize (FIG.
8, supra) ao seu modelo teórico, Adam apresenta um novo esquema (FIG. 12, infra) das
esquematizações discursivas ou textuais. Nós preferimos discursivo-textuais, porque, de
facto não há discurso sem texto, nem texto sem discurso. Um texto é um todo verbal
organizado, de maior ou menor dimensão, mas sempre dotado de sentido e significação,
que propõe e exige uma competência de compreensão mais ou menos profunda, e um
desempenho de interpretação, mais ou menos desenvolvido. Ainda que saibamos que
não ter sentido é o sentido de muitos discursos-textos, ditos, por isso, sem sentido.206

204
Além de designação cada vez mais utilizada, verifica-se, por outro lado, a aproximação de estudiosos
de áreas como Análise Conversacional, Análise do Texto, Teoria do Texto e Linguística Textual.
205
Cf. id.: 101-108.
206
A mero título de exemplo, veja-se o seguinte comentário jornalístico, onde se critica, precisamente, a
incompreensão de certos discursos-textos sem sentido: «Se se dissecar com algum cuidado vários episó-
dios desta novela [doença do foro psicológico do futebolista Mário Jardel], conclui-se que o guião não é
dos melhores, há muitas pontas soltas e quanto alguns personagens mais falam, mais se percebe que
menos se percebe.» [José Manuel Delgado, Record, 30/07/02, cit. no Público de 31/07/02] É caso para se
perguntar, como na anedota / trava-línguas: «Percebeu? – Se não percebeu, percebesse, que eu, quando
92

SITUATION D’INTERACTION SOCIODISCURSIVE


Institution (formation discursive)
Activité en cours, Temps, Lieu

SCHÉMATISATION

FORMATIONS IMAGINAIRES:
Images de la situation [Sit]
Images du référent-théme
objet du discours [R]
Images de A Images de B
coconstruit
iA>A/B/ iB>B/A coconstruit
A R/Sit R/sit B
Schématisateur Co-schématisateur
iA>[B>B] iB>[A>A]
en fonction de : iA>[B>A] iB>[A>B] en fonction de :
· Finalités (buts, intention) etc. etc. · La schématisation
· Représentations · Finalités (buts, intention)
psychosociales MÉMOIRE DISCURSIVE · Représentations
(de A, B, R, Sit) psychosociales (de A, B, R, Sit)
· Préconstruits culturels · Préconstruits culturels
(mémoire collective, (mémoire collective,
idéologie, pratiques idéologie, pratiques
quotidiennes) quotidiennes)

FIG. 12 – Esquematização dsicurso / texto, segundo ADAM, 1999: 105.

Apesar de observar, fazendo lembrar a noção goffmanina de figuração, que uma


boa parte da actividade simbólica das pessoas «a pour fonction de reconstituer en per-
manence la réalité du moi, de l’offrir aux autres pour ratification, d’accepter ou de reje-
ter les offres que font les autres de leur image deux-mêmes»207 (im A, im B), Adam não
se refere apenas às imagens pessoais e interpessoais dos interlocutores, mas também às
imagens que cada um tem da situação da interacção sociodiscursiva (im Sit), do objecto,
tema ou referente do discurso (im R), bem como (novidade em relação à proposta de
Grize) «des images de la langue de l’autre ou de celle que l’autre attend qu’on produise»
(im L), por um lado, e das «images du support et/ou du canal de transmission de la
schématisation» (im M), por outro.208 Todas estas imagens, na coconstrução duma

não percebo, faço de conta que percebi, para que os outros percebam que eu percebi. Percebeu, ou quer
que repita?»
207
ADAM, 1999 : 107.
208
Cf. ADAM, 1999 : 107.
93

esquematização, se combinam e complexificam, numa rede de relações pressupostas


e/ou construídas, durante as interacções verbais (práticas discursivo-textuais).209
É de referir, quanto a este ponto, que o autor situa as imagens sobretudo na
dimensão da actividade discursiva e que, consequentemente, a noção que delas é dada se
encontra mais próxima da noção grizeana de representação. Recorde-se que Grize
defende que é o texto que dá a ver as imagens e que é através delas que se tem acesso às
representações que os interlocutores têm ou fazem de cada uma das instâncias, objectos,
dados e relações referidas.

2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos

Outro ponto a destacar, na adopção e adaptação adamiana da teoria grizeana à


análise discursivo-textual, diz respeito à valorização dos aspectos retóricos (porque
esquematizar é também argumentar). Aristóteles definiu a Retórica, como é sabido,
como «a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim [de] persua-
dir»210 e que as provas para tal são de três espécies, conforme residem:

a) no ethos, ou no carácter moral do orador, que acontece «quando o discurso é proferido


de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé»;
b) no pathos, ou no modo como se dispõe os ouvintes, que se verifica «quando estes são
levados a sentir emoção por meio do discurso»;
c) no logos, ou no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar,
«quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo
em cada caso particular.»211

A Retórica Clássica era, porém, uma disciplina flexível e estava mais orientada
para a persuasão do que para o discurso, ainda que este fosse o meio privilegiado de
chegar àquela. Não admira, por isso, que no «Livro II» da Retórica, o filósofo trate das
provas ou meios de persuasão centrados nas emoções do auditório (pathos) e no carácter
do orador (ethos) - reflexões que se prendem, a nosso ver, com as representações e as
imagens com que se entra e/ou constrói uma formação discursivo-textual. A título de
209
Para um inventário da multiplicidade de imagens que numa esquematização discursivo-textual se
podem manifestar, cf. id.: 108.
210
ARISTÓTELES, 1998: 48.
211
Id.: 49 e 50 (Alineação da nossa responsabilidade)
94

exemplo, sirva a passagem seguinte, onde as referências aos géneros deliberativo e judi-
ciário não invalidam o essencial da questão, isto é, a importância do alocutário:

«Muito conta para a persuasão, sobretudo nas deliberações e, naturalmente, nos proces-
sos judiciais, a forma como o orador se apresenta e como dá a entender as suas disposi-
ções aos ouvintes, de modo a fazer com que, da parte destes, também haja um determi-
nado estado de espírito para com o orador. [...] Os factos não se apresentam sob o mes-
mo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está indigna-
do e para o calmo, ou são completamente diferentes segundo critérios de grandeza. Por
um lado, quem ama acha que o juízo que deve formular sobre quem é julgado é de não
culpabilidade ou de pouca culpabilidade; por outro, quem odeia acha o contrário.»212

A condição interaccional, mesmo entre o escritor e o leitor, é defendida também


pelos autores da Nova Retórica, que afirmam claramente o valor argumentativo da acti-
vidade discursiva, a qual, como referem, faz imediatamente evocar um auditório:

«Todo discurso se dirige a um auditório, sendo muito freqüente esquecer que se dá o


mesmo com todo escrito. Enquanto o discurso é concebido em função direta do auditó-
rio, a ausência material de leitores pode levar o escritor a crer que está sozinho no mun-
do, conquanto, na verdade, seu texto seja sempre condicionado, consciente ou incons-
cientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se.»213

Cahïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca insistem na atenção que o orador,


quando argumenta, deve prestar às condições psíquicas e sociais do auditório, na procura
da adesão às teses que defende, porque «toda argumentação visa à adesão dos espíritos
e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual.»214
Os autores do Tratado da Argumentação – A Nova Retórica (1958), chegam
mesmo a pôr esta questão em termos de cortesia, quando afirmam que «querer conven-
cer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta», porque o que
se diz «não constitui uma “palavra do Evangelho”». As pessoas, continuam os autores,
212
Id.: 105-106. A lista de «comportamentos emocionais» (pathos) que, segundo Aristóteles, «convém
provocar no ouvinte», são: «a compaixão, a indignação, a ira, o ódio, a inveja, a rivalidade, o sentimento
de discórdia.» [Id.: 224-225] Quanto ao ethos, o filósofo descreve os caracteres do jovem, do idoso, dos
que se encontram no auge da vida, dos nobres, dos ricos e dos poderosos. [Cf. id.: 136-143]
213
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 : 7. Consultámos a tradução portuguesa, variante brasi-
leira, por não nos ter sido possível consultar a edição na língua original.
214
Id.: 16.
95

«desejam que não lhes ordenem [...], mas que lhes ponderem, que se preocupem com
suas reações, que os considerem membros de uma sociedade mais ou menos igualitária.»
E acrescentam:
«Quem não se incomoda com um contato assim com os outros será julgado arrogante,
pouco simpático, ao contrário daqueles que, seja qual for a importância de suas funções,
não hesitam em assinalar por seu discursos ao público o valor que dão à sua aprecia-
ção.»215

Estes retóricos chegam mesmo a comparar, como faz K. F. Bruner, aqueles auto-
res que apresentam comunicações ou relatórios científicos sem se preocuparem com o
público a que se dirigem, a visitantes descorteses que não têm em consideração quem os
recebe.216 A conclusão, portanto, só pode ser a seguinte: «Cada orador pensa, de uma
forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o
auditório ao qual se dirigem seus discursos.»217

Os retóricos contemporâneos são ainda mais claros, quer quanto à noção de Retó-
rica, quer quanto aos valores que, a esse nível, as esquematizações discursivo-textuais
sempre contemplam, porque sempre entendidas como interacções verbais explícitas ou
implícitas. Michel Meyer, por exemplo, depois de recensear várias das principais defi-
nições de Retórica, observa que por detrás todas delas «se cache en fin de compte une
structure bien précise, respectivement, la relation entre soi et autrui (ethos et pathos,
selon Aristote) via un langage (logos) ou simplement un instrument de communication.»
Para este filósofo, a Retórica é o encontro dos homens na linguagem, na exposição das
suas diferenças e das suas identidades. Daí que Retórica, nos dias de hoje, seja «la né-
gociation de la distance entre des hommes à propos d’une question, d’un problème.»218
E veja-se a proximidade existente entre as noções de cortesia e descortesia linguística e a
noção de Retórica que ele dá, como Argumentação:

«D’une façon générale, la rhétorique va naître de la prise en compte de la distance


entre les locuteurs, qui va directement se négocier ou s’affirmer, et l’on aura la valorisa-
tion du locuteur (argument d’autorité), sa dévalorisation éventuelle pour mieux faire

215
Id.: 18.
216
Cf. id.: 20.
217
Id.: 22.
218
MEYER, 1993 : 21-22 e 22.
96

passer une thèse propre, ou symétriquement, la valorisation ou l’attaque directe de


l’interlocuteur. La minimisation ou le grossissement (l’atténuation des différences ou la
mise en valeur des identités) peut aussi porter sur ce dont il est question expressément ou
au travers de la réponse.»219

Só muito recentemente os linguistas e, entre eles, em particular os que conside-


ram as realizações verbais como actos de comunicação (Linguística Pragmática) come-
çaram a interessar-se pelos valores retóricos da linguagem. Ducrot terá sido um dos pri-
meiros que se interessaram pela argumentação linguística,220 ao integrar a noção do
ethos aristotélico no quadro da sua teoria polifónica.221 Parafraseando a noção aristotéli-
ca, observa Ducrot que um dos segredos da persuasão consiste em que o orador dê de si
próprio uma imagem favorável (ethos), através da qual «séduira l’auditeur et captera sa
bienveillance».222
Maingueneau, por seu turno, retoma também a noção aristotélica de ethos, de que
destaca, por um lado, a «voz», isto é, «les propriétés que se conféraient implicitement les
orateurs à travers leur manière de dire: non pas ce qu’ils disaient explicitement sur eux-
-mêmes, mais ce qu’ils en montraient par leur façon de s’exprimer.»223 Os textos, por
isso, tanto os orais como os escritos, sendo sempre destinados a agir sobre quem os ouve
ou lê, suscitarão tanta maior adesão quanto mais apresentarem um «tom», uma maneira
de dizer «qui confère dans l’énonciation même du texte une sorte de réalité physique aux
idées défendues». Neste sentido, os textos possuem também um «corpo», isto é, uma
entidade que é o seu garante. Não se trata do seu autor efectivo, «mais d’un être fictif
construit par le co-énonciateur à partir des traits sémantiques du ton et éventuellement
d’autres indices, statutaires, donnés par le texte.»224
É esse garante (uma espécie de fiador) que assume a responsabilidade da ver-
dade do enunciado, porque a sua palavra «participe d’un comportement global (une ma-

219
Id.: 119.
220
Recorde-se que Ducrot & Anscombre defendem que a argumentação se encontra inscrita na própria
língua. À questão «pourquoi le discours impose-t-il à l’activité d’argumentation des contraintes spéci-
fiques qui n’ont pas leur explication dans les conditions logiques ou psychologiques de la démonstra-
tion ?», respondem os autores que «le sens d’un énoncé comporte, comme partie intégrante, constitutive,
cette forme d’influence que l’on appelle la force argumentative. Signifier, pour un énoncé, c’est orienter.
De sorte que la langue, dans la mesure où elle contribue en première place à déterminer le sens des énon-
cés, est un des lieux privilégiés où s’élabore l’argumentation.» [ANSCOMBRE & DUCROT, 19882 : 5]
221
Sobre a teoria polifónica de Ducrot, cf. DUCROT, 1984 : 171-233.
222
Id.: 200-201.
223
MAINGUENEAU, 1991: 183.
224
Id.: 184.
97

nière de se mouvoir, de s’habiller, d’entrer en relation avec autrui…)», sendo-lhe atri-


buído, assim, «un caractère, un ensemble de traits psychologiques (jovial, sévère, sym-
pathique…), et une corporalité (un ensemble de traits physiques et vestimentaires).»225
«Carácter» e «corporalidade» que «proviennent d’un ensemble diffus de représentations
sociales valorisées ou dévalorisées, sur lesquelles l’énonciation s’appuie et qu’elle con-
tribue en retour à conformer ou à transformer.» Trata-se, portanto, de estereótipos socio-
culturais (conceito que podemos aproximar da noção grizeana de PCC) que «circulent
dans les domaines les plus divers: littérature, photos, cinéma, publicité...»226
Nesta ordem de ideias, ao interpretar um discurso-texto, oral ou escrito, o ouvinte
ou leitor constrói uma representação duma «instância subjectiva que garante a enuncia-
ção» e sob a influência do seu ethos, dá-se origem a um mecanismo de «incorpara-
ção»,227 termo que Maingueneau define por três aspectos indissociáveis:

«- l’énonciation amène le co-énonciateur à conférer um ethos à son garant, elle lui donne
corps ;

- le co-énonciateur incorpore, assimile ainsi un ensemble de schèmes qui définissent


pour un sujet, à travers une manière de tenir son corps, de l’habiter, une manière spéci-
fique de s’inscrire dans le monde ;

- ces deux premières incorporations permettent la constitution d’un corps, de la commu-


nauté imaginaire de ceux qui communient dans l’adhésion à un même discours.»228

Um texto, por isso, «n’est pas destiné à être contemplé, il est énonciation tendue
vers un co-énonciateur qu’il faut mobiliser, faire adhérer “physiquement” à un certain
univers de sens.» Universo de sentido que «s’impose par l’ethos comme par les “idées”
qu’il transmet», já que «ces idées se présentent à travers une manière de dire qui renvoie
à une manière d’être, à la participation imaginaire à un vécu.»229

225
MAINGUENEAU, 1996: 40.
226
MAINGUENEAU, 1998 : 80-81.
227
Esta mesma ideia de «incorporação» a encontra Meyer no ethos, relacionado com o princípio de auto-
ridade, em virtude do qual «on accepte une réponse donnée, on y ajoute foi ou on prend appui sur elle,
sans la remettre en question.» É o carácter do orador ou do locutor, a sua postura moral, social ou outra
que faz com que se aceite o que ele diz, «parce qu’il est “bien placé pour le dire”, parce qu’il “connait la
question”, on accepte de faire corps – ou communauté – avec lui.» [MEYER, 1993 : 116-117]
228
MAINGUENEAU, 1998 : 81.
229
Id.: 81.
98

Para conseguir, porém, tais objectivos, a Retórica, como observa Michel Wau-
thion, «a besoin de maîtriser parfaitement, en plus de la technique de persuasion, les
enjeux sociaux de la réception.»230 E aqui que entra, de novo, a cortesia na sua dimensão
retórica, ou melhor, a dimensão retórica da cortesia, porque, para persuadir, não basta ser
eficaz no dizer, mas também (inclusive para sê-lo) fazê-lo de forma agradável, isto é,
cortesmente. A cortesia é, por isso, «directement interactionnelle», pois que ela é

«l’ensemble des moyens par lesquels le langage gère, au nom du sens commun, le fonc-
tionnement de la communication interpersonnelle. C’est bien une politesse qui arrondit
les angles, dont la fonction première est d’aménager la paix sociale entre les individus.
Lubrifiant et art des bonnes manières, mais aussi correction linguistique […], la poli-
tesse est un moyen d’acquérir une neutralité de l’expression qui n’est pas une façon insi-
gnifiante de parler.»231

2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia

Encontra-se na noção de garante de Maingueneau um equivalente da noção


ducrotiana de locutor enquanto tal (L), que o autor de Le Dire et le Dit liga também à
noção aristotélica de ethos, ao propor a sua teoria polifónica.

«Dans ma terminologie, je dirais que l’ethos est attaché à L, le locuteur en tant que tel:
c’est en tant qu’il est source de l’énonciation qu’il se voit affublé de certains caractères
qui, par contrecoup, rendent cette énonciation acceptable ou rebutante. Ce que l’orateur
pourrait dire de lui, en tant qu’objet de l’énonciation, concerne en revanche λ, l’être du
monde, et ce n’est pas celui-ci qui est en jeu dans la partie de la rhétorique dont je parle
(la distance entre ces deux aspects du locuteur est particulièrement sensible lorsque L
gagne la faveur de son public par la façon même dont il humilie λ: vertu de
l’autocritique).232

Recorde-se que esta distinção se encontra já em Aristóteles, quando, ao descrever


a prova centrada no ethos, observa que o orador deve mostrar-se «digno de fé», porque
«acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas». Mas acrescenta, de ime-

230
WAUTHION, 2000: 9.
231
Id.: 10.
232
DUCROT, 1984 : 201.
99

diato, que é «necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opi-
nião prévia sobre o carácter do orador», ainda que este seja «o principal meio de persua-
são».233
Interpretando a noção do ethos aristotélico, com o desenvolvimento que ela teve
depois, em consequência de novas reflexões e propostas de retóricos, filósofos, teóricos
da literatura e linguistas, Adam distingue, na análise das esquematizações discursivo-
-textuais, dois níveis, no que toca ao sujeito enquanto ser do mundo e enquanto sujeito
do discurso. O primeiro é uma entidade não linguística, um elemento apenas contextual,
a cujo ethos prévio, o coesquematizador (B) pôde aceder e/ou construir (representar)
através de informações exteriores ao(s) discurso(s) por ele produzido(s). Trata-se «du
sujet dans le monde, de la personne pourvue d’une carte d’identité et d’une état civil,
possédant ou non une ou des maisons, automobiles, animaux domestiques, mariée ou
célibataire, etc.»234 O segundo é o sujeito comprometido na interacção verbal, isto é,
tanto o locutor L como o locutor λ de Ducrot.
Numa esquematização discursivo-textual, Adam distingue, então, dois tipos de
expressões verbais de natureza retórica, a saber:

a) «Expressions rattachées au locuteur en tant qu’être du monde (ethos explicite,


montré)».235
b) «Expressions rattachées au locuteur en tant que tel (ethos implicité, insinué)».236

O locutor, em a), «parle depuis une fonction (place) et le (ou les) rôle(s) qu’il
assume», isto é, apoiado no ethos prévio, institucional e socialmente reconhecido, que
lhe permite utilizar determinadas expressões autorreferenciais explícitas, como ser do
mundo e que provocam a adesão de quem o ouve ou lê.237 Em b), o ethos do locutor en-
contra-se implícito ou insinuado e «[il] passe dans la schématisation par un lexique éva-
luatif, par une syntaxe expressive exclamative, les suspensions et autres phrases inache-
vées, mais surtout, à l’oral, par les intonations et la diction.»238

233
ARISTÓTELES, 1998: 49.
234
ADAM, 1999 : 113.
235
Id.: 113.
236
Id.: 114.
237
Cf. id.: 113-114. O autor dá e analisa, como exemplo, um discurso de Charles de Gaulle, proferido em
Argel, a 4 de Junho de 1958, na qualidade de Presidente do Conselho e de Chefe de Estado da França.
Adam analisa várias vezes este discurso, a propósito de aspectos discursivo-textuais sobre que teorizara.
[Cf. id.: 63-64; 74-76 e 132-136]
238
Id.: 114.
100

Tendo em atenção estas distinções de ethos, a saber, entre uma representação


psicossocial prévia ao discurso e uma representação discursivo-textualmente esquemati-
zada, de forma explícita (a) ou inplícita (b), Adam faz corresponder à segunda «une figu-
re qui est celle d’un sujet toujours imaginaire pour celui qui interprète une schématisa-
tion».239
O autor elabora, por isso, um novo esquema de comunicação, através do qual
procura «souligner les décalages de l’interaction entre A et B (quel que soit le suport-
média: oral ou écrit dans l’espace et/ou dans le temps).»240 No esquema seguinte (FIG.
13), esse sujeito imaginário é notado A/L*.

Sujet dans SCHÉMATISATION


le monde
Représentations image de
A
et Locuteur de B, de la situation A/L*
PROPOSÉE
Représentation et de l’objet du Préconstruits
(ethos discursif)
extralinguistique discours et Finalités
de SOI
iB*
Sujet dans
être de
le monde
discours Représentations B
Préconstruits de A, de la situation
et Finalités
A/L*
Imaginaire
RECONSTRUITE et de l’objet du Représentation
discours extralinguistique
de SOI

FIG. 13 – Complexidade das imagens dos (inter)locutores, segundo ADAM, 1999: 115

Com este novo esquema, Adam procura pôr em evidência a diferença existente
entre a imagem, sobretudo de A, construída a partir do discurso (oral ou escrito) e a
complexidade da análise dessa diferença. Ao nível das esquematizações discursivo-tex-
tuais orais é, segundo o autor, a «condição de sinceridade» que pode levar B a associar
ou a dissociar a representação anterior ao discurso que tem de A e a representação que
reconstrói, enquanto ouve A, o esquematizador. Ao nível das escritas, verifica-se um
processo inverso, isto é, durante a leitura ou depois dela, B pode associar ou dissociar a
representação que reconstrói de A e verificar se ela se mantém, distancia ou separa da
representação que tinha de A, antes do discurso-texto. A propósito, Adam chama a aten-
ção para o particular cuidado que se deve ter com os textos literários, face à tentação e
239
Id.: 115.
240
Id., ibid.
101

ao contra-senso da crítica ingénua («naïve») «de confondre l’ethos produit au terme de


la lecture avec la personne de l’auteur».241

Não é característica apenas das formações discursivo-textuais literários estes


desdobramentos do sujeito locutor (A), mas tratemos agora deles, sejam eles assumidos
ou não pelos escritores, deles tenham consciência ou não os leitores reais (também sujei-
tos deste mundo), sempre primeiros destinatários dessas práticas, indirecta ou directa-
mente representados, isto é, pré-sentidos e presentificados (B, por isso, ainda que imagi-
nário) pelo esquematizador A. Aliás, também os leitores, durante a leitura dum mesmo
texto literário, realizada num mesmo contexto ou em contexto diferente, sofrem seme-
lhantes desdobramentos, o que se reflecte, por exemplo, nas diversas emoções sentidas
na leitura dum romance,242 ou nas variantes interpretativas que dele faz um crítico.243
Com Luísa Opitz dizemos, por isso, que «tanto é enunciador fictício do texto aquele que
o dá a ler como aquele que se prende a lê-lo»,244 ou seja, a escrita duma ficção como a
sua leitura são sempre coenunciações, isto é, interacções, ainda que diferidas. É só quan-
do entra nesse jogo de ficção (de fingimento245) e deixa de ser o ser do mundo real que é,
para ser o ser do mundo possível convocado por aquela esquematização discursivo-tex-
tual sui generis, nele representando os papéis que, explícita ou implicitamente, lhe são
atribuídos, que o leitor passa efectivamente a dialogar, a compreender, a comungar
(«incorporar», diria Maingueneau) com o texto que está a ler e com o locutor fictício que
com ele trava esse diálogo especial, o narrador.

Está definitivamente provado pelos narratólogos que, ao nível da produção, dife-


rentes são as entidades ficcionais que adquirem voz e que, por isso, de forma mais ou
menos clara, podem ser identificadas e reconhecidas. É o conceito bakhtiniano de dialo-

241
Id., ibid.
242
A mero título de exemplo, caricatural mas significativo, pense-se nas comoções lacrimosas que adoles-
centes sentiam na leitura, por exemplo, do Amor de Perdição ou da Rosa do Adro.
243
«Comecei a leitura de certo livro no rés-do-chão. Acabei-o no terceiro andar de outra casa, de outra
terra. De permeio li algumas páginas, por sinal, julgo, importantes, para entender correctamente o enredo e
a estrutura formal, no avião. Li então três livros?» Jorge Listopad aproveita para se interrogar sobre a
influência que o «environement radicalmente diferente» tem na leitura e conclui: «Tudo o que fazemos
está ligado à experiência do lugar no sentido lato da palavra.» [Jornal de Letras, 06/05/1998, p. 44]
244
OPITZ, 1989: 213.
245
Observa Carlos Reis que o mundo possível «nos conduce a un aspecto fundamental constitutivo del
texto literario: su condición ficcional que puede ser relacionada, incluso desde el punto de vista etimológi-
co, con el concepto de fingimiento.» E explica: «Si en latín fingere significa plasmar, formar, entonces el
fingimiento artístico que origina textos literarios de ficción designa una modelación estético-verbal y no
implica necesariamente otra ficción en la que pueda ser entendido el fingimiento: la acepción despreciati-
va de hipocresía o falsedad.» [REIS, 1995: 12]
102

gismo e de polifonia, segundo o qual, a voz (discurso) dum locutor narrador se articula
e dialoga com outras vozes (discursos), fazendo-as ouvir. Ao traduzir e ao explicitar o
termo russo slovo utilizado por Bakhtine, que além de palavra significa também discur-
so,246 observa Júlia Kristeva:

«Le mot / le discours pour Bakhtine n’a pas sa vérité dans un référent extérieur au dis-
cours qu’il doit refléter. Mais il ne coïncide pas non plus avec le sujet cartésien, posses-
seur de son discours, identique à lui-même et se représentant en lui. Ce mot / ce discours
est comme distribué sur différentes instances discursives qu’un “je” multiplié peut occu-
per simultanément. Dialogique d’abord, car nous y entendons la voix de l’autre – du
destinataire -, il devient profondément polyphonique, car plusieurs instances discursives
finissent par s’y faire entendre.»247

Referimo-nos já ao dialogismo bakhtiniano. Quanto à noção de polifonia, como


dissemos e se deduz da breve definição de Kristeva, o termo prende-se sobretudo com as
vozes, a própria e a(s) do(s) outro(s), que se ouvem no discurso do sujeito locutor (no
domínio da literatura ou não, em textos escritos ou orais). O pensador russo di-lo insis-
tentemente, sobretudo em A Poética de Dostoievski.248 Depois de referir que a vida da
palavra / discurso reside na sua passagem dum locutor a outro, dum contexto a outro,
duma colectividade a outra, duma geração a outra, acrescenta, em jeito de conclusão:

«Tout membre d’une collectivité parlante trouve non pas des mots neutres “linguis-
tiques”, libres des appréciations et des orientations d’autrui, mais des mots habités par
des voix autres. Il les reçoit par la voix d’autrui, emplis de la voix d’autrui. Tout mot de

246
O próprio Bakhtine reflecte sobre o significado da «vaga palavra “discurso”» em russo, a qual «se
refere indiferentemente à língua, ao processo da fala, ao enunciado, a uma sequência (de comprimento
variável) de enunciados, a um gênero do discurso, etc.». E acrescenta, continuando possivelmente a ter
razão, que «esta palavra, até agora [o texto é datado de 1952-53], não foi transformado pelos lingüistas
num termo rigorosamente definido e de significação restrita», concluindo que «fenômenos análogos ocor-
rem também em outras línguas». [BAKHTIN, 1992: 292-293]
247
KRISTEVA, 1970 : 13-14.
248
«Depois de Dostoievski, a polifonia invade a literatura universal», afirma Bakhtine. [BAKHTIN, 1992:
340] Mas se, como insistentemente defende, todo o discurso é polifónico, não será contraditório dizer que
antes do grande romancista russo tal propriedade não se encontrava nos textos literários? Quando, inclu-
sive, neste seu livro afirma que: «L’artiste prosateur évolue dans un monde rempli de mots d’autrui, au
milieu desquels il cherche son chemin, et doit avoir une oreille particulièrement fine pour percevoir en eux
toute leur spécificité.» [BAKHTINE, 1970 : 277]. Como se sabe, o termo polifonia está intimamente rela-
cionado com a música, como facilmente se ouve nesta como noutras passagens do autor.
103

son propre contexte provient d’un autre contexte, déjà marqué par l’interprétation
d’autrui. Sa pensé ne rencontre que des mots déjà occupés.»249

É portanto também duma pluridiscursidade que se trata, a qual, como sempre


refere Bakhtine, é uma propriedade observável não só nos textos literários, em particular
no romance, mas também nos textos correntes.250 De facto, o pensador russo insistente-
mente afirma que, no «grande diálogo da comunicação verbal», marcado pela complexi-
dade das relações humanas, «Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinita-
mente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas [...], inapreensíveis, e vozes pró-
ximas que soam simultaneamente.»251

Subjaz a esta concepção dialógica e polifónica o problema filosófico da alterida-


de psicológica do ser humano. Um eu que se desdobra num tu (que é sempre um outro),
tu que desempenha um papel fundamental, já que é face a esse tu/outro, que o eu se
afirma e define, social e discursivamente, no diálogo consigo próprio e no diálogo com
o(s) outro(s), que num eu e num tu/outro também se desdobra(m), como foi descrito.

«Na qualidade de sujeito, jamais coincido comigo mesmo: eu, como sujeito do ato
pelo qual tomo consciência de mim, ultrapasso os limites do conteúdo desse ato».252

«O que é indispensável para a criação de um todo artístico (inclusive no caso de uma


obra lírica), não é expressar sua vida e sim expressar-se sobre sua vida pela boca do
outro. [...] o sujeito da vida e o sujeito da atividade estética, que lhe dá a sua forma,
não podem por princípio coincidir.»253

A presença discursiva do outro torna-se assim um dado fundamental na teoria do


sujeito e na teoria do discurso de Bakhtine, teorias que sempre reclamam o outro, o qual,
convém não esquecer, também tem direito à palavra / discurso, também é detentor da
palavra / discurso, não só quando na posição A, mas também na posição B, para reto-

249
BAKHTINE, 1970: 279.
250
Como observam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, «o facto de o romance ser particularmente visado
pelos textos bakhtinianos decorre apenas da circunstância de nele se observar com especial nitidez a ocor-
rência da pluridiscursividade». [REIS & LOPES, 19902: 321-322]
251
BAKHTIN, 1992: 353.
252
Id.: 124. Negritos da nossa responsabilidade.
253
Id.: 102-103. Negritos da nossa responsabilidade.
104

marmos os lugares que, segundo a esquematização discursivo-textual proposta por Gri-


ze, os (inter)locutores ocupam:

«A palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito, expresso, situa-se


fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence com exclusividade. Não se pode deixar
a palavra para o locutor apenas. O autor (o locutor) tem seus direitos imprescindíveis
sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes
soam na palavra têm seus direitos (não existe palavra que não seja de alguém).»254

254
Id.: 350.
Capítulo II

CORTESIA LINGUÍSTICA
Teoria(s)

Toutes les sciences humaines ont leurs mythes fondateurs.


Christian Plantin1

É no quadro teórico da cortesia linguística proposto por Kerbrat-Orecchioni que


procuraremos descrever e analisar representações verbais de cortesia e de descortesia,
em práticas discursivo-textuais do Português europeu. Esta linguista não apresenta,
todavia, um modelo completamente original. A sua proposta de descrição e análise é,
como esclarece, uma síntese das teorias de Lakoff, Leech e, sobretudo, de Brown &
Levinson,2 que considera os teóricos que melhor identificaram a especificidade do
fenómeno,3 tendo sido, além disso, os que primeiro o abordaram, segundo uma perspec-
tiva essencialmente linguística. A eles se fica a dever, por um lado, o reconhecimento da
importância que a cortesia, em geral, e a cortesia verbal, em particular, passaram a ter
na comunicação (sobretudo oral, mas também escrita) e, por outro, no estabelecimento
duma terminologia específica de base, fundamental à descrição e sistematização cientí-
fica da cortesia linguística.
Julgamos conveniente, por isso, antes de apresentar o «sistema da cortesia» pro-
posto pela linguista francesa, cujas linhas essenciais seguimos ao longo deste trabalho,
apresentar as linhas fundamentais dos modelos teóricos de cada um destes autores.

1. As teorias fundadoras

Lakoff, Leech, e Brown &Levinson4 são considerados, pela grande maioria dos
estudiosos, os fundadores da cortesia linguística, tal como ela é entendida hoje, ou seja,

1
PLANTIN, 1996: 4.
2
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183.
3
Cf. id.: 163.
4
A ordem cronológica por que vieram a público as teorias destes autores não é exactamente coincidente
com a ordem aqui apresentada. Com efeito, se Lakoff publica, em 1973, o seu conhecido ensaio «The
logic of politeness; or, minding your p’s and q’s», segue-se-lhe a primeira versão do estudo de Brown &
106

como uma dimensão essencialmente pragmática que percorre toda a actividade discursi-
vo-textual. Gino Eelen, para citarmos apenas uma das afirmações mais recentes, chama-
-lhes mesmo «the “founding fathers” of modern politeness research», uma vez que as
suas teorias «figure (or are at least mentioned) in a great many if not most of the publi-
cations on the subject.»5
É certo que outros autores se tinham referido ou vinham referindo aos fenóme-
nos da cortesia verbal, como vimos no capítulo anterior (Bally, Bahktine), mas apenas
como aspectos pontuais e não de forma sistematizada, teórica e metodologicamente. Na
área da Filosofia da Linguagem, são de referir os nomes de Paul Grice e John Searle, e
na área da Etologia merece especial referência o nome de Erving Goffman.
O conhecido autor de Speech Acts observava, em 1965, ao distinguir regras
normativas de regras constitutivas, no uso de expressões verbais, que as primeiras
«governam formas de comportamento anteriormente existentes: por exemplo, as regras
de etiqueta regulam as relações interpessoais», acrescentando que «estas relações exis-
tem independentemente das regras de etiqueta.»6 O autor volta a referir-se à cortesia
verbal, em 1971, ao propor e descrever a sua taxinomia dos actos ilocutórios. A propó-
sito do interesse que desperta a análise dos actos directivos directos vs. indirectos,
observa que «les réquisits conversationnels habituels rendent difficilement admissible
de proférer des phrases purement impératives (par exemple: “Sortez de cette pièce”) ou
des performatifs explicites (par exemple: “Je vous ordonne de sortir de cette pièce”)».
Acrescenta que se torna necessário, por isso, «découvrir des moyens indirects pour nos
fins illocutoires (par exemple: “Est-ce que cela ne vous gênerait pas de sortir de cette
pièce?”).» E termina: «En ce qui concerne les directifs, c’est la politesse qui constitue la
principale motivation en faveur de l’indirectivité.»7
Mas foi, como dissemos, com Lakoff, Leech e Brown & Levinson que a cortesia
verbal, a partir dos anos 70 do século passado, passou a domínio relativamente autóno-
mo dentro dos estudos linguísticos. De conjunto de formas e fórmulas que gramáticos,

Levinson, em 1978, aparecendo, em 1980 e em 1983, os estudos de Leech sobre a cortesia. A propósito,
refira-se que, em Principles of Pragmatics, Leech informa: «Earlier accounts of politeness in terms of
rhetorical principles and maxims are to be found in Leech (1980: 9-30, 79-116)», onde um dos estudos aí
referidos - «Language and tact» - foi publicado, pela primeira vez, em 1977. [Cf. LEECH, 199610: 18,
nota 10, bem como, aqui, Bibliografia e infra.] Dado, porém, que a segunda versão do estudo de Brown &
Levinson reaparece só em 1987, a qual faz já referências também à teoria de Leech, julgamos ser mais
indicada a ordem que adoptamos na apresentação destas teorias.
5
EELEN, 1999: 27-28.
6
SEARLE, 1983: 64. Também em SEARLE, 1981: 47. (Itálicos da nossa responsabilidade.)
7
SEARLE, 1982: 77. (Itálicos da nossa responsabilidade.) Sobre a cortesia / descortesia e a questão da
directividade dos actos ilocutórios, ver, infra, cap. VII.
107

dicionaristas e tratadistas de etiqueta e boas maneiras registavam como meios que as


pessoas (as consideradas mais cultas ou urbanas) utilizavam sobretudo em situações
formais de comunicação, a cortesia verbal, as regras e os princípios que lhes estavam
subjacentes passaram a constituir também objecto próprio dos estudos linguísticos, em
geral, e das disciplinas que se ocupam das práticas discursivo-textuais, em particular.

1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff

Pioneira na matéria, segundo Kerbrat-Orecchioni,8 Lakoff é um dos primeiros


linguistas a reconhecerem as insuficiências da gramática generativo-transformacional
para explicar a correcção ou incorrecção duma frase, por ausência de contexto, tanto
linguístico (cotexto) como não linguístico (contexto).9 Defende então que, tal como foi
possível definir regras sintácticas, será igualmente possível estabelecer regras pragmáti-
cas que «determinaran si una expresión es pragmáticamente correcta o no»10. A compo-
nente pragmática, por isso, «forma parte de las responsabilidades del lingüista igual que
cualquier otra parte de la gramática», ou seja, «la pragmática interacciona con la sin-
taxis y la semántica y no puede ser considerada aparte».11 Ao nível do comportamento
comunicativo, Lakoff propõe «duas regras básicas» que designa como «Máximas da
Competência Pragmática», a saber: «1. Sea claro» e «2. Sea cortés.» 12
A autora esclarece estas máximas em termos de comunicação e de relação pes-
soal, nos seguintes termos:

«si se pretende comunicar un mensaje directamente, si el primer objetivo que tenemos


al hablar es la comunicación, intentaremos ser claros para que no nos malinterpreten.
Pero si la pretensión del hablante es situarse respecto al nivel y condición de cada uno
de los participantes en el discurso, indicando dónde, según su apreciación, está cada
uno, entonces su objetivo será no tanto la claridad como el expresar buenos modales. A
veces [...], la claridad es cortesía. Pero a menudo hay que escoger entre Escila y Carib-
dis.» 13

8
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183. Eelen, por seu turno, considera-a «the mother of modern
politeness theory». [EELEN, 1999: 10]
9
LAKOFF, 1998: 259. Usamos a tradução espanhola, por impossibilidade de acesso a edição em Inglês.
10
Id.: 265.
11
Id.: 264.
12
Id.: 265.
13
Id.: 266.
108

À máxima de clareza Lakoff faz corresponder, seguindo a teoria da lógica con-


versacional de Grice, as máximas que especificam o princípio de cooperação (PC).14
Para este filósofo da linguagem, num contexto de conversação, os interlocutores, porque
seres racionais e cooperantes, estão interessados, antes de mais, em transmitir eficaz-
mente as suas mensagens. Obedecem, por isso, a um princípio geral, tacitamente aceite
por todos, que formula nos seguintes termos:

«Make your conversational contribution such as is required, at the stage at which it


occurs, by the accepted purpose or direction of the talk exchange in which you are en-
gaged.»15

Grice especifica, depois, o PC em quatro categorias ou máximas e estas, por seu


turno, em nove submáximas, como segue:

Máxima de quantidade:

«1. Make your contribution as informative as is required (for the purpose of the ex-
change).
2. Do not make your contribution more informative than is required.»

Máxima de qualidade:16

«1. Do not say what you believe to be false.


2. Do not say that for which you lack adequate evidence.»

Máxima de relação:

«Be relevant.»

Máxima de modo:17

«1. Avoid obscurity of expression.


2. Avoid ambiguity.
3. Be brief (avoid unnecessary prolixity)
4. Be orderly.»18
14
Para Moeschler, a teoria de Grice «a inauguré une manière totalement nouvelle de voir la pragmatique
et le problème de la communication». [MOESCHLER & REBOUL, 1994 : 202] Para uma exposição
crítica da lógica conversacional e das implicaturas griceanas, cf. id.: 202-217 e 251-275, respectivamente.
15
GRICE, 19954: 26.
16
Grice formula esta «super-máxima» assim: «Try to make your contribution one that is true». [Id.: 27]
17
Grice formula esta «super-máxima» nos seguintes termos: «Be perspicuous.» [Id.: 27]
109

Além do PC e das máximas conversacionais que permitem as implicaturas con-


versacionais,19 Grice reconhece a existência doutras máximas, sem as descrever, e que
os interlocutores podem respeitar, no decurso duma conversa(ção), tais como estéticas,
sociais ou morais, destacando, como exemplo, precisamente, «Be polite»20
Lakoff retoma de Grice21 esta máxima e, a partir dela, estabelece três máximas
ou regras de cortesia, que têm em consideração outros aspectos importantes, nos actos
de comunicação, que não apenas os estritamente informativos. Essa máxima da compe-
tência pragmática – Sê / seja cortês – é especificada em três máximas de cortesia:

«1. No importune.
2. Ofrezca alternativas.
3. Haga que O[yente] se sienta bien – compórtese amigablemente.»22

Lakoff descreve e exemplifica, de acordo com o contexto, qual destas máximas


(M1, M2 ou M3, para notação simplificada) e correspondentes processos linguísticos
são mais adequados ao funcionamento da cortesia verbal.
M1, reformulada como «manténgase distante, no se inmiscuya “en los asuntos
de los demás”», aplica-se, especialmente, nas situações formais, aquelas em que há uma
clara diferença social, ou falta de intimidade entre os interlocutores. Pedimos autoriza-
ção, geralmente através de pergunta, para fazer ou dizer algo que não é da nossa conta,
ou recorremos a construções passivas e impessoais, ao nós académico e de modéstia, ou
a termos técnicos para nomear o inominável, como é o caso dos tabus. Trata-se de pro-
cessos linguísticos que criam «una sensación de distanciamiento entre el hablante y lo
que dice, o entre el hablante y el oyente.»23

18
Para a apresentação das máximas e submáximas, cf. id.: 26-27. Do PC e suas máximas conversacionais
há já várias apresentações, em Português. O essencial encontra-se, por exemplo, em GOUVEIA, 1996:
402-409 e RODRIGUES, 2001: 147-153.
19
Grice define assim uma implicatura conversacional: «A man who, by (in, when) saying (or making as if
to say) that p has implicated that q, may be said to have conversationally implicated that q, provided that
(1) he is to be presumed to be observing the conversational maxims, or at least the Cooperative Principle;
(2) the supposition that he is aware that, or thinks that, q is required in order to make his saying as if to
say p (or doing so in those terms) consistent with this presumption; and (3) the speaker thinks (and would
expect the hearer to think that the speaker thinks) that it is within the competence of hearer to work out, or
grasp intuitively that the supposition mentioned in (2) is required». [GRICE, 19954: 30-31]
20
Cf. Id.: 28. Negrito da nossa responsabilidade.
21
Lakoff continua a seguir de perto, na sua concepção da cortesia, a lógica conversacional de Grice,
como se pode verificar em LAKOFF, 1995. A propósito, refira-se que Fraser, ao agrupar as principais
teorias da cortesia linguística, situa a de Lakoff, bem como a de Leech, na «conversational-maxim view».
[Cf. FRASER, 1990: 220 e 222-227]
22
LAKOFF, 1998: 268.
23
Cf. id.: 268-270.
110

M2 - Ofrezca alternativas - aplica-se, sobretudo, quando há equilíbrio social


entre os interlocutores, mas falta de familiaridade e confiança. Oferecer alternativas
equivale a apresentar as coisas de maneira que a recusa da própria opinião ou oferta não
seja sentida como polémica. «Permitamos que A tome sus propias decisiones – dejé-
mosle una serie de opciones abiertas», é a reformulação desta máxima. O recurso a
determinadas partículas e eufemismos permite, por um lado, que o ouvinte tenha toda a
liberdade para tomar uma decisão e, por outro, que o locutor, abstendo-se de impor a
sua autoridade, evite o risco de ofender o ouvinte.24
Por último, M3 - Haga que O[yente] se sienta bien - compórtese amigablemente
– adapta-se perfeitamente às situações em que a relação entre os interlocutores é muito
próxima. Lakoff diz que esta «es la máxima de cortesía que parece menos “hipócrita”,
aunque también se usa con mucha frecuencia de una manera convencional cuando no se
siente auténtica amistad.» A sua aplicação dá lugar «a un sentimiento de camaradería
entre el hablante y el oyente», produzindo «una sensación de igualdad entre H[ablante]
e O[yente]», fazendo com que o «O[yente] se sienta bien», como um amigo. O uso do
tuteamento (nas línguas que o permitem), do nome próprio, de alcunhas e hipocorísti-
cos, bem como de determinadas partículas de natureza fática, são processos linguísticos
de que um locutor se serve para cumprir esta máxima.25
A caracterização individualizada de cada uma destas máximas não deve levar a
pensar-se que a sua realização e a sua análise não são complexas. Lakoff adverte para o
facto de que, se por vezes, «dos o más de estas máximas pueden actuar al mismo tiem-
po, reforzándose mutuamente», noutras «podemos vernos en la situación de escoger»
entre uma e outra, porque, de acordo com o contexto de comunicação, «una puede
imponerse a la otra».26
Ao relacionar as máximas conversacionais com as máximas de cortesia, Lakoff
acaba por considerar que aquelas são um «subgrupo» destas. Mais, um «subtipo» de
M1, uma vez que «su propósito es que el mensaje sea comunicado lo más rápidamente
posible con la menor dificultad: es decir, evitarle imposiciones al oyente (haciendole
perder el tiempo con rodeos o cuestiones triviales, o confundiéndole y llevándole a
interpretaciones erróneas)».27 Por isso, se a máxima da competência pragmática de cla-
reza (conversacional) e a de cortesia, «en ocasiones coinciden en sus efectos y se apo-

24
Cf. id.: 270-272.
25
Cf. id.: 273-275.
26
Id.: 268.
27
Cf. id.: 276 e 278.
111

yan la una a la otra», muito frequentemnete, porém, «están en un conflicto».28 Neste


caso, segue-se que

«muchas veces (aunque no siempre [...]) la Cortesía se impone: se considera más impor-
tante en una conversación evitar la ofensa que conseguir el objetivo de la claridad. Lo
que es lógico, puesto que en la mayoría de conversaciones informales la comunicación
real de ideas importantes es algo secundario respecto al mero hecho de afirmar y estre-
char relaciones.»29

Lakoff chama a atenção para um problema que, ao nível dos comportamentos


corteses, se tornou depois algo polémico, a saber, a questão da universalidade das
máximas ou regras de cortesia. A sua posição sobre a questão é a seguinte:

«Aquí afirmo que estas máximas son universales. Pero las costumbres varían. ¿Son es-
tas afirmaciones contradictorias? Creo que no. Lo que me parece que pasa, en el caso de
que dos culturas difieran en la interpretación de las buenas maneras de una acción o una
expresión, es que tienen las mismas máximas, pero distinto predominio de cada una de
ellas.»30

A proposta de Lakoff, apesar de situar claramente os fenómenos da cortesia ver-


bal31 no campo da Linguística Pragmática, não deixa de estar sujeita a críticas. As suas
máximas de cortesia não estão suficientemente articuladas entre si, nem integradas num
sistema coerente de análise. Uma outra crítica, que habitualmente lhe é dirigida, consis-
te no facto de ela não definir o que entende por cortesia32. É certo que, em «The logic of
politeness; or, minding your p’s and q’s», artigo em que a linguista expõe a sua teoria e
que temos vindo a citar, na tradução espanhola, a autora nunca chega a uma definição
clara e explícita de cortesia. Mas pode-se inferir da sua análise, como se verifica através
de citações acima feitas, que ela concebe a cortesia, sobretudo, como evitação de confli-
tos entre os interlocutores. Concepção que, mais tarde, vai precisar, ao definir a cortesia

28
Id.: 265.
29
Id.: 267.
30
Id.: 277.
31
Lakoff é, porém, de opinião que as máximas se aplicam tanto aos fenómenos verbais como aos fenó-
menos não verbais, pois todos fazem parte do mesmo sistema das acções humanas. Cf. id.: 275.
32
Breves anotações críticas à proposta de Lakoff encontram-se, entre outros, em FRASER, 1990: 223;
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183; SIFIANOU, 19992: 22; WATTS, IDE & EHLICH, 1992: 5-6.
112

como «a system of interpersonal relations designed to facilitate interaction by minimi-


zing the potential for conflict and confrontation inherent in all human interchange.»33

1.2. A teoria de Geoffrey Leech

Geoffrey Leech, cuja teoria Kerbrat-Orecchioni considera simples e coerente,34


propõe também uma análise pragmática da cortesia verbal, em princípios e máximas,
mas segundo uma perspectiva declaradamente retórica. Com efeito, além de ter em con-
sideração, por um lado, a teoria dos actos de fala de Austin e Searle, e, por outro, a teo-
ria das implicaturas conversacionais de Grice, o autor de Principles of Pragmatics
defende que, sendo a comunicação uma resolução de problemas («problem-solving»),
torna-se necessária também uma abordagem retórica, «whereby the speaker is seen as
trying to achieve his aims within constraints imposed by principles and maxims of
“good communicative behaviour”». E esclarece, de imediato, que, para tal, «not only
Grice’s Cooperative Principle, but other principles such as those of Politeness and Irony
play an important role.»35
Leech situa o estudo da cortesia verbal no âmbito da Retórica Interpessoal, que
considera ser uma das duas dimensões da Pragmática, sendo a outra a Retórica Textual,
que também formula em termos de princípios e máximas. Antes, por isso, de se apresen-
tar a teoria da cortesia proposta pelo autor, será conveniente expor, em síntese, o quadro
teórico geral da sua concepção de Pragmática, segundo a perspectiva retórica que
defende.
O linguista parte duma distinção clara entre Semântica e Pragmática, campos
distintos dentro da Linguística, mas que são, ao mesmo tempo, complementares e
mutuamente relacionados, uma vez que ambos têm o mesmo objecto de estudo: o signi-
ficado. A Semântica é um domínio da Gamática, do sistema linguístico, formal e abs-
tracto, enquanto a Pragmática é do domínio da Retórica, isto é, da realização desse sis-
tema, dessa Gramática, do uso da língua, de acordo com as situações de comunicação.36
Os princípios retóricos limitam, por isso, os comportamentos verbais de várias manei-
ras: «Cooperation and politeness, for instance, are largely regulative factors which en-
33
LAKOFF, 1990: 34, cit. por EELEN, 1999: 11.
34
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 182.
35
LEECH, 199610: xi.
36
Leech integra na noção de «speech situation»: «(i) addresser and addressee, (ii) context, (iii) goals, (iv)
illocutionary act, and (v) utterance [...], and perhaps other elements as well, such as the time and the place
of the utterance.» [Id.: 15] Para uma descrição dos elementos (i) a (v), cf. id.: 13-15.
113

sure that, once conversation is under way, it will not follow a fruitless or disruptive
path.»37
Neste sentido, Leech distingue, na realização do enunciado,38 objectivos ilocutó-
rios de objectivos sociais, os quais faz corresponder, respectivamente, à força ilocutória
e à força retórica, «ie the meaning it conveys regarding s’s adherence to rhetorical prin-
ciples (eg how far s is being truthful, polite, ironic).»39
A força pragmática de um enunciado é constituída, assim, pela sua força ilocutó-
ria mais a sua força retórica. Leech considera, por outro lado, que é tão essencial distin-
guir sentido, de força pragmática, quanto é essencial reconhecer o vínculo entre ambos
os conceitos: «force includes sense, and is also pragmatically derivable from it».40
A distinção entre Gramática/Semântica e Retórica/Pragmática liga-a Leech, por
outro lado, às três funções da linguagem de Halliday, nestes termos:

«(a) The ideational function: language functioning as a means of conveying and inter-
preting experience of the world. (This function is subdivided into two sub-
functions, the Experiential and the Logical sub-functions.)
(b) The interpersonal function: language functioning as an expression of one’s atti-
tudes and an influence upon the attitudes and behaviour of the hearer.
(c) The textual function: language functioning as a means of constructing a text, ie a
spoken or written instantiation of language.»41

Leech concorda, no essencial, com as funções de Halliday, quanto à Pragmática,


mas discorda quanto à Gramática.

«My main disagreement with Halliday, however, is over his wish to integrate all three
functions within the grammar. I maintain, in contrast, that the ideational function be-
longs to grammar (which conveys ideas to the hearer through a sense-sound mapping),
and that the interpersonal function and the textual ‘function’ belong to pragmatics.»42

37
Id.: 17.
38
Repare-se na seguinte distinção: «it is convenient to reserve terms like sentence and question for
grammatical entities derived from the language system, and to reserve the term utterance for instances of
such entities, identified by their use in a particular situation.» [Id.: 14]
39
Id.: 17. Ao longo do livro, Leech utiliza s e h para simbolizar «“speaker(s) or writer(s)” and “hearer(s)
or reader(s)” respectively.» [Id.: xiii]
40
Id.: ibid.
41
Id.: 56. Cf. também HALLIDAY, 1970 e 1973.
42
LEECH, 199610: 57. Leech escreve função entre aspas, porque discorda de Halliday quanto ao estatuto
«instrumental» da função textual, relativamente às outras duas: «I shall argue that although the textual
114

Assim, dentro de uma perspectiva geral e funcional (i. e., Gramática e Pragmáti-
ca) da linguagem, qualquer acto verbal de comunicação envolve estas três funções e
como tal é, simultaneamente, «an interpersonal transaction, or DISCOURSE», «an idea-
tional transaction or MESSAGE-TRANSMISSION» e «a textual transaction or TEXT.»
Mas estas funções estão ordenadas em relação umas às outras, visto que um enunciado
verbal completo pode ser descrito assim:

« DISCOURSE by means of MESSAGE by means of TEXT »43

Ao procurar transmitir uma certa força ilocutória ao alocutário, o locutor codifi-


ca essa força numa mensagem que transmite essa força. Os princípios da retórica inter-
pessoal são activados, neste processo de codificação (de modo análogo procedendo o
alocutário, na decodificação, mas em sentido inverso, i. e., da mensagem para a força).
A mensagem é depois codificada num texto, «which is a linguistic transaction in actual
physical form (either auditory or visual)» que, por um processo análogo, mas inverso, o
alocutário vai decodificar, passando do texto à mensagem. É aqui que os princípios da
retórica textual são operativos, pois ajudam a determinar «the stylistic form of the text
in terms of segmentation, ordering, etc.»44
Leech considera que o seu modelo é “functional” em todos os seus aspectos,
uma vez que «it shows how the various elements of grammar and rhetoric contribute to
the functioning of language in the service of goal-directed behaviour.»45 Funcionalidade
que se encontra, também, na definição de linguagem verbal, como acto de comunicação:

«Language consists of grammar and pragmatics. Grammar is an abstract formal system


for producing and interpreting messages. General pragmatics is a set of strategies and
principles for achieving success in communication by the use of the grammar. Grammar
is functionally adapted to the extent that it possesses properties which facilitate the op-
eration of pragmatic principles.»46

organization of language plays an important part in an overall functional account of language, it is mis-
leading to call the textual function a ‘function’ at all: there is something back-to-front about saying that
language has the function of producing instantiations of itself. It is not language that has the function of
transmitting itself through texts, but texts that have the function of transmitting language.» [Id.: 57]
43
Id.: 59.
44
Id.: 60.
45
Id.: 61.
46
Id.: 76.
115

Esta definição bem pode ser a leitura da esquematização que o próprio linguista
elaborou47 da sua teoria e que, a exemplo também de Eelen,48 apresentamos na FIG. 1
(ver página seguinte). Os diferentes tipos de setas, na FIG. 1, indicam que a Gramática/
Semântica envolve regras constitutivas (absolutas, descritivas), enquanto a Pragmática
(Retórica Interpessoal + Retórica Textual) envolve princípios reguladores (normativos,
relativos).
A cortesia é, assim, segundo Leech, um dos princípios pragmáticos que, ao nível
da retórica interpessoal, os interlocutores observam quando formulam e/ou interpretam
eficazmente enunciados, de acordo com os contextos de comunicação. A este nível, as
máximas conversacionais do PC de Grice podem ser complementadas pelas máximas de
um Princípio de Cortesia (PCa) e/ou de um Princípio de Ironia (PI),49 muito embora
o PC e o PCa50 sejam princípios de primeira ordem, e o PI de segunda.51 A complemen-
taridade,52 por isso, situa-se, sobretudo, entre os dois primeiros, enquanto o PI apoia ou
tira partido, sobretudo, do PCa.53

47
Cf. também LEECH, 199610: 16 e 58, para esquemas anteriores.
48
Cf. EELEN, 1999: 15.
49
«The Irony Principle (IP) may be stated in a general form as follows:

‘If you must cause offence, at least do so in a way which doesn’t overtly conflict with the PP, but al-
lows the hearer to arrive at the offensive point of your remark indirectly, by way of implicature.’»
[Id.: 82]
50
PCa corresponde, neste estudo, à sigla de Princípio de Cortesia, tradução de Politeness Principle (PP).
51
O PI «is parasitic on the other two, in the following sense. The CP and the PP can be seen to be func-
tional by direct reference to their role in promoting effective interpersonal communication; but the IP’s
function can only be explained in terms of other principles. The IP is a ‘second-order principle’ which
enables a speaker to be impolite while seeming to be polite; it does so by superficially breaking the CP,
but ultimately upholding it.» [LEECH, 199610: 142] Sobre a importância que Leech atribui a estes princí-
pios, cf. id.: 79-84; 142 e 149.
52
O PCa «can be seen not just as another principle to be added to the CP, but a necessary complement,
which rescues the CP from serious trouble.» [Id.: 80].
53
Leech reconhece ainda a existência de outros princípios, cuja descrição, porém, não chega a desenvol-
ver. O «Banter Principle», que poderemos traduzir por «Princípio de Troça (PT)», de efeito oposto ao PI:
«If we acknowledge the existence of an Irony Principle, we should also acknowledge another “higher-
order principle” which has the opposite effect. While irony is an apparently friendly way of being offen-
sive (mock-politeness), the type of verbal behaviour known as “banter” is an offensive way of being
friendly (mock impoliteness).» [Id.: 144] Evidentemente que este princípio recorda os «insultos rituais»
de que fala Labov. [Cf. LABOV, 1978: 223-288] Além do PT, correndo o risco confessado de criar
«demasiados princípios pragmáticos», Leech fala também no Princípio de Interesse e no Princípio de
Poliana. O primeiro impele-nos a «Say what is unpredictable, and hence interesting», uma vez que «con-
versation which is interesting, in the sense of having unpredictability or news value, is preferred to con-
versation which is boring and predictable.» [LEECH, 199610: 146] O segundo é baseado na «hipótese de
Poliana» dos psicólogos, segundo a qual as pessoas preferem o lado bom das coisas, inspirados na heroína
optimista do romance de E. H. Porter com o mesmo nome: «Interpreting it in a communicative frame-
work as a ‘Pollyanna Principle’ means postulating that participants in a conversation will prefer pleasant
topics of conversation to unpleasant ones.» [Id.: 147]
116

(Sub-má-
Máxima de Quantidade
ximas)
...
Máxima de Qualidade
...
Princípio de
Cooperação (PC) ...
Máxima de Relação
...
...
Máxima de Modo
...

Máxima de Tacto ...

Máxima de Generosidade ...


Princípio de
Retórica Interpessoal Cortesia (PCa)
(Função interpessoal) Máxima de Aprovação ...

Máxima de Modéstia ...

.....

. .. . .
Princípio de
Ironia (PI)
.....
........

Retórica Geral /
/Pragmát. (força) Enunciado Semântica / Gramática
(sentido) (F. ideacional)

Máxima de Foco Final

Principio de
Processabilidade Máxima de Peso Final

.....

Princípio de ..... (Máximas)


Clareza .....
Retórica Textual
(Função textual) .....
Princípio de
Economia .....

.....
Princípio de
Expressividade .....

FIG. 1- Retórica geral / Pragmática, baseado em LEECH, 199610: 16 e 58.

Apesar disso, Leech, relacionando a importância da função social entre o PC e o


PCa, reconhece a este último, em determinadas situações, uma importância de primeiro
plano, devido ao seu elevado papel regulador das relações sociais:
117

«to maintain the social equilibrium and the friendly relations which enable us to assume
that ours interlocutors are being cooperative in the first place. To put matters at their
most basic: unless you are polite to your neighbour, the channel of communication be-
tween you will break down, and you will no longer be able to borrow his mower.»54

O PC e o PCa podem, por isso, coexistir. Todavia, regra geral, perante a mesma
situação, o cumprimento das máximas de um leva ao não cumprimento das máximas de
outro. Por exemplo, quando a máxima de quantidade não é respeitada, é porque o locu-
tor quer respeitar alguma máxima do PCa. O alocutário será levado a interpretar o enun-
ciado recorrendo a uma implicatura de cortesia, ideia já defendida por Lakoff. A defini-
ção de cortesia dada por Leech é, porém, diferente da apresentada por Lakoff:

«”Minimize (other things being equal) the expression of impolite beliefs”, and there is
corresponding positive version (“Maximize (other things being equal) the expression of
polite beliefs”) which is somewhat less important.»55

A cortesia e a descortesia verbais são definidas, assim, como expressões que o


locutor manifesta, respectivamente, favoráveis ou desfavoráveis, em relação ao alocutá-
rio ou a um terceiro.

Na FIG. 1, o PCa apresenta quatro máximas, mas Leech, ao tratar esta questão,
refere mais duas, admitindo ainda a possibilidade de uma terceira. As seis máximas de
cortesia, cada uma delas constituída por duas sub-máximas, são as seguintes:

« (I) TACT MAXIM (in impositives and commissives)


(a) Minimize cost to other [(b) Maximize benefit to other]
(II) GENEROSITY MAXIM (in impositives and commissives)
(a) Minimize benefit to self [(b) Maximize cost to self]
(III) APROBATION MAXIM (in expressives and assertives)
(a) Minimize dispraise to other [(b) Maximize praise of other]
(IV) MODESTY MAXIM (in expressives and assertives)
(a) Minimize praise of self [(b) Maximize dispraise of self]

54
Id.: 82.
55
Id.: 81.
118

(V) AGREEMENT MAXIM (in assertives)


(a) Minimize disagreement between self and other
[(b) Maximize agreement between self and other]
(VI) SYMPATHY MAXIM (in assertives)
(a) Minimize antipathy between self and other
[b) Maximize sympathy between self and other]»56

Leech assenta a classificação das máximas em função de determinados actos


ilocutórios, conforme a classificação de Searle, mas substituindo a designação de direc-
tivos por impositivos, a fim de evitar eventuais confusões com alocuções directas e indi-
rectas.57 Por outro lado, a classificação das sub-máximas, onde as formulações (a) são
dadas como mais importantes e necessárias, é feita em termos de custo e benefício,
numa escala com um pólo positivo e um pólo negativo, quer para self (que equivale ao
locutor), quer para other (que corresponde, em geral, ao alocutário, mas que pode ser,
também, um terceiro, presente ou não, no contexto de comunicação58). Todavia, porque,
em sua opinião, contextos diferentes exigem tipos e graus diferentes de cortesia, Leech
classifica as funções ilocutórias em quatro grupos, de acordo com a forma como se rela-
cionam com o objectivo social de estabelecer e manter um bom relacionamento:

«(a) COMPETETIVE: The illocutionary goal competes with the social goal; eg order-
ing, asking, demanding, begging.
(b) CONVIVIAL: The illocutionary goal coincides with the social goal; eg offering,
inviting, greeting, thanking, congratulating.
(c) COLLABORATIVE: The illocutionary goal is indifferent to the social goal; eg as-
serting, reporting, announcing, instructing.
(d) CONFLICTIVE: The illocutionary goal conflicts with the social goal; eg threaten-
ing, accusing, cursing, reprimanding.»59

Nas duas últimas situações, a cortesia é ou irrelevante, por se tratar duma situa-
ção de colaboração, ou fica fora de questão, por se tratar de conflito. A cortesia é sobre-
tudo pertinente em situações competitivas e conviviais. No primeiro caso, a cortesia é

56
Id.: 132. Os parênteses rectos são da responsabilidade de Leech.
57
Cf. id.: 105-107.
58
Cf. id.: 131.
59
Id.: 199610: 104.
119

principalmente negativa, consistindo esta em minimizar a descortesia de alocuções des-


corteses; no segundo, será principalmente positiva, consistindo esta em maximizar a
cortesia de alocuções corteses.60 E nesta linha de pensamento, Leech defende que há
alocuções que são intrinsecamente descorteses, como, por exemplo, as ordens, e outras
que são intrinsecamente corteses, como, por exemplo, as ofertas.61
Além disso, o autor propõe vários tipos de escalas na determinação da importân-
cia e do tipo de cortesia, conforme os contextos: de custo-benefício,62 de opcionalida-
de,63 de indirectividade,64 de autoridade,65 de distância social66 e de elogio / crítica.67
Enquanto as escalas de custo-benefício, autoridade e distância social remetem, respecti-
vamente, para as variáveis sociais de imposição do acto de fala, da relação de poder e da
distância social, existentes entre os interlocutores,68 a escala de opcionalidade aponta
para o grau de escolha que o locutor deixa ao alocutário, o que remete, claramente, para
a regra 2 de Lakoff, Dê opções.
Os actos seguintes («impositivos», na classificação de Leech) são exemplos
duma escala, em termos de custo/benefício, de menor ou maior cortesia para com o alo-
cutário (h, nos exemplos), utilizando-se conteúdos proposicionais diferentes:

« cost to h less polite


[1] Peel these potatoes.
[2] Hand me the newspaper.
[3] Sit down.
[4] Look at that.
[5] Enjoy your holiday.
[6] Have another sandwich.
benefit to h more polite»69

60
Cf. id.: 83-84. Leech remete para Brown & Levinson quanto aos aspectos da cortesia negativa e corte-
sia positiva, relacionados com a noção de face. [Cf. id.: 102, nota 1) Os conceitos de cortesia negativa,
cortesia positiva e face serão retomados, ao tratar-se a teoria de Brown & Levinson e o «sistema da corte-
sia» de Kerbrat-Orecchioni.
61
Cf. id.: 83.
62
«on which is estimated the cost or benefit of the proposed action A to s or to h.» [Id.: 123.
63
«on which illocutions are ordered according to the amount of choice which s allows to h. [Id.: 123]
64
«on which, from s’s point of view, illocutions are ordered with respect to the lengh of the path (in terms
of means-ends analysis) connecting the illocutionary act to its illocutionary goal.» [Id.: 123]
65
«the degree of distance in terms of the ‘power’ or AUTHORITY of one participant over another.» [Id.: 126]
66
«The overall degree of respectfulness, for a given speech situation, depends largely on relatively per-
manent factors of status, age, degree of intimacy, etc., but also, to some extent, on the temporary role of
one person relative to another.» [Id.: 126]
67
«the lack of praise implicates dispraise.» [Id.: 136]
68
Sobrre estas variáveis, ver, infra, caps. II e III.
69
LEECH, 199610: 107.
120

Assim, quanto maior for o custo para o alocutário ([1]), menor é a cortesia (ou
maior a descortesia) intrínseca do acto. Pelo contrário, quanto maior é o benefício para o
alocutário ([6]), maior é a cortesia intrínseca do acto.
Uma estratégia muito utilizada pelos interlocutores para minimizarem a descor-
tesia de um acto é o recurso à indirectividade. Refere Leech:

«Indirect illocutions tend to be more polite (a) because they increase the degree of op-
tionality, and (b) because the more indirect an illocution is, the diminished and tentative
its force tends to be.»

E o autor fornece o seguinte exemplo, mantendo, desta vez, o mesmo conteúdo


proposicional:

« indirectness less polite


[7] Answer the phone.
[8] I want you to answer the phone.
[9] Will you answer the phone?
[10] Can you answer the phone?
[11] Would you mind answering the phone?
[12] Could you possibility answer the phone?
etc. more polite»70

Tudo quanto sobre a teoria de Leech se disse até agora situa-se no âmbito do que
ele entende por cortesia absoluta, isto é, «a set of scales, having a negative and a positi-
ve pole», característica intrínseca de alguns actos, como se disse acima. Mas Leech dis-
tingue esta cortesia absoluta de cortesia relativa, definindo a última como estando rela-
cionada com o contexto ou situação.71 A cortesia é assim, para o autor, um princípio
regulador da conduta humana, destinado a evitar as tensões e os conflitos nas interac-
ções sociais, entre as quais se encontram, evidentemente, as verbais.

70
Id.: 108
71
Cf. id.: 102, nota 3.
121

Apesar de simples e coerente, a proposta de Leech tem sido também criticada


por investigadores mais recentes.72 Em nosso entender, porém, é de salientar a conside-
ração de que a cortesia deve ser analisada à luz da Retórica, uma vez que as estratégias
verbais, corteses ou descorteses, são também utilizadas, num acto de comunicação, «in
order to produce a particular effect in the mind of h».73 Uma das críticas mais pertinen-
tes é aquela que observa que a teoria das máximas de Leech não anda longe do modelo
proposto por Brown & Levinson.

1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson

A teoria deates autores tem sido, desde o seu aparecimento, em 1978, com a
publicação do ensaio «Universals in language usage: Politeness phenomena»,74 a mais
aplicada no estudo dos fenómenos verbais da cortesia, tanto dentro de sociedades angló-
fonas como não anglófonas, quer dentro duma mesma língua e cultura, quer segundo
perspectivas contrastivas.75 Como exemplo do reconhecimento da importância daquele
ensaio no desenvolvimento dos estudos da cortesia linguística, segundo uma perspectiva
pragmática, citem-se as seguintes palavras de Haverkate:

«A partir de la publicación del opus magnum de Brown y Levinson (1978) Universals


in language usage: politeness phenomena, el interés por el estudio de la cortesía verbal
ha ido adquiriendo proporciones espectaculares, culminando en la organización de gran
cantidad de simposios y congresos internacionales, así como en la publicación de nume-
rosos artículos y monografías dedicadas al tema.»76

O quadro teórico proposto por Brown & Levinson tem sido considerado, desde
então, «le plus élaboré, productif et célèbre»,77 constituindo «un véritable évangile pour
tous ceux qui étudient la politesse linguistique».78

72
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 182; SIFIANOU, 19992: 29-30, VIDAL, 1993: 173-174 e
WATTS; IDE & EHLICH (eds.), 1992: 6.
73
LEECH, 199610: 15.
74
BROWN & LEVINSON, 1978. Este estudo pode ser considerado a primeira edição de Politeness.
Some universals in language use, publicado em 1987, com uma nova e longa introdução, algumas correc-
ções e nova bibliografia. Consultámos a 6.ª, publicada em 1996, reimpressão da edição de 1987.
75
A Bibliografia permitirá identificar alguns títulos de estudos segundo estas perspectivas.
76
HAVERKATE, 1994: 9.
77
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50. Também 2000b: 21.
122

Brown & Levinson partem da concepção de que os elementos duma sociedade


são potencialmente agressivos e que a cortesia serve, precisamente, para evitar essa
agressividade e tornar possível, assim, a vida social.79 Esta teoria assenta em dois con-
ceitos centrais - racionalidade e face80 – entendidos como propriedades universais que
quase todos os interactantes possuem,81 apenas variando, de cultura para cultura, os
elementos particulares que as configuram.82 Tais interactantes são personificados,
metodologicamente, numa abstracta pessoa modelo, a qual, além daquelas propriedades,
«is a wilful fluent speaker of a natural language».83
A racionalidade tem a ver com os processos de eficácia que cada locutor utiliza
num acto de comunicação, «in particular consistent modes of reasoning from ends to the
means that will achieve those ends».84 Neste sentido, a comunicação está sujeita ao PC
de Grice, entendido como um quadro socialmente neutro. Cada locutor, segundo Brown
& Levinson, só não cumprirá as máximas conversacionais se tiver uma boa razão para
assim proceder. E a cortesia, isto é, a necessidade de evitar conflitos interpessoais, no
decurso duma interacção verbal, é certamente uma dessas boas razões.85
A assunção básica de Brown & Levinson é de que «all competent adult members
of a society have (and know each other to have)» uma face ou auto-imagem pública.86

78
KASTLER, 1998: 33. Raro será o estudo de cortesia linguística que não formule considerações seme-
lhantes. Refere Kerbrat-Orecchioni que mesmo os seus críticos reconhecem o poder descritivo desta teo-
ria. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176] Chega mesmo a haver uma quase confusão entre os seus
autores e a própria cortesia linguística, referindo Eelen que «when you see the latter, you inevitably see
the former». [EELEN, 1999: 12] Carreira, seguindo Kerbrat-Orecchioni, afirma que o modelo de Brown
& Levinson «constitue une référence fondamentale pour la plupart des études sur la politese dans des
langues très variées», sendo, «jusqu’à nos jours le cadre théorique le plus solide et le plus productif pour
l’étude de la politesse linguistique.» [CARREIRA, 1995: 29-30]
79
Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 1.
80
O termo inglês «face» é habitualmente traduzido, nos estudos da cortesia verbal, por «imagem», de que
pode ser considerado um sinónimo, como aliás anotam Brown & Levinson [cf. id.: 61]. Para evitar even-
tuais confusões com o conceito de imagem proposto por Grize, utilizaremos, neste caso, o termo «face».
Sobre a noção grizeana de imagem, ver, supra, cap. I, ou GRIZE, 1990: 33 e 1996: 69-70. Na linguagem
corrente, imagem e face aparecem, frequentemente, como quasessinónimos, como em “salvar / perder /
limpar a face”. Exemplo: «Vitória de Setúbal 1 – Roma 0 / Brilhante lavar de face / numa noite das anti-
gas». (Na primeira «mão», o Setúbal havia perdido por 7-0.) [Jornal de Notícias, 01-10-99] Ou este
título: «Igreja Ortodoxa “limpa” má imagem de Nicolau II» [Público, 21-08-00] Ou ainda esta observa-
ção: «Se não quiserem perder a face, os autarcas do PSD e do PS estão condenados a entenderem-se, sob
pena de o metro [do Porto] ser uma miragem ou então passarem pela vergonha de assistirem ao avanço
das escavadoras comandadas pelo bulldozer do Governo, o ministro Jorge Coelho.» [Judite de Sousa,
Jornal de Notícias, 10-06-00] (Negritos da nossa responsabilidade)
81
Excepções: «Juvenile, mad, incapacitated persons partially excepted.» [BROWN & LEVINSON,
19966: 285, nota 7]
82
Id.: 13 e passim.
83
BROWN & LWVINSON, 19966: 58.
84
Id.: 61.
85
Cf. id.: 5.
86
Cf. id.: 61. Fraser integra a teoria de Brown & Levinson e seus seguidores em «the face-saving view».
[Cf. FRASER, 1999: 220 e 228].
123

Cada interactante sabe, por outro lado, que as faces, a sua como a do alocutário, são
vulneráveis. É preciso, por isso, protegê-las, recorrendo, para o efeito, a estratégias de
cortesia. Os autores distinguem, na noção de face, duas dimensões essenciais («face-
wants») - a face negativa e a face positiva - que, em vez de se oporem, são antes com-
plementares entre si. A face negativa diz respeito a «the basic claim to territories, per-
sonal preserves, rights to non-distraction - i.e. to freedom of action and freedom from
imposition». A face positiva, por seu turno, diz respeito a «the positive consistent self-
-image or “personality” (crucially including the desire that this self-image be appreci-
ated and approved of) claimed by interactants».87 Na sequência de Goffman88 (à memó-
ria de quem, aliás, Brown & Levinson dedicam Politeness), as noções de face negativa
e face positiva correspondem, respectivamente, às noções de território e face goffma-
nianas.
Goffman foi à etologia buscar o conceito de território e, dando-lhe uma concep-
ção mais ampla, propôs vários territórios do eu,89 que Kerbrat-Orecchioni sintetiza em:

«• le corps et ses divers prolongements (vêtements, poches, sac à main, dont on sup-
porte mal qu’ils sont indiscrètement fouillés) ;
• l’ensemble des réserves matérielles de l’individu (le “à moi”: mon assiette, ma voi-
ture, ma femme, etc.) auxquelles autrui ne saurait avoir accès sans autorisation explicite
de leur propriétaire ou protecteur légitime (“touche pas à mon pote”);
• le territoire spatial : sa “place” , son “chez soi”, cette sorte de “bulle” à l’intérieur de
laquelle on évolue et dont le diamètre varie selon certains paramètres qu’il revient à la
proxémique d’étudier;
• le territoire temporel, et en particulier le temps de parole auquel on estime avoir droit
(d’où le caractère potentiellement offensant des interruptions) ;
• les réserves d’information enfin, ses secrets et ses jardins secrets.»90

A face positiva de Brown & Levinson corresponde, por seu turno, à noção de
face, que Goffman, influenciado pela noção chinesa, define como «la valeur sociale
positive qu’une personne revendique effectivement à travers la ligne d’action que les

87
BROWN & LEVINSON, 19966: 61
88
Cf. id.: 1 e passim.
89
GOFFMAN, 1973 (2): 43-72. Também GOFFMAN, 1999: 199-200. Ainda HALL, 1994: 185-207.
90
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 167-168.
124

autres supposent qu’elle a adoptée au cours d’un contact particulier.»91 Segundo Goff-
man, no decurso duma interacção verbal, cada interlocutor toma os cuidados necessários
para que ninguém, incluindo ele próprio, perca a face, realizando, para o efeito, aquilo a
que chama face work e que, via francês, traduzimos por figuração, estratégia que «sert à
parer aux “incidents”, c’est-à-dire aux événements dont les implications symboliques
sont effectivement un danger pour la face.»92
Goffman fundamenta a sua noção de face nos pressupostos de que qualquer
indivíduo que vive em sociedade «tend à extérioriser ce qu’on nomme parfois une ligne
de conduite, c’est-à-dire un canevas d’actes verbaux et non verbaux qui lui sert à expri-
mer son point de vue sur la situation, et, par là, l’appréciation qu’il porte sur les partici-
pants, et en particulier sur lui-même.»93 A tal linha de conduta corresponde uma ima-
gem, a sua face pública, que ele construiu e é mais ou menos reconhecida pelos outros.
O seu comportamento, por isso, em cada contexto de interacção verbal, tem sempre pre-
sente essa imagem ou face, de modo a não defraudar as expectativas sociais, próprias e
dos outros.
Acontece, porém, que as interacções sociais apresentam riscos para as faces dos
interactantes, em virtude das acções a praticar e da incompatibilidade de interesses. Mas
como o problema é comum a todos, esforçar-se-á cada um, não só por não praticar
acções lesivas das faces (próprias e alheias), mas também em reparar as acções lesivas
que inevitavelmente foram ou tenham de ser realizadas. Goffman chega, assim, à noção
de figuração («face-work»), ou seja, ao conjunto de meios que cada pessoa utiliza, num
contexto de interacção verbal, «pour que ses actions ne fassent perdre la face à personne
(y compris elle-même).»94
O autor considera haver, por isso, dois tipos principais de figuração, isto é, dois
meios de não pôr em risco a face própria e as dos outros, válidos para todas as socie-
dades e culturas: a evitação e a reparação. A primeira «est d’éviter les rencontres où il
risque de se manifester»;95 a segunda diz respeito à reparação de acções que, apesar de
consideradas incompatíveis com os valores sociais vigentes, não podem ser evitadas e,
por isso, as pessoas «s’enfforcent d’en réparer les effets.»96

91
GOFFMAN, 1974: 9.
92
GOFFMAN, 1974: 15.
93
Id.: 9.
94
Id.: 15. Bobone observa que «o comum das pessoas tende a integrar-se [no socialmente correcto], gos-
tando de fazer boa figura, temendo o ridículo e mantendo uma reputação de reconhecimento e aprovação
do meio em que vive. Para isso tem que dominar a imperiosa arte de estar ao corrente das regras estabele-
cidas.» [BOBONE, 1999: 20. Negrito nosso]. Repare-se, ainda, nas expressões, correntes em Português,
de botar/deitar/fazer/mostrar figura, para não falar já naqueles que são uns lindos figurões.
95
Id.: 17.
96
Id.: 20. É no capítulo «“Perdre la face ou faire bonne figure?” // Analyse des éléments rituels inhérents
aux interactions sociales», pp. 9-42, que o autor desenvolve a teoria da face.
125

Brown & Levinson, a partir das noções goffmanianas de território e face


propõem as noções de face positiva e face negativa, respectivamente, que todos os seres
humanos possuem e a que têm direito, e que por isso querem ver portegidas e salva-
guardadas. Mas se cada indivíduo tem uma face bipartida, segue-se que, numa interac-
ção verbal, em que participem, por exemplo, dois interlocutores, estão em presença qua-
tro faces, pelo menos,97 as quais terão que ser reciprocamente protegidas, para que bem
possam funcionar as relações interpessoais e o desenrolar das interacções, mesmo ao
nível da sua organização discursivo-textual.
A maioria, senão todos os actos (verbais e não verbais), praticados pelos interac-
tantes, no decorrer duma interacção verbal, ameaçam intrinsecamente a face (positiva
e/ou negativa), tanto do alocutário como do locutor. São os actos ameaçadores de face98
(«face-threatening acts»), habitualmente notados pela respectiva sigla inglesa, FTA,
que vamos manter.99
Os actos formulados pelos interactantes, numa situação de interacção verbal,
repartem-se, assim, por quatro grandes categorias:

1.º Actos ameaçadores da face negativa do alocutário: todas as violações territoriais de


natureza verbal (v.g. as perguntas indiscretas ou estúpidas, os actos directivos) e não
verbal (v.g. contactos corporais indevidos, agressões visuais, ofensas proxémicas...).
2.º Actos ameaçadores da face positiva do alocutário: todos os actos que põem em
perigo a auto-estima do outro (v.g. a crítica, a refutação, a advertência, a injúria, o
insulto, a zombaria...)
3.º Actos ameaçadores da face negativa do locutor: todos os actos que afectam o territó-
rio daquele que os realiza (v.g. ofertas, promessas...)

97
Os interactantes podem ter como tema de conversa ou referirem-se a terceiro(s), presente(s) ou ausen-
te(s). Cf. noção de delocução, em CARREIRA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. III.
98
«Given these assumptions of the universality of face and rationality, it is intuitively the case that certain
kinds of acts intrinsically threaten face, namely those acts that by their nature run contrary to the face
wants of the addressee and/or of the speaker. By “act” we have in mind what is intended to be done by a
verbal or non-verbal communication, just as one or more “speech acts” can be assigned to an utterance.»
[BROWN & LEVINSON, 19966: 65]
99
Observa Kerbrat-Orecchioni que FTA é «signe faisant maintenant partie du vocabulaire de base de tout
“politessologue”.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992 : 169] Autores de língua castelhana utilizam as
siglas correspondentes às traduções que fazem de FTA. Por exemplo, AAIP = acciones que amenazan la
imagen pública [VIDAL, 1993: 176] e AAI = Actos Amenazadores de la Imagen. [BLANCAFORT &
VALLS, 1999:163] Cf., infra, cap. III, a noção de Face Flattering Act (FFA), introduzida por Kerbrat-
-Orecchioni, como complementar da noção de FTA.
126

4.º Actos ameaçadores da face positiva do locutor: todos os comportamentos auto-


100
degradantes (v.g. confissão, pedir desculpa, autocríticas...)

Os FTA’s incluídos nas terceira e quarta categorias são de natureza autoamea-


çadora, uma vez que orientados para a(s) face(s) do locutor. Os FTA’s integrados nas
primeira e segunda categorias estão orientados para a(s) face(s) do alocutário e são, por
isso, os mais pertinentes, na medida em que a cortesia tem a ver, antes de mais, com a
atitude que um locutor toma ou não em relação ao(s) seu(s) interlocutor(es).
Convém referir, por outro lado, a funcionalidade vária e a complexidade de
alguns FTA’s, sobretudo no que toca às faces que podem atingir, ao mesmo tempo, se
bem que uma seja, regra geral, a preferida. Há FTA’s que atingem, simultânea e imedia-
tamente, uma e/ou ambas as faces do alocutário e, ao mesmo tempo, também uma ou
mesmo ambas as faces do locutor. E os processos linguísticos utilizados para as prote-
ger estarão também diversamente orientados para cada uma das faces, embora visem
preferencialmente uma delas. Por exemplo, a ordem e o pedido são actos que ameaçam
a face negativa do alocutário, porque são uma «invasão» do seu território. Mas, por
outro lado, a ordem ameaça também a face positiva do alocutário, na medida em que
lhe é imposta uma acção (verbal ou física) que tem de realizar, enquanto o pedido
ameaça a face positiva do locutor, na medida em que expõe a sua carência de alguma
coisa.
À cortesia verbal cabe, pois, atenuar, por evitação, atenuação e/ou reparação, o
potencial risco resultante da realização dum FTA. Para o efeito, cada interlocutor terá
em consideração a relativa importância de, pelo menos, três desejos:

«(a) the want to communicate the content of the FTA x, (b) the want to be efficient or
urgent, and (c) the want to maintain H’s face to any degree. Unless (b) is greater than
101
(c), S will want to minimize the threat of his FTA.»

Mas o nível de cortesia a praticar, na realização de um inevitável FTA, depende,


segundo os autores, dos três factores ou variáveis sociais seguintes:

100
Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 65-68. Também KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 169-173 e
1996: 51-52.
101
BROWN & LEVINSON, 19966: 68. S e H são as iniciais, respectivamente, de speaker e hearer.
127

- a distância social (D) existente entre os interlocutores (uma relação simétrica);


- o poder (P) do alocutário em relação ao locutor (uma relação assimétrica);
- o grau de imposição (G) do FTA.102

Em princípio, na realização de um FTA, a cortesia aumenta (i) quanto maior for


D entre o locutor e o alocutário, (ii) quanto maior for P do alocutário em relação ao
locutor, (iii) quanto maior for G.103 O risco (R) de um FTA é calculado segundo a fór-
mula seguinte (onde x representa o acto de discurso, L o locutor e A o alocutário).

Rx = D(L,A) + P(A,L) + Gx.104

Feito o cálculo,105 os interactantes escolhem as estratégias de cortesia mais ade-


quadas à realização do FTA (cujo esquema se reproduz na FIG. 2), tendo em conta as
circunstâncias que levam à sua atenuação.

«Circumstances determining
choice of strategy

Lesser

1. without redressive action, baldy


Estimation of risk

on record 2. positive politeness


of face loss

Do the FTA with redressive action


4. off record 3. negative politeness

5. Don’t do the FTA

Greater»

FIG. 2 – Estratégias de cortesia, segundo BROWN & LEVINSON, 1996: 60 e 69.

102
Cf. id.: 76-77.
103
Cf. id.: 71-84.
104
Cf. id.: 76.
105
Cada uma das três variáveis «can be measured on a scale of 1 to n, where n is some small number».
[Id.: 76] Convenhamos que determinar tais números é quase missão impossível, pela simples razão de que
as relações humanas, em geral, e as de cortesia / descortesia, em particular, não são quantificáveis.
128

Como é evidente, a estratégia 5 não cabe no âmbito da cortesia linguística pro-


priamente dita, embora se situe no ponto mais elevado da escala das suas estratégias e,
por isso, constitui a melhor forma de se ser cortês. Por outro lado, as possíveis estraté-
gias que cabem na categoria 1, só em casos excepcionais poderão ser consideradas cor-
teses. Com efeito, como esclarecem Brown & Levinson, realizar um acto, segundo es-
tratégias on record 1, é realizá-lo «in the most direct, clear, unambiguous and concise
way possible (for example, for a request, saying ‘Do X!’).» Trata-se, grosso modo, de
seguir o PC e as máximas de Grice. Regra geral, um locutor só realiza um FTA deste
tipo em situações de urgência ou eficiência, quando exerce o poder, ou quando está
numa situação de relativa camaradagem e solidariedade, mas também quando «can enl-
ist audience support to destroy H’s face without losing his own.»106
As estratégias que constituem, efectivamente, comportamento cortês encon-
tram-se nos três grandes conjuntos de superestratégias, notadas em 2, 3 e 4, no esque-
ma. Agindo racionalmente, um locutor recorre a elas, como os melhores meios para –
protegendo a(s) face(s) do alocutário, em primeiro lugar, mas também a(s) sua(s) pró-
pria(s) – conseguir os fins desejados.107
As estratégias on record, com reparação de cortesia positiva (que os autores
subdividem em quinze subestratégias) são dirigidas

«to the addressee’s positive face, his perennial desire that his wants (or the ac-
tions/acquisitions/values resulting from them) should be though of as desirable. Redress
consists in partially satisfying that desire by communicating that one’s own wants (or
some of them) are in some respects similar to the addressee’s wants.»108

Grosso modo, estas estratégias manifestam solidariedade, da parte do locutor.


Através delas, o potencial de ameaça dum acto on record é minimizado «by the assu-
rance that in general S wants at least some of H’s wants». Ambos os interactantes têm,
por exemplo, os mesmos interesses e gostos. Há uma reciprocidade de direitos, dúvidas

106
BROWN & LEVINSON, 19966: 69.
107
Cf. id.: 91.
108
Id.: 101.
129

e expectativas de que o FTA «doesn’t mean a negative evaluation in general of H’s


face.»109
A superestratégia de cortesia negativa é constituída por um conjunto de dez
subestratégias de minimização, dirigidas «to the addressee’s negative face: his want to
have his freedom of action unhindered and his attention unimpeded. It is the heart of
respect behaviour, just as positive politeness is the kernel of “familiar” and “joking”
behaviour.»110
As estratégias de cortesia negativa são, por isso, essencialmente de evitação
(«avoidance») e constituem, regra geral, os chamados comportamentos formais corte-
ses. É caracterizada, assim, por atitudes de autoapagamento e de restrição verbal e não
verbal, na realização de um FTA. Os interactantes recorrem, então, aos pedidos de des-
culpa, por interferências ou transgressões, à deferência verbal ou não verbal, a processos
de modalização da força ilocutória, de impessoalização, de indirectividade convenciona-
lizada «and the others softening mechanisms that give the addressee an “out”, a face-
saving line of escape», permitindo ao alocutário «to feel that his response is not
coerced.»111
Por último, e recordando a FIG. 2, temos as superestratégias de 4, ou seja, a rea-
lização «off record» de um FTA:

«A communicative act is done off record if it is done in such a way that it is not possi-
ble to attribute only one clear communicative intention to the act. In other words, the
actor leaves an “out” by providing himself with a number of defensible interpretations;
he cannot be held to have committed himself to just one particular interpretation of his
act. Thus if a speaker wants to do an FTA, but wants to avoid the responsibility for do-
ing it, he can do it off record and leave it up to the addressee to decide how to interpret
it.»112

Através das estratégias deste tipo (os autores inventariam e descrevem quinze), o
locutor como que mascara ou dissimula as suas verdadeiras intenções, evitando, assim,

109
Id.: 70. Brown & Levinson fazem um longo inventário e uma pormenorizada descrição das estratégias
linguísticas de cortesia positiva, em id.: 101-129. Para versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCA-
FORT & VALLS, 1999: 167 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 174-175.
110
BROWN & LEVINSON, 19966: 129.
111
Id.: 70. Inventário e descrição das estratégias linguísticas de cortesia negativa, em id.: 129-211. Para
versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCAFORT & VALLS 1999: 167-168 e KERBRAT-ORE-
CCHIONI, 1992: 175.
112
BROWN & LEVINSON, 19966: 211.
130

que lhe seja atribuída, directamente, a responsabilidade do FTA. Nesta categoria,


incluem-se processos linguísticos como o recurso à metáfora e à ironia, às perguntas
retóricas, ao implícito, à tautologia, ou seja, a «all kinds of hints as to what a speaker
wants or means to communicate, without doing so directly, so that the meaning is to
some degree negotiable.»113

Referimos já a aceitação generalizada que a proposta teórica de Brown & Levin-


son teve junto dos linguistas que estudam a cortesia linguística. Não falta, porém, quem
lhe aponte falhas e imprecisões, como se verá, no capítulo seguinte, ao apresentarmos o
modelo de análise proposto por Kerbrat-Orecchioni, este que, todavia, retoma, corrige e
aperfeiçoa a teoria daqueles autores.

113
Id.: 69. Inventário e descrição das estratégias linguísticas de cortesia off record, em id.: 211-227. Para
versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCAFORT & VALLS, 1999: 168 e KERBRAT-ORECCHIONI,
1992: 175.
Capítulo III

O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA


DE CATHERINE KERBRAT-ORECCHIONI
Uma proposta ecléctica

O homem não é mais do que a sua imagem. Os filósofos bem


podem explicar-nos que a opinião do mundo pouco conta e que
só importa aquilo que somos. Mas os filósofos não percebem
nada. Enquanto vivemos entre os seres humanos, seremos aqui-
lo que os seres humanos considerarem que somos.
Milan Kundera1

O modelo de cortesia linguística de Kerbrat-Orecchioni é, nos seus pontos fun-


damentais, a teoria de Brown & Levinson que, todavia, corrige e desenvolve.2 Esta lin-
guista não deixa, contudo, de ter em consideração as propostas de Lakoff e sobretudo de
Leech, bem como de outros autores que, depois dos fundadores, têm vindo a estudar
também os fenómenos verbais da cortesia. Pode-se dizer, por isso, que a sua proposta
resulta ecléctica, cuja matriz principal é, não obstante, o modelo de Brown & Levinson.
De facto, por um lado, mantém o essencial desta teoria e, por outro, introduz-lhe signifi-
cativas melhorias conceptuais e estruturais, dando origem, assim, a um sistema de corte-
sia (ainda mais) coerente, operativo e universal. À constituição desse sistema tem dedi-
cado a linguista parte da sua obra mais recente. São de referir, em particular, os tomos II
e III de Les Interactions Verbales e os capítulos 7 a 15 de La Conversation, que resu-
mem estes dois volumes e o essencial da sua proposta.3

1
KUNDERA, Milan, 1990: A Imortalidade. Lisboa: Dom Quixote; p. 127.
2
Eelen situa a teoria de Kerbrat-Orecchioni no conjunto daquelas que introduzem correcções teóricas nas
três teorias fundadoras. [Cf. EELEN, 1999: 37-38]
3
No tomo I de Les Interactions Verbales, Kerbrat-Orecchioni introduz a Análise Conversacional das
interacções verbais e estuda a sua estrutura, entendendo-as como textos colectivamente produzidos por
dois ou mais interlocutores (interactantes), num determinado contexto ou situação de comunicação. No
tomo II, o estudo incide sobre a construção das relações interpessoais que se verificam nas interacções
132

Neste capítulo, daremos conta das principais críticas que Kerbrat-Orecchioni faz
à teoria de Brown & Levinson e das melhorias que lhe introduz; descrevermos, depois,
o «sistema de cortesia» que propõe e, por último, apresentaremos listagens das manifes-
tações linguísticas através das quais se realizam os fenómenos de cortesia verbal.

1. Críticas e melhorias da teoria modelo

Não obstante reconhecer, explicitamente, que a abordagem da cortesia feita por


Brown & Levinson é, no essencial, conforme à sua,4 Kerbrat-Orecchioni coloca algu-
mas reservas ao modelo, as quais, todavia, segundo declara, não põem em causa o seu
poder teórico descritivo.5
A concepção demasiado pessimista e negativista das comunidades, subjacente à
teoria de Brown & Levinson, segundo a qual os indivíduos, nas suas interacções verbais
e não verbais, ameaçam habitualmente as faces dos respectivos interactantes, é uma das
críticas. Os actos de fala são, por isso, FTA’s que, nas melhores das hipóteses, apenas
podem ser evitados ou reparados, através de estratégias de cortesia. São estas que tor-
nam possível a comunicação e a vida em sociedade.6 Kerbrat-Orecchioni aceita a noção
de FTA, na medida em que, fazendo lembrar Bally,7 todos os actos humanos «sont sus-
ceptibles dans certaines circonstances et à des degrés divers de menacer celui qui les

verbais, com especial destaque para os fenómenos e funcionamento da cortesia, em geral, e da cortesia
linguística, em particular, propondo, para esta, um modelo de descrição. O tomo III está dividido em duas
partes: na primeira, a linguista reflecte, segundo uma perspectiva contrastiva, sobre as variações culturais
que afectam as componentes estruturais e relacionais das interacções; a segunda é constituída pela aplica-
ção das teorias, anteriormente descritas e sistematizadas, a dois tipos diferentes de trocas verbais rituais -
a desculpa e o cumprimento. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990; 1992; 1994; 1996. Em KERBRAT -
-ORECCHIONI, 1987, 1988, 1989, 1996a, 19912, 1997, 2000, 2000a e 2000b, a autora aborda também a
problemática da cortesia linguística.]
4
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176.
5
Cf. id.: 176-177 e 253-270. Nestas últimas pp., a autora desenvolve alguns dos «limites» e «fraquezas»
da teoria de Brown & Levinson, mas onde também critica a crítica de outros críticos, para reafirmar «les
mérites de la théorie de la politesse [de Brown & Levinson com as melhorias por ela introduzidas] comme
ménagement des faces». [Id.: 253.] Outras visões críticas, algumas das quais coincidentes com as «reser-
vas» de Kerbrat-Orecchioni, encontram-se em CHODOROWSKA-PILCH, 1998: 10-12; EELEN, 1999;
FRASER, 1990; KASPER, 1990 e 19982; MEDEIROS, 1985: 68; OLIVEIRA, 1995: 407 e 410; PEDRO,
1993; PERNOT, 1996: 225-227; RUZICKOVÁ, 1998: 24-36; TRAVERSO, 1996: 38; WATTS, IDE &
EHLICH (eds.), 1992.
6
«From a gross ethological perspective, perhaps we can generalize somewhat: the problem for any social
group is to control its internal aggression while retaining the potential for aggression both in internal
social control and, especially, in external competitive relations with other groups [...]. In this perspective
politeness [...], like formal diplomatic protocol [...], presupposes that potential for aggression as it seeks to
disarm it, and makes possible communication between potentially aggressive parties.» [BROWN & LE-
VINSON, 19966: 1]
7
Ver, supra, cap. I, 2.1.
133

accomplit (lequel risque toujours de les voir “échouer”), et celui auquel ils se destinent
(puisqu’ils tentent d’exercer sur lui certaines contraintes spécifiques, ne serait-ce que
celles de l’enchaînement).»8
Só que, além do lado negativo dos FTA’s, há também uma série de actos de dis-
curso «anti-FTAs», destinados a valorizar as faces dos interactantes. A estes actos
Kerbrat-Orecchioni chama, à semelhança do que tinham feito Brown & Levinson para
os actos ameaçadores, Face Flattering Acts, com a respectiva sigla FFA’s (que mante-
mos), actos que «sont en quelque sorte le pendant positif des FTA’s».9
A introdução da noção de FFA constitui, de facto, um contributo conceptual e
metodológico importante, tornando o sistema de cortesia mais equilibrado e operativo,
ao mesmo tempo que torna a análise dos actos de discurso, a este nível, mais clara e
coerente. Kerbrat-Orecchioni propõe, como consequência, que «l’ensemble des actes de
langage se répartissant alors en deux grandes familles, selon qu’ils ont sur les faces des
effets essentiellement négatifs (comme l’ordre ou la critique), ou essentiellement posi-
tifs (comme le compliment ou le remerciement).»10
A noção de FFA permite, por outro lado, uma clarificação das noções de corte-
sia negativa e de cortesia positiva, as quais, observa a autora, em Brown & Levinson
apresentam-se ligeiramente confusas. De facto, aqueles linguistas não distinguem, cla-
ramente (antes confundem), a noção de cortesia positiva da noção de face positiva,11
nem a noção de cortesia negativa da noção de face negativa.12 Assim sendo, o quadro
das superestratégias da teoria modelo torna-se inaceitável (é mais uma reserva da auto-
ra), uma vez que toma a cortesia positiva e a cortesia negativa como a realização on
record de um FTA com acção reparadora. A cortesia positiva figura, desse modo, ao
lado da cortesia negativa, mas é-lhe atribuído um grau de menor importância, na escala
8
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 173.
9
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. Cf. também 1992: 171-172. Nesta última obra, os actos valoriza-
dores da face, negativa ou positiva, são designados apenas, por actos «anti-ameaçadores» ou «anti-
FTAs». Eelen interpreta a noção de FFA de Kerbrat-Orecchioni, como «face-enhancing act (FEA)», que
equivale à noção de «face-boosting act» (FBA), proposta por Arin Bayraktaroglu, para referir «an act that
satisfies the positive face wants of speaker or hearer.» [EELEN, 1999: 37 e 35. Cf. BAYRAKTARO-
GLU, 1991, para noção de FBA]. As noções de FFA, FEA e FBA são, no fundo, designações sinónimas.
10
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54.
11
Retomando a definição de face positiva de Brown & Levinson, via Goffman, Kerbrat-Orecchioni, sim-
plificando, diz que tal noção «correspond en gros au narcissisme». [Id.: 51; cf. também 1992: 168]
12
Dado corresponder, grosso modo, à noção goffmaniana de território, este termo aparece frequentemen-
te, nos trabalhos de Kerbrat-Orecchioni, como sinónimo de face negativa. Traverso reconhece as noções
de face positiva e de face negativa, propostas por Brown & Levinson, mas prefere utilizar, simplesmente,
tal como faz Goffman, os termos, respectivamente, de face e de território. [Cf. TRAVERSO, 1996: 37 e
1999: 51] Em nosso entender, porém, muito embora se possam utilizar estes termos como sinónimos
daqueles, devem-se manter os termos de face positiva e de face negativa, por coerência terminológica
com as noções de FTA e de FFA, noções que Traverso também utiliza nos seus estudos.
134

da cortesia,13 de acordo, aliás, com a visão etnocentrista de Brown & Levinson. Consi-
deram estes autores que, nas culturas ocidentais, ao pensar-se em cortesia, «it is negati-
ve-politeness behaviour that springs to mind», e daí que a cortesia negativa seja «the
most elaborated and the most conventionalized set of linguistic strategies for FTA
redress».14 Mas, porque ser cortês consiste tanto em atenuar a expressão dum FTA,
como produzir um FFA, conclui Kerbrat-Orecchioni que «la politesse positive occupe
en droit dans le système global [de la politesse] une place aussi importante que la poli-
tesse négative». E acrescenta, como reforço, que «dans nos représentations prototy-
piques, la louange passe pour “encore plus polie” que l’atténuation d’une critique.»15
A autora de Les Interactions Verbales precisa, então, as noções de cortesia nega-
tiva e de cortesia positiva, delas dando as seguintes definições (aqui apresentadas em
paralelo, para facilitar a sua leitura comparativa):

CORTESIA NEGATIVA CORTESIA POSITIVA

«La politesse négative est de nature abs- «La politesse positive est au contraire de
tentionniste ou compensatoire: elle consiste nature productionniste: elle consiste à ef-
à éviter de produire un FTA, ou à en adoucir fectuer quelque FFA pour la face négative
par quelque procédé la réalisation – que ce (ex.: cadeau) ou positive (ex.: compliment)
FTA concerne la face négative (ex.: ordre) du destinataire.»16
ou la face positive (ex.: critique) du destina-
taire.»

Numa interacção verbal, por isso, em que estejam presentes, pelo menos, dois
interactantes, são quatro as faces que se encontram em presença. Os actos de discurso
por eles produzidos, de cortesia negativa (evitação e compensação de FTA’s) e/ou de
cortesia positiva (produção de FFA’s), podem atingir, de um lado, a face negativa e/ou a
face positiva do alocutário, e, de outro, a face negativa e/ou a face positiva do locutor.

13
Ver, supra, cap. I, FIG. 2, onde a cortesia negativa aparece em terceiro lugar e a cortesia positiva em
segundo, na escala das estratégias.
14
BROWN & LEVINSON, 19966: 129-130.
15
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54.
16
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. Cf. também 1992: 177.
135

Com o esquema apresentado na figura seguinte pretendemos ilustrar as faces


que, numa interacção verbal (sobretudo em contextos face-a-face) são atingidas, directa
e/ou indirectamente, com a realização de um FTA ou de um FFA.

INTERACÇÃO VERBAL

Face positiva Face positiva

Locutor FTA Alocutário


FFA
Face negativa Face negativa

FIG. 1 – Orientação e efeito de boomerang na realização de um FTA e/ou de um FFA.

Um locutor tem sempre uma face positiva e uma face negativa, e ao realizar
actos verbais de cortesia negativa (FTA atenuado) e/ou positiva (FFA), conforme o con-
texto e a dinâmica da interacção verbal, atinge, directamente e em primeiro lugar (orien-
tação das setas contínuas), a face negativa e/ou a face positiva do alocutário e, indirec-
tamente (por uma espécie de efeito boomerang, orientação das setas tracejadas), a sua
própria face (negativa ou/e positiva). Pode acontecer, ainda, que um locutor, respeitando
a orientação dos princípios da cortesia, formule actos verbais (geralmente) descorteses
ou (excepcionalmente) corteses directamente dirigidos a si próprio, os quais, todavia,
atingem também, se bem que indirectamente, a face (negativa ou/e positiva) do(s) seu(s)
interlocutor(es).
Apresentadas as principais críticas17 que Kerbrat-Orecchioni faz ao modelo de
Brown & Levinson, no sentido de o aperfeiçoar, vejamos agora como ela nos apresenta
e descreve o «sistema da cortesia» linguística que propõe, o qual deve ser «à la fois uni-
versel et modulable, en ce sens qu’il permet d’engendrer autant de sous-systèmes qu’il y
a de façons de hiérarchiser les différents principes constitutifs du système.»18

17
A linguista critica ainda a falta de distinção clara entre princípios A-orientados e princípios L-orien-
tados (cuja descrição se fará infra), na concepção de cortesia de Brown & Levinson, bem como o inventá-
rio «um pouco anárquico» e uma classificação «muito arbitrária» das estratégias que compõem as supe-
restratégias. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176-177]
18
KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 89.
136

2. O «sistema de cortesia»

Kerbrat-Orecchioni define a cortesia como «un ensemble de procédés permettant


de concilier le désire mutuel de préservation des faces avec le fait que la plupart des
actes accomplis durant l’interaction risquent de venir menacer telle ou telle des faces en
présence».19 Tais processos obedecem a um conjunto de princípios ou regras que
dependem dum princípio geral supremo: «Ménagez-vous les uns les autres.»20
Neste sentido, a cortesia tem por função estabelecer o carácter harmonioso das
relações sociais, prescrevendo, não só, «les comportements que le locuteur doit adopter
envers son partenaire d’interaction», mas também «les attitudes que le locuteur doit
adopter vis-à-vis de lui-même».21 Assim, já não é só, ou sobretudo, a problemática dos
constituintes do texto conversacional e sua organização que interessa estudar,22 mas
também as relações que, a nível interpessoal, os interlocutores manifestam numa dada
situação ou contexto de conversação.23
Kerbrat-Orecchioni, baseada na teoria fundadora de Brown & Levinson, que
combina com a de Leech, organiza o «sistema de cortesia», em torno de três eixos prin-
cipais:

19
KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 88.
20
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 52. Princípio que pode ser interpretado como uma outra formulação
do Princípio de Cortesia (PCa) de Leech, ou uma das máximas em que Lakoff desdobra a regra de compe-
tência pragmática, a saber, Sê / seja cortês. Ver, supra, cap. I, respectivamente, 1.2. e 1.1.
21
Id.: 50-51 e 62.
22
São numerosos os estudos realizados no domínio das interacções verbais. O tomo I de Les Interactions
Verbales [1990; cf. também caps. 1-6 de La Conversation, 1996] trata, como vimos, da construção textual
e da análise das conversações, onde se pode encontrar bibliografia abundante sobre o tema. Kerbrat-Orec-
chioni, ao sumarizar os estudos levados a cabo no âmbito da Análise Conversacional, escreve que os
primeiros realizados neste domínio «portaient essentiellemnt sur ce que l’on peut appeler les aspects or-
ganisationnels des conversations», entre os quais se destacam «règles d’alternance des tours de parole,
procédés assurant la cohérence interne des différentes interventions (paires adjacentes, structuration hié-
rarchique, marqueurs et connecteurs), organisation thématique, activités “réparatrice” et “régulatrice”,
etc.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996a: 31] No âmbito da dimensão relacional das interacções verbais,
a linguista inclui, também, o estudo da componente dos afectos ou emoções, de emergência recente, no
quadro da Análise do Discurso. Além disso, refere o interesse, também recente, pelo estudo de outros
tipos de interacções, muito frequentes na sociedade dos nossos dias: a conversação familiar, a comunica-
ção através das novas tecnologias (diálogos homem-máquina, internet, correio electrónico...) e, mais
recentemente ainda, o interesse dos conversacionalistas pelos diálogos em que intervêm vários interlocu-
tores, diálogos esses que designa por «trilogues». [Cf. id.: 32-33] Sobre a problemática estrutural e rela-
cional dos «trilogues», cf. KERBRAT-ORECCHIONI & PLANTIN (dir.), 1995. Sobre as emoções nas
interacções, cf. PLANTIN et al. (dir.), 2000.
23
Na noção de contexto ou situação de comunicação estão incluídos, não só, o tempo e o espaço da inte-
racção, mas também o número de participantes e as suas características individuais, o objectivo individual
e geral da conversação, além das relações mútuas de lugares que os interactantes atribuem e se atribuem,
no respeito ou desrespeito que expressam, simétrica ou assimetricamente, por si próprios e pelo(s)
outro(s), presente(s) ou mesmo ausente(s). [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 75-82 e 1996: 16-17]
137

1- Eixo dos princípios que regem os comportamentos verbais que o locutor deve adop-
tar em relação a si próprio (princípios L-orientados) e em relação ao seu alocutário
(princípios A-orientados).
2- Eixo dos princípios que relevam da cortesia negativa vs. cortesia positiva.
3- Eixo dos princípios que dizem respeito à face negativa vs. face positiva.24

Articulando e cruzando estes eixos, são hierarquizados, em função da sua


importância e poder discriminatório, cinco princípios gerais que, no quadro seguinte
(FIG. 2), resumimos, a partir do apresentado pela linguista. Precavendo-se contra even-
tuais críticas de que este sistema de regras seja fruto do acaso, a linguista fundamenta a
sua validade declarando que «il repose sur de très nombreuses observations, consignées
dans les traités de savoir-vivre, les œuvres littéraires, ou les études scientifiques sur la
question ; et l’on pourrait prouver que tous ces principes existent bien, puisqu’on les
rencontre à chaque instant lorsqu’on se trouve confronté à la description de conversa-
tions.»25 Trata-se, pois, de princípios e regras que resultam do reconhecimento da
importância da cortesia verbal e não verbal na vida social, como norma geralmente
reconhecida e praticada,26 através da qual os indivíduos em interacção (e para que a
interacção se desenvolva em equilíbrio e harmonia) procuram conciliar o respeito devi-
do ao outro com o respeito que devem a si próprios, conforme o sistema goffmaniano
das faces.27 Respeitar, por isso, as regras de cortesia é um acto de racionalidade, uma
vez que «il est plus raisonnable de favoriser la viabilité de l’échange que de s’employer
à précipiter sa mort». Racionalidade que faz, por outro lado, com que a cortesia seja
considerada «un phénomène universel», uma vez que universal também é «l’importance
attachée au territoire, et à la face».28 Isto, apesar da diversidade das suas formas, o que

24
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 179-180. Estes eixos procuram corresponder a sugestão de Craig
et al. para melhoramento, precisamente, do modelo de Brown & Levinson. [Cf. id.: 183, nota 1]
25
Id.: 186.
26
Daí que a sua ausência seja frequentemente mais notada e sentida do que a sua prática. [Cf. KASPER,
1990: 208]. Em princípio, «les comportements impolis sont “marqués” par rapport aux comportements
polis». Há, contudo, excepções, contextos em que as regras de cortesia ficam suspensas: «en cas
d’urgence par exemple, ou d’interaction fortement agonale, ou de communication à caractère ludique».
[KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 60 e 1992 : 255-256]
27
Interpretação baseada na leitura dos capítulos que a autora dedica aos fenómenos da cortesia, em geral,
e da cortesia linguística, em particular. Convém, a propósito, referir que a linguista, nomeadamente no
tomo II de Les Interactions, recorre frequentemente a trabalhos de outros autores (linguistas ou não) para
fundamentar as suas propostas. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: passim]
28
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 65 e 66. Cf. também 1992: 318-321. A universalidade da cortesia e,
em particular, das suas regras ou princípios é posta em causa por vários autores. Por exemplo, Moeschler
& Reboul consideram «qu’il serait absurde de définir les règles de politesse comme des règles univer-
selles.» [MOESCHLER & REBOUL, 1994: 253] Cf. também KASPER, 1990: 195.
138

implica que «l’usage de ces règles et principes doive être contrôlé (en particulier par
l’observation rigoureuse de la façon dont ils s’exercent effectivement dans divers types
de sociétés et de situations interactives)».29 Efectivamente, os princípios de cortesia têm
uma realização e uma eficácia que dependem muito das sociedades e suas culturas, e
dos contextos concretos em que ocorrem e em que se desenvolvem as interacções.30

SISTEMA DE CORTESIA

(I) Princípios A-orientados


(1) Cortesia negativa:
Evite ou atenue actos verbais ameaçadores para
a) a face negativa do alocutário
b) a face positiva do alocutário.

(2) Cortesia positiva:


Produza actos verbais valorizadores de
a) a face negativa do alocutário
b) a face positiva do alocutário.

(II) Princípios L-orientados


A- Princípios favoráveis a L
(1) Cortesia negativa:
Proceda de modo a não perder, de forma demasiado ostensiva,
a) a sua face negativa
b) a sua face positiva.

(2) Cortesia positiva (sem princípios)

B- Princípios desfavoráveis a L
(1) Cortesia negativa:
Evite ou atenue a formulação de actos valorizadores de
a) a sua face negativa
b) a sua face positiva.

(2) Cortesia positiva:


Realize actos ameaçadores em relação a
a) sua face negativa
b) sua face positiva.

FIG. 2 - «Sistema de cortesia», adaptada de KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 184.

29
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 321.
30
Para uma visão geral da problemática intercultural (e mesmo intracultural), cf. KERBRAT-OREC-
CHIONI, 1994: 1.ª Parte e 1996: caps. 11-13.
139

Os princípios orientados para o alocutário (A-orientados) são dois (na FIG. 2


notados como I-1 e I-2, ver página anterior) e vêm à cabeça do sistema, porque repre-
sentam a cortesia em sentido estrito: por abstenção ou compensação (no caso da cortesia
negativa, I-1) e por produção (no caso da cortesia positiva, I-2), tais princípios são sem-
pre favoráveis a uma face, negativa ou positiva, do alocutário.
Segundo o princípio I-1, o locutor deve evitar ou, não sendo evitáveis, atenuar
os actos que ameacem as faces negativa ou/e positiva do alocutário, através de proces-
sos verbais, paraverbais e não verbais, adequados ao contexto. São muitos os FTA’s que
podem ocorrer numa interlocução. De evitar são, regra geral, os insultos e os actos
directivos directamente formulados, descorteses por natureza, mas também as observa-
ções deselegantes, as críticas duras, as refutações radicais, as admoestações violentas...
Se, porém, tais actos não puderem ser evitados, deve a sua formulação ser suavizada
através de processos (estratégias) atenuadores, substitutivos ou/e acompanhantes (cuja
listagem se elaborará a seguir), segundo as regras de cortesia e o sistema de cada língua.
Kerbrat-Orecchioni faz corresponder, no seu quadro, o princípio I-1 às máximas
de Leech. Ao princípio de cortesia negativa, orientado para a face negativa do alocutário
(I-1a), corresponde, na máxima do tacto, à submáxima segundo a qual se deve minimi-
zar o custo de actos que desejamos que o outro pratique. Ao princípio de cortesia nega-
tiva, orientado para a face positiva do alocutário (I-1b), correspondem, na máxima da
aprovação, a submáxima segundo a qual devem ser minimizadas as críticas, na máxima
do acordo, a submáxima segundo a qual deve ser minimizado o desacordo; finalmente,
na máxima da simpatia, a submáxima segundo a qual devem ser minimizadas expres-
sões de antipatia.
O princípio I-2 é de cortesia positiva e propõe, por isso, a valorização da face
(negativa e positiva) do alocutário, através da realização de FFA’s, como seja autopro-
postas de ajuda e de serviços, a oferta de “presentes verbais”, elogiando-lhe os bens, os
filhos, a sua pessoa, dirigir-lhe cumprimentos, felicitações, manifestações de acordo,
interesse, simpatia, etc. Os tratamentos corteses, em geral, e, dentro deles, os honorífi-
cos e deferenciais, em particular, são realizações linguísticas deste princípio, desde que
adequados ao contexto. Porque a hipercortesia é, regra geral, descortesia.31
O princípio de cortesia positiva, quando dirigida à face negativa do alocutário
(I-2a), corresponde à submáxima do tacto de Leech, segundo a qual o locutor deve

31
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 162 e passim.
140

maximizar o benefício em favor do outro. Quando dirigida à face positiva do alocutário


(I-2b), corresponde à submáxima da aprovação, segundo a qual o locutor deve maximi-
zar os elogios («praises») dirigidos ao outro; à submáxima de acordo, segundo a qual
este deve ser maximizado; e à submáxima da simpatia que recomenda a maximização
desta atitude.
Na hierarquia dos princípios de cortesia, vêm, em segundo lugar, os princípios
orientados para o locutor (L-orientados), distinguindo, desta vez, entre princípios favo-
ráveis a L (II-A) e princípios desfavoráveis a L (II-B). No que toca a II-A, regista-se
apenas um princípio (II-A-1), o qual recomenda que L deverá salvaguardar, tanto quan-
to possível, os seus próprios territórios de, por exemplo, intrusos e inoportunos, bem
como não fazer promessas impensadas. Mas, por outro lado, não deve arrastar nem
permitir que lhe “arrastem a face pela lama”, isto é, que a sua imagem seja injustamente
atacada, do que resulta, como consequência, ter de responder a críticas, ataques, insul-
tos, ou seja, à defesa da honra e dignidade.32
A cortesia positiva não propõe qualquer princípio favorável a L. Nas sociedades
ocidentais, «on ne saurait raisonnablement admettre, parmi les principes constitutifs du
savoir-vivre, quelque chose comme “faites votre propre éloge”». A não ser em circuns-
tâncias especiais, «le plaidoyer pro domo est proscrit dans notre société, qui juge sévè-
rement les manifestations trop insolentes de auto-satisfaction.»33 Ou seja, a protecção da
nossa própria face positiva não aconselha a sua valorização ostensiva, por modéstia, ou
seja, por cortesia para com o outro. 34 Acontece, pelo contrário, encontrar-se frequente-

32
Para este princípio, Kerbrat-Orecchioni não indica qualquer correspondência com máximas de Leech.
33
Id.: 184.
34
Uma excepção: «l’auto-glorification est de règle chez les hommes politiques – mais c’est justement
qu’ils sont “fous” (la normalité, c’est bien la modestie)». [Id.: 188] A preocupação com a própria face faz
com que algumas figuras, mais ou menos públicas, tenham assessores para que lhes façam e/ou protejam
a imagem. A título de exemplo, veja-se esta passagem duma crónica de José Júdice: «Ninguém poderá
[…] levar a mal que se questione por que razão o Dr. Judas, que mesmo não sendo nenhuma Cláudia
Schiffer […], precisa de quatro assessores que custam mil contos por mês para lhe tratarem da imagem. A
explicação mais plausível, atendendo ao seu passado comunista e sindicalista, é que serão todos muito
ciosos das suas funções profissionais. O “assessor de imagem” ajeita-lhe a gravata e transporta a fita
métrica para conferir se a barba é mesmo de três dias, a fotógrafa fotografa, e os dois assessores para a
“comunicação social” distribuem as fotos pelo público. Se for isso, até se poderia elogiar a contenção de
despesas do Presidente de Cascais por não ter assessores avençados para bater palmas. Suponho que estes
sejam voluntários. Há gente para tudo.» [24 Horas, 10-03-00] Mas há também quem se encarregue ou
seja encarregado de destruir a boa imagem / face pública de pessoa ou mesmo instituição. A política é
fértil em exemplos. Ora veja-se esta passagem duma crónica de Pedro Cid, a qual, tal como a anterior,
tanto mostra os cuidados de figuração como de desfiguração: «Há uma clara tentativa para destruir, na
opinião pública, a imagem de Durão Barroso, depois de ter sido “cultivada” como a esperança do PSD no
regresso ao poder. / Tudo tem servido para denegrir o líder do PSD: a falta de jeito para passar mensagens
políticas, a inabilidade no contacto humano com os eleitores, as eternas dúvidas quanto à sua capacidade
para ser primeiro-ministro de Portugal.» [Jornal de Notícias, 01-10-99]
141

mente, no sistema de cortesia, regras que jogam, sobretudo, a desfavor do locutor. São
os princípios II-B.
O princípio II-B-1 propõe que, a ter de se fazer o nosso próprio elogio, recorra-
mos, por exemplo, a processos de indirecção discursiva ou a figuras retóricas, como o
litote, a metáfora, a ironia, ou a outros processos de substituição ou de minimização. À
alínea a) do princípio II-B-1 corresponde a submáxima da generosidade de Leech,
segundo a qual o locutor deve minimizar o benefício em relação a si próprio, enquanto à
alínea b) do mesmo princípio corresponde a submáxima da modéstia, segundo a qual o
locutor deve evitar os auto-elogios.
Mas se a auto-glorificação é, em princípio, socialmente proscrita, já a autode-
gradação da(s) face(s) é, regra geral, socialmente prescrita. Pode até dizer-se que a hete-
rocortesia passa, frequentemente, pela autodescortesia. Estamos no âmbito do princípio
II-B-2, que defende comportamentos aparentemente «masoquistas». Por modéstia, ten-
do em vista o bom relacionamento interpessoal – de cortesia, em suma – lesamos os
nossos territórios, ou degradamos, sincera ou insinceramente, a nossa face positiva, con-
forme os contextos.
Este princípio corresponde a submáximas de Leech: à alínea a) de II-B-2, a
submáxima da generosidade, segundo a qual o locutor deve maximizar os custos em
relação a si próprio, e à alínea b) de II-B-2, a submáxima da modéstia, segundo a qual o
locutor deve maximizar a autodegradação, máxima que não deixa, todavia, de causar
alguma perplexidade. «Comment expliquer un principe aussi peu “naturel” que cette loi
de modestie?», pergunta Kerbrat-Orecchioni. Eis a resposta, que recorda o que
chamámos efeito de boomerang:

«s’il n’est pas convenable d’exalter sa propre face positive, c’est parce qu’un tel com-
portement atteint indirectement, par un mouvement inverse de dévalorisation implicite,
la face d’autrui; s’il ne faut pas se rehausser soi-même, c’est que cela risque de rebaisser
l’autre, et s’il convient parfois de se rabaisser, c’est qu’il y a des chances pour que
l’autre s’en trouve du même coup rehaussé.»35

É evidente, pelas correspondências estabelecidas entre os princípios e as máxi-


mas, que a teoria de Leech, mesmo formulada em termos diferentes, não se afasta, no
essencial, da teoria de Brown & Levinson. Com efeito, no sistema de máximas e sub-
35
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 188.
142

máximas em que o PCa se desenvolve, encontram-se os três eixos acima referidos. Os


princípios L-orientados e A-orientados podem ser identificados com as submáximas
que, no quadro teórico de Leech, orientam os actos para o «self» e o «other», respecti-
vamente. Por outro lado, os processos de minimização de actos descorteses e a maximi-
zação de actos corteses são integrados nas noções, respectivamente, de cortesia negativa
e cortesia positiva. Aliás, o próprio Leech utiliza estas noções,36 as quais diz ter colhido,
explicitamente, em Brown & Levinson.37
O terceiro eixo – face negativa vs. face positiva – corresponde, por um lado, às
máximas do tacto e da generosidade, e, por outro, às máximas de aprovação, modéstia,
acordo e simpatia. Com efeito, as noções de “custo” e “benefício” das primeiras reme-
tem para a noção de face negativa, porque, como observa Kerbrat-Orecchioni, «le coût
est une lésion, et le bénéfice un accroissement territorial», enquanto as outras dizem
respeito à face positiva.38 Aliás, Leech afirma que «speech acts are like other kinds of
action in involving some cost or benefit to s[peaker] or h[earer]» e que alguns deles -
por exemplo, as perguntas - podem exigir não só «some cooperative effort on the part of
the person addressed», mas também serem vistos como «a serious imposition in that
they threaten the privacy of h».39 A este propósito, o autor considera também relevantes
os estudos de Goffman «on face and territories of self.»40

Os fenómenos da cortesia verbal não são, todavia, tão lineares e simples quanto
a descrição pode sugerir. Com efeito, nem sempre é fácil determinar, com precisão, por
exemplo, se um acto verbal é cortês ou descortês; se ele ameaça, protege ou valoriza a
face de cada um dos interlocutores, ou as faces de ambos ao mesmo tempo, ou ora as de
um ora as de outro; se os actos de cortesia são verdadeiros ou fingidos; se são estraté-
gias para relações de cortesia, ou estratégias de cortesia para outros fins, etc. Pode-se até
dizer que a prática de uns princípios entra em conflito com o que determinam outros,
parecendo pôr em causa a validade do sistema. Daí, também, que nem sempre seja fácil

36
«Negative politeness [...] consists in minimizing the impoliteness of impolite illocutions, and positive
politeness consists in maximizing the politeness of polite illocutions». [LEECH, 199610: 83-84]
37
«The ‘positive’ and ‘negative’ aspects of politeness derive from Brown and Levinson’s distinction
between positive and negative face [...], and their consequent distinction between positive and negative
politeness». [LEECH, 199610: 102, nota 1]. Leech remete, obviamente, para a referência bibliográfica
BROWN & LEVINSON, 1978. Cf., a propósito, supra, cap. II, pp. 106-106, nota 4.
38
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183.
39
LEECH, 199610: 140.
40
Id.: 150, nota 4.
143

reconhecer o tipo de relação interpessoal que, através desses actos, os interlocutores


estabelecem, alteram ou denegam. Concluímos, todavia, com Kerbrat-Orecchioni:

«Les règles qui composent le PP41 sont complexes et contradictoires. Pour les respecter
tant bien que mal, il nous faut souvent nous résoudre au compromis (être poli, c’est sa-
voir composer), et nous livrer à des contorsions qui peuvent être plus ou moins élé-
gantes ou boiteuses. Mais l’essentiel est qu’elles soient suffisamment souples pour que
les situations de double contrainte dans lesquelles elles nous plongent ne soient pas sans
issue – ce sont en quelque sorte à des double binds mous que l’on a généralement affaire
dans la vie quotidienne. Les règles interactionnelles ne sont pas tyranniques au point
que l’on ne puisse avec elles louvoyer, et se tirer honorablement de ce travail
d’équilibriste qu’elles nous imposent. Il y a dans le fonctionnement des interactions
beaucoup de “jeu”, et c’est ce qui permet aux sociétés humaines de ne pas sombrer dans
une schizophrénie collective qui serait sinon inéluctable.»42

2.1. Processos linguísticos de cortesia

Kerbrat-Orecchioni, na sequência aliás do que fazem Brown & Levinson, tam-


bém inventaria e descreve processos linguísticos que, aos níveis da cortesia negativa e
da cortesia positiva, o locutor pode utilizar em relação ao seu interlocutor e/ou a si pró-
prio, dentro dos parâmetros dos sistemas de faces e de cortesia acima descritos. Segun-
do a autora, estes sistemas são incontornáveis, porque estão implicados, a todos os
níveis, no funcionamento das interacções e, por isso, «sont susceptibles de rendre au
linguiste des services considérables», na análise dos observáveis.43
O cumprimento dos princípios de cortesia manifesta-se tanto a nível verbal,
como aos níveis do paraverbal e do não verbal. Aqui interessam-nos, apenas, as realiza-
ções verbais que expressam comportamentos corteses ou descorteses, no decurso duma
interacção verbal, tanto em sentido estrito como em sentido lato. A cortesia ou a sua

41
PP = Politeness Principle ou Principe de Politesse. A sigla funciona tanto para a forma inglesa como
para a francesa. PP (que traduzimos por princípio de cortesia, PCa) não corresponde, nesta citação, intei-
ramente, ao PP de Leech, acima descrito. Kerbrat-Orecchioni admite, contudo, tal como Leech, um PP,
mas com uma formulação diferente, como vimos, e que em Português se pode traduzir por «Cuidemo-nos
uns aos outros!», ou «Respeitemo-nos uns aos outros!», ou «Amemo-nos uns aos outros!»
42
KERBRAT- ORECCHIONI, 1992: 288-289. Para uma descrição desenvolvida e exemplificada das
“contradições” e “paradoxos” relativos ao cumprimento (ou não) das regras de cortesia e sua explicação,
cf. id.: 241-321 (cap. 3).
43
Id.: 193.
144

falta torna-se mais evidente, sem dúvida, quando recorre às fórmulas, isto é, a realiza-
ções estereotipadas, ritualizadas e rotineiras que, devido ao seu uso recorrente e mais ou
menos institucionalizado, se encontram já lexicalizadas e gramaticalizadas. Mas a corte-
sia linguística realiza-se também através de formas que os interactantes criam ou
recriam no decurso da interacção, algumas das quais revelando construções discursivo-
tex-tuais de certa subtileza, que só o contexto e a dinâmica da interacção poderão ajudar
a reconhecer, a interpretar e a aceitar ou a rejeitar, por excesso ou por defeito de corte-
sia.
Dos interactantes que utilizam umas e outras, conforme os contextos, se pode
dizer que possuem (também) uma competência de cortesia (obrigatoriamente incluída
na macrocompetência comunicativa44) que se manifesta através de processos não ver-
bais, paraverbais e verbais, que vão da prioridade e tomada de palavra nos turnos de
fala, à organização das trocas verbais e sucessão das intervenções, do tipo de actos de
fala às formas mais ou menos formais de cortesia.45
Vem a propósito observar que a competência de cortesia verbal é resultado da
educação, duma aprendizagem que acompanha a aquisição da própria língua materna,
mas que, em nosso entender, a escola deve continuar, desenvolver e aprofundar, tal
como o faz em relação aos aspectos gramaticais e linguísticos, o mesmo valendo para o
ensino-aprendizagem das línguas segundas e das línguas estrangeiras. Observa Kerbrat-
-Orecchioni que, por mais difíceis que sejam de explicitar, as regras de convivência
social «sont intériorisées par l’enfant en même temps que les règles plus spécifiquement
linguistiques».46 A propósito, a linguista refere vários estudos que põem em evidência a
aprendizagem, segundo os estádios de desenvolvimento da criança, dos diferentes com-
portamentos discursivo-textuais que constituem aspectos da competência de cortesia,
como exigência familiar e social.47

44
«To function as members of a culture, speakers must have a high degree of communicative compe-
tence. They must know how to speak appropriately in given situations: what degree of respect is appro-
priate, what markers of politeness are required, what rules governing turn-taking are in force, and much
more.» [CHIMOMBO & ROSEBERRY, 1998: 6] Carlos Gouveia considera que a «delicadeza» (é a
designação que utiliza) integra a competência comunicativa do falante, a par duma «competência social»,
isto é, «saber que determinados contextos situacionais requerem da sua parte um comportamento linguís-
tico e social mais formal, quando comparados com outros contextos em que tal não lhe é exigido.»
[GOUVEIA, 1996 : 409]
45
A breve descrição de competência comunicativa de Chimombo & Roseberry (cf. nota anterior) aproxi-
ma-se muito desta noção de competência de cortesia. Sobre a organização estrutural das interacções ver-
bais, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990 e, resumo, em 1996: caps. 3-6, bem como, supra, cap. I, 1.2.]
46
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 128.
47
Cf. id.: 128-130 e sobretudo 294-300, onde se encontra abundante bibliografia sobre o tema.
145

Segundo a linguista, a aprendizagem das regras de cortesia pela criança é uma


aquisição que se inscreve no âmbito da competência pragmática:
«Il va de soi que la politesse n’a rien de “naturel”: elle n’est nullement indispensable à
la satisfaction des besoins élémentaires de l’individu. Mais au fur et à mesure que se
développe chez l’enfant le sentiment du “territoire” et de la “face” (sentiment précoce,
et puissant), et que se multiplient les conflits à ce sujet, apparaît la nécessité de réguler
ces conflits par les procédés du “face work”. D’autre part, au fur et à mesure que
l’enfant se socialise, il lui faut intérioriser les règles rituelles qui gouvernent les rela-
tions interpersonnelles – on peut remarquer que la langue française dit “bien élevé”
l’enfant poli: l’éducation, et par un dressage systématique (techniques de sollicitation,
répétition, correction, évaluation – “Dis bonjour à la dame”, “Merci qui?”, etc. – bien
décrites par Greif 1984).»48

Haverkate, por seu turno, refere que a importância sociocultural da etiqueta «es
la causa de que, hasta el día de hoy, sea corriente que los padres se esfuercen por ense-
ñarles a sus hijos las normas vigentes de cortesía, desde el momento en que éstos dicen
sus primeras palabras», certamente porque «se dan cuenta de que el camino por recorrer
es largo». Trata-se duma aprendizagem lenta e progressiva, relativamente aos sistemas
fonológico e morfossintáctico. Segundo refere o autor, esta diferença tem uma explica-
ção natural: «desde un punto de vista puramente racional, las normas de la cortesía ver-
bal van contra la claridad y la eficacia comunicativa», uma vez que «los niños tienden a
orientarse hacia el componente proposicional y al objeto ilocutivo de las locuciones que
producen, sin tener en consideración los factores interactivos [...] distancia social, poder
y grado de imposición.»49
Consideramos, nesta ordem de ideias, que a descrição dos diferentes processos
verbais de cortesia e de descortesia é, pelo menos, tão importante quanto as descrições
gramaticais e linguísticas. Em nosso entender, tão importante é, por exemplo, saber
classificar as palavras duma língua e descrever a sua combinação frásica e organização
textual, como saber, por exemplo, que essa combinação e essa organização são também
48
Id.: 295. A autora refere E. B. Greif, 1984: «What’s the Magic Word: Learning Language throught
Politeness Routines», Discourse Processes, 7-4: 493-502. A propósito do sentimento que cedo as crianças
começam a ter da sua face (negativa e positiva), Kerbrat-Orecchioni refere que estudo de H. Jisa mostra
muito bem que «dès les premières années les enfants ont un sens aigu de leur territoire (possessions, terri-
toire spatial et corporel), ainsi que de leur face (exemple du “lalalalère” lancé par l’une des fillettes étu-
diées pour défier la seconde); et que la grande majorité des disputes entre les enfants de deux ou trois ans
trouvent leur source dans des conflits territoriaux ou des querelles d’amour-propre – ce qui apporte évi-
demment de l’eau au moulin de la théorie de Goffman et Brown & Levinson.» [Id.: 295, nota 1]
49
HAVERKATE, 1994: 11e 42.
146

uma exigência (ou consequência) do tipo de relação que temos ou julgamos ter, ou que
desejamos estabelecer, recuperar, anular, manter e/ou desenvolver com os nossos inter-
locutores. Saber, por exemplo, que determinadas palavras e expressões se usam ou não
usam conforme os contextos, mas também por que razões as usamos, isto é, saber que
tais usos ou abusos têm muito a ver com o sistema de cortesia vigente numa dada cultu-
ra e comunidade, e com o(s) efeito(s) de cortesia ou de descortesia que queremos ou não
produzir, com as relações interpessoais de proximidade, indiferença ou distanciamento,
dos diferentes graus de concórdia, discórdia ou conflito que temos ou queremos ter com
quem (nos) encontramos e com quem con-vivemos.
A aprendizagem (ou a sua reaprendizagem em termos actuais) das formas ver-
bais e não verbais de cortesia começa a sentir-se, em Portugal, como uma necessidade
educativa, a nível familiar e escolar. Ao nível do «socialmente correcto» (para utilizar-
mos o título do livro que é já um best-seller50), observa Bobone que a educação «serve,
tal como a gramática para as línguas, para tornar natural e espontâneo aquilo que foi
aprendido e assim fazer parte do automatismo das reacções.» Defende, por isso, que a
educação «deve ser transmitida às crianças por um processo de impregnação familiar
quotidiano», pois só assim a sua eficácia e profundidade permanecerão «para toda a
vida». E acrescenta, mais adiante, que pais e encarregados de educação, «por várias
razões, vêem-se constrangidos a remeter para as escolas, sem resultados garantidos, a
resolução dos problemas de educação e boas maneiras de seus filhos». Considera, por
isso, que «seria desejável que os professores voltassem a ensinar os conceitos elementa-
res de cortesia e civismo aos mais pequenos, como aconteceu em tempos não muito
distantes.»51
A educação familiar, escolar e social das crianças deve contemplar, de facto,
também esta vertente de formação prática dos diferentes comportamentos e expressões
de cortesia. Mas não só em relação às crianças. Também os adultos estão a precisar de
acções de formação contínua e continuada neste domínio.52 No que ao nosso estudo diz

50
O lançamento recente e o sucesso editorial, em Portugal, de alguns livros sobre etiqueta e boas manei-
ras não deixa de ser significativo, a este respeito. Repare-se, a título de exemplo, que o livro de Bobone,
Socialmente Correcto, publicado em 1999, ia já, em Março de 2002, na 16.ª edição.
51
BOBONE, 1999: 26 e 28.
52
A este respeito, é de recordar o editorial dum jornal diário, intitulado precisamente «Educação»:
«A falta de educação e o excesso de dinheiro são uma mistura explosiva para qualquer sociedade. A portuguesa
não foge à regra e os seus efeitos nefastos estão a afectar seriamente a vida de muitos cidadãos que tiveram a sorte de
ser educados pelos seus pais a viver civilizadamente e a respeitar escrupulosamente regras básicas de convívio com
os seus semelhantes. São princípios velhos como os tempos, que não se aprendem nos livros nem nos bancos da
escola. São princípios elementares que deveriam acompanhar qualquer ser humano desde o berço. São princípios que
147

directamente respeito, defendemos que é analisando, descrevendo e sistematizando os


diferentes processos verbais, a nível linguístico e discursivo-textual, que se compreende
a utilização de determinadas formas e fórmulas (pense-se, por exemplo, nas interjei-
ções) cujo uso corrente e abundante levou à sua dessemantização (total ou parcial), mas
que uma análise contextualizada faz relevar os seus valores semântico-pragmáticos, cuja
importância, a nível discursivo-textual, não podem deixar de ser considerados. Será
possível, até, recuperar funções e valores linguísticos que se haviam perdido ou esque-
cido.
Regressamos, assim, ao sistema de cortesia proposto por Catherine Kerbrat-
-Orecchioni e aos processos linguísticos da sua expressão. A linguista inventaria e des-
creve as manifestações linguísticas de cortesia negativa e de cortesia positiva, incluindo,
no conjunto das primeiras, as estratégias off record de Brown & Levinson, isto é, o
recurso a processos de indirecção discursiva.
Aos processos verbais de cortesia negativa, através dos quais os interlocutores,
por abstenção ou compensação, atenuam a potencial descortesia de um acto de fala,
chama Kerbrat-Orecchioni atenuadores («adoucisseurs»53), que divide em substitutivos
e acompanhantes.54

não se compram com dinheiro. Na falta deles, as sociedades modernas recorrem cada vez mais a normas escritas,
regras publicadas, códigos, deontológicos ou de outra natureza, regulamentos e até à tolerância zero nas estradas para
evitar que os cidadãos se matem e matem outros seres humanos. É evidente que esta procura desesperada de balizas
para tornar a vida suportável não resolve o problema da falta de educação. Apenas adia o diagnóstico e as soluções
para a verdadeira crise de valores e princípios que assola as sociedades, em que a portuguesa não é, obviamente,
excepção. / Uma vez por outra, Portugal agita-se com polémicas absurdas sobre questões básicas de educação e
civismo. Agora, discute-se se é ou não legítimo escutar e tornar públicas conversas alheias. Por este andar, amanhã
estaremos a elaborar teses profundas sobre a legitimidade de se espreitar pelo buraco da fechadura ou ouvir o que se
passa na casa do vizinho. Velhos tempos em que os pais ensinavam os filhos a cultivar a virtude da discrição. Dentro
e fora de casa. A sociedade portuguesa não precisa de mais normas, proibições, códigos ou tolerâncias zero. O que
faz falta é educação. [...] Mas da que se aprende desde o berço e que não há livro de boas maneiras que substitua.
Com educação evita-se muita coisa. Até os disparates.» [António Ribeiro Ferreira, Diário de Notícias,
01/12/99]
53
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 196 e 1996: 55. Brown & Levinson designam tais estratégias por
softners [cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 70], que estudiosos espanhóis também traduzem por ate-
nuadores [cf. BLANCAFORT & VALLS, 1999: 169]. Há, porém, autores que propõem outras designa-
ções. Para uma amostragem, até porque «la terminologie est en la matière profuse», cf. KERBRAT-
OREC-CHIONI, 1992: 196. A propósito, é de referir que alguns autores tomam «hedges» como sinónimo
de «softners». Kerbrat-Orecchioni retoma e usa o termo «hedges», segundo a definição dada por Lakoff
(«words whose job is to make things fuzzier or less fuzzy»), considerando-o, todavia, não ser equivalente
a «softners». Para a linguista francesa trata-se de processos que, ao nível da cortesia negativa, acompa-
nham a formulação de FTA’s dirigidos ao A[locutário] e que, não sendo formas de modalização propria-
mente dita, classifica, todavia, como marcadores de cortesia «próximos dos modalizadores» de proximi-
dade ou distanciamento. Interpretando a definição de Lakoff, escreve que se trata de «mettre en évidence
le flou qui caractérise les notions que l’on manipule en langue naturelle, et l’existence dans le lexique de
nombreux marqueurs d’approximation (ou de non-approximation), dont la fonction est de spécifier la
relation, plus ou moins étroite ou lâche, que le référent dont on parle entretient avec le prototype». Depois
de apresentar exemplos destes marcadores, conclui que eles têm, ao nível da cortesia, uma função seme-
lhante à dos modalizadores, isto é, «arrondir les angles d’une assertion pour lui donner des allures moins
terroristes (et en même temps plus prudentes).» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 222 e 223] Meyer-
148

Apresentamos a seguir os principais processos linguísticos e discursivo-textuais,


através dos quais os interlocutores procuram ser corteses, consciente ou inconsciente-
mente, sinceramente ou não.

A. PROCESSOS DE CORTESIA NEGATIVA55

A.1. Substitutivos: substituição duma formulação explícita dum FTA por uma
formulação mais suave. Para o efeito, o locutor pode recorrer:
A.1.1. à indirecção (v.g. pergunta e asserção por ordem; pergunta por censura ou refuta-
ção; confissão de incompreensão por crítica...);
A.1.2. a desactualizadores modais (utilização ou combinação de modalidades...), tem-
porais (condicional, imperfeito, futuro...) e pessoais (apagamento do(s) interlocu-
tor(es), através da passiva, da impessoalização, da indefinitização...);
A.1.3. a pronomes pessoais [vós de cortesia, por tu; nós de solidariedade ou modéstia,
por eu, em caso de vitória (v.g. “Ganhámos”, por “Ganhei”), ou por tu, em caso
de derrota (“Perdemos”, por “Perdeste”)...];
A.1.4. a figuras de estilo (enálage, litote, eufemismo, ironia, metáfora...);
A.1.5. ao tropo comunicacional: processo discursivo de natureza retórica que, para ser
cortês, «consiste à feindre d’adresser un énoncé menaçant à quelqu’un d’autre
que celui auquel on le destine véritablement.» 56
A.1.6. outros processos ...

Hermann utiliza o termo empregue por Brown & Levinson, de quem cita a definição: «A ‘hedge’ is a
particle, word, or phrase that modifies the degree of membership of a predicate or a noun phrase in a set»
[BROWN & LEVINSON, 1978: 150, cit. por MEYER-HERMANN, 1984: 179-180] Contudo, os autores
de Politeness, ao esclarecerem a definição, acrescentam: «it says of that membership that it is partial, or
true only in certain respects, or that it is more true and complete than perhaps might be expected (note
that this latter sense is an extension of the colloquial sense of ‘hedge’).» [BROWN & LEVINSON, 1987:
145]. De assinalar que Meyer-Hermann indica, a seguir, ao «hedge» dever, «-verbos modais-» [MEYER-
-HERMANN, 1984: 180] Carreira, por seu turno, traduz «hedges» para Francês por «protecteurs». E a
propósito, comenta a tradução literal de «hedge» por «sebe», por não lhe parecer a melhor solução, «car
en anglais il ya des expressions du type “to hedge in answering”, “répondre à côté, éviter de répondre”,
“don’t hedge”, “dis-le franchement / directement”, ce qui n’est pas le cas en français ni en protugais.»
[CARREIRA, 1995: 211 e nota 2] Haverkate, por seu turno, toma «hedge» como sinónimo de «softner»:
«La modificación de la proposición por cortesía se hace de varias formas. Una de las estrategias principa-
les consiste en emplear atenuantes, término que corresponde al inglés hedge. Podríamos definir el ate-
nuante como una partícula, palabra o expresión que sirve para modificar el significado de un predicado de
forma que se indique que ese significado sólo se aplica parcialmente al objeto descrito.» [HAVERKATE,
1994: 209]
54
Em KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 214, a linguista chama «additifs» a estes «adoucisseurs».
55
Para inventário, descrição e exemplificação de processos verbais, paraverbais e mesmo não verbais, ao
nível da língua francesa, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 195-227, e resumo em 1996: 55-59.
56
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996 : 57. Cf. também 1990: 92-98, 1992: 212-213; 1996: 19-20; e sobre-
tudo 1986: 93-157, para «uma teoria standard desenvolvida» do conceito. A estratégia do tropo comuni-
cacional pode ser incluído nos processos de referência e tratamento delocutivos propostos por CARREI-
RA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. V, 1.2.
149

A.2. Acompanhantes: consistem em fazer acompanhar um FTA de outros pro-


cessos «qui sont autant de gants que l’on prend pour ménager les faces déli-
cates de son partenaire de l’interaction.»57 Por exemplo, a formulação de um
FTA pode ser atenuada, fazendo-a acompanhar de:
A.2.1. fórmulas de cortesia especializadas, já lexicalizadas e por isso convencionais
(v.g., “Se faz favor”, “Por favor”...);
A.2.2. um enunciado “preliminar” (ou simplesmente “pré-”, segundo os conversacio-
nalistas58), mais ou menos convencional [v.g., “Posso pedir-lhe(te) um favor?”,
“Posso fazer-te uma pergunta?”, “Posso fazer(-te) um (pequeno) reparo?”,
“Estás livre logo à noite?” ...];
A.2.3. pedido de desculpa ou duma ou mais justificação ou explicação [v.g., “Peço-lhe
desculpa (por interrompê-lo, incomodá-lo), onde ficam os correios?”, “Esqueci-
-me do relógio em casa, que horas são?” ...];59
A.2.4. minimizadores, que parecem reduzir a ameaça do FTA [v.g., “Eu queria simples-
mente fechar a porta...”, “Podes dar-me um pouco de atenção...”, “Dá-me aqui
uma mãozinha / uma pequena ajuda”...];
A.2.5. modalizadores (v.g., “penso”, “creio”, “acho”, “tenho a impressão”, “parece-
-me”, “sem dúvida”, “provavelmente”, “cá para mim”, “em meu entender” ...);
A.2.6. “desarmes por antecipação” («désarmeurs»), prevendo e prevenindo uma possí-
vel reacção negativa do destinatário (v.g., “Não queria interromper-te / importu-
nar-te / incomodar-te / distrair-te, mas ...”, “Não leves a mal, mas ...”, “Sei que
não gostas de emprestar os teus CDs, mas ...”);
A.2.7. acariciadores («amadoueurs»), espécie de “rebuçado que ajuda a engolir a pílu-
la” (v.g., “Passa-me o pão, meu anjo”; “Tu que costumas saber tudo, diz-me...”;
“Empresta-me os teus apontamentos, tu que sabes tirá-los tão bem...”60);
A.2.8. outros processos...

Kerbrat-Orecchioni termina o inventário dos processos de cortesia negativa,


observando que:

57
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57.
58
«Ces annonces, qu’il est devenu usuel, depuis certain article de Schegloff (1980), d’appeler des
“pré-” (“préliminaires”, énoncés “préparatoires”, “précautions”, “préfigurations”, et “préfaces”).» [KER-
BRAT-ORECCHIONI, 1992 : 215]
59
Dada a importância e frequência destes processos, a linguista dedica-lhes estudos específicos em KER-
BRAT- ORECCHIONI, 1994: 149-197 e 1996: 83-88, para os seus aspectos essenciais.
60
Nos diálogos que trava com os seus principais interlocutores, a Salta-Pocinhas do Romance da Raposa
de Aquilino Ribeiro recorre, frequentemente, a este tipo de «carícias verbais», como se verá, no cap. XV.
150

a) é rica e variada a panóplia de atenuadores que cada língua põe à disposição dos seus
utilizadores;
b) os diferentes processos atenuadores são cumuláveis;
c) os atenuadores têm também o seu lado negativo - os intensificadores («durcisseurs»)
dos FTA’s - cuja panóplia de processos é semelhante e cuja função discursivo-textual
consiste em reforçar o acto de discurso em vez de o amortecer, e de aumentar o seu
impacto em vez de o atenuar;
d) a utilização de atenuadores e intensificadores é, todavia, muito diferente: com excep-
ção dos casos especiais de interacções altamente agonais, os intensificadores negati-
vos («durcisseurs») são muito mais raros e «marcados» do que os intensificadores
positivos («adoucisseurs»), no acompanhamento dum FTA, pelo menos. Porque, no
caso dos FFA’s, é precisamente o contrário o que verifica, como se passa a ver, a pro-
pósito dos processos de cortesia positiva.61

B. A. PROCESSOS DE CORTESIA POSITIVA

Os processos linguísticos deste tipo dizem respeito, essencialmente, à produção


de FFA’s que se manifestam através de actos de acordo, ofertas, convites, cumprimen-
tos, agradecimentos, fórmulas votivas e de boas-vindas, etc. Ao contrário dos FTA’s, o
seu funcionamento é, por um lado, muito mais simples e, por outro, a sua realização
vem acompanhada, geralmente, de intensificadores. Porque, «d’une manière générale,
les locuteurs ont tendance à adoucir la formulation des actes menaçants, et à renforcer
celle des actes valorisants; à litotiser les énoncés impolis et hyperboliser les énoncés
polis».62
Assim, por exemplo, quando se agradece um favor, um presente ou um cumpri-
mento, um gesto de simpatia, diz-se não apenas «Obrigado !», mas também, intensifi-
cando-se a gratidão, real ou fingida, «Muito obrigado!», ou «Muitíssimo obrigado!», ou
«Fico-lhe/te muito grato/agradecido por tudo!», etc. A intensificação, nestes casos, é
tão natural e aceitável, consoante os contextos, que é pragmaticamente «agramatical»
minimizar o agradecimento, dizendo, por exemplo, como fórmula de agradecimento
*Pouco obrigado!63

61
A síntese das observações que elaborámos baseou-se em KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 58-59 e
1992: 223-227.
62
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59. Para descrição e desenvolvimento, cf. 1992: 227-233.
63
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59.
151

Sendo ou não sincero, mas sendo cortês, diz-se à dona de casa, reforçando uma
apreciação positiva, que o arroz de cabidela estava uma delícia; ou então, voltando a
ser cortês, amenizando-se uma apreciação negativa (apesar de tudo menos frequente),
afirmando que a sopa estava um pouquinho salgada, para o meu gosto, minha amiga!
Não é, porém, só ao nível dos actos discursivo-textuais que se manifesta a corte-
sia verbal. Também ao nível da organização preferencial das trocas verbais. A este
nível, Kerbrat-Orecchioni defende, como princípio geral, que «dans le paradigme des
enchaînements possibles à un acte de langage donné, les différents types de réaction
n’ont pas tous le même statut, ni le même degré de probabilité: certains sont “préférés”
(ou non marqués), et d’autres sont “non préférés” (ou marqués)».64 Estes reconhecem-
se pela sua formulação com alguma demora, frequentemente precedidos de marcadores
de hesitação e apresentarem formulações mais elaboradas que os primeiros. É por isso
que os encadeamentos favoráveis são, regra geral, mais corteses e, consequentemente,
preferidos aos encadeamentos desfavoráveis, que são descorteses e por isso não preferi-
dos.
A título de exemplo, comparem-se as duas interacções verbais (IVa e IVb)
seguintes, retiradas d’O Malhadinhas de Aquilino. IVa é dominada pela relação de cor-
tesia verbal entre os interactantes, Rita [R] e Malhadinhas [M], onde paira um jogo
mútuo de seduções afectivas. IVb é dominado pelas descortesias verbais entre M e Brí-
zida [B], onde o conflito afectivo é evidente.

IVa IVb

64
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 61 e, para a respectiva descrição desenvolvida, 1992: 233-239.
152

[R1] – Durma bem e sonhe com os santinhos... [B1] – Que há, primo?
[M1] – Vou sonhar com a Rita que também é [M1] – Chega aqui – [...] – Anda comigo...
santinha... [B2] – Aonde?
[R2] – Ui! sou uma peste; lá que sonhe comi- [M2] – Aonde, eu to direi. Põe a roca!
go, não acredito. [B3] – Quero saber primeiro...
[M2] – Acredite que hei-de adormecer – se [M3] – Mau!
puder adormecer! – a pensar em si... [B4] – Quero saber...
[R3] – Jure lá... Senti-a estrebuchar, com ganas de semear
[M3] – Pela luz dos meus olhos! alarme, e rapei da faca:
[R4] – Então também hei-de adormecer consi- [M4] – Vês esta folha? Tem-se farto de matar
go no pensamento – e, ditas estas palavras com a cabras. Não queiras tu espetar-te nela, depois espe-
sua risadinha, voltou a cara e fugiu.65 tar-me eu!66
Em IVa, as intervenções, além de fáticas, ou melhor, uma intervenção fática por
natureza é transformada em sequência também transaccional. Os interactantes entre-
gam--se a trocas de valorização mútuas das respectivas faces positivas, com R, inclusi-
ve, a autodegradar-se, como resposta, recusa cortês, por modéstia, dos presentes verbais
recebidos. Repare-se que as intervenções de cada interactante são relativamente desen-
volvidas, não se limitando, em geral, aos actos directores. Repare-se, ainda, que esta
sequência podia ter-se limitado a uma troca verbal simples cortês (grau zero de cortesia,
digamos) de Boa noite! Esta sequência verbal desenvolve-se em cortesias verbais
(FFA’s) mutuamente dirigidas.
Em IVb, uma vez iniciado o diálogo, as intervenções, tanto de B como sobretudo
de M, situam-se fora do quadro da cortesia verbal. Trata-se duma série de actos directi-
vos não acompanhados de justificações ou explicações e, por isso, limitados apenas aos
actos directores, com excepção da intervenção [M4], onde os actos subordinados, toda-
via, não atenuam a directividade e a descortesia, antes as intensificam. É certo que o
contexto (incluindo o narrativo) não permitia que nem M, pelas intenções inconfessadas
que tinha (raptar B), nem que B, por carácter, condição e reacção, se entregassem a cor-
tesias. Mas o que se vê e mostra é que os actos corteses e descorteses têm influência na
organização e composição das práticas discursivo-textuais que constituem.

2.2. A importância das variantes sociais

65
RIBEIRO, 1989: 45. Rita, filha de abastado lavrador, sente-se afectivamente atraída por Malhadinhas,
que na altura tinha rompido o namoro com a prima Brízida.
66
Id.: 51. O diálogo prepara o rapto que Malhadinhas fez de Brízida.
153

O efeito de cortesia depende, como defendem os especialistas, a começar, como


vimos, pelos fundadores da cortesia linguística, dos factores ou variantes sociais D e P,
isto é, das relações de distanciamento e de poder existentes ou presumidas entre os inte-
ractantes, além de outros aspectos contextuais. Tais factores estão na origem, respecti-
vamente, das relações horizontais e verticais67 que os interactantes estabelecem ao longo
duma interacção verbal. Kerbrat-Orecchioni, comentando a incidência dos factores
sociais no funcionamento da cortesia,68 fala de um terceiro tipo de relação interpessoal,
conforme «sa tonalité est plutôt consensuelle ou au contraire conflictuelle», acrescen-
tando que «les affinités sont ici claires entre consensus et politesse, conflit et impolites-
se».69 Além disso, reconhece que as formas de tratamento, desde as mais simples às
honoríficas, além de marcadores claramente relacionais, são fenómenos que «même
s’ils ne sont pas toujours envisagés comme tels, s’inscrivent bien dans le cadre plus
général de la politesse.»70
As formas verbais que manifestam as distâncias (horizontal ou vertical) entre os
interactantes inscrevem-se, assim, também no conjunto dos fenómenos e princípios de
cortesia, e devem, por isso, ser incluídas no conjunto dos respectivos marcadores ou
processos discursivo-textuais. Aliás, “respeitar as distâncias”, ou seja, o estatuto social,
a idade, o sexo, a profissão, o cargo, a habilitação académica, os gostos, o conhecimento
mútuo, a situação, etc., é uma regra do viver socialmente correcto.
Aos marcadores linguísticos e discursivo-textuais que manifestam, ao nível das
distâncias horizontal (ou de relação proxémica71) e vertical (ou de relação taxémica72),
as relações entre os interlocutores, chama Kerbrat-Orecchioni, respectivamente, rela-

67
A distância ou relação horizontal «renvoi au fait que, dans l’interaction, les partenaires en présence
peuvent se montrer plus ou moins “proches” ou au contraire “éloignés”». Existe, assim, um eixo horizon-
tal, gradual e simétrico, orientado, de um lado, para a familiaridade e intimidade, e, do outro, para o dis-
tanciamento. O poder, ou relação vertical (também dita de poder, hierárquica ou de dominação) estabele-
ce uma “relação de lugares” entre os interlocutores: «cette dimension renvoi au fait que les partenaires en
présence ne sont pas toujours égaux dans l’interaction». Assim, um deles pode ocupar uma posição alta,
enquanto o outro pode ocupar uma posição baixa. Gradual, como a horizontal, a vertical é, porém, «par
essence dissymétrique». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 41 e 45]
68
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 259- 265.
69
Id.: 265.
70
Id.: 161.
71
Criado por Hall, proxémia designa «o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o
homem faz do espaço enquanto produto cultural específico.» [HALL, 1986: 11] Contrapondo proxémia a
cinésia, o antropólogo esclarece que a proxémia «traite de l’architecture, de l’ameublement et de
l’utilisation de l’espace... La proxémique cherche à déterminer comment nous établissons les distances».
[HALL, 1981: 196, cit. por CARREIRA; 1995: 9] Tomo, aqui, proxémia e proxémico(a) para referir,
exclusivamente, distâncias e/ou relações horizontais.
72
«Du grec taxis = “place” (dans une structure de préférence hiérarchique)» [KERBRAT-ORECCHIONI,
1992: 75, nota 1]. Tomo, aqui, taxémia e taxémico(a) para referir, exclusivamente, distâncias e/ou rela-
ções verticais.
154

cionemas horizontais e relacionemas verticais (ou simplesmente taxemas), subdividin-


do os últimos em taxemas de posição alta e taxemas de posição baixa. Além disso, os
relacionemas são classificados ainda em indicadores ou construtores, conforme se limi-
tam a manifestar, respectivamente, um tipo de relação já existente, ou a construir uma
relação, no início ou durante uma interacção.73
Os relacionemas são de natureza diversa e manifestam-se de diferentes modos,
mas é apenas a sua realização verbal que de momento nos interessa.74 Kerbrat-Ore-
cchioni inventaria, como principais relacionemas horizontais, os seguintes marcadores:
a) formas de tratamento, pronominais e nominais (e, em Português, também as formas
pronominalizadas, além das verbais, marcadas estas pelos respectivos morfemas de
desinência de tempo / modo);
b) escolha de temas: não se fala, por regra, de temas íntimos ou pessoais a estranhos, tal
como “não se fala de corda em casa de enforcado”, mesmo que (ou sobretudo em) se
tratando de pessoa íntima;
c) níveis de língua: as situações formais exigem, por regra, registos elevados, enquanto
as informais se associam a registos mais ou menos familiares.

Por seu turno, os principais taxemas são:

a) formas de tratamento, pronominais e nominais (e, em Português, também as formas


pronominalizadas, além das formas verbais, marcadas pelos respectivos morfemas de
desinência de tempo / modo);
b) organização dos turnos de fala, no que toca, por um lado, aos seus aspectos quantita-
tivos (v.g., falar mais e durante mais tempo é sinal de posição alta) e, por outro, aos
seus aspectos qualitativos (v.g., as interrupções e as intrusões são também entendidas
como taxemas de posição alta);
c) organização estrutural da interacção verbal: àquele que ocupa uma posição alta
cabe, regra geral, abrir e fechar as sequências dialogais;
d) actos de discurso: quem ocupa uma posição alta pode realizar FTA’s (ordem, proibi-
ção, autorização, conselho, crítica, censura, zombaria, insulto, etc.) relativamente às
faces, negativa e/ou positiva, do interactante, passando este, nesses casos, a situar-se,
ou a ser situado, numa posição baixa; esta posição pode, por outro lado, ser auto-

73
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 45-57 e 82-101, para inventário e descrição, respectivamente,
dos relacionemas horizontais e verticais, e 1996: 42-44 e 46-47, para os resumos correspondentes.
74
Para um inventário e descrição dos relacionemas não verbais e paraverbais, horizontais e verticais, cf.
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 41-44 e 75-82, e resumos correspondentes em 1996: 42-43 e 46.
155

manifestada, quando um locutor realiza FTA’s dirigidos a si próprio, como quando


pede desculpa, agradece, confessa, se retracta, se autocritica, se humilha, etc.

Exceptuando-se os taxemas indicados em d) - actos discursivo-textuais que


remetem explicitamente para o sistema de faces e, consequentemente, para o sistema de
cortesia - e, em parte, os relacionemas formas de tratamento, os restantes não aparecem
contemplados nos elencos dos processos verbais de cortesia negativa ou positiva, acima
apresentados. Ao estudarmos, porém, as suas representações, teremos oportunidade de
verificar como os mecanismos verbais de distância proxémica e taxémica também con-
dicionam as expressões verbais de cortesia ou de descortesia, nos outros aspectos, os
quais devem, por isso, ser integrados também no conjunto dos fenómenos verbais corte-
ses e/ou descorteses.
3. Observações críticas

O sistema de cortesia linguística proposto Kerbrat-Orecchioni apresenta-se-nos


como um modelo teórico de análise altamente eficaz para a descrição linguística e dis-
cursivo-textual dos fenómenos de cortesia que os interlocutores utilizam nas diferentes
interacções verbais que realizam, tendo em vista, mais que a transmissão de informação,
o estabelecimento duma relação equilibrada e harmoniosa a nível interpessoal. Aliás, a
informação será transmitida tanto mais eficazmente quanto mais acompanhada for de
cortesia. Nas próprias palavras da linguista, a cortesia linguística é «une machine à
maintenir ou restaurer l’équilibre rituel entre les interactants, et corrélativement, à
fabriquer du contentement mutuel».75
Julgamos, porém, que algumas observações críticas devem ser feitas a esta pro-
posta. Observações que a seguir enumeramos e depois descrevemos de forma integrada:

(i) a não inclusão, no «sistema de cortesia», das formas de cortesia orientadas para a
face dupla de terceiros, presentes ou ausentes;76
(ii) a pouca atenção prestada aos fenómenos verbais de descortesia, os quais, em nosso
entender, podem ser analisados também segundo os eixos de orientação e das faces,
acima referidos;

75
KERBRAT-ORECCHIONI, 2000b: 34.
76
Formas de referência delocutiva, no sentido que lhes dá Carreira, como se verá no cap. V.
156

(iii) não considerar que, na realização cortês de um FTA, se encontram também FFA’s e
que, por isso, os processos de cortesia negativa se conjugam, por vezes, com pro-
cessos de cortesia positiva;
(iv) considerar que os fenómenos verbais de cortesia e/ou de descortesia se destinam,
sobretudo, a promover, respectivamente, a “paz social” ou “a guerra” entre os inter-
locutores, não relevando a importância que eles podem ter, também, como estraté-
gias discursivo-textuais que visam outros objectivos retórico-argumentativos.

Admitindo, embora, que «c’est en “face à face” que s’exercent les lois de la poli-
tesse»,77 convém ter presente, todavia, que, muito frequentemente, o tema duma conver-
sa(ção) é (ou passa por) um terceiro, ausente ou presente, que sempre será referido tam-
bém através de formas ou/e fórmulas de maior ou menor cortesia. Além disso, a refe-
rência cortês ou descortês a terceiros pode ser uma estratégia discursiva que visa outros
objectivos, explícitos ou implícitos, que não apenas os do estabelecimento e/ou manu-
tenção duma boa relação interpessoal. Podem visar estratégias, por exemplo, de figura-
ção. Os processos de cortesia ou de descortesia verbal podem visar objectivos de cons-
trução (figuração) ou restauro (refiguração) duma face pública própria ou alheia que se
deseja, ou que foi, justa ou injustamente, degradada, desfigurada. O relato autobiográ-
fico que, n’O Malahdinhas de Aquilino Ribeiro, o reformado almocreve faz aos escri-
vães e manatas de Vila Nova de Paiva (antiga Barrelas), das aventuras (venturas e des-
venturas) da sua vida adulta, inscreve-se, em nosso entender, num claro processo de
autorrefiguração. Processo esse que passa, também, por um processo de (con)figuração
favorável daqueles com quem ele simpatizava, como de (con)figuração desfavorável
(desfiguração) daqueles com quem não simpatizava, inclusive os seus próprios ouvintes,
apesar de os tratar (ironicamente, em nossa opinião) por Vossorias, (meus) senhores,
(meus) fidalgos e (meus) amigos.
É certo, por outro lado, que as descortesias verbais, pela sua própria natureza,
estão excluídas do sistema de cortesia. São, todavia, FTA’s orientados também ora para
o locutor, ora para o alocutário, ora para terceiros, e destinados a lesar ora a face pública
de um, ora a face pública de outros. Convém recordar que, no sistema de cortesia, os
actos auto-humiliativos ou autodegradantes do locutor são descortesias. Além disso, as
descortesias formuladas em relação a um ou mais terceiros podem constituir uma estra-
tégia de, indirectamente, ser agradável ou desagradável para com o(s) interlocutor(es) e

77
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59.
157

assim, lesar ou valorizar, respectivamente, a(s) sua(s) face(s) pública(s). Se, por exem-
plo, aceitamos e apoiamos apreciações desfavoráveis feitas pelo nosso interlocutor a
respeito dum terceiro, estamos a ser corteses para com ele, mas descorteses para com
esse terceiro. Se, pelo contrário, não aceitamos nem apoiamos tais apreciações, estamos
a ser descorteses para com o nosso interlocutor e corteses para com esse terceiro. Por
outro lado, as descortesias que expressarmos relativamente a um terceiro podem ser ora
corteses, ora descorteses em relação ao nosso interlocutor, conforme as relações de sim-
patia ou antipatia que este (man)tenha com aquele. Além disso, as formas verbais de
descortesia, com especial destaque para os insultos, expressam claramente as relações
de distância e de poder que os interactantes têm ou desejam ter entre si e em relação a
terceiros. Por tudo isto e porque não há, por se tratar de excepções às regras da boa e
normal convivência social, um sistema de descortesia (apesar das suas manifestações
serem muito frequentes e receberem realizações linguísticas diversas), é que considera-
mos que os fenómenos descorteses podem e devem ser incluídos também no âmbito da
análise da cortesia linguística, como o reverso da medalha. Aliás, há descortesias corte-
ses e cortesias descorteses, como quando, por exemplo, tratamos afectivamente o filho
por burrinho, ou ironicamente por vossa excelência.
A distinção entre cortesia negativa, associada sobretudo aos FTA’s, e cortesia
negativa, associada sobretudo aos FFA’s, é importante, a nível teórico e metodológico.
Tal distinção e tais noções não nos devem levar a pensar, contudo, que a realização cor-
tês de um FTA não pode coocorrer com a realização dum FFA. De facto, a realização
cortês de um FTA pode ser acompanhada pela realização dum ou mais FFA’s, valoriza-
dor(es), por compensação, da face pública do alocutário. Talvez seja necessário, por
isso, introduzir no sistema de cortesia de Kerbrat-Orecchioni uma distinção entre FFA’s
de cortesia negativa, destinados a compensar as lesões provocadas pela realização dum
FTA, e FFA’s de cortesia positiva, destinados simplesmente a valorizar a face pública
do alocutário. Também a este respeito cabe observar que a realização de actos de corte-
sia positiva A-orientados podem visar objectivos que não os estritamente informativos
(ao nível do conteúdo proposicional) ou relacionais (criação de um bom relacionamento
interpessoal), mas outros, mesmo que não imediatamente claros. O bom relacionamento
interpessoal que, regra geral, o uso de FFA’s estabelece pode ser considerado, além dum
fim em si mesmo, uma estratégia para a realização dum ou mais FTA’s, ou para levar o
alocutário a mudança de comportamento, de pensamento, de opinião ou de crença. Os
FFA’s são, assim, sincera ou fingidamente formulados, também estratégias retóricas de
158

sedução e persuasão, artes em que era mestra, como se sabe e oportunamente se verá,
uma dada senhora de muita treta.78

78
Ver, infra, cap. XV. Referimo-nos, obviamente, à Salta-Pocinhas, protagonista do Romance da Raposa
de Aquilino Ribeiro. Cf. RIBEIRO, 1961.
SEGUNDA PARTE

CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS


EM PORTUGUÊS

Lembrai-vos em primeiro lugar, que a polidez e o uso do


mundo consiste em saber esquecer-se de si mesmo, em
ter cuidado nos outros, em aproveitar a occasião de lhes
dar consideração, em lhes testemunhar o desejo de os
obsequiar, de lhes ser agradavel; em usar para com elles
de mansidão, condescendencia, bons modos, e muita
attenção; em fazer crer que nos temos em pouca conta,
por isso que é necessario mostrar-nos agradecidos ás
mais ligeiras attenções, aos mais ordinarios cumprimen-
tos.
J.-I. Roquette1

1
ROQUETTE, 18592: 50.
Capítulo IV

INTRODUÇÃO

Os (inter)locutores portugueses dispõem duma grande variedade de formas, per-


tencentes às diversas categorias linguísticas, que, ao utilizarem-nas em práticas discur-
sivo-textuais, activam ou constroem valores e efeitos de maior ou menor cortesia, se
visam proteger e/ou valorizar sobretudo a(s) face(s) do(s) outro(s), ou, pelo contrário, de
descortesia, se visam lesar essa(s) mesma(s) face(s), com maior ou menor gravidade.
Algumas dessas formas encontram-se gramaticalizadas e lexicalizadas, enquanto outras
são construções novas (mais ou menos originais), consoante os contextos de interacção
verbal.
A cortesia e a descortesia verbal não se limitam, por isso, a uma listagem de
formas mais ou menos fixas e convencionais, mas também e principalmente a todo um
conjunto complexo de processos, situados, conforme explica Carreira, ao nível da lín-
gua e do discurso. Ao nível da língua encontram-se, segundo a autora, as formas corte-
ses convencionais, tais como as formas de tratamento, as fórmulas de saudação ou cum-
primento, de agradecimento, de felicitação e de desculpa; ao nível do discurso, as for-
mas linguísticas mais ou menos complexas, como os processos de modalização e de
(in)direcção ilocutória, mais ou menos explícitos, e estratégias, mais ou menos explíci-
tas de cortesia, ao longo duma interlocução, como seja a distribuição de encorajamen-
tos, elogios, expressão de acordo ou desacordo, etc.1
Tendo em conta esta distinção, situamos no primeiro conjunto as formas mais
frequentemente utilizadas pelos interlocutores. Trata-se, em geral, de formas esteretipa-
das, rotineiras, ritualizadas, convencionais, lexicalizadas e gramaticalizadas, às quais
vamos chamar, por isso, fórmulas. No conjunto das segundas, por apresentarem cons-
truções morfossintácticas e sobretudo semântico-pragmáticas mais complexas, incluin-
do realizações originais, vamos chamar formas. Neste sentido, as primeiras constituem

1
Cf. CARREIRA, 1995: 28.
162

apenas um subconjunto (relativamente aberto) dentro do grande conjunto das segundas


(também aberto2), o que pode ser representado na figura seguinte:

CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL

FORMAS

Fórmulas

FIG. 1 – Repartição das noções de fórmulas e formas de cortesia / descortesia

De referir que esta distinção é sobretudo de natureza metodológica, pois todas as


fórmulas são também formas. Acontece, porém, que o movimento contrário não se veri-
fica, pelo menos num dado momento de evolução da língua, isto é, as fórmulas não pas-
sam as formas. Existem actualmente formas que, com o uso, passarão também a fórmu-
las, substituindo outras fórmulas que entretanto se desgastaram ou morreram, semântica
e pragmaticamente. Como observa Heinz Kröll, «as palavras costumam gastar-se, como
as medalhas, pelo uso. O que hoje ainda é um eufemismo, amanhã já pode ser um dis-
femismo.»3 Por outro lado, muito frequentemente fórmulas e formas coocorrem e coo-
peram, em vista do efeito de maior ou menor cortesia ou descortesia intendido e/ou do
maior ou menor efeito perlocutório desejado. Sobre este aspecto, referira-se que, como
já observámos, os processos corteses ou descorteses utilizados nem sempre são, em nos-
so entender, puras estratégias para a cortesia ou descortesia, mas também estratégias
de cortesia ou de descortesia para a obtenção de objectivos que ultrapassam o simples
estabelecimento de relações interpessoais pacíficas ou conflituosas. Há sempre momen-
tos ou situações em que ser cortês ou descortês é um meio sincero ou fingido de levar
ou desviar a água do moinho (próprio ou dos outros). São os valores de natureza retóri-
ca, polifonicamente enunciados, que as fórmulas e formas de cortesia e de descortesia
também expressam.
2
Por mais exaustivo que se possa ser na identificação e descrição das formas de cortesia ou de descorte-
sia, é sempre possível construir e descobrir outras que expressem tais valores.
3
KRÖLL, 1984: 12.
163

Alguém que procure saber como se pode ser cortês em Português, oralmente ou
por escrito, será possivelmente tentado a consultar gramáticas, dicionários e manuais
didácticos, por um lado, guias de conversação e livros de etiqueta ou boas-maneiras, por
outro. Nestes últimos encontram-se listas mais ou menos completas de fórmulas, regra
geral apenas (e pouco) formalmente contextualizadas, cujas descrições, todavia, nem
sempre primam pela correcção gramatical e discursivo-textual.4 No conjunto dos pri-
meiros, encontramos inventários mais ou menos incompletos, acompanhados de descri-
ções dos seus valores morfossintácticos, semânticos e, por vezes, pragmáticos (a que
alguns autores chamam geralmente «estilísticos» ou «afectivos»), com exemplos quase
sempre desco(n)textualizados ou insuficientemente co(n)textualizados. A propósito, não
deixa de causar alguma estranheza que, tratando-se de manuais, uns e outros destinados
a ensinar os bons usos da língua, nos diferentes contextos de interacção social, os seus
autores pouca ou nenhuma atenção dêem aos usos efectivos daquelas fórmulas,
co(n)textualizando devidamente as ocorrências exemplificativas e as suas descrições
linguísticas. São assim ignorados e/ou desvalorizados os reais efeitos (ou defeitos) de
cortesia que os seus eventuais utilizadores possam expressar, nas diferentes práticas
discursivo-textuais.5 Porque até as fórmulas mais corteses podem servir efeitos de des-
cortesia, e vice-versa, como se sabe.

4
A título de exemplo, observe-se o que se lê num manual de boas-maneiras, recentemente publicado em
Portugal, no capítulo precisamente intitulado «Erros linguísticos»: «Corrija os erros linguísticos. Trans-
mitem imediatamente uma imagem medíocre de si. Sempre que tiver dúvidas consulte a gramática ou o
dicionário (sobretudo, nunca caia no erro de dizer: “há-des”, “vistes” ou “puze-o”). // Por incrível que lhe
possa parecer, “pu-lo” é a contracção do verbo “pôr” com o artigo definido masculino.» Ou o seguinte,
com a curiosidade de, ao mesmo tempo que proíbe o uso de palavrões, bordões e erros fonéticos, acres-
centa: «É podre de chique, mas não diga “T’fone”. Está errado.» E começa a licenciada autora por dizer
que conhece «muitos doutores que cometem às dúzias de erros linguísticos», para recomendar logo de
seguida: «Se não sabe, aprenda. Seja um autodidacta. Pior do que a ignorância é o desinteresse pela
aprendizagem.» [MENEZES, 2001: 36 e 37] Não será, evidentemente, com manuais como este que os
portugueses passarão a ser mais corteses nas suas práticas discursivo-textuais.
5
Encontram-se levantamentos mais ou menos completos de fórmulas de cortesia (assim designadas ou
não), em CASTELEIRO (dir.), 1984: 66 (levantamento lexical); CASTELEIRO et al., 1988 (registo de
fórmulas segundo as diferentes situações de comunicação); CARREIRA & BOUDOY, 1993 (registo de
diferentes fórmulas de cortesia e como tal identificadas). Sob o termo geral «POLITESSE», estas últimas
autoras remetem, no «index», para usos de diferentes formas e sobretudo fórmulas de cortesia, usadas em
Português, desde o emprego do condicional ou imperfeito de cortesia, às diferentes fórmulas de contacto
(começar ou acabar uma conversa). As formas de tratamento, apesar de se situarem também no conjunto
das fórmulas de cortesia, merecem das autoras uma ficha autónoma. [Cf. id., índice remissivo, termos
«ADRESSE» e «POLITESSE»] A propósito de CASTELEIRO et al., 1988, é de referir que se trata de
volume destinado a responsáveis pela organização de cursos e de materiais, bem como a professores de
Português língua estrangeira ou língua segunda, metodologicamente perspectivada para a aquisição e
desenvolvimento de competências comunicativas.
164

Mas se, apesar de tudo, ainda se encontram inventários, descrições e análises de


fórmulas e formas de cortesia, como regras de comportamento social prescrito, muito
pouco existe acerca das descortesias verbais, insultuosas ou não, por se tratar, certamen-
te, de comportamentos socialmente proscritos, ainda entendidos, muitos deles, como
tabus. Tal facto, porém, não impede que os falantes de Português, como os de outras
línguas, recorram, mais ou menos conscientemente, também a fórmulas e formas des-
corteses, com maior ou menor frequência, mesmo aqueles que têm sempre o máximo
cuidado em não ofender ninguém, evitando dizer um palavrão, um insulto, uma calúnia,
uma injúria, um impropério, uma blasfémia, para nos referirmos apenas às ofensas mais
evidentes.
A cortesia e a descortesia verbal são sempre manifestações de comportamentos
verbais que visam atingir, directa (alocutivamente) ou indirectamente (delocutivamen-
te), o outro, mesmo quando somos corteses ou descorteses em relação a nós próprios
(elocutivamente). Tal como são inúmeros os meios linguísticos, discursivo-textuais e
prosódicos a que um falante de Português pode recorrer para ser cortês, também inúme-
ros são os meios linguísticos a que o mesmo falante pode recorrer para ser descortês.
Aliás, nem sempre é fácil determinar onde começa o mínimo de cortesia e onde acaba o
máximo de descortesia, ou, mais simplesmente, onde começa a cortesia e acaba a des-
cortesia, ou onde começa a descortesia e acaba a cortesia. Só o co(n)texto, no sentido
dinâmico e dialéctico que lhe atribuímos, poderá ajudar a interpretar a produção e a
recepção de actos corteses e descorteses.
Contrariamente ao que se verifica noutros países, as fórmulas e formas verbais
de descortesia em Português ainda não foram estudadas, nas suas diversas dimensões
linguísticas e discursivo-textuais. Apenas o calão e a gíria (que podem não ser obrigato-
riamente descortesias verbais) têm merecido alguns estudos,6 a par de dicionários que
procuram fazer o registo dos respectivos termos e locuções.7 Merecem, todavia, especial
referência os estudos que Kröll (nomeadamente em KRÖLL, 1981 e 1984) dedicou ao
tema, sob a designação de disfemismos, por oposição a eufemismos. Considera este
linguista alemão, lusófono e lusófilo, que

6
Cf. bibliografia em PRAÇA, 2001, ou em KRÖLL, 1984.
7
Cf. NEVES & SANTOS, 2001; PINTO, 1993; PRAÇA, 2001. Para outros dicionários, ver a bibliografia
nesta última referência.
165

«O sentimento da polidez, da civilidade, do decoro, do respeito é uma das causas prin-


cipais do eufemismo. A vida exige a cada momento que respeitemos os outros e obriga-
-nos a recorrer a meios de expressão que a língua põe à nossa disposição para podermos
encobrir a verdade, amenizando-a por amabilidade ou por deferência.»8

Pode-se dizer, portanto, que a cortesia e a descortesia verbal são o verso e rever-
so duma mesma medalha, isto é, o estabelecimento dum determinado tipo de relações
interpessoais, mais ou menos harmoniosas ou agonais, num dado co(n)texto de interac-
ção ou comunicação, com efeito mais ou menos prolongado. Aliás, é de recordar que
grande parte das fórmulas e formas de cortesia se destina mais a proteger as faces dos
interactantes [locutor e alocutário(s)], do que propriamente a valorizá-las, ainda que a
protecção possa ser entendida também como um processo de valorização. Protege-se o
que tem ou julga ter valor. Veja-se, por exemplo, a quantidade de meios que podem ser
utilizados para a realização cortês dum FTA, comparativamente à quantidade de meios
que podem ser utilizados na realização dum FFA. Por outro lado, convém não esquecer
que a realização dum FFA (acto cortês, por definição) serve também para atenuar a rea-
lização de um FTA (acto descortês, por definição). E mesmo a realização dum FFA é,
por vezes, entendida como lesiva da(s) face(s) do alocutário. Pense-se, por exemplo, nas
fórmulas que acompanham os conselhos, sugestões ou os elogios: Posso dar-te/-lhe um
conselho / uma sugestão? Desculpa/e o elogio, mas tu/você ...9
Nesta ordem de ideias, ao descrevermos as fórmulas e formas linguísticas e dis-
cursivo-textuais de cortesia, anotaremos também fórmulas e formas de descortesia, já
que muito frequentemente aquelas são um processo de evitação ou atenuação destas.
Por outras palavras, é-se cortês, porque não se pode ser completamente descortês. Por-
que ser cortês é uma exigência natural da vida em sociedade. Daí que a ausência de cor-
tesia seja mais notada e sentida que a sua prática.

8
KRÖLL, 1984: 29.
9
Em entrevista ao então presidente do Sporting Clube de Portugal, José Roquete, na emissora radiofónica
TSF, o jornalista Carlos Magno dirige-lhe, a dado momento, o seguinte comentário: «Quando um dirigen-
te fala com esta tranquilidade e este bom senso, permita-me o elogio.» (10-06-2000). E o publicitário
Edson Athayde observa, numa das suas crónicas: «Também de vez em quando faço elogios ao País (que
costumo tratar por “nosso”). Curiosamente, consigo incomodar mais com os meus elogios do que com as
minhas críticas. Os portugueses não estão acostumados a ser elogiados (e menos a se elogiarem).» [Diário
de Notícias, 03/12/2001]
166

Nas gramáticas de Língua Portuguesa por nós consultadas, os autores não dedi-
cam qualquer capítulo ou secção específica às formas e fórmulas de cortesia e, muito
menos, às de descortesia. Apenas os tratamentos (corteses) merecem algum destaque,
mas como subalínea no capítulo dos pronomes. Encontram-se depois breves referências
dispersas aos valores semântico-pragmáticos de cortesia, a propósito da descrição de
outras categorias gramaticais, com especial destaque para os tempos e modos verbais.
Compreende-se que gramáticos e linguistas prestem mais atenção aos valores de
cortesia ou de descortesia que os tempos e modos verbais podem expressar. De facto,
são estes que constituem o principal elemento na construção duma relação predicativa,
ao situarem um determinado estado de coisas no tempo, ao expressarem a posição do
locutor face a esse estado de coisas, ao relacionarem o(s) agente(s) e o(s) paciente(s).
São as formas verbais que servem, por outro lado, para criar um estado de coisas, ao
configurarem diferentes actos discursivo-textuais.
Porque as formas verbais e os actos de discurso (corteses e descorteses) andam
intimamente relacionados (a ponto de haver quem os confunda), decidimos começar a
descrição das fórmulas e formas de cortesia e de descortesia pelos valores semântico-
-pragmáticos que os tempos e modos verbais do Português podem exprimir ou ajudar a
exprimir, para depois nos fixarmos nos actos de discurso que, consoante a sua realiza-
ção directa ou indirecta, mais ou menos atenuada ou intensificada, serão mais ou menos
corteses ou descorteses. Neste ponto, analisaremos os valores de cortesia e de descorte-
sia dos actos directivos em geral, aproveintando-se a oportunidade para clarificar as
noções dos principais, nomeadamente da ordem. Terminaremos esta parte com um estu-
do sobre as interjeições e locuções interjectivas portuguesas e os seus valores linguísti-
cos e pragmáticos de cortesia ou de descortesia. Antes, porém, apresentaremos os prin-
cipais estudos sobre a cortesia e descortesia verbal em Português, realizados por linguis-
tas nacionais ou estrangeiros.
Capítulo V

CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA


EM PORTUGUÊS
Principais estudos

Apesar dos portugueses constituírem uns dos povos que maior número de formas
verbais corteses e descorteses possuem e usam, são ainda em número muito reduzido os
estudos linguístico-pragmáticos sobre os fenómenos da cortesia verbal em Português e,
menos ainda, sobre os fenómenos verbais da descortesia. Além das formas de tratamen-
to (nem sempre vistas, contudo, no seu conjunto, como manifestações de cortesia ou de
descortesia), algumas expressões corteses e descorteses têm sido estudadas. Merecem,
por isso, especial destaque e atenção os trabalhos de Carreira, em particular a sua tese
de doutoramento, apresentada, em 1995, à Universidade de Paris IV-Sorbonne. Expo-
remos, a seguir, os seus principais contributos para o estudo da cortesia linguística em
Português contemporâneo, seguindo-se a apresentação de outros estudos, de natureza
monográfica, que outros autores, portugueses e estrangeiros, realizaram também no
âmbito das manifestações verbais da cortesia e/ou da descortesia em Português de Por-
tugal.

1. Maria Helena Araújo Carreira


Cortesia verbal – proxémia e modalidade

Em Modalisation Linguistique en Situation d’Interlocution: proxémique verbale


et modalités1, Carreira não estuda apenas as formas verbais de cortesia,2 mas também,
por intimamente relacionadas com elas (e todas elas entre si), as formas de tratamento3 e

1
Cf. CARREIRA, 1995 e 1997; este corresponde à edição de 1995, em livro. Além deste estudo, a lin-
guista também analisa expressamente os fenómenos verbais de cortesia linguística em Português, em
vários outros estudos, recentemente reunidos em CARREIRA, 2001.
2
Carreira utiliza, sistematicamente, em Português, o termo delicadeza.
3
Sobre as formas de tratamento, ver, infra, cap. X, 5.
168

as fórmulas interlocutórias.4 Trata-se de três meios verbais de modalização que, segun-


do refere a autora, são particularmente aptos à regulação da distância interlocutiva, por-
que «il s’agit bien des choix du JE, selon son intentionnalité, ses visées énonciatives».5
Neste sentido, tais meios são analisados tanto ao nível da língua como do discurso,6
uma vez que é conveniente ter presente «non seulement des moyens linguistiques dont
disposent les locuteurs pour manifester leurs visées énonciatives lorsqu’ils produisent
leurs discours en situation interlocutive, mais il convient aussi d’étudier leurs réalisa-
tions discursives.»7
A linguista situa, por isso, o seu estudo na esfera da modalidade e da interlocu-
ção, tomando como quadros teóricos principais a «semântica pragmática» de Pottier,8
por um lado, e a teoria de cortesia linguística de Brown & Levinson + Leech + Kerbrat-
-Orecchioni, por outro.9
A distância interlocutiva ou proxémia verbal é um dos conceitos fundamentais
que percorrem este estudo, conceito que a autora adopta e adapta de Edward Hall:10

«Si nous nous fixons sur la situation interlocutive dans laquelle deux ou plusieurs locu-
teurs / énonciateurs coproduisent leurs discours et si nous nous restreignons à leurs pro-
ductions verbales, nous pouvons nous demander, en paraphrasant librement Hall: com-
ment les interlocuteurs établissent-ils des distances (rapprochement vs éloignement)

4
As fórmulas interlocutórias não constituirão tema específico deste nosso estudo. Carreira define-as
assim: «Nous regroupons sous cette désignation des mots et des expressions de classes grammaticales
diverses, comprenant des mots grammaticaux et des mots lexicaux ayant un haut degré de figement. Ces
mots et ces expressions ont des fonctions discursives variées et constituent un ensemble de moyens lin-
guistiques auquel les interlocuteurs ont recours pour réguler leur relation interlocutive». [CARREIRA,
1995: 125]
5
Id.: 7.
6
Ao nível da língua, a linguista dedica os capítulos 2, 3 e 4, respectivamente, às formas de tratamento, às
fórmulas interlocutórias e às formas cortesia linguística. Ao nível do discurso, tais formas e fórmulas,
encaradas também como modalidades de que se serve o sujeito enunciador, nas diferentes situações de
interlocução, são estudadas, sobretudo, nos capítulos 7, 8 e 9.
7
Id.: 5.
8
Cf. id.: 11, 28, passim e, sobretudo, 361-365. A semântica pragmática é, em Pottier, uma das quatro
«semânticas complementares», a qual Carreira resume assim: «la “sémantique pragmatique” (celle qui
correspond à la zone de communication verbale des relations entre les interlocuteurs): elle “tient compte
des relations de SAVOIR et de VOULOIR entre les interlocuteurs, lesquelles déterminent grandement le
contenu des messages”.» [Id.: 363-364 e POTTIER, 1992: 20] Além desta, o linguista francês propõe
também a existência de mais três «semânticas complementares», consideradas fundamentais para a lin-
guística: a «referencial», a «estrutural» e a «discursiva». Além destas quatro, Pottier propõe ainda a exis-
tência de três «semânticas independentes»: a «semiótica textual», as «semiologias paralelas» e as «semân-
ticas não linguísticas». [Para apresentações da teoria linguística, cf. CARREIRA, 1995: 363-364 e POT-
TIER, 1992: 20-21, ou POTTIER, 1993: 15-18.] Carreira faz também «uma leitura guiada de Sémantique
générale, de Pottier, com adaptações ao português», em CARREIRA, 2001: 11-42. A título de curiosida-
de, referira-se que Pottier foi o orientador da dissertação de doutoramento da linguista portuguesa.
9
Cf. CARREIRA, 1995: 29. Para uma visão geral deste(s) modelo(s), ver, supra, caps. II e III.
10
Sobre a noção de proxémia, ver, supra, cap. III, nota 71 (p. 153), ou CARREIRA, 1995: 9.

168
169

dans et par leurs discours? Comment se dessine verbalement “l’architecture”,


“l’ameublement”, “l’utilisation” de l’espace interlocutif?»11

Trata-se, pois, da regulação das distâncias (aproximação, contacto e afastamen-


to) que os interlocutores estabelecem, negoceiam e/ou denegam, nas suas relações pes-
soais, durante as interlocuções.

1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias

Adpatando uma representação esquemática das relações espaciais proposta por


Pottier, Carreira retoma uma figura de base, o «trimorfo cílico», que desenha um espaço
interlocutivo abstracto do interlocutor A e do interlocutor B, bem como as suas posições
de aproximação (I), presença ou contacto (II) e de afastamento (III).12

I II III

Interlocutor A

Interlocutor B

I II III

FIG. 1 - Trimorfo cíclico, segundo CARREIRA, 1995: 13

A partir desta figura em espelho, onde as setas representam a direcção do movi-


mento de cada um dos interlocutores, é desenhada uma nova figura que continua a ante-
rior, para a representação simétrica do espaço interlocutivo, teoricamente prolongável
até ao infinito.

11
Id.: 10.
12
Para a construção do seu «trimorphe cyclique», a autora refere, por um lado, POTTIER, 1992 e, por
outro, seminários dirigidos por Pottier, a que assistiu. Cf. também CARREIRA, 2001: 45-51.

169
170

Interlocutor A

Interlocutor B

FIG. 2 - Desenvolvimento simétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 14.

A complexidade e a dinâmica das trocas verbais fazem com que haja também
entre os interlocutores, à partida ou no decurso duma interlocução, posições assimétri-
cas, cuja representação apresenta na figura seguinte (FIG. 3).13 Na primeira, variante a),
enquanto o interlocutor B mantém o contacto, o interlocutor A afasta-se e volta a apro-
ximar-se, eventualmente (parte da linha curva ponteada), da zona de contacto. Pode dar-
se também o inverso e temos a variante b): A mantém o contacto, enquanto B se afasta,
para, eventualmente (parte da linha ponteada), voltar a aproximar-se.

Variante a)

Interlocutor A

Interlocutor B
Variante b)

FIG. 3 - Desenvolvimento assimétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 15.

Podem ocorrer outros tipos de posições assimétricas, conforme se representa na


figura seguinte (FIG. 4). Na variante a), A passa do afastamento a uma aproximação
progressiva, até à zona de contacto. Ao mesmo tempo, B mantém-se na zona de contac-
to, começando a afastar-se, no momento em que A a atinge. Na variante b), temos a
situação inversa.

13
Cf. CARREIRA, 1995: 15.

170
171

Carreira adverte para a possibilidade duma multiplicidade de combinações de


movimentos, numa situação de interlocução, com entrecruzamentos frequentes. Além
disso, a complexidade das interlocuções aumentará, não só porque são construídas pelos
interlocutores, mas também porque eles podem ser mais que dois.14

Variante a)

Interlocutor A

Interlocutor B
Variante b)

FIG. 4 - Desenvolvimento assimétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 15.

A regulação da distância interlocutiva relaciona-se, por outro lado, com os con-


ceitos de eixo horizontal vs. eixo vertical, propostos por Roger Brown & Albert Gilman,
no conhecido ensaio «The Pronouns of Power and Solidarity».15 Estes dois eixos têm
sido geralmente considerados como representando as duas dimensões presentes nas
relações interlocutivas, em todas as línguas e culturas, e, por isso, considerados univer-
sais, se bem que com realizações diferentes, em cada uma delas.16
Brown & Gilman, analisando os tratamentos em várias línguas europeias
(nomeadamente o Francês, o Inglês, o Alemão e o Italiano), opõem a «semântica do
poder» à «semântica da solidariedade» (ou a sua variante «formalidade» vs. «intimida-
de»), oposição binária que situa os tratamentos nos paradigmas de T[u] ou V[os].17

14
Sobre a complexidade das interacções verbais com mais de dois interlocutores, ver KERBRAT-ORE-
CCHIONI & PLANTIN (dir.), 1995.
15
Cf. BROWN & GILMAN, 1960.
16
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1994.
17
Brown & Gilman definem, como segue, a semântica do poder: «One person may be said to be power
over another in the degree that he is able to control the behavior of the other. Power is a relationship be-
tween at least two persons, and it is nonreciprocal in the sense that both cannot have power in the same
area of behavior. The power semantic is similarly nonreciprocal: the superior says T and receives V.» E,
como segue, a semântica de solidariedade: «Now we are concerned with a new set of relations which are
symmetrical; for example, attended the same school or have the same parents or practice the same pro-
fession […] Solidarity is the name we give to the general relationship and solidarity is symmetrical. The
corresponding norms of address are symmetrical or reciprocal with V becoming more probable as solidar-
ity declines. The solidarity T reaches a peak of probability in address between twin brothers or in a man’s
soliloquizing address to himself.» [BROWN & GILMAN, 1960: 255 e 258]

171
172

A teoria de Brown & Gilman pode ser resumida aos seguintes pontos fundamen-
tais. Os sistemas de tratamento podem ser reduzidos as duas grandes categorias de for-
mas, simbolizadas por T e V, que correspondem, respectivamente, aos tratamentos pro-
nominais latinos tu e vos, ambos dirigidos a um só alocutário: o primeiro usado no tra-
tamento familiar e o segundo no tratamento dirigido ao imperador.18 Posteriormente,
ter-se-á alargado a outras figuras públicas dotadas de poder (religioso, civil e militar),
tendo-se expandido e consagrado, nas sociedades e línguas românicas, a partir do séc.
XII. Nasceram, assim, as duas principais dimensões gerais dos tratamentos: as formas
T, associadas às relações de solidariedade, e as formas V, associadas às relações de
poder. Mas porque a relação interpessoal dos interlocutores pode ser diferente, os trata-
mentos podem ser, consequentemente, recíprocos ou simétricos ( T ⇔ T, ou V ⇔ V),
não recíprocos ou assimétricos (T ⇔ V, ou V ⇔ T). O uso de formas de tipo não recí-
proco ou assimétrico expressa uma diferença de estatuto hierárquico, entre os interlocu-
tores.19

Carreira retoma e parafraseia as definições de eixo horizontal e de eixo vertical


dadas por Kerbrat-Orecchioni, já acima apresentadas.20 Ao comparar, porém, a noção de
lugar («place»), proposto por esta linguista, para designar também a distância vertical,
restringindo-a às relações hierárquicas, e a noção de lugar, proposta por François Fla-
hault21 (a quem, aliás, Kerbrat-Orecchioni foi buscar o termo22), a linguista portuguesa
prefere a noção deste último autor. Flahault, apesar de considerar inconveniente a sua
utilização, dada a sua generalidade,23 adopta o termo, acrescentando-lhe, porém, deter-
minações. Distingue, assim, quatro registos,24 que a seguir apresentamos, conforme sín-
tese de Carreira:

«− “le registre inconscient” (p.139) (“à partir des rapports de places qui ont marqué
d’une empreinte inaltérable, inconsciente, le locuteur”, p.138);
− “le registre idéologique” (p. 142) (“sur la base de systèmes discursifs qui correspon-
dent à sa place dans la formulation sociale à laquelle [le locuteur] appartient”, p. 138);

18
«In the Latin of antiquity there was only tu in the singular. The plural vos as a form of address to one
person was first directed to the emperor [...]. The use of the plural to the emperor began in the fourth
century.» [Id.: 254]
19
Cf. id.: 259-260.
20
Cf., supra, cap. III, 2.2., ou CARREIRA, 1995: 17 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: caps. 2 et 3.
21
Cf. FLAHAULT, 1978.
22
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 71 e nota 2.
23
«L’inconvenient du concept général de “place”, c’est qu’il vaut indifféremment pour tout rapport dans
lequel se fonde et se définit l’identité de chacun d’entre nous.» [FLAHAULT, 1978: 137]
24
Cf. id.: 137-152 (Cap. V / «Quatre registres pour la détermination des rapports de places»)

172
173

− “le registre institué par telle situation de parole” (p. 144) (“une place est dévolue au
locuteur dans le système de place qui rend possible la présente situation de production
de parole, p. 144) ;
− “le registre de la circulation d’insignes dans le tissu discursif” (il s’agit du rapport
entre “la place” de l’interlocuteur et “le discours dominant”) ( voir p. 147).»25

1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva.

As relações subjectivas e sociais (pré-construídas, já existentes ou novas) entre


os interlocutores / interactantes e destes com os outros, numa dada situação de interlo-
cução / interacção, têm a ver directamente com os processos de auto e heterorreferência.
Para designar estes processos de identificação e de localização no espaço interlocutivo e
interaccional, Carreira adopta e adapta a classificação terminológica tripartida, proposta
por Patrick Charaudeau,26 ao nível dos actos locutivos, e por Michel Maillard,27 ao nível
da relação predicativa:

«P. Charaudeau et M. Maillard utilisent les termes “élocutif”, “allocutif”, “délocutif”


pour qualifier soit “Acte”, soit “Prédicat”. Pour notre part, nous ferons un usage plus
élargi de ces termes et, en conséquence, nous prendrons les noms ELOCUTION, AL-
LOCUTION, DELOCUTION qui spécifient la désignation: de soi-même (JE), de
l’autre à qui JE s’adresse (TU), de l’autre (IL / ELLE) absent de l’espace interlocutif,
dont JE parle.»28

25
CARREIRA, 1995: 17-18.
26
Cf. CHARAUDEAU, 1992.
27
Cf. MAILLARD, 1994.
28
CARREIRA, 1995: 24-25. Para as classificações e definições de Charaudeau e Maillard, cf. id.: 22-23
e 24, respectivamente. Para precisar estas noções segundo Charaudeau, cf. CHARAUDEAU, 1992: 574-
575. A linguista refere ainda as classificações de Michel Grimaud, relativamente aos «terceiros ex-
cluídos», bem como a de «terceiros presentes» de Elisabeth Rigatuso. O primeiro autor, ao estudar os
apelativos, propõe, além da alocução e delocução, a noção de «terlocution» (do latim tertius). Com os
neologismos «terlocution» e «terlocutif», Grimaud sublinha a importância da influência de terceiros pre-
sentes numa conversação, os quais, embora dela excluídos, «écoutent sans même participer, et à qui nous
nous adressons toujours quelque peu». Aos «terceiros excluídos» é atribuído, deste modo, um «estatuto
oficial», uma vez «on parle à quelqu’un (allocution), de quelqu’un (délocution), mais souvent on parle à
quelqu’un de quelqu’un (ou de quelque chose) en présence d’un tiers que je puis vouloir tenir informé au
même titre (ou à un titre différent, ce qui peut poser problème) que mon interlocuteur officiel» [GRI-
MAUD, 1989: 71, cit. por CARREIRA, 1995: 23] Rigatuso, por seu turno, distingue, numa conversação,
o papel do «destinatario “addressee” – el interlocutor al que el hablante se dirige en forma vocativa du-
rante la interacción», do papel «de oyentes en general - integrados o no al hecho de habla-, participantes
también de la conversación, pero a los cuales el emisor no interpela directamente». [RIGATUSO, 1987:
163, cit. por CARREIRA, 1995: 24]

173
174

De referir que, nesta citação, a linguista não inclui os terceiros presentes. Fá-lo,
porém, ao esclarecer que numa interlocução «chaque locuteur se réfère à lui-même –
élocution–, à son allocutaire, – allocution –, à des tiers (humains ou “choses”) pré-
sents ou absents – délocution –, identifiant et localisant personnes, choses et événe-
ments.»29
Numa interacção verbal, porém, o recurso à delocução não se verifica apenas ao
nível de terceiros, presentes ou ausentes. Por estratégia de cortesia ou/e de descortesia, o
locutor utiliza, por vezes, construções delocutivas para se referir a si próprio ou ao seu
interlocutor directo. Há, em tais casos, um EU ou um TU que são, respectivamente, auto
ou heterorreferidos com se fossem um ELE, por cortesia ou descortesia. Tais processos
de elocução-delocutiva e de alocução-delocutiva, além de expressarem uma certa teatra-
lidade ao nível da enunciação, revelam, por outro lado, a nosso ver, formas de desdo-
bramento plurivocal e de personalidade que colocam, evidentemente, a questão da poli-
fonia discursivo-textual, assim também configurada.
As escolhas que os interlocutores fazem, nas suas construções linguísticas, de
formas de cortesia ou de descortesia e, dentro delas, especialmente das formas de trata-
mento, estão, por outro lado, intimamente relacionadas com os fenómenos da deixis
social, cuja importância Carreira também releva. Reconhecendo a complexidade do
fenómeno, o qual está na origem da multiplicidade de pontos de vista sobre o assunto, a
linguista, depois de expor brevemente as concepções de Guy Bourquin30 e de C. Fillmo-
re,31 opta pela definição de Stephen Levinson:

«social deixis concerns the encoding of social distinctions that are relative to partici-
pant-roles, particularly aspects of the social relationship holding between speaker and
addressee(s) or speaker and some referent».32

A deixis social, nesta última concepção, além dos exemplos fáceis de reconhe-
cer, ao nível lexical e morfossintáctico, inclui muitos outros processos linguísticos que é
preciso ter também em consideração. Em síntese, cabe ao linguista, segundo a autora:

29
Id.: 25. (Negrito da nossa responsabilidade)
30
Para Bourquin, «la formule générale de la deixis est à poser non pas comme “JE montre IL à TU”, mais
comme:”JE se montre devant TU quant à IL ou mieux encore: JE manifeste, présentifie JE (eu égard à
TU) (eu égard à IL)». [BOURQUIN, 1992: 391-392, cit. por CARREIRA, 1995: 25-26]
31
Fillmore situa a deixis social em relação aos actos de linguagem: «that aspects of sentences which re-
flect or establish or are determined by certain realities of the social situation in which the speech act oc-
curs». [FILLMORE, 1975: 76, cit. por CARREIRA, 1995: 26]
32
LEVINSON, 1987: 63.

174
175

«saisir la diversité des possibilités offertes par une langue donnée, pour exprimer les
identités et les relations sociales des interlocuteurs et des entités auxquelles ils se réfè-
rent, mais il s’agit, aussi, de délimiter des formats de situations communicatives, pour
étudier les moyens linguistiques mis en oeuvre par les interlocuteurs, dans des situations
déterminées.»33

Além doutras referências, é no capítulo 4 que Carreira analisa algumas manifes-


tações da cortesia verbal em Português,34 ao nível da língua,35 porque considera que tais
formas (como também os tratamentos e as formas interlocutórias), mais que «un do-
maine restreint de listes peu intéressantes, que seul le niveau discursif pourrait trans-
former en un objet complexe d’étude», constituem, «bien au contraire, un domaine très
riche pour ce qui est des ressources de la langue.»36
Relacionando os conceptualizações com as possibilidades oferecidas pela língua,
a autora delimita as características subjacentes aos empregos daquelas formas, ou seja, o
seu «núcleo semântico». É esse núcleo que, em seu entender, permite compreender a
plasticidade e a variação das formas, e responder à seguinte questão:

«qu’est-ce qui rend une forme donnée théoriquement plus adéquate qu’une autre à une
certaine régulation de l’espace interlocutif?»37

Embora tome, como teoria de base, o modelo de Brown & Levinson, com os
melhoramentos introduzidos por Kerbrat-Orecchioni,38 Carreira começa por considerar
os fenómenos da cortesia em geral, adoptando a seguinte definição de Weinrich:

«La politesse est une forme de comportement communicatif, verbal ou non-verbal, des-
tiné soit à découvrir, à supposer ou à imaginer chez une autre personne une certaine ex-

33
CARREIRA, 1995: 27.
34
«Chapitre 4. La politesse linguistique: quelques manifestations en portugais européen». [Id.: 193-288]
35
Observa a autora que «c’est au niveau des principales ressources offertes par la langue que nous nous
efforcerons d’éclairer les formes de politesse du portugais.» [Id.: 197] Análises das manifestações verbais
de cortesia, ao nível dos discursos, isto é, como actualizações das virtualidades da língua, são feitas sobre-
tudo ao longo do capítulo 8 («Solutions discursives de la régulation de la distance interlocutive: quelques
illustrations») [Id.: 432-474), tomando como corpus entrevistas recolhidas e transcritas pela equipa do
Português Fundamental, como refere no capítulo 7 («Quelques aspects méthodologiques») [Id.: 432-474
e 421-431, respectivamente].
36
Id.: 291.
37
Id.: ibid.
38
Id.: 29.

175
176

cellence individuelle ou sociale soit à ménager la face de cette personne si cette dernière
ne peut on ne veut pas exceller dans le domaine».39

Assim concebida, a cortesia ilustra bem, segundo a autora, a noção de semiolo-


gias paralelas proposta por Pottier, as quais «regroupent l’ensemble des systèmes sé-
miologiques qui sont utilisés en parallèle avec le système linguistique.»40
Mas se a cortesia geral pode ser expressa unicamente através de semiologias não
verbais, a expressão da cortesia verbal é sempre acompanhada doutras semiologias,
fazendo dela uma expressão polissemiológica. Além das formas linguísticas, a autora
considera, no conjunto das semiologias paralelas ao sistema da cortesia verbal, a regula-
ção do espaço, os gestos e a mímica, o olhar, o sorriso, o vestuário, etc., a par da
prosódia e dos sinais tipográficos que acompanham a mensagem verbal (oral ou escrita),
aspectos estes que manifestam, em conjunto, uma determinada intenção de cortesia. Só
assim haverá acordo ou «isossemia» entre as diferentes manifestações semiológicas.
Caso contrário, haverá desacordo (porque a isotopia deixa de se verificar), originando
diferentes efeitos comunicativos, segundo a interpretação que o receptor fizer dos dife-
rentes signos que constituem uma mensagem. As ocorrências e a sua interpretação con-
cordante ou discordante passam também pela variabilidade das semilogias tanto a nível
intra como intercultural.41

1.3. Cortesia verbal e modalização

É tendo em consideração este quadro geral que Carreira passa a analisar o domí-
nio específico da cortesia linguística, retomando definição de Pottier. Para este autor,
segundo citação da autora, as formas de cortesia «expriment “la considération que l’on
veut accorder à son interlocuteur” […] et constituent un “aspect de la modalité axiolo-
gique”, “lié à la sémantique pragmatique”).»42 Na mesma linha de pensamento, a nossa
linguista considera que, de um ponto de vista alargado, a expressão verbal duma inten-
ção de cortesia não se limita às formas propriamente ditas de cortesia («les termes
d’adresse, les formules de salutation, de présentation, de remerciement, de félicitation,

39
WEINRICH, 1993-1994: 891, cit. por CARREIRA, 1995: 193. A propósito, Weinrich observa, segun-
do citação da linguista portuguesa, que a cortesia positiva é «primordial e prioritária», enquanto a cortesia
negativa tem apenas «o valor menor duma estratégia auxiliar».
40
POTTIER, 1992: 21, cit. por CARREIRA, 1995: 193, nota 1.
41
Cf. CARREIRA, 1995: 194.
42
Id.: 28. A autora cita POTTIER, 1992: 219. Para a noção de semântica pragmática, ver, supra, nota 8.

176
177

d’excuse, etc.»). Ela compreende também os processos mais ou menos complexos, mais
ou menos explícitos de modalização e de indirecção, bem como estratégias de cortesia
como «la manière de distribuer tout au long de l’interaction verbale des encourage-
ments, des éloges, d’exprimer l’accord ou le désaccord.»43
É, porém, com base nos modelos teóricos da cortesia linguística acima referidos
que Carreira analisa as formas verbais, mais ou menos corteses, em Português europeu
contemporâneo. Reconhecendo ser difícil, senão mesmo impossível, inventariar, devido
à sua grande variedade, os meios linguísticos de que os interlocutores se podem servir
para expressar cortesia, baseando-se nos estudos, entretanto realizados sobre o assun-
to,44 esboça, todavia, o seguinte inventário de meios:

a) « formes plus ou moins figée»;45


b) «l’atténuation du propos (ou, dans certains cas comme l’éloge, son intensification)»;
c) «l’euphémisme»;46
d) «le ton vague»;
e) «l’indirection [...] de certains actes de langage»;
f) «les modulations diverses du dégré d’implication de l’énonciateur (tout particuliè-
remente si celui-ci constitue une source déontique)»;
g) «l’incertitude»;
h) «l’hésitation – différents degrés de désactualisation modale et temporelle sont pos-
sibles».47

E os diferentes níveis em que estas manifestações se encontram realizadas são,


segundo a autora, sem querer ser exaustiva:

43
CARREIRA, 1995: 28.
44
A autora apresenta uma lista bibliográfica, evidentemente incompleta, de estudos sobre cortesia linguís-
tica, de autores estrangeiros e portugueses, em CARREIRA, 1995: 196.
45
Neste nível, a autora situa as formas de cortesia imediatamente disponíveis, como o pedido de desculpa,
o agradecimento e os cumprimentos. Observa, contudo, que a cortesia linguística se, por um lado, não se
reduz a estas formas (aparentemente) simples, mais ou menos fixas, será errado, por outro, não as ter em
consideração. [Cf. CARREIRA, 1995: 196]
46
Acerca dos eufemismos, em Português, observa Kröll: «Os eufemismos de delicadeza, de cortesia, são
muito frequentes hoje em dia e o seu número aumenta inegavelmente. Para evitar palavras descorteses
que podem ofender o ouvinte, inventam-se constantemente novas expressões, novos processos eufémi-
cos.» [KRÖLL, 1984: 29]
47
CARREIRA, 1995: 196. A apresentação por alíneas é da nossa responsabilidade. Cabe observar que,
relativamente ao «eufemismo», a autora, ao remeter para a noção de «adoucisseur», tradução do Inglês
«softner», proposta por Kerbrat-Orecchioni, como vimos, pode levar a uma interpretação menos correcta
deste termo. Para esta última linguista, um «adoucisseur» é qualquer estratégia linguística de cortesia
negativa, através da qual um locutor «amortece» a realização inevitável dum FTA. O eufemismo é apenas
um desses processos ou estratégias, situado nos processos retóricos, no conjunto dos atenuadores substi-
tutivos.

177
178

a) «celui des formes plus ou moins figées (evoquées ci-dessus)»;


b) «celui des choix lexicaux, morpho-syntaxiques ou / et discursifs (par exemple, le
thème choisi et son développement rhématique)»;
c) «celui des stratégies conversationnelles [...] coopératives telles que la façon de dis-
tribuer tout au long de l’interaction verbale des assentiments, des encouragements,
des éloges, l’accord ou le désaccord.»48

A linguista considera, em relação às escolhas indicadas em b), que, por um lado,


as manifestações de cortesia «sont présents d’une façon diffuse dans les réalisations
linguistiques» e que, por outro, «les différents moyens linguistiques, supports des mani-
festations de politesse, s’éparpillent dans le discours.»49 Esta última observação colhe
também relativamente aos meios linguísticos indicados em c).
Face à multiplicidade e diversidade de manifestações linguísticas de cortesia e
na impossibilidade de as estudar uma a uma, a autora analisa-as em torno dum «eixo
semântico conceptual», assente em zonas polares, correspondendo uma zona à noção de
/ATENUAÇÃO/ e outra à noção de /INTENSIFICAÇÃO/. Com base neste eixo, são
identificados e descritos processos característicos da expressão da cortesia verbal, rele-
vando as principais tendências semântico-pragmáticas a eles subjacentes, e que se mani-
festam como meios de expressão e regulação da distância interpessoal.
Na zona da /ATENUAÇÃO/ situar-se-ão50 sobretudo «les manifestations liées à
la politesse à caractère abstentionniste ou compensatoire (politesse négative)», bem co-
mo «celles (liées à la politesse positive) qui créent un certain climat de solidarité et de
partage affectif entre les interlocuteurs.»51 Exemplos são as formas verbais que servem
para suavizar a realização de actos directivos, através de escolhas lexicais eufemísticas
ou hipocorísticas, ou de escolhas linguísticas que exprimem incerteza, hesitação, indi-
recção, sugestão, etc., destinadas a proteger a face do interlocutor.
Na zona polar da /INTENSIFICAÇÃO/, situam-se, por um lado, «des manifesta-
tions plutôt liées à un type de politesse à fort caractère compensatoire» e, por outro,

48
CARREIRA, 1995: 196.
49
Id.: 196-197.
50
Carreira sublinha que o enquadramento semântico-pragmático que faz das formas de cortesia em Por-
tuguês, é um «processo aberto», no sentido de «hipótese» que lhe dá Seiler, e, por outro, que tem em
conta «a relatividade cultural e pragmática» da língua e cultura portuguesas. [Id.: 222] Segundo Seiler,
uma conceptualização (princípio, categoria, conceito) «au lieu d’être un monolithe, se construit par une
suite ordonnée de paramètres constitutifs. Dans ce processus, qui est en principe un processus ouvert,
chaque nouvelle langue nous apporte soit des confirmations soit des rectifications de notre hypothèse».
[SEILER, 1994, cit. por CARREIRA, 1995: 222].
51
CARREIRA, 1995: 224.

178
179

«des manifestations liées à la politesse positive fortement marquée».52 Exemplos de


/INTENSIFICAÇÃO/, ao nível da cortesia negativa, são os «actos reparadores»,53 como
o pedido de desculpa e por favor, bem como a apresentação de justificações, enquanto
que, ao nível da cortesia positiva, são referidos os elogios e os agradecimentos.
A partir do eixo (conceptual, abstracto54) / ATENUAÇÃO / ↔ / INTENSIFICA-
ÇÃO /, Carreira faz derivar «d’autres axes qui rendent possible le recouvrement de solu-
tions linguistiques à la fois semblables (de par leur noyau sémantico-pragmatique) et
différentes (de par les nuances introduites par différents types de modulation).»55 Trata-
se, neste caso, de eixos ou «escalas parassinonímicas onomasiológicas» que permitem
que os interlocutores possam escolher, de entre a variedade de formas e processos dis-
poníveis, as soluções linguísticas mais adequadas à situação, em virtude de nelas existir,
precisamente, um sema comum, o «núcleo sémico».56 Tais soluções de relação parassi-
nonímica podem ser «des procédés morpho-syntaxiques, des formules plus ou moins
figées, des énoncés ou, alors, des discours à longueur variable.»57 Por exemplo, conju-
gando os traços de ± CORTESIA, com os traços de ± DIRECÇÃO, a propósito das pos-
sibilidades de realização do acto directivo da ordem, entre uma formulação não atenua-
da e uma atenuada, a autora constrói o seguinte eixo:

« − Politesse + Politesse
+ Direction − Direction
(acte direct) (acte indirect)

Acte directe d’ordre Acte directe Demande Conseil


d’ordre [+ formule(s) / Suggestion
+ de politesse] Souhait »
formule(s) de
politesse

FIG. 5 – Eixo de injunção e cortesia, segundo CARREIRA, 1995: 227. 58

52
Id.: 224.
53
Retoma o conceito de GOFFMAN, 1973(2): cap. IV.
54
«L’axe de référence / ATTÉNUATION – INTENSIFICATION (“abstraction nécessaire à un niveau
conceptuel utilisable”, B. Pottier, 1992, p.47 [...]». [CARREIRA, 1995: 225]
55
Id.: 225.
56
Cf. id.: 225 e POTTIER, 1992: 42-43.
57
CARREIRA, 1995: 226.
58
Também, com menor desenvolvimento, em 2001: 86.

179
180

Segundo este eixo, a realização directa da ordem é descortês, valor pragmático


que sofre alguma atenuação se for acompanhado de uma ou mais fórmulas de cortesia,
caso que, todavia, o localiza ainda muito próximo da directividade, digamos, forte. A
realização do mesmo acto situar-se-á, por outro lado, já na zona da cortesia, mas de
forma ainda não totalmente indirecta e por isso mais cortês, se for atenuado como for-
mulação de pedido, acompanhado ou não de fórmula(s) de cortesia. O acto directivo da
ordem directa só recebe uma realização verdadeiramente cortês, quando é atenuado, isto
é, realizado como conselho, sugestão ou desejo. Numa palavra, como acto indirecto.
Os meios linguísticos de atenuação dizem respeito, fundamentalmente, à realiza-
ção de actos discursivo-textuais que, sendo susceptíveis de ameaçar a face do interlcou-
tor, são realizados através de processos vários de atenuação, como é o caso dos actos
directivos em geral. Por outro lado, a autora estuda também aqueles actos que valorizam
a face do alocutário, isto é, aqueles actos que, sendo intrinsecamente valorizadores da
face do interlocutor, contribuem para criar uma certa afectividade entre os interlocuto-
res, como é o caso paradigmático da oferta.59 Tanto uns actos como outros, porém,
podem sofrer modulações diversas de /ATENUAÇÃO/ e de /INTENSIFACAÇÃO/ pelo
locutor.
Não nos deteremos, de momento, no resto da exposição dos processos de / ATE-
NUAÇÃO / e/ou de / INTENSIFACAÇÃO /, na realização dos actos discursivo-
textuais, com maior ou menor cortesia. Retomá-la-emos sempre que ela nos ajude a
descrever e a compreender os fenómenos da cortesia verbal, em particular os valores
dos tempos e modos verbais e os tratamentos, a nível semântico-pragmático.

Gostaríamos, todavia, antes de passar à apresentação de outros estudos sobre a


cortesia em Português europeu, destacar o importante contributo que os estudos de Car-
reira trouxeram à descrição linguística (da morfossintaxe à semântica) e pragmática (ao
nível do discurso-texto) destes fenómenos. Apesar da sua descrição separada, segundo a
sua classificação em três grandes categorias (tratamentos, formas interlocutórias e for-
mas de cortesia), a linguista não deixa de referir e sistematizar, à luz da noção do tri-
morfo, as relações que estas formas têm entre si, enquanto processos linguísticos que
criam e marcam as relações interlocutivas e interpessoais dos interlocutores / interactan-
tes que as utilizam.
Face ao valor e utilidade que tem para quantos se interessam pela cultura portu-
guesa, em geral, e pelo ensino da Língua Portuguesa, em particular, cada vez mais

59
Cf. id.: 226-274. Também, com menor desenvolvimento, em 2001: 43-171.

180
181

necessitado de estudos aprofundados segundo perspectivas simultaneamente ao nível do


sistema linguístico e sobretudo ao nível das práticas discursivo-textuais, para quando a
edição em Português de Modalization Linguistique en Situation d’Interlocution ?

2. Outros estudos

A dissertação de Carreira constitui, no panorama dos estudos linguístico-prag-


máticos sobre a cortesia / descortesia em Português, o único trabalho mais desenvolvido
e mais completo. Outros estudos, contudo, têm sido realizados, segundo perspectivas
pragmáticas e sociolinguísticas. Alguns destes estudos foram publicados, enquanto de
outros (nomeadamente teses de mestrado) tivemos conhecimento. De entre os publica-
dos, destacamos os seguintes.

2.1. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português LE

Num estudo com objectivos didácticos, intitulado «Formas de “atenuação” no


ensino do Português como língua estrangeira»,60 Reinhard Meyer-Hermann inventaria
quarenta «formas / meios de atenuação», que distingue e agrupa em sete tipos. Antes,
porém, de os indicar, segundo uma perspectiva onomasiológica, o romanista descreve
os elementos que contribuem para uma definição linguística de atenuação. Serve-se,
para o efeito, de dois estudos sobre os fenómenos da cortesia verbal. O primeiro é do
linguista alemão Wolfram Bublitz sobre a cortesia no Inglês.61 Este autor, na leitura de
Meyer-Hermann, «caracteriza a atenuação como atitude do falante» que, utilizando
determinados meios linguísticos, «pode mais ou menos atenuar o efeito dum acto
comunicativo.»62 O segundo é o conhecido ensaio de Brown & Levinson, publicado em
1978, onde colhe os «dois desejos básicos» do homem («de agir livremente» e «de ser
estimado por outrem»), bem como a concepção de que «a comunicação representa,
embora seja uma necessidade, em princípio uma ameaça».63 Considerando que, ao par-
ticiparem numa comunicação, os interlocutores sofrem restrições, uma vez que estabe-
lecem «obrigações» entre si, o autor define atenuação como segue:

60
Cf. MEYER-HERMANN, 1984.
61
BUBLITZ, Wolfram, 1980: «Höflichtkeit im Englischen», Linguistik und Didaktik, 41: 56-70.
62
MEYER-HERMANN, 1984: 174.
63
MEYER-HERMANN, 1984: 174. O autor refere-se, como se sabe, às noções de, respectivamente, face
negativa, face positiva e FTA, propostas por Brown & Levinson.

181
182

«Atenuação é uma função interactiva dum acto comunicativo a (contendo meios de ate-
nuação) graças à qual – comparado com um acto comunicativo a’ menos atenuado, que
este seja realizado concretamente no contexto ou seja hipotético (realizável) – os parti-
cipantes da interacção aceitam e/ou estabelecem menos obrigações do que pelo acto
comunicativo a’.»64

Apresentamos, na FIG. 6, para simplificar, os sete tipos de atenuadores e as for-


mas/meios que lhe correspondem, segundo a descrição do autor. Meyer-Hermann não
analisa nem descreve cada um destes meios/formas que extraiu de fragmentos de discur-
sos-textos orais. Refere, todavia, que numa comunicação, «o falante tenciona reduzir as
obrigações em relação a si mesmo e/ou ao ouvinte», socorrendo-se para o efeito de tais
atenuadores, os quais desempenham «as funções interactivas [...] mais variadas».65
Como, por exemplo, o emprego de como se costuma dizer, em «outros [filhos] coitadi-
nhos porque não têm pais e são atirados às feras como se costuma dizer».66

TIPOS Formas
Advérbios talvez, às vezes, por vezes, possivelmente, provavelmente, etc.
Partículas assim, pouco, bocado, bocadinho, mais ou menos, não sei, sei lá, ou
qualquer coisa, não é (em posição final), etc.
«Hedges» (Verbos mo- dever, poder, querer, é capaz de + infinitivo, julgo que, penso que,
dais) parece que, tenho a impressão, se bem entendi, se bem percebi...
Tipos de frase pergunta alternativa, pergunta alternativa negada, frase de compara-
ção...
Tempos verbais e mo- futuro e imperfeito do indicativo, condicional...
do conjuntivo
Fenómenos de hesita- digamos, quer dizer, ah, eh, etc.
ção e pausas sonoras
Metacomunicação isto é para já uma opinião pessoal, a minha opinião, como se costuma
dizer, quanto a mim...

FIG. 6 – Atenuadores linguísticos, baseado em MEYER-HERMANN, 1984: 177-186.

64
Id.: 175-176. Poucas linhas antes, o autor, a propósito do pedido, acto que «restringe a liberdade de
acção» do alocutário, observa: «Uma vez que restrições equivalem a obrigações pode resumir-se que os
meios de atenuação servem para reduzir as obrigações estabelecidas pelos e para os participantes na
comunicação.» [Id.: 175]
65
MEYER-HERMANN, 1984: 186.
66
Id.: 186.

182
183

O romanista fixa-se na «frase metacomunicativa» como se costuma dizer, refe-


rindo que ela «serve para atenuar obrigações estabelecidas pelo emprego da expressão
atirados às feras.» Através daquela «frase», o falante quer distanciar-se desta «expres-
são», considerando-a uma espécie de citação, declinando, assim, a sua responsabilidade
pela sua enunciação. Porque atirados às feras pode ser interpretado, explica o autor,
como uma infracção contra determinadas normas do comportamento comunicativo, ao
utilizar como se costuma dizer, o falante procede a uma espécie de profilaxia contra
sanções. Profilaxia que é «uma das muitas funções interactivas da atenuação», tal como
outras, por exemplo, «uma “oferta” (do falante) de constituir um foco, a manifestação
da cooperação na constituição dum tema na comunicação, etc., para os processos de
topicalização».67
A importância do fenómeno “atenuação” e o seu ensino, «como processo básico
da competência comunicativa», leva o linguista a propor que o ensino do Português LE
(como de outras línguas) seja baseado, não nos formas e moldes da gramática tradicio-
nal, mas «num tipo de gramática que esteja dividida em capítulos», por um lado,
«segundo funções comunicativas – por exemplo “atenuação” e subfunções» e, por
outro, «segundo esquemas / processos / rituais interactivos (comunicativos) característi-
cos da comunidade comunicativa portuguesa.»68 Segundo esta proposta, num dado con-
texto de comunicação / interacção,

«o falante não precisa de saber quais seriam as diversas funções [por exemplo] do
imperfeito, mas tem que resolver o problema de realizar um determinado acto verbal,
digamos um pedido. Tem que proceder a uma avaliação da situação, isto é, das caracte-
rísticas do ouvinte, do tipo de conversa, etc., etc. Com base nesta avaliação o falante
determina a (não-)utilização de meios de “atenuação” na realização do pedido.»69

Defender uma gramática organizada segundo as funções de atenuação / intensi-


ficação é relevar que os usos duma língua são fundamentalmente actos verbais duma
competência de comunicação alargada, de que a competência de cortesia é parte inalie-
nável, como temos defendido, enquanto subcompetência da competência discursivo-
-textual.

67
Id.: 187.
68
Id.: 190 e 193.
69
Id.: 191.

183
184

2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia

Em meados do século passado, Sílvia Skorge publica um interessante estudo,70


de natureza filológica, estilística e etnográfica, sobre a formação e as funções dos sufi-
xos diminutivos em Português. Descreve, com especial desenvolvimento, as formas
em -inho e -ito, por considerar que se trata dos sufixos mais utilizados e mais expressi-
vos, desde os textos portugueses mais antigos.71 A partir de exemplos retirados, sobre-
tudo, de obras literárias (cultas e tradicionais), mas também de exemplos orais, a autora
faz, por um lado, uma descrição dos processos gerais de sufixação diminutiva em Por-
tuguês e, por outro, um levantamento exaustivo das suas funções, as quais classificamos
de semântico-pragmáticas. Segundo a autora, os diminutivos continuam a mostrar «vita-
lidade e produtividade», na linguagem corrente do Português actual, como «meio estilís-
tico através do qual se dá sobretudo expressão ao afecto».72
Antes, porém, de proceder ao seu levantamento, a autora tece algumas conside-
rações gerais sobre os valores funcionais daqueles sufixos. Deixando de parte «saber se
o sufixo diminutivo originàriamente apenas era diminutivo tornando-se depois afectivo,
ou se o valor diminutivo e afectivo estiveram ligados logo no princípio», a autora chama
a atenção, em primeiro lugar, para o facto das formas em -inho e -ito não serem «em
geral, termos fixos, mas variáveis de sentido», cujos valores «têm que ser sempre consi-
derados em relação com o contexto».73 Por outro lado, observa que, embora «não altere
[em geral] o significado do radical da palavra sufixada», o sufixo diminutivo «traduz,
no entanto, com maior intensidade os sentimentos, os afectos, ou as intenções cambian-
tes das pessoas que o empregam tornando assim certas expressões mais sugestivas,
penetrantes ou delicadas.» E acrescenta, destacando, mais uma vez, valores de natureza
pragmática e retórica: «Por vezes [as pessoas] parecem até usá-lo para influenciar o
interlocutor, para o distrair ou para despertar nele maior atenção para algo.»74
De entre a longa lista de funções elaborada, interessam-nas apenas aquelas que
dizem respeito aos fenómenos de cortesias e/ou de descortesia, de que o recurso aos
diminutivos são também um meio ou estratégia.
70
Cf. SKORGE, 1956-57 e 1958.
71
Cf. id.: 222. Considerando as distinções entre os valores destes sufixos, a autora observa que, em geral,
se pode «comprovar que -ito é mais diminutivo e -inho mais afectivo». [Id.: 62]
72
Id.: 54.
73
Id.: 223.
74
Id:: 224.

184
185

No grupo de diminutivos que, em Português, são usados como meio de atenua-


ção, Skorge agrupa, descreve e exemplifica aqueles substantivos e adjectivos,75 através
dos quais o locutor expressa:

a) modéstia e eufemização de palavras feias;


b) depreciações, como insultos, expressões de miséria e indigência;
c) ironia;
d) fórmulas interlocutórias («Dirigindo-se ao interlocutor»);
e) tratamentos alocutivos e delocutivos;
f) adjectivos diminutivos.

A descrição que Skorge faz dos diminutivos portugueses revela valores semânti-
co-pragmáticos de cortesia e de descortesia que, por atenuação ou intensificação, eles
desempenham no estabelecimento, manutenção, recuperação ou denegação das boas
relações entre os interlocutores, quer os referentes sejam eles próprios, quer terceiros
ausentes. A autora resume, como segue, as suas observações sobre os sufixos diminuti-
vos protugueses. Observações que, passados cinquenta anos, não deixaram de ter actua-
lidade, ou melhor, ganham maior actualidade, no âmbito dos estudos da Linguística
Pragmática.

«O emprego de sufixos diminutivos indica ao leitor ou interlocutor que aquele que fala
ou escreve põe a linguagem afectiva no primeiro plano. Não quer comunicar ideias e
reflexões, resultantes de profunda meditação, mas o que quer é exprimir, de modo
espontâneo e impulsivo, o que sente, o que o comove ou impressiona – quer seja cari-
nho, saudade, desejo, prazer, quer, digamos, um impulso negativo: troça, desprezo,
ofensa. Assim se encontra no sufixo diminutivo um meio estilístico que elide a objecti-
vidade sóbria e a severidade da linguagem, tornando-a mais flexível e amável, mas às
vezes também mais vaga. O que, por um lado, possibilita a expressão espontânea e ade-
quada de afectos, pode, por outro lado, servir para substituir sentimentos sinceros por
fingidos. Uma vez encontrada a forma, já nem sempre importa o conteúdo.»76

Nesta ordem de ideias, os diminutivos, além de estratégia (sobretudo) de corte-


sia, inscrevem-se também no âmbito da expressão dos afectos e emoções (E as formas

75
Cf. id.: 225 e ss.
76
SKORGE, 1958: 50-51.

185
186

de cortesia e de descortesia não são também expressões de afectos e emoções?...),


domínio que, como já referimos, ganha cada vez mais terreno no campo dos estudos
linguísticos, nomeadamente ao nível da Estilística Linguística, da Análise Discursivo-
-textual e da Retórica Interpessoal.

Emília Ribeiro Pedro também descreve, segundo uma perspectiva contrastiva e


sociocultural, as funções que desempenham os diminutivos e construções com o item
lexical «pequeno» em Português, enquanto «marcadores de delicadeza»,77 face ao
Inglês. A teoria adoptada é a de Brown & Levinson, embora a autora siga o modelo de
análise que, com os mesmos objectivos, Maria Sifianou utilizou no estudo dos diminu-
tivos gregos, por nele ter encontrado, segundo refere, muitas conclusões semelhantes às
suas.78
Para a linguista portuguesa, o uso de diminutivos e de construções com “peque-
no” desempenham, nas língua e cultura portuguesas (tal como na inglesa, na grega e nas
línguas europeias em geral) funções ao nível do afecto, do envolvimento interaccional,
da cortesia e da própria sociedade. Por outro lado, considera questionável, como faz
Sifianou, a teoria de Brown & Levinson sobre as noções de imposição e hierarquia de
imposições, na explicação sobretudo dos pedidos.79
Independentemente dos processos de derivação e construção sintagmática espe-
cíficos de cada língua, a autora confirma, com base precisamente no estudo de Sílvia
Skorge e em observações da experiência quotidiana, que, em Português, os diminutivos
são utilizados «numa extensa variedade de situações entre crianças e adultos», enquanto
que, em Inglês, se verifica uma «quase inexistência de diminutivos e uma muito clara
preferência pela forma “please”».80 A explicação para esta diferença encontra-a no facto
dos interlocutores (tal como os gregos, segundo Sifianou) se sentirem, «psicológi-
77
PEDRO, 1993: 413-414. Ao longo de toda a comunicação, Pedro utiliza sempre o termo «delicadeza»
para designar o que nós referimos por cortesia.
78
Id.: 406. A autora refere-se a SIFIANOU, 1992. Esta linguista desenvolve um estudo contrastivo da
cortesia linguística em Grego e Inglês, segundo uma perspectiva intercultural, com base também na teoria
de Brown & Levinson, em SIFIANOU, 19992. Logo no início desta obra, a autora esclarece: «The re-
search presented here has been motivated by a general concern for the study of the principles underlying
interaction in cross-cultural contexts and has been inspired by work of Brown and Levinson, exploring
mainly their distinction between ‘positive’ and ‘negative’ politeness.» [SIFIANOU, 19992: 1] Sobre os
diminutivos em Grego, como atenuadores corteses de pedidos, cf. id.: 165-169. Sobre construções, em
Grego, com «liγo» (pouco) e «mikro» (pequeno), como atenuadores, cf. id.: 169-173.
79
Pedro considera também, tal como têm feito outros autores, que a teoria de Brown & Levinson, ao
considerar «toda a acção linguística como potencialmente ameaçadora expressa uma visão muito pessi-
mista da interacção e representa uma avaliação negativa da delicadeza, reflectindo uma grande preocupa-
ção com as imposições.» [PEDRO, 1993: 407]
80
PEDRO, 1993: 415.

186
187

ca e socialmente, muito mais próximos uns dos outros», por uma questão de «extrema
necessidade», facto comprovado, por exemplo, na expressão recíproca do afecto, consi-
derado «de grande importância, enquanto obviante de inseguranças pessoais e sociais.»
Por outro lado, a autora considera que «em sociedades onde os falantes se encontram
nitidamente em situação psicológica e social de distância», como a inglesa, os interlocu-
tores expressam menos as suas emoções e evitam, por isso, o uso de diminutivos, prefe-
rindo, «expressões de maior formalidade» que lhes garantem «a segurança psicológica e
social».81
Nesta ordem de ideias, as diferenças linguísticas que, no Português e no Inglês,
se manifestam ao nível dos usos de diminutivos, «dão testemunho das diferenças cultu-
rais entre as duas sociedades»,82 uma vez que «a língua condiciona e é condicionada
pelas características socioculturais do povo que a fala».83 Emília Pedro conclui, assim,
que a sociedade portuguesa tem (como Sifianou concluiu em relação à grega84), uma
orientação geral para a cortesia positiva, enquanto a sociedade inglesa parece estar mais
voltada para a cortesia negativa.85
Tendo em consideração a realidade linguística e sociocultural portuguesa, Pedro
descreve o uso dos diminutivos em Português, começando por considerar que as suas

81
Id.: 415. A mesma opinião encontra-se em WIERZBICKA, 1985: 168, citado por PEDRO, 1993: 413.
82
PEDRO, 1993: 407.
83
Id.: 405. A linguista admite, como outros, que o uso de diminutivos pode ser também uma marca que
distingue o falar das mulheres, mais voltadas para estratégias de cortesia positiva, por oposição ao falar
dos homens, mais voltados para as estratégias de cortesia negativa. [Id.: 412] Sobre este ponto, ver tam-
bém BROWN & LEVINSON, 19966: 251.
84
Sifianou, ao tratar o ponto «Greek culture and the notion of face», depois de comparar as sociedades
grega e inglesa, em termos de orientação de cortesia, conclui: «Summing up, it could be suggested that
although positive and negative politeness interact in intricate ways, Greeks tend to use more positive
politeness devices, especially to their in-group members, as opposed to the English who seem to prefer
more negative politeness devices.» [SIFIANOU, 19992: 43] Esta ideia de que os ingleses, como os restan-
tes povos ocidentais, preferem sobretudo estratégias de cortesia negativa, encontra-se já em Brown &
Levinson: «When we think of politeness in Western cultures, it is negative-politeness behaviour that
springs to mind. In our culture, negative politeness is the most elaborate and the most conventionalized
set of linguistic strategies for FTA redress; it is the stuff that fills the etiquette books (but not exclusively
– positive politeness gets some attention).» [BROWN & LEVINSON, 19966: 129-130]
85
A propósito de línguas e culturas onde, como a portuguesa, «os sentimentos e as emoções, negativos e
positivos, tendem a ser expressos de modo explícito», escreve Pedro: «O uso extensivo dos diminutivos
como marcadores de delicadeza positiva indica que na interacção quotidiana é preferida uma estratégia de
delicadeza positiva, principalmente para a comunicação de similaridade entre os interlocutores e informa-
lidade. Numa sociedade com orientação de delicadeza positiva, torna-se natural que um tal sistema tenha
sido desenvolvido para satisfazer essas necessidades de delicadeza.» Pelo contrário, na língua e cultura
anglo-saxónica, que «não encoraja a expressão das emoções [...] o sistema de diminutivos não é tão
necessário e é, portanto, restrito.» Todavia, avisa a linguista (como também faz Sifianou) que «embora as
sociedades se possam distinguir de acordo com as suas orientações de delicadeza positiva ou negativa,
este facto é mais relativo do que absoluto». [PEDRO, 1993: 413 e 414]. Sobre a classificação das socie-
dades e culturas, segundo o tipo de cortesia que, eventualmente, as caracterizam, ver BROWN &
LEVINSON, 19966: 242-255, KERBRAT-ORECCHIONI, 1994, 1996, 2000, 2000b e SIFIANOU,
19992.

187
188

«funções primárias [...] parecem, desde sempre, ter-se alargado, para servir uma varie-
dade de necessidades», entre as quais a expressão de cortesia positiva, «quer partilhan-
do um espaço afectivo comum, quer mostrando solidariedade para com o interlocutor».
E explica :

«O sistema muito desenvolvido da derivação de afecto em Português mostra uma orien-


tação positiva de delicadeza na sociedade que o desenvolveu. Quando os falantes usam
diminutivos com referência às suas próprias coisas, características ou realizações, a
conotação pode ser de afecto, mas, ao mesmo tempo, pode exprimir uma tentativa para
reduzir a possibilidade dos enunciados serem interpretados como auto-louvor (trago-lhe
este presentinho, a minha casita). É uma estratégia de delicadeza positiva.»86

A linguista portuguesa manifesta, todavia, «muitas dúvidas quanto à “plausabi-


lidade” do modelo de Brown e Levinson»,87 na análise da expressão da cortesia em Por-
tuguês, nomeadamente quanto à noção de imposição e às atitudes dos interlocutores em
relação ao envolvimento interaccional.88 Propõe, por isso, que «em vez de [se] conside-
rar sociedades de predominância de estratégias de delicadeza positiva e/ou negativa»,
como fazem Brown & Levinson e seus seguidores, se passe a «utilizar os conceitos de
proximidade e/ou distância psicológica e social».89

Apresentados os pontos essenciais da comunicação de Pedro, sobre as funções


de cortesia dos diminutivos na língua e cultura portuguesa, face à língua e cultura ingle-
sa (e grega, via Sifianou), gostaríamos de comentar, de momento, a opinião da autora
segundo a qual Brown & Levinson centram o seu estudo na análise da língua e cultura
inglesas. Convém recordar que os autores de Politeness tiveram em consideração tam-
bém outras línguas e outras culturas. Além do Inglês, «from both sides of the Atlantic»,
os autores utilizaram também construções do Tzeltal, «a Mayan language spoken in the
community of Tenejapa in Chiapas, Mexico», e do Tamil, do sul da Índia, «from a vil-
lage in the Coimbatore District of Tamilnadu», bem como, ocasionalmente, outras lín-

86
PEDRO, 1993: 409.
87
Id.: 414.
88
Cf. PEDRO, 1993: 407.
89
Id.: 414-415. Recorde-se que, como vimos, as noções de proximidade e de afastamento são propostas
também por Carreira, para a análise das formas de tratamento, interlocutórias e de cortesia.

188
189

guas de culturas ocidentais e orientais.90 Quanto à questão dos certos pedidos serem ou
não impositivos, comentá-la-emos ao analisarmos os actos directivos.91
Cabe observar, por último, que Pedro não teria conhecimento, na altura, das cor-
recções e melhoramentos do modelo de Brown & Levinson, introduzidos por Kerbrat-
-Orecchioni. Facto compreensível, já que a comunicação da linguista portuguesa ocor-
reu no mesmo ano da publicação do tomo II de Les Interactions Verbales (1992).

2.3. Maria Emília Ricardo Marques: cortesia e deferência

Em Complementação Verbal - Estudo sociolinguístico,92 dissertação de douto-


ramento, a autora tece algumas breves considerações sobre as «formas de delicadeza»,
ao abordar os «níveis de deferência», nos quais inclui, enquanto «designação genérica»
também os níveis de fala / registo, as formas honoríficas e as formas de tratamento.93
A autora retoma, no livro didáctico Sociolinguística,94 os problemas tratados no
primeiro volume da dissertação, mas introduz-lhe várias correcções e alterações, ane-
xando-lhe, além disso, vários estudos, sobretudo seus, mas também alheios, como «Lei-
turas Complementares»95 de temas expostos, bem como exercícios («Práticas»), a reali-
zar pelos estudantes. Consideramos este livro uma nova edição (que podemos entender
como corrigida e aumentada) do referido primeiro volume. Será baseados sobretudo
nele, por isso, que exporemos as observações que a autora formula a propósito da corte-
sia verbal.
As fórmulas de delicadeza constituem, segundo a linguista, um outro aspecto da
noção de deferência que considera, ao mesmo tempo, tratar-se dum dos mais importan-
tes em Sociolinguística. Recusa, todavia, a existência de sinonímia entre cortesia e defe-
rência: a cortesia «é uma dimensão que difere da deferência», na medida em que «pode-
-se ser delicado sem mostrar deferência» e «falar indelicadamente, mas com marcas
exteriores de extrema deferência». Ou, para vincar a distinção, porque «ares superiores
de condescendência podem transparecer em fórmulas delicadas: porque comportamen-

90
Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 59 e passim.
91
Ver, infra, cap. VII.
92
MARQUES, 1988.
93
MARQUES, 1995: 137. A autora utiliza frequentemente o termo «delicadeza», mas por vezes também
o termo «cortesia».
94
MARQUES, 1995.
95
CARDOSO, 1995; CARREIRA, 1995a, 1995b, 1995c; LAPA, 1995, MARQUES, 1995a, 1995b,
1995c, 1995d, 1995e, 1995f, 1995g e 1995h.

189
190

tos, falhos na mínima cortesia, podem ser ritualmente deferentes.» Nesta ordem de
ideias, a deferência exprime-se na opção por certas formas honoríficas e por determina-
dos registos, enquanto que a cortesia «é sobretudo marcada por linhas de entoação, por
formas eufemísticas ou indirectas do dizer, por formas que tornam difusas, que atenuam
ideias expressas e que respondem a uma intenção do locutor: a de ser delicado, a de não
ferir, a de não chocar.» 96
Marques interessa-se, sobretudo, por «aquelas formas de contextos em que a
intenção de delicadeza levou a estratégias ou positivas a atenuar o dito, ou negativas a
diminuir o grau de implicação-responsabilização no discurso, pela distância criada.»97 E
refere os seguintes processos linguísticos:

a) «certas modalidades»;
b) «alguns tipos de estruturas (relativas, completivas...)»;
c) «perífrases do tipo “Ele é mais para o género...”, ou “Isso pode ser mal interpreta-
do”»;
d) «apagamento do sujeito gramatical ou sua transformação em sujeito indefinido/in-
determinado, etc.»98

Contrariamente à posição da autora, que considera a cortesia (delicadeza) um


outro aspecto da noção de deferência, nós, de acordo com a noção alargada de cortesia
que seguimos, vemos antes a deferência como um aspecto da cortesia, «un cas particu-
lier de politesse», como também defende Kerbrat-Orecchioni.99 O termo cortesia fun-
ciona como um arquilexema que recobre as noções de tacto, cortesania, delicadeza,
polidez, civilidade, urbanidade, boas maneiras, etiqueta, deferência, educação, etc. Para
a linguista francesa, a deferência é «une espèce particulière de politesse, dont la spécifi-
cité tient à ce qu’elle reflète le statut hiérarchique des participants, et qu’elle consiste
dans la manifestation d’une subordination symbolique à autrui».100 Há, de facto, contex-
tos onde o bom funcionamento duma interacção verbal exige que a cortesia assuma ati-
tudes de deferência e mesmo de reverência. Recorde-se, por exemplo, como o povo
católico cumprimenta, geralmente, as altas figuras do clero.

96
MARQUES, 1995: 202.
97
Id.: ibid. A propósito, a autora refere, em nota, LAKOFF, s/d e BROWN & LEVINSON, 1978. A refe-
rência aos autores de Politeness não aparece em MARQUES, 1988.
98
MARQUES, 1995: 202-203. As alíneas são da nossa responsabilidade.
99
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 258.
100
Id.: 163.

190
191

A distinção que Marques defende entre deferência e cortesia encontra-se tam-


bém noutros autores, sobretudo entre aqueles que estudam as manifestações duma e
outra, em termos culturais.101 Para esses autores, na síntese de Kerbrat-Orecchioni,

a) «la déférence et la politesse n’empruntent pas pour s’exprimer les mêmes voies: ho-
norifiques et le niveau de langue dans le premier cas [...], procédés plus diversifiés
dans le second (contour intonatif, formulation indirecte, “hedges”, etc.)»;
b) «elles ne relèvent pas du même degré de codage, la déférence étant “grammaticali-
sée”, à la différence de la politesse.»102

Kerbrat-Orecchioni é de opinião que a deferência, como a cortesia pode ter for-


mas gramaticalizadas ou não, ser recíproca ou não, estar dependente do contexto ou não.
A propósito do contexto, a linguista francesa considera que, apesar das regras de corte-
sia serem «par excellence “context-sensitive”, c’est-à-dire soumises à des conditions
d’application qu’il est nécessaire de spécifier pour que ces règles puissent devenir véri-
tablement opératoires», tais regras são, todavia, «éminemment flexibles».103 Contesta,
por isso, a posição dos que, como Fraser & Nolen, defendem que a cortesia é uma pro-
priedade apenas de enunciados realizados («utterances») e não de enunciados abstractos
(«sentences»), isto é, que se possa dizer que uma frase, fora de contexto, é mais cortês
que outra. Kerbrat-Orecchioni considera «inconstestável» a existência de enunciados
corteses «em si», ao contrário de outros que o são em menor grau, ou que não o são. Por
isso, tal como são necessárias determinadas condições de «felicidade» para a realização
com sucesso dos actos ilocutórios, também

«la politesse est bien une propriété intrinsèque de l’énoncé abstrait, mais une propriété
virtuelle, qui pour s’actualiser a besoin que soient réunies un certain nombre de condi-
104
tions contextuelles de réussite».

101
Kerbrat-Orecchioni observa que é sobretudo em países com relações sociais hierarquicamente organi-
zadas (como o Japão e a Coreia), que a deferência encontra o seu «terreno de eleição». [Cf. Id.: 163]
102
Id.: 164. Alineação da nossa responsabilidade.
103
Id.: 257.
104
Id.: ibid. A autora comenta a seguinte citação de Fraser & Nolen: «No sentence is inherently polite or
impolite. We often take certain expressions to be impolite, but it is not the expressions themselves but the
condition under which they are used that determines the judgment of politeness (...). A speaker becomes
impolite just in cases where he violates one or more of the contractual terms». [FRASER & NOLEN,
1981: 96-97, cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 257. Cf. também FRASER, 1990: 233]

191
192

O uso de enunciados «em si» corteses que não satisfazem tais condições levam,
por um lado, ao fracasso do chamado «efeito de cortesia» e, por outro, à produção de
outros efeitos, desejados ou não, como serão os de «hipercortesia», de cortesia «deslo-
cada», ou mesmo de descortesia.

Com maior ou menor desenvolvimento, segundo perspectivas de análise diversas


(lexicais, morfossintácticas, semânticas, semântico-pragmáticas, conversacionais, lin-
guística contrastiva, linguística aplicada...), outros estudos se vem referindo, ultimamen-
te a alguns dos fenómenos que, explícita ou implicitamente, se integram no âmbito da
cortesia linguística. Alguns desses estudos serão tidos em consideração, ao tratarmos
pontos com os quais estejam directamente relacionados, nos capítulos seguintes e sobre-
tudo ao analisarmos as formas de tratamento em Português.

192
Capítulo VI

TEMPOS E MODOS VERBAIS


DE CORTESIA / DESCORTESIA

Reconhece a generalidade dos gramáticos e linguistas a existência de tempos e


modos verbais que, pelos valores semânticos que os caracterizam, são mais aptos à rea-
lização de actos corteses, enquanto outros o são à realização de actos descorteses.
Assim, as formas do imperfeito, do condicional e do futuro (bem como todas as formas
do conjuntivo, em geral) são geralmente consideradas de cortesia, ao passo que as for-
mas do imperativo (e do indicativo, em geral) são consideradas de menos cortesia e
mesmo de descortesia. Veremos que nem sempre assim é, se bem que tais considerações
possam ser aceites, à partida, como regra geral, ao nível sobretudo de sistema.
Consideraremos, neste capítulo, os valores corteses e descorteses que, a nível
semântico-pragmático, podem expressar, por um lado, o imperativo, o indicativo e o
conjuntivo, descrevendo estes modos, isoladamente e/ou contrastivamente, seguindo-se
a descrição dos respectivos tempos verbais. Esta distinção, como se verá, tem apenas
interesse analítico e metodológico, uma vez que a noção de tempo e de modo são indis-
sociáveis, isto é, não há modo sem um tempo de realização, tal como não há tempo sem
modo em que se situe.

1. Os Modos

1.1. O imperativo

O imperativo, embora seja o modo verbal que menos formas próprias tem, é,
todavia, o que mais valores semânticos e pragmáticos pode expressar, tanto em enun-
ciados afirmativos como negativos. São próximas as relações que este modo mantém
com formas do indicativo e sobretudo do conjuntivo. Com efeito, além das formas pró-
prias que «corresponde[m] praticamente à 2.ª pessoa do singular e do plural do presente
194

do indicativo, com um s a menos»,1 o imperativo socorre-se ainda, para as restantes


pessoas gramaticais, de formas supletivas que pertencem ao presente do conjuntivo.
Mas os valores da imperatividade poderão ser realizados também, indirectamente, atra-
vés de formas de outros tempos/modos, bem como de outros meios linguísticos perten-
centes a outras categorias gramaticais, que vamos designar por formas substitutas.
As formas próprias e supletivas do imperativo são alocutivas por natureza, i. e.,
o locutor dirige-se a um alocutário para que este realize uma determinada acção física
ou verbal, ou mesmo um actividade mental (imaginar, pensar, reflectir, raciocinar...),
num futuro mais ou menos próximo,2 ocorrendo, por isso, apenas em orações indepen-
dentes (absolutas, principais e coordenadas).
Cunha & Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo, registam
que o imperativo, nas suas formas próprias e supletivas, podem exprimir:

- «uma ordem, um comando» (v.g., «Cala-te, não digas nada.»3);


- «uma exortação, um conselho» (v.g., «Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No
mínimo que fezes.»4);
- «um convite, uma solicitação» ( v.g., «Georges! anda ver meu país de romarias / E
procissões!»5);
- «uma súplica» (v.g., «- Jesus, valha-me Nossa Senhora!...»6);
- «uma hipótese em lugar de asserções condicionadas» (v.g., «Suprima a vírgula, e o
sentido ficará mais claro.», por «Se suprimir a vírgula, o sentido ficará mais claro.»7

1
LAPA, 19758: 209. Este estilista considera, por outro lado, que as formas afirmativas (que designa de
«positivas»), «marca[m] uma ordem dada com energia», na qual «se manifesta fortemente a vontade do
ordenante». O imperativo negativo, por seu turno, «é expresso pelo conjuntivo», fazendo com que a
«ordem proibitiva» por ele realizada «seja mais atenuada do que a ordem positiva». [Id.: 209] Como
veremos a seguir, o imperativo negativo não se expressa apenas através das formas do presente do con-
juntivo.
2
A propósito, Cunha & Cintra relevam que este modo, apesar de enunciado no tempo presente («presente
do imperativo»), «tem valor de um futuro», uma vez que «a acção que exprime está por realizar-se.»
[CUNHA & CINTRA, 1984: 476] E Mário Vilela observa que, nas formas do imperativo, há «um sema
evidente [...] de “futuro” (o tempo da realização).» [VILELA, 1995: 140] Carreira, numa perspectiva
semântico-pragmática, observa que o imperativo é «prospectivo, já que o seu efeito perlocutório se situa
num advir». [CARREIRA, 2001: 98, nota 6]
3
Exemplo colhido pelos autores em Carlos de Oliveira, 19758: Uma Abelha na Chuva. Lisboa: Sá da
Costa; p. 98.
4
Retirado, pelos autores, de Fernando Pessoa, 1960: Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar; p. 239.
5
Retirado, pelos autores, de António Nobre, 18982: Só. Lisboa: Guillar & Aillaud; p. 32.
6
Exemplo colhido em Bernardo Santareno, 1969: A Traição do Padre Martinho. Lisboa: Ática; p. 25.
7
Frase da autoria dos autores, cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 475. Na exemplificação dos valores impe-
rativos registados, Cunha & Cintra recorrem, por sistema, a exemplos retirados de textos literários. Toda-
via, porque não co(n)textualizados, tais exemplos nem sempre ilustram com clareza o(s) valor(es) propos-
to(s). Os autores recorrem, por vezes, a exemplos da linguagem corrente, ou por si inventados. Justificam,
todavia, a sua opção por exemplos literários, no «Prefácio» da Nova Gramática, ao apresentarem-na
como «uma tentativa de descrição do português actual na sua forma culta, isto é, da língua como a têm
195

Além dos valores de ordem, pedido e conselho, Mário Vilela, em Gramática da


Língua Portuguesa,8 refere que o imperativo realiza ainda valores de «ameaça» e de
«advertência».9 Ao descrever os tipos de frase, o linguista observa que, com as impera-
tivas, se procura fazer com que o destinatário faça algo, acrescentando que há vários
meios linguísticos para exprimir uma ordem, «com diferentes matizes e efeitos», sendo
o meio mais marcado «a forma imperativa do verbo».10
Dentro duma perspectiva claramente semântico-pragmática, Carreira, ao analisar
os fenómenos da cortesia linguística e a realização dos actos directivos em Português
europeu actual, observa que o imperativo é, possivelmente, o processo mais imediata-
mente disponível para se exprimir uma injunção.11 E, ao analisar as diferentes realiza-
ções atenuadas, ou seja, com maior ou menor cortesia, do acto directivo da ordem, colo-
ca no pólo, ou área polar, + Delicadeza // - Direcção (acto indirecto), oposto ao pólo ou
área polar –Delicadeza // +Direcção (acto directo), o pedido, o conselho, a sugestão, o
desejo, actos que, quando formulados com «valor injuntivo», atenuam a realização
directa e directiva da ordem.12
Na Gramática da Língua Portuguesa de Mira Mateus et al., os modos verbais
são descritos segundo uma perspectiva pragmática, pois o seu emprego está ligado aos
tipos de actos ilocutórios que realizam. Segundo as autoras, há factores que, ao adquiri-
rem preponderância na interacção verbal, fazem com que a atitude do locutor não seja
apenas determinada pelo grau de conhecimento que este tem do estado de coisas do con-
teúdo proposicional, mas também pelo «factor “alocutário”», como é o caso dos actos

utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá, dando naturalmente
uma situação privilegiada aos autores dos nossos dias.» Observam, por outro lado, não terem descurado
«dos factos da linguagem coloquial», sobretudo ao analisarem «os empregos e os valores afectivos das
formas idiomáticas.» [Id.: XIV] De ora em diante, a referência Nova Gramática diz respeito a este título.
8
VILELA, 1995. A propósito, é de referir e realçar o facto de Vilela organizar a sua Gramática em torno
de três grandes domínios, presentes desde logo no subtítulo da obra, a saber: «Gramática da palavra»,
«Gramática da frase» e «Gramática de texto e textologia». É, quanto julgamos saber, a primeira gramática
portuguesa que dedica um longo capítulo à problemática do texto e da textualidade, capítulo que, na
segunda edição (1999), apresenta desenvolvimentos e revisões importantes.
9
Cf. id.: 140.
10
Id.: 247.
11
CARREIRA, 1995: 228.
12
Cf. id.: 228 e ss.; 1995c: 86 e ss., e 2001: 105 e ss. Convém observar que a autora não afirma que todos
estes actos, incluindo o acto directo da ordem, sejam expressos pelo imperativo. A propósito, é de referir
que não nos parece suficientemente clara a descrição feita entre actos com valor injuntivo que realizam
actos indirectos de ordem (pedidos, conselhos, sugestões, desejos...) e o acto directivo directo de ordem.
É frequente associar-se o imperativo aos actos directivos, dado o seu valor injuntivo. Por exemplo, em
BROWN & LEVINSON, 19966: 95 e passim, CHARAUDEAU, 1992: 583, HAVERKATE, 1994 : 162,
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 200 e 1996: 55, LEECH, 199610: 119, MATEUS et al., 19892: 107,
OLIVEIRA, 2000: 110, RODRIGUES, 1996: 96 e WEINRICH, 1989: 162, entre outros. De observar que
estes autores não afirmam que as formas imperativas são as únicas que realizam actos directivos.
196

imperativos. Reconhecem também que o imperativo anda habitualmente associado à


realização de actos directivos (de ordem ou de pedido), uma vez que através deles o
locutor tenta que o alocutário realize, no futuro, o conteúdo proposicional da frase pro-
ferida. Na estrutura das frases simples imperativas, o verbo encontra-se, por isso,
«modalizado pela atitude que o locutor assume em relação ao alocutário, em função de
um objectivo ilocutório directivo». O verbo pode então ocorrer quer nos modos impera-
tivo, conjuntivo, indicativo, quer no infinitivo ou no gerúndio. Seja qual for o modo
utilizado, o locutor procura sempre controlar, a «vários graus», a acção futura do alocu-
tário, particularmente na expressão da ordem.13
Com as formas do imperativo, o locutor atribui, por isso, a si próprio um certo
estatuto de autoridade e ao seu alocutário um certo estatuto de inferioridade14 mesmo
que este não reconheça nem aceite um e/ou outro desses estatutos. O efeito perlocutório
de vontade ou desejo procurado pelo locutor encontra-se, de facto, como observa Joa-
quim Fonseca, vinculado, «por convenção pragmática», ao uso do imperativo, quer
através de enunciados impositivos, «com força ilocutória de ordem», quer através de
enunciados não impositivos, os quais projectam, consoante o contexto, «valores ilocutó-
rios como advertência, aviso, conselho, recomendação ou incitamento (persuasivo ou
dissuasivo).»15 O imperativo é, por isso, um modo utilizado, sobretudo, «em situações
enunciativas mais ou menos marcadamente assimétricas», isto é, «caracterizadas por
uma distribuição desigual de lugares entre os interactantes», situações essas que, além
disso, «envolvem muito regularmente um trabalho de figuração que [...] matiza larga-
mente a definição dos lugares enunciativos.»16
Os actos directivos podem ser reforçados e/ou atenuados, através das formas
imperativas. Os autores da Nova Gramática distinguem e exemplificam outros possíveis
processos de reforço da ordem.17 Entre esses processos, registam

13
Cf. MATEUS et al., 19892: 89, 107 e 249. De observar que o conteúdo proposicional de um enunciado
nem sempre coincide com a acção a realizar pelo alocutário. Por exemplo, no Minho, pelo menos, quando
alguém entra num espaço e deixa a porta aberta, é costume perguntar-se-lhe «É(s) de Braga?», cujo objec-
tivo ilocutório é que feche a porta, ou que a devia ter fechado, tratando-se, neste caso, também dum acto
de censura. O alocutário, se se ativer apenas ao conteúdo proposiconal, poderá responder com um simples
«sim» ou «não», tornando perlocutoriamente infeliz aquele acto directivo indirectamente formulado.
14
Cf. CHARAUDEAU, 1992: 582 e 648. Cf. também FONSECA (F.), 1994: 32 e 33, e HAVERKATE,
1994: 38 e nota 2
15
FONSECA (J.), 1993: 150 e 166.
16
Id.: 153.
17
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 478-479. Mantemos a designação dos autores, mesmo sabendo que
nem todos os exemplos apresentados pelos autores poderão ser considerados actos de ordem, como depois
se verá (infra, cap. VII).
197

a) a repetição da forma verbal (v.g., «- Fale, fale, que eu vou ouvindo...»18)


b) uso «de um advérbio, de uma expressão de insistência, ou de imprecações» é outro
processo (v.g., «Escreva por amor de Deus imediatamente para Barcelona!...»19)
c) emprego da 3.ª pessoa do conjuntivo «aplicada ao interlocutor», (v.g,. «Pega... Pega...
Lá se foi... Que o leve o diabo.»20)

Dos exemplos indicados como reforço da ordem, o último parece-nos o menos


adequado. Com efeito, é usada a 3.ª pessoa do conjuntivo («leve»), dirigida a um inter-
locutor, a quem foram dirigidas, antes, formas imperativas de 2.ª pessoa repetidas
(«Pega... Pega»). Com as reservas resultantes da ausência de co(n)texto, mas tendo em
conta a descrição feita, não nos parece que a mudança de tuteamento («Pega») para
voceamento («Que o leve o diabo»), se enquadre nos processos de reforço da ordem.
Aqui, tal mudança é mais um comentário de censura pelo facto do interlocutor não ter
pegado alguma coisa. Falta saber se aquilo que o locutor deseja que seja levado pelo
diabo é o que não se conseguiu pegar, ou o alocutário a quem se pedia para o pegar.
Parece-nos mais plausível a primeira hipótese, caso contrário não se compreenderia «Lá
se foi...», expressão apreciativa de desagrado, que confirma também a ocorrência dum
evento indesejado. «Que o leve o diabo» é expressão que, com valor interjectivo, depois
de «Lá se foi...», também com valor interjectivo,21 manifesta a aceitação resignada do
locutor pelo sucedido, parafraseável pela interjeição «Paciência!»
Os processos de reforço das formas imperativas referidos por Cunha & Cintra
dizem respeito aos actos de ordem, mas os autores não especificam se o efeito perlocu-
tório resulta em maior ou menor custo para o alocutário (que pode reverter também,
directa ou indirectamente, em benefício do locutor), ou em maior ou menor benefício
para o alocutário. É que, no caso de se verificar a primeira hipótese, a repetição do
imperativo será descortês, constituindo um FTA; no caso de se verificar a segunda hipó-
tese, a repetição será cortês, constituindo um FFA.
Mas se os actos directivos de efeito perlocutório orientado exclusivamente para
benefício do locutor serão mais ou menos descorteses e podem ser intensificados, tam-
bém os actos directivos de efeito perlocutótio orientado para benefício do alocutário
serão mais ou menos corteses e como tais podem ser também reforçados. Em síntese,

18
Colhida, pelos autores, em David Mourão-Ferreira, 1965: O Irmão. Lisboa: Guimarães Editores; p. 44.
19
Colhida, pelos autores, em M. de Sá-Carneiro, 1959: Cartas a Fernando Pessoa II. Lisboa: Ática; p. 9.
20
Retirada, pelos autores, de Martins Pena, 1956: Teatro (2 vol.). Rio de Janeiro: MEC/INL; p. 36.
21
Sobre os valores das interjeições, ao nível da cortesia/descortesia verbal, ver, infra, cap. VIII, 2.
198

pode-se dizer que os actos descorteses podem ser reforçados até ao insulto, do mesmo
modo que os actos corteses podem ser reforçados até à excelência. Consoante os
co(n)textos existentes, criados e/ou negociados, incluindo os objectivos ilocutórios e
interpessoais que um ou outro dos interactantes visam, ou todos os que numa interacção
verbal participam, sincera ou insinceramente.
Acontece, por outro lado, que por «dever social e moral, evitamos geralmente
ferir a susceptibilidade do nosso interlocutor com a rudeza de uma ordem.» Com esta
observação, que nos recorda, inevitavelmente, a noção de FTA e as estratégias de corte-
sia utilizadas na sua realização, os gramáticos colocam o problema da ordem no âmbito
do tema principal deste nosso estudo - a cortesia / descortesia linguística. De facto, con-
sideram os autores que existem «numerosos meios de que nos servimos para enfraque-
cer a noção de comando» (alguns dos quais foram já descritos) destacando, «pela sua
eficiência», as «fórmulas de polidez ou de civilidade, tais como: por favor, por gentile-
za, digne-se de, tenha a bondade de, etc.»22 É o que se verifica, com as reservas, nova-
mente, da ausência de co(n)texto, em «- Fale mais alto, por favor!»23 e «- Tenham a
bondade de sentar e esperar um momento.» 24
Ao procederem ao inventário e descrição dos valores do modo imperativo, nas
suas formas próprias, supletivas e substitutas, os autores da Nova Gramática chamam a
atenção para dois aspectos importantes na realização dos enunciados com valores «afec-
tivos» e/ou «estilísticos»: a entoação e o contexto. Trata-se, a nosso ver, de dois factores
de natureza pragmática, fundamentais na produção e recepção de todos os enunciados,
em geral, e dos imperativos, em particular. Factores que, todavia, estes gramáticos não
desenvolvem, dado estarem as suas preocupações orientadas para o uso normativo da
língua enquanto sistema.
Ao longo da Nova Gramática, os autores vão fazendo, porém, breves aponta-
mentos de natureza pragmática, quanto à entoação e ao co(n)texto. Observam, por
exemplo, que, como factor geral a ter em consideração, os valores semântico-pragmá-
ticos (que chamam «estilísticos» e/ou «afectivos») de algumas formas verbais imperati-
vas «dependem do significado do verbo, do sentido geral do contexto e, principalmente,
da entoação que dermos à frase imperativa», de tal modo que, «conforme o tom de voz,

22
CUNHA & CINTRA, 1984: 479.
23
Retirada, pelos autores, de Fernanda Botelho, s/d: Xerazade e os outros. Amadora: Bertrand; p.177.
24
Retirada, pelos autores, de R. Braga, 1958: 100 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: J. Olympio; p. 272.
199

a noção de comando pode enfraquecer-se até chegar à de súplica.»25 E, ao tratarem «os


variados recursos estilísticos» de que a Língua Portuguesa dispõe «para reforçar ou ate-
nuar a vontade», manifestada através do imperativo, referem que a «sua eficácia, porém,
está sempre condicionada ao tom de voz que é, nas formas afectivas da linguagem, um
elemento essencial»26 e «de suma importância», porque um enunciado, não obstante o
emprego daquelas «fórmulas de polidez ou de civilidade», pode tornar-se «rude e seco,
ou mesmo insolente, com a simples mudança de entoação.»27
Por uma questão de cortesia negativa, de protecção das faces dos interlocutores,
os enunciados imperativos são geralmente realizados, por isso, com recurso a processos
linguísticos de atenuação discursivo-textual, por substituição e/ou compensação, segun-
do propõe Kerbrat-Orecchioni, na sequência de Brown & Levinson, bem como muitos
outros linguistas que este(s) modelo(s) seguem, na análise dos fenómenos da corte-
sia/descortesia verbal.

1.2. Indicativo vs. Conjuntivo

O indicativo é tradicionalmente definido, por estilistas e gramáticos com idêntica


orientação interpretativa, como o modo que exprime, geralmente, «uma acção ou um
estado considerado na sua realidade ou na sua certeza»,28 enquanto o conjuntivo expres-
sa a atitude do locutor perante «a existência ou não existência do facto como uma coisa
incerta, duvidosa, eventual ou, mesmo, irreal».29
Confrontando os valores do indicativo e do conjuntivo, ao nível da estilística,
Lapa regista os mesmos valores, mas acrescenta, em relação ao último, que os valores
25
CUNHA & CINTRA, 1984: 476. Itálicos da nossa responsabilidade.
26
Id.: 478. Itálicos da nossa responsabilidade.
27
Id.: 478 e 479. Itálicos da nossa responsabilidade. Os autores descrevem a entoação, como «linha ou
curva melódica descrita pela voz ao pronunciar palavras, orações e períodos», em id.: 167-176. Mário
Vilela chama também a atenção para a importância do contexto e da entoação na concretização do valor
do imperativo, referindo que ele «está intimamente ligado à situação, ao contexto, tanto mais que supõe a
presença de um partner de quem o falante pode esperar a realização do que “é ordenado”.» E acrescenta:
«A situação – intervindo aqui também a entoação – indica em que medida o que é pedido se caracteriza
como “pedido”, “ordem”, “conselho”, “ameaça”, “advertência”, etc.» [VILELA, 1995: 140. Itálicos da
nossa responsabilidade.] Também Carreira sublinha a importância da entoação, como valor determinante
na realização das injunções. [Cf. CARREIRA, 1995: 236-238 e 2001: 82-93)]
28
CUNHA & CINTRA, 1984: 447 e 463.
29
Id.: 464 e 471. A propósito desta definição, Campos & Xavier chamam a atenção para o facto de que
ela «não engloba o uso do conjuntivo em enunciados com valor apreciativo.» [CAMPOS & XAVIER,
1991: 342, nota 1] Acontece, porém, que os autores da Nova Gramática referem que também se emprega
este modo verbal, nas orações subordinadas substantivas, quando a oração principal exprime, além de
vontade («nos matizes que vão do comando ao desejo») e dúvida, «um sentimento, ou uma apreciação
que se emite com referência ao próprio facto em causa». [CUNHA & CINTRA, 1984: 466]
200

de possibilidade e de incerteza denotam «o sentimento da dúvida, o desconhecimento, o


desejo, a surpresa, a probabilidade, etc.», de tal modo que o conjuntivo é, por isso, «um
veículo de dúvidas e vacilações».30
Mateus et al., perspectivando uma orientação claramente mais linguística e
pragmática, observam que o conjuntivo «aparece fundamentalmente ligado a um estado
de coisas reconhecido pelo locutor ou como possível ou como contingente», expres-
sando «vários graus de condicionalidade», podendo ocorrer «em estruturas complexas
de coordenação e subordinação».31 O indicativo é, para as autoras, o modo menos mar-
cado quanto à «expressão da atitude ou da relação que se estabelece entre locutor, alo-
cutário e universo de referência». Ocorre, por isso, normalmente em frases simples e na
oração subordinante de frases complexas factuais. As autoras observam, todavia, que o
indicativo pode substituir o imperativo, «sempre que a relação locutor-alocutário permi-
ta ao locutor encarar a realização de uma ordem como necessária», como em «Agora
dás um beijo à mãe e vais para a cama.»32
Cunha & Cintra vão, porém, mais no sentido de que os valores do conjuntivo se
encontram sobretudo em ocorrências sintacticamente dependentes ou subordinadas,
cujo sentido do verbo está ligado à ideia de ordem, de proibição, de desejo, de vontade,
de súplica, de condição e outras correlatas. Quando ocorre em orações independentes, o
conjuntivo «envolve sempre a acção verbal de um matiz afectivo que acentua fortemen-
te a expressão da vontade do indivíduo que fala».33
Pondo em confronto os valores do indicativo e do conjuntivo, nas orações
subordinadas substantivas, os autores estabelecem dois princípios gerais norteadores do
emprego dos dois modos:

«1.º) O INDICATIVO é usado geralmente nas orações que completam o sentido de ver-
bos como afirmar, compreender, comprovar, crer (no sentido afirmativo), dizer, pen-
sar, ver, verificar.
2.º) O CONJUNTIVO é o modo exigido nas orações que dependem de verbos cujo sen-
tido está ligado à ideia de ordem, de proibição, de desejo, de vontade, de súplica, de

30
LAPA, 19758: 208 e 209.
31
MATEUS et al., 19892 : 106 e 108.
32
Cf. id.: 107-108.
33
CUNHA & CINTRA, 1984: 464.
201

condição e outras correlatas. É o caso, por exemplo, dos verbos desejar, duvidar, implo-
rar, lamentar, negar, ordenar, pedir, proibir, querer, rogar e suplicar.»34

Vilela regista que o conjuntivo expressa «uma acção como não dada ou como
dada, mas avaliada subjectivamente», sendo, por outro lado, o modo «sobretudo das
subordinadas», nomeadamente com «verbos de “vontade”» e com «verbos que expri-
mem dúvida». Todavia, «é parcialmente verdade» que seja o modo das subordinadas,
uma vez que também se encontra nas subordinantes «em ligação com certas expressões,
como talvez ou oxalá ou em expressões de desejo ou ordem», como em «Não falemos
mais nisso».35 O indicativo é considerado «a forma básica dos modos», denotando, além
dos valores já referidos, ainda «o previsível e o que está em vias de se realizar».36
Fonseca (F.) considera, por seu turno, que existem apenas formas dependentes
do conjuntivo. Segundo explica, dadas as características próprias, intimamente relacio-
nadas com a falta de autonomia do conjuntivo no texto, as formas deste modo (que a
autora considera ser portador também de valores temporais) surgem sempre como
dependentes de uma outra forma verbal presente ou pelo menos implicitamente presente
no cotexto. E acrescenta, justificando: «Esta dependência sintáctica está de acordo com
o carácter logicamente não autónomo dos processos significados pelo conjuntivo, que
surgem como dependentes da potência volitiva ou intelectual de um sujeito», o que
«implica um valor temporal relativo, só actualizável pela dependência em relação a uma
outra forma verbal presente no contexto.»37 É essa «presença implícita» que explica,
segundo a linguista, os empregos ditos independentes (porque só aparentemente o são)
do conjuntivo, em cujo conjunto se incluem os empregos do conjuntivo em substituição
do imperativo nas 3.as pessoas. Nesta ordem de ideias, e no que à nossa língua diz res-
peito, tais empregos «são verdadeiramente independentes e funcionam como imperati-
vos, já que a 3.ª pessoa é, em Português, forma de tratamento corrente.» Enunciados,
por isso, do tipo «Saia!», «Saiam!», são «performativos-imperativos» que implicam
«uma relação directa 1.ª-2.ª pessoas (ainda que esta esteja formalmente representada
pela 3.ª pessoa e, logo, pelo conjuntivo).»38

34
Id., ibid.
35
VILELA, 1995: 139.
36
Id.: 138.
37
FONSECA (F.), 1994: 22 e 23-24.
38
Id.: 23, nota 19.
202

Mas o conjuntivo, além dos valores sintácticos e semânticos anotados, apresenta


também a característica da «não assertividade», conforme refere Teresa Oliveira. Expli-
ca a autora que «o emprego do conjuntivo põe em causa a atribuição de um valor de
verdade, deixa essa atribuição em suspenso, permitindo ao enunciador não se compro-
meter com essa decisão».39 Neste sentido, afirma que o conjuntivo exclui os contextos
declarativos, citando, a propósito, Jean-Paul Confais: «le SUBJ sert à annuler ou à dé-
samorcer le potentiel déclaratif de la séquence concernée, en ce sens que le locuteur ne
pourrait pas utiliser cette séquence comme support d’un acte de déclaration».40
Oliveira, situando a sua análise no quadro da Teoria das Operações Predicativas
e Enunciativas, proposto por Antoine Culioli, faz várias observações sobre o conjuntivo,
em contraste com o indicativo, ao nível da relação predicativa e dos valores modais que
são ou não validados, numa determinada situação de enunciação origem (Sit0).41 Segun-
do esta teoria, o valor modal de um enunciado resulta da localização da relação predica-
tiva em relação ao parâmetro sujeito da enunciação (S0), o qual «exprime diferentes
tipos – e para cada tipo diferentes graus – de relação entre o enunciador e a relação pre-
dicativa subjacente a esse enunciado.»42
Descritos os valores semânticos do conjuntivo vs. indicativo, ao nível das moda-
lidades epistémica e apreciativa, a autora observa que a modalidade intersujeitos se
encontra presente em enunciados que exprimem ordens, pedidos, desejos, permissões,
etc. E acrescenta que sendo o imperativo, o modo interagentivo por excelência, função
que partilha com o conjuntivo, este último permite a construção de inúmeras formas,
que reflectem o tipo de relação interagentiva existente, tanto de incentivo à acção, como
à sua inibição. Por isso, esta modalidade «constrói a relação predicativa como validável
ou não-validável em Sit0, razão pela qual dificilmente ocorre com verbos do indicati-
vo.»43
Ao nível da «construção de possibilidades», dentro do quadro teórico culioliano,
«o conjuntivo exprime uma mira (“visée”) do sujeito enunciador», ou seja: «encarando
o conjunto das possibilidades em aberto, o sujeito percorre todos os valores possíveis,
orienta-se para um deles e selecciona-o, sem poder, no entanto, rejeitar liminarmente os
39
OLIVEIRA, 2000: 107.
40
A autora cita o trabalho de Jean-Paul Confais, Temps, mode, aspect, pulicado em 1995 (2.ª ed.), em
Toulouse, por Presses Universitaires du Mirail; p. 337.
41
Apresentações, mais ou menos desenvolvidas, da teoria de Antoine Culioli, em Portugal, e sua aplica-
ção ao Português, encontram-se em CAMPOS, 1997 e 1998; CAMPOS & XAVIER, 1991; MOREIRA,
1995: RODRIGUES, 1998; VALENTIM, 1998, entre outros.
42
CAMPOS & XAVIER 1991: 338.
43
OLIVEIRA, 2000: 110.
203

outros».44 É o que se verifica, com particular evidência, nas orações condicionais hipo-
téticas, como em «Se estivesses com atenção, percebias a matéria.» Aqui, o conjuntivo
constrói uma hipótese como possível, pouco provável ou contrafactual. Ora, acrescenta
a autora, construir hipóteses «corresponde a encarar diferentes possibilidades, validáveis
ou não-validáveis, pelo que este valor modal é marcado fundamentalmente pelo conjun-
tivo e pelo imperativo.»45
Encarar, todas as possibilidades em aberto exige, por outro lado, que o enuncia-
dor crie, segundo observa Teresa Oliveira, uma distância em relação a essas possibilida-
des, de forma a poder ponderá-las. É por isso que, ao usar o conjuntivo, o enunciador
não se compromete com a validação da relação predicativa, mantendo em relação a ela
uma distância segura, de modo que, assim, a responsabilidade não lhe poderá ser impu-
tada. Com o indicativo, porém, o enunciador compromete-se com a validação predicati-
va, responsabiliza-se por essa validação. Pode, todavia, utilizar certas formas do indica-
tivo para construir uma distância modal, criando assim uma desresponsabilização em
relação ao que foi construído, como em «A Ana disse que o João saiu.» (onde se verifi-
ca uma dissociação entre S0 e S1), ou em «Segundo testemunhas oculares o arguido teria
confessado a sua culpa, logo após o crime, mas será necessário aguardar a decisão do
juíz.», através da utilização do condicional e do futuro do indicativo.46
Além destes usos de distanciamento do enunciador (para continuarmos a utilizar
o termo preferido pela autora) relativamente à relação predicativa, a autora refere ainda
o uso do conjuntivo ou do indicativo, nas construções relativas, «domínio particular-
mente interessante», segundo observa, pois que «o modo verbal não é seleccionado em
virtude de nenhum condicionalismo sintáctico, mas surge como uma opção do sujeito
enunciador, que assim marca a forma como encara a validação da relação predicati-
va.»47 Oliveira conclui afirmando que este modo funciona sempre como

«um marcador de distanciamento entre o enunciador e a validação da relação predicati-


va, quer esse distanciamento reflicta a aceitação de diferentes possibilidades, quer mar-
que uma recusa consciente do enunciador em se comprometer com essa mesma valida-
ção.»48

44
Id.: 111.
45
Id., ibid.
46
Cf. id.: 112- 113. O segundo exemplo é uma adaptação do exemplo da autora, a fim de reunir numa só
frase os valores de condicional e futuro do indicativo.
47
Id.: 113.
48
Id.: 114.
204

1.3. Conjuntivo, modo da cortesia

Face aos valores sobretudo semântico-pragmáticos do conjuntivo (dependência,


incerteza, dúvida, eventualidade, irrealidade, não-factualidade, contingência, condi-
cionalidade, não afirmação, não assertividade, subjectividade, distanciamento, afecti-
vidade, não comprometimento...), reconhecidos por estilistas, gramáticos e linguistas,
com maior ou menor unanimidade, poderá pôr-se agora a seguinte hipótese:

Sendo as formas do imperativo, na sua grande maioria, realizações do con-


juntivo, é este fenómeno também uma questão de cortesia?

Recorde-se que, na sua etimologia (que a Nomenclatura Gramatical Brasileira


mantém, ao designá-lo por subjuntivo), o conjuntivo tinha já um carácter de subordina-
ção e de ligação. Fonseca (F.) observa, a propósito, que o conjuntivo

«começou por estar vinculado, pelo seu significado modal, à expressão de situações
reais de dependência; depois generalizou-se o seu uso como expressão da dependência
linguística, que pode ou não corresponder a uma dependência real, lógica.»49

Lapa já anotara que «para atenuar a dureza do imperativo categórico», se empre-


ga o conjuntivo, como em «Sejas bem-vindo, meu querido amigo», comentando que se
sente «perfeitamente que a forma sejas é menos seca, mais doce e afectiva do que sê.»50
E os autores da Nova Gramática observam que, apesar da etimologia da palavra
(«imperare»), «não é para ordem ou comando que, na maioria dos casos» se usa o impe-
rativo, uma vez que há «outros meios mais eficazes» para se expressar esta noção. Con-
cluem que quando se emprega este modo, geralmente se tem o intuito de exortar o inter-
locutor a cumprir a acção indicada pelo verbo. O imperativo é, por isso, «mais o modo
da exortação, do conselho, do convite, do que propriamente do comando, da ordem.»51
A partir da observação de João Malaca Casteleiro, segundo a qual o «imperativo
formal deixou de ter a primazia na expressão da ordem», passando a ser «principalmen-

49
FONSECA, (F.), 1970: Para o estudo dos valores do conjuntivo em português moderno, Dissertação de
Licenciatura. Coimbra; pp. 164-165, cit. por OLIVEIRA, 2000: 114.
50
LAPA, 19758: 210.
51
CUNHA & CINTRA, 1984: 474.
205

te expressa pelo conjuntivo formal»,52 Fonseca (F.) mostra que, no Português contem-
porâneo, o conjuntivo é «le mode le plus répandu comme configuration des actes rele-
vant de la volonté», concretamente, na expressão «de l’ORDRE, du SOUHAIT, du
REGRET et du REPROCHE». A prova dessa vitalidade reside, entre outros factores, na
«pleine conservation de sa valeur modale optative», tanto na expressão do desejo
(«SOUHAIT»), como na expressão do pesar («REGRET»), por um lado, e em «sa nette
“invasion” du domaine voisin de l’injonctif», tanto na expressão da ordem («ORDRE»),
como na expressão da censura («REPROCHE»),53 por outro.
Tal «vitalidade» e «invasão» são confirmadas pelas formas do imperfeito e mais-
-que-perfeito do conjuntivo, em usos independentes como «Estudasses!» e «Tivesses
estudado!». Segundo a linguista, estas formas comportam também valores de «impera-
tividade», se bem que no domínio psicológico da «frustração», porque «Le REGRET
est [...] un SOUHAIT frustré et le REPROCHE un ORDRE frustré»,54 na medida em
que os primeiros sentimentos são expressos a posteriori, enquanto os segundos a priori.
Estes valores injuntivos «frustrados», mas «vivos» e «operativos», presentes na
realização das formas verbais do conjuntivo referidas, são explicados, em síntese, deste
modo pela linguista:

«Il est évident que le JE ne peut pas imposer au TU de faire quelque chose qui est déjà
passée. Mais on peut concevoir que le JE envisage un fait passé comme un manque en
impliquant le TU et en s’attribuant un statut d’autorité sur lui: impliquer le TU revient,
ici, à le considérer comme responsable du manque qu’il ressent; s’attribuer un statut
d’autorité sur le TU revient à pouvoir le juger. C’est à dire, la force illocutionnaire pré-
sente dans l’ORDRE, le rapport de dominance du JE sur le TU continuent à exister,
mais cette dominance devient d’ordre moral : le JE juge le TU, le considère comme res-
ponsable de la non réalisation d’un fait passé qu’il ressent comme un manque – le JE
fait un Reproche au TU.»55

52
CASTELEIRO, 1961: 165, cit. por FONSECA (F.), 1994: 29.
53
Cf. FONSECA (F.), 1994: 36.
54
Id.: 33.
55
Id.: 33. Nesta descrição, a autora segue, em parte, estudo de Patrick Charaudeu, 1977: Les Conditions
Linguistiques d’une Analyse du Discours, tese mimeografada. Paris. Não tivemos acesso a este estudo,
mas cremos que a sua proposta de análise enunciativa do discurso será coincidente com a que propõe em
CHARAUDEAU, 1980: 39-49 e 1992: 569-619.
206

A autora refere-se, concretamente, ao acto da ordem, mas, a nosso ver, o mesmo


raciocínio aplica-se também aos actos do desejo, bastando substituir, para tal, os valores
próprios da injunção pelos da opção.

Epifânio da Silva Dias foi, segundo refere Fonseca (F.), um dos poucos gramáti-
cos que se interessaram pelos valores imperativos do imperfeito e do mais-que-perfeito
do conjuntivo. A autora transcreve duas passagens da Sintaxe Histórica Portuguesa, em
que o gramático se refere explicitamente ao assunto:

a) «Também têm sentido imperativo as orações do pretérito imperfeito ou mais-que-


-perfeito do conjuntivo coordenadas a uma oração condicional, correspondendo este
conjunt[iv]o a um período hipotético irreal, v. g. Fosses e verias (= se tivesses ido
verias)»

b) «Com sentido imperativo emprega-se o conjuntivo, no mais-que-perfeito ou no pre-


térito imperfeito, servindo de exprimir o que deveria ter-se feito (em contraposição
ao que se fez) – jussivo do passado».56

Classificar, todavia, estes enunciados como imperativos do passado é, para a


linguista, «une manière simpliste de résoudre le problème», porque, para se perceber
«cette affinité avec l’impératif, il faut remplacer la notion (paradoxal) d´“ordre passé”
par celle d’ordre frustré». Explica a autora que «la force illocutionnaire impérative sub-
siste, mais elle est inopérante parce que dirigée ver le passé» e, por isso, «il ne s’agit
plus d’un ORDRE mais d’un REPROCHE.» Por outro lado, é insuficiente analisar
enunciados como «Estudasses!» como frases hipotéticas elípticas. É que, de facto, se
por um lado se trata de frases incompletas e implicitamente condicionadas, «il y a
quelque chose de plus: c’est le rapport alocutif JE-TU et le statut d’autorité du JE vis à
vis du TU.» O locutor não se limita «à constater qu’il y a une condition qui n’a pas été
remplie e dont la conséquence désirable devient impossible: il en juge le TU respon-
sable et le lui reproche.»57
A definição pragmática que Fonseca (F.) dá do acto de censura («reproche»),
actualizado por enunciados como estes, é clara a este respeito: «o acto de censura resul-
ta, nestes empregos, de uma força ilocutória imperativa tornada inoperante e frustrada

56
DIAS, 1918: 202, cit. por FONSECA (F.), 1994: 35.
57
FONSECA (F.), 1994: 35.
207

por visar a modificação de uma situação passada e, portanto, já não susceptível de ser
modificada.»58
Fonseca (J.) retoma este estudo da linguista anterior para integrar aqueles usos
do imperfeito e mais-que-perfeito do conjuntivo, na descrição pragmática dos enuncia-
dos com sequências ‘p! e q’ e ‘p! ou q’, com «economia do segmento q».59 Embora
reconheça que Fonseca (F.) tratara já as «dimensões centrais» daqueles empregos,
«marcadamente típicos, ou mesmo exclusivos, do português», o linguista considera,
todavia, que alguns aspectos, de «grande relevância», «estão ausentes», ou não foram
«totalmente explicitados».60
Da análise complementar que Fonseca (J.) faz do estudo de Fonseca (F.), inte-
ressa-nos, de momento, face ao estudo que desenvolvemos, a noção de «discurso de
vítima», que aquelas formas verbais pressupõem, segundo o primeiro linguista. «Em
intervenção imediatamente anterior à enunciação das produções do tipo em referência61
[...], o Aloc deu conta», implícita ou explicitamente, ao Loc de que cometeu uma omis-
são, isto é, que não realizou «algo» que se apresenta, a posteriori, «como irreparável e
como irrecuperável», algo «de bom/positivo/vantajoso que (se) poderia ter “obtido” se
tal omissão não houvesse tido lugar.»62 Este «discurso de vítima», que tanto se encontra
na «ordem frustrada» («censura») como no «desejo frustrado» («lamento»), «indiciam
uma situação interactiva assimétrica: o enunciador do discurso de vítima (o Aloc) colo-
ca-se num lugar baixo, enquanto que o enunciador daquelas produções (o Loc) se posi-

58
Id.: 141. Referira-se que Casteleiro não aceita que o imperfeito e o mais-que-perfeito do conjuntivo
possam realizar a ordem, uma vez que este acto, porque «tem de ser executável, deduz-se que certas fra-
ses desiderativas do passado não podem ser consideradas como “ordens”». E apresenta as seguintes situa-
ções, com(o) exemplos:

«1. Um indivíduo queixa-se de o galo cantar a desoras; a irmã alvitra que se mate, mas ele censura-
-a por não o ter vendido ainda:
“- Olha, levásse-lo à feira”.

2. Uma rapariga critica um cavalheiro atrevido: “Para que se vem meter com quem está quedo?
Seguisse o seu caminho, ninguém o chamava cá”.» [CASTELEIRO, 1961: 32, cit. por FONSECA (F.),
1994: 31]

Repare-se que o «narrador» Casteleiro diz que o imperfeito de 1. (levásse-lo) é uma censura e que o
de 2. (seguisse) é uma crítica.
59
A primeira citação corresponde ao título do estudo que o autor inclui em FONSECA (J.), 1993: 149-
179. A segundo encontra-se em id.: 149.
60
Cf. id.: 170.
61
Enquanto Fonseca (F.) prefere enunciados construídos, como vimos, a partir do verbo estudar e fazer
[cf. FONSECA (F.), 1994: 30 e 36, respectivamente], Fonseca (J.) prefere-os a partir do verbo correr.
Além disso, analisa tais «produções discursivas» não só, por um lado, na segunda pessoa do singular,
como também terceira e primeira pessoa do singular, e, por outro, tanto nas suas formas afirmativas como
negativas. [Cf. FONSECA (J.), 1993: 169 e ss.]
62
Id.: 170-171.
208

ciona num lugar elevado, assumindo a dominância que lhe permite formular a censura
que nelas realiza.»63
Outro aspecto que Fonseca (J.) releva, a propósito destas formas, e ainda rela-
cionado com o «discurso de vítima», prende-se com o facto de que tais construções dis-
cursivas «contêm inequivocamente a expressão de um “irreal do passado”», para cuja
formulação habitual se emprega o condicional. De facto, a forma censória e crítica de
«Estudasses!» [para continuarmos com a forma de Fonseca (F.)] pode ser perfeitamente
parafraseável pela seguinte forma no condicional: «Se tivesses estudado, terias obtido
melhor resultado.»64
Cabe aqui anotar, em nosso entender, dois aspectos que nem Fonseca (F) nem
Fonseca (J.) referem, explicitamente, pelo menos. Além dum acto de censura ou crítica,
por omissão de acção favorável, num passado presumivelmente recente, que implicita
também actos de ordem ou de desejo frustrados, realizações semelhantes às que temos
vindo a analisar encerram também, por derivação ilocutória, actos de ordem ou de dese-
jo prospectivos, com valor de advertência ou de aviso, de natureza pedagógica, porque
destinados a prevenir/acautelar novos efeitos negativos por omissão de acções iguais ou
idênticas. Aliás, é sabido que, em tais co(n)textos, o locutor, porque, como se viu, inves-
tido de autoridade (real ou pelo menos consentida), frequentemente faz acompanhar
aqueles enunciados elípticos de um comentário/recomendação de evitação: «Estudasses!
/Tivesses estudado! E para a próxima já sabes o que tens a fazer, estuda(r)!»; ou sim-
plesmente: «... E para a próxima, já sabes o que tens a fazer!»; ou mais simplesmente:
«... E para a próxima, já sabes!»; ou ainda mais simplesmente, com entoação ascendente
suspensiva: «... Para a próxima...»
O verbo, que nestes casos fica subentendido, é que referencia a acção / compor-
tamento / atitude a realizar omitida e por isso censurada, mas que não pode / deve ser
omitida no futuro, para que os efeitos positivos não voltem a gorar-se, ou os negativos a
verificar-se. Continua-se no âmbito do discurso de vítima, proposto por Fonseca (J.),
onde a ordem frustrada e inoperante da censura evolui (digamos assim) para uma ordem
ou desejo prospectivos e operativos, onde os valores directivos, com formas explícitas
ou não do imperativo, de novo se encontram presentes. É nossa opinião, aliás, que será
mais este valor prospectivo e directivo, de acção / comportamento / atitude a não voltar

63
Id.: 173.
64
Cf. id.: 172.
209

a ser praticado ou omitido, que o locutor pretende, quando responde daquela(s) for-
ma(s), naquele(s) modo(s), à confissão/desabafo/queixa do outro colocutor.
Outro aspecto diz respeito aos processos discursivo-textuais de cortesia/des-
cortesia verbal. É evidente que o emprego das formas «Estudasses! / Tivesses estuda-
do!» são menos corteses do que a sua formulação condicionada, quer na formulação
suspensiva de apenas um segmento oracional («Se tivesses estudado...»), quer na formu-
lação completa(da) da subordinação («Se tivesses estudado, não terias chumbado!»,
formulação esta ainda mais cortês, por ser menos directa, e assim atenuar os aspectos
censórios e críticos acima referidos.
Para um outro aspecto gostaríamos ainda de chamar a atenção: o facto da corte-
sia verbal ser proporcional ao desenvolvimento textual do discurso em coconstrução.
Ou seja, as produções discursivo-textuais mais breves, mais concentradas, mais elípti-
cas, mais directas, são, em geral, menos corteses (e eventualmente mesmo descorteses),
que as produções discursivo-textuais mais desenvolvidas. Os circunlóquios, a indirec-
ção, os eufemismos, as divagações, as perífrases, os rodeios... inscrevem-se no conjunto
destas estratégias de cortesia negativa, através das quais, por abstenção e/ou compensa-
ção, se procura atenuar “o que de mal” ou “de menos bom”, real ou aparente, fizemos,
fazemos ou intendemos fazer ao nosso interlocutor, salvaguardando as suas faces, sem
perder as nossas. Sempre condicionados e/ou influenciados pelos co(n)textos, eviden-
temente.
A propósito, Carreira observa que «la distance interlocutive à laquelle corres-
pond le respect du “territoire” de l’autre, c’est-à-dire un haut degré de politesse,
s’accompagne d’un allongement du discours émis.»65 E Weinrich, citado por Carreira,
propõe, a este respeito, uma regra aplicável à cortesia verbal em geral:

«Lorsque de deux formes d’expression qui se présentent au choix dans une situation,
l’une présente des contours nets et l’autre des contours faibles, c’est toujours celle qui
est faiblement délimitée/contournée qui sera considérée comme la plus polie.»66

65
CARREIRA, 1995: 233.
66
Cit. por CARREIRA, 2001: 102. Cf. também 1995: 284 e 285, onde a autora aplica a observação de
Weinrich ao eixo semântico, a propósito das formas de tratamento, situando no pólo +Cortesia as realiza-
ções de «contour faible» e no pólo -Cortesia as realizações de «contour net». (Carreira observa, em nota,
que o estudo de Weinrich de que retirou esta citação se encontra em alemão e que a sua tradução «oral»
para Francês é da responsabilidade de Sibylle Sauerwein. [Id.: 102, nota 3]) Idêntica observação encontra-
-se também em WEINRICH, 1989: 77: «En règle générale les effets de politesse tels qu’ils se réalisent
dans la langue nous révèlent qu’une expression plus vague est plus polie, en particulier lorsqu’on
s’adresse à quelqu’un.»
210

Regressando aos valores semântico-pragmáticos do conjuntivo e do indicativo,


face ao imperativo, retomamos o estudo de Fonseca (F.) em que a linguista defende que
a preponderância do conjuntivo sobre o imperativo, na expressão da ordem, «est essen-
tiellement due au remplacement progressif de la deuxième personne par la troisième qui
s’est produit en portugais», passando esta a ser «la forme d’interpellation la plus cou-
rante».67
Como explicitaremos, a propósito da história do pronome pessoal vós forma de
tratamento,68 a expansão dos tratamentos de terceira pessoa é uma exigência, por um
lado, do nosso paradigma de voceamento e, por outro, de simplificação da complexa
flexão verbal do Português. A nosso ver, os portugueses, mesmo utilizando menos e
com menor frequência tratamentos tradicionais de elevada cortesia, ou de cortesia for-
malmente menos elevada, não deixam, por isso, de ser corteses, nas suas relações inter-
locutivas (e não só), sinal também de que as distâncias sociais e humanas (que não do
mesmo modo as económicas) se vão também diminuindo. Estas novas relações de cor-
tesia, ou de cortesia nova, tendem, por isso, a manifestar-se através de novos ou renova-
dos relacionemas, de que o recurso mais frequente a formas do conjuntivo, inclusive
quando nos dirigimos a vários que individualmente tuteamos, é um deles.
Este fenómeno sociolinguístico de preferência pelo conjuntivo pode ser compre-
endido também à luz destas alterações. As formas imperativas puras e duras (tipo come
e cala / comei e calai) que, como se sabe, são formas do indicativo, vêem a rudeza da
sua directividade atenuada através dos tempos do conjuntivo, cujos valores semântico-
-pragmáticos descrevemos. Convém, todavia, não esquecer que os efeitos perlocutórios
desejados pelos interlocutores são sempre condicionados pelo co(n)texto em que se
encontram e que (re)constroem, para além dos valores morfossintácticos construídos e
semânticos representados pelos verbos que os realizam. Não há, por outro lado, modos
verbais totalmente puros. Os seus valores semânticos e pragmáticos manifestam-se atra-
vés de formas temporais integradas em práticas discursivo-textuais. E os valores de cor-
tesia ou de descortesia que estes modos verbais podem expressar aí se inscrevem e
manifestam, consoante os co(n)textos de ocorrência.

67
FONSECA (F), 1994: 29.
68
Ver, infra, cap. XI, 1.
211

2. Os tempos

Os tempos verbais do indicativo e do conjuntivo, bem como as formas nominais


do infinitivo e do gerúndio, a par das construções passivas, ao servirem sobretudo como
formas substitutas do imperativo, expressam também valores de cortesia ou de descor-
tesia verbal. Essas formas ora podem atenuar ora reforçar actos directivos ou assertivos
que, consoante lesem, em maior ou menor grau, as faces dos interactantes, serão mais
ou menos descorteses ou corteses. Tais valores e funções são também reconhecidos e
anotados e/ou descritos por estilistas, gramáticos e linguistas, consoante as perspectivas
e os modelos de análise que seguem.

2.1. Tempos / modos do presente

2.1.1. Presente do conjuntivo

Os autores da Nova Gramática registam, apenas, que este tempo / modo pode
indicar um facto presente ou futuro.69 Todavia, ao descreverem os valores do conjunti-
vo, nas suas ocorrências independentes (orações absolutas, principais e coordenadas),
dão exemplos que expressam:

a) - «um desejo, um anelo» (v.g., «Chovam hinos de glória na tua alma!»70);


b) - «uma hipótese, uma concessão» (v.g., «Seja a minha agonia uma centelha / de gló-
ria!... »71):
c) - «uma ordem, uma proibição (na 3.ª pessoa)» (v.g., «Que levem tudo no caixão: / A
alma e o suporte!»72 / «Que não se apague este lume!»73);
d) - «uma exclamação denotadora de indignação» (v.g., «Raios partam a vida e quem
lá ande!»74)
e) - «uma dúvida (geralmente precedido do advérbio talvez)» (v.g., «Paula talvez lhe
telefonasse à noite.»75)76

69
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 471.
70
Os gramáticas referem ter recolhido o exemplo em Antero de Quental, mas não precisam a localização
na obra do poeta português.
71
Recolhido, pelos autores, em Olavo Bilac, 1904: Poesias. Rio de Janeiro: Guarnier; p.197.
72
Recolhido, pelos autores, em Miguel Torga, 19543: Cântico do Homem. Coimbra: s/ed.; p. 31.
73
Recolhido, pelos autores, em Augusto Meyer, 1957: Poesias. Rio de Janeiro: São José; p. 126.
74
Recolhido, pelos autores, em Fernando Pessoa, 1960: Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar; p.316.
75
Recolhido, pelos autores, em M. Judite de Carvalho, s/d: Paisagem sem Barcos. Lisboa: Arcádia; p. 34.
76
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 465.
212

Embora o último exemplo não apresente o verbo no presente do conjuntivo,


registámo-lo, uma vez que é possível também a sua realização com a forma verbal neste
tempo/modo: «Paula talvez lhe telefone à noite.»
É evidente que as formas verbais destas frases, desco(n)textualizadas como
estão, não nos permitem dizer que elas constituem, em si mesmas, construções corteses
ou descorteses. Por outro lado, convém referir que não são apenas as formas verbais,
consideradas isoladamente, que expressarão cortesia ou descortesia, bem como os valo-
res indicados pelos gramáticos, mas a frase no seu conjunto, isto é, no seu co(n)texto. A
título de exemplo, diga-se que se o desejo expresso na frase de a) pode ser considerado
cortês, o facto fica-se a dever não tanto à forma verbal, mas mais à orientação do efeito
da acção em benefício do alocutário. Se o locutor dissesse «Chovam hinos de glória na
minha alma!», estaríamos, possivelmente [falta o co(n)texto], perante uma descortesia,
uma vez que os processos de autoglorificação não são, no nosso diassistema cultural,
socialmente bem vistos, ou seja, corteses para quem ouve.
É de referir que nem sempre é fácil distinguir, sobretudo na ausência de
co(n)texto, uma forma do presente do conjuntivo duma mesma forma com valor de
imperativo, quando não precedidas de que. Segundo os autores da Nova Gramática,
quando tal se verifica, o imperativo exprime ordem ou exortação, enquanto o presente
do conjuntivo exprime desejo ou anelo. Por exemplo, nas frases «Caiam de bruços!» e
«Caiam sobre vós as bênçãos divinas!», a forma «Caiam» seria, respectivamente,
imperativo e presente do conjuntivo.77 A propósito das orações que, como as acima
apresentadas, começam por que, anotam que esta «partícula» é, em tais casos, «de clas-
sificação dificíl», uma vez que o seu valor «é mais afectivo do que lógico», descreven-
do-a, por isso, como «uma espécie de prefixo conjuncional, peculiar ao conjuntivo.»78
Ao descreverem, porém, as orações subordinadas substantivas, de que o conjun-
tivo «é por excelência o modo», Cunha & Cintra registam que ele se usa, «geralmente»,
quando a oração principal exprime, entre outros valores, «a vontade (nos matizes que
vão do comando ao desejo) com referência ao facto de que se fala».79 E um dos dois
exemplos traz o verbo no presente do conjuntivo: «Não quero que ele me julgue sem
pudor, uma mulher de prendas desoladas, nada tendo a defender.»80 Trata-se de exem-
plo que é a manifestação dum desejo a um alocutário, a propósito dum terceiro, possi-

77
Id.: 474.
78
Id.: 466.
79
Id., ibid.
80
Recolhido, pelos autores, em N. Piñon, 1980: O Calor das Coisas. R. de Janeiro: Nova Fronteira; p. 466.
213

velmente ausente. Mas pode ser também uma forma indirecta do locutor dizer, delocuti-
vamente, ao alocutário: «Não me julgue sem pudor ...» Estaríamos, neste caso, perante
uma forma atenuada e, por isso, cortês de realização dum acto directivo (eventualmente
um pedido, uma súplica, uma advertência...)
Mira Mateus et al. registam, por seu turno, que o presente do conjuntivo, com
valor modal de futuro, se utiliza na expressão de estados de coisas futuros, «sempre que
a modalidade em que é assertada uma dada proposição p ocorre explicitamente, quer
sob a forma de é ADJ que p [como em “É necessário que ele venha amanhã à reu-
nião.”], quer sob a forma x V que p, em que o Verbo seja um verbo ilocutório de ordem
ou de pedido [como em “Ordeno-te que te cales!” e em “Peço-te que não deixes de vir à
reunião.”], ou à classe dos verbos criadores de universos de referências do tipo desejar,
esperar [como em “Espero que te cures depressa.”]».81 Cabe observar que a estrutura é
ADJ que p, dirigida a um ou mais ALOC (para utilizarmos a representação seguida
pelas autoras), serve também para reforçar enunciados imperativos e actos directivos,
como é o caso, em co(n)texto adequado, de «É necessário que venhas/venham amanhã à
reunião.» Por outro lado, os verbos criadores de universos de referência expressam e
intensificam, perfomativamente, a vontade (querer) do locutor em relação a um estado
de coisas não factual, mas desejável que se verifique.
Tais construções discursivo-textuais integram-se, por isso, no conjunto dos actos
directivos, na medida em que todas elas se apresentam dependentes da vontade do locu-
tor, ainda que os efeitos perlocutórios de uns sejam favoráveis para o próprio locutor e
outros para o(s) alocutário(s).

2.1.2. Presente do indicativo

Serve este tempo/modo, segundo Cunha & Cintra, para substituir o imperativo,
em frases como «O senhor traz-me o dinheiro amanhã», em vez de «Traga-me o
dinheiro amanhã», atenuando-se, desta forma, «a rudeza da forma imperativa».82 Já ao
explicitarem os «valores afectivos» do presente do indicativo, os autores haviam referi-

81
MATEUS et al., 19892 : 88-89.
82
CUNHA & CINTRA, 1984: 477. Embora os autores refiram, a propósito de outros processos, a impor-
tância do contexto e da entoação, estes factores, além de outros, podem servir também para intensificar a
forma imperativa da referida frase. Repare-se na realização da mesma, em tom exaltado: «O senhor traz-
me o dinheiro amanhã!» Tal imperatividade tornar-se-á ainda mais clara, se for construída como segue:
«O senhor traz-me o dinheiro amanhã, ouviu?!» O elemento de natureza fática e interlocutória
(«ouviu?») reforça, claramente, a exigência do enunciador, tornando-a de pouca cortesia.
214

do que este tempo é utilizado como «forma delicada de linguagem», denotando «intimi-
dade entre pessoas», na realização dum pedido, quando, «logicamente, deveria sê-lo no
imperativo ou no futuro». Por exemplo, com «Você resolve-me isto amanhã», em vez
«Resolva-me isto amanhã.»83
Mais uma vez cabe observar que não é apenas a forma verbal que atenua a exi-
gência, mas a sua realização conjugada com o adverbial de tempo amanhã. Também
aqui temos uma metáfora temporal (ver, infra, 2.3.1.): digo, neste momento, que consin-
to que faça(s) amanhã o que devia(s) fazer hoje.
Carreira recorda que o imperativo não é a única forma para, em Português, se
exprimir um acto de injunção, para acrescentar, de seguida, que «poderá sê-lo também
pelo presente [...] do indicativo», reforçando-se, assim, uma ordem dada, «já que o acto
perlocutório é actualizado no tempo presente».84
Outro processo de substituição de formas imperativas e, por isso, eventualmente
descorteses, registadas pelos autores da Nova Gramática, consiste no emprego do pre-
sente do indicativo do verbo querer, em frases interrogativas, com o verbo que «expri-
me a ordem», no infinitivo. Assim, uma ordem, como «Levante-se!», pode ser substi-
tuída por «Quer levantar-se?»85 Os autores não referem, neste caso, se se trata de
reforço ou atenuação da ordem. Contudo, ao descreverem os valores deste tempo, já
haviam referido que esta estrutura se emprega para «atenuar a rudeza do tom imperati-
vo», ou seja, «Quer sentar-se, minha senhora?...» substitui «Sente-se!»86
Este processo de atenuação dum acto directivo (que não apenas da ordem, embo-
ra o primeiro exemplo dê a entender tratar-se duma injunção indirecta) inscreve-se nos
processos de modalização.87 Nos exemplos acima dados, o acto directivo a realizar pelo
alocutário [mesmo sem co(n)textualização] sofre uma atenuação dos seus eventuais
valores impositivos, ao ser apresentado, por um lado, na dependência da vontade (que-
rer) do alocutário e, por outro, ao ser formulado como uma pergunta. Além disso, no
segundo exemplo, o acto a realizar pelo alocutário é, em princípio [dada a ausência de
co(n)texto], favorável ao próprio alocutário, sendo ainda acompanhado por uma forma

83
Id.: 449.
84
CARREIRA, 2001: 86 e 1995: 228. A autora observa, na mesma passagem, que idênticos valores
injuntivos podem ser realizados pelo futuro do indicativo.
85
CUNHA & CINTRA, 1984: 478.
86
Id.: 450. Este último exemplo é retirado de Camilo Castelo Branco, 18622: Scenas Contemporâneas.
Porto: Cruz Coutinho; p. 198.
87
A propósito do verbo de modalidade querer, regista Weinrich que ele serve «souvent les règles de la
courtoisie, et en particulier lorsqu’il est utilisé dans une forme atténuée par l’emploi des temps du récit
(souvent avec bien)», como em «je voudrais bien vous poser une question». [WEINRICH, 1989 : 193]
215

de tratamento cortês - minha senhora - elemento que atenua ainda mais o acto, que
podemos classificar [na ausência de co(n)texto] de sugestão ou convite.
Trata-se, conforme explica Carreira, tanto num caso como noutro, dum processo
de indirecção discursiva que consiste «[dans] un questionnement quant au [...] VOU-
LOIR de l’allocutaire». Em ambos os casos, porém, há «[un] déplacement de la source
déontique», do locutor para o alocutário. No primeiro caso, de natureza alética, ao pas-
sar a obrigatoriedade de levantar para a dependência da vontade do alocutário, que
reverte, todavia, eventualmente, a favor do locutor. No segundo caso, de natureza axio-
lógica, porque o acto a realizar passa a depender da vontade do alocutário, tal como o
seu efeito, em princípio.
Estamos perante, portanto, um processo de indirecção discursiva, que a autora
explica como segue, apesar da citação dizer respeito sobretudo à realização indirecta e
atenuada dum acto de ordem:

«Le verbe modal querer étant par nature prospectif, garde ce trait même lorsqu’il se
présente comme subissant un injonction. C’est son sémantisme prospectif qui le rend
apte à l’atténuation d’un ordre, d’autant plus que la visée de l’injonction transforme
l’allocutaire en source déontique de son propre FAIRE / DIRE.»88

Cria-se, assim, uma distância entre os interactantes, através da qual aquele que
formula o acto directivo procura expressar o seu respeito pelo «território» (face negati-
va) do outro. Nesta ordem de ideias, tais actos integram-se nos processos de cortesia
negativa.
Ainda como processo de substituição das formas imperativas com o verbo que-
rer e outros que marcam «a vontade do locutor», no presente do indicativo, Cunha &
Cintra registam que, com o fim de «fazer sentir a intervenção do indivíduo que fala», é
costume subordinar a tais verbos o verbo denotador da acção a cumprir, como em
«Quero que retornes ao Colégio.», em vez de «Retorna ao Colégio.» e «Ordeno-te
que me respondas.», por «Responde-me.»89 Os autores não situam estes casos no con-
junto das formas de reforço ou intensificação do acto directivo. Em nosso entender,
porém, é o que se passa, de facto, quando o co(n)texto é adequado. O locutor procura

88
CARREIRA, 1995: 232. A autora inclui também o verbo modal poder («POUVOIR») na descrição da
modalidade deôntica.
89
CUNHA & CINTRA, 1984: 478.
216

fazer com que o seu alocutário faça ou diga alguma coisa, explicitando, directa e per-
formativamente, a sua vontade («Quero», «Ordeno-te»). Assim sendo, talvez estejamos
[dada a ausência de co(n)texto], em presença de actos directivos pouco corteses ou
mesmo descorteses.
Convém referir, contudo, que não é pelo facto do locutor dizer, explicitamente,
«Ordeno-te que ...», que o acto directivo realizado é, só por isso, uma ordem. A este
propósito é de notar, ainda, que se encontram descrições e definições da ordem que não
a distinguem, semântica e pragmaticamente, com suficiente clareza, na sua realização
directa como indirecta, dos outros actos directivos, nomeadamente, do desejo, pedido,
conselho, aviso, instrução, etc., como veremos, no capítulo seguinte.
No âmbito ainda das estruturas perifrásticas, os autores da Nova Gramática
observam: «Ressalta sobremaneira o sentido do verbo a perífrase formada de ir (no
IMPERATIVO) e do verbo principal (no INFINITIVO)».90 Os exemplos apresentados
(v.g., «Não se vá afogar, moço.»91) são frases negativas, na variante brasileira, que uti-
lizam formas imperativas supletivas do presente do conjuntivo. Encontram-se, porém,
frases, em Português europeu, com ir nas formas próprias do imperativo + infinitivo do
verbo principal, com realização positiva. Exemplos: «Vai dar uma volta!» / «Vai desli-
gar o computador!» / «Ide lavar as mãos!» / «Vamos jantar!»
Além disso, encontramos também formas imperativas negativas, com igual
estrutura, mas com o verbo ir no presente do indicativo, em vez de formas imperativas
supletivas, como em «Não vais brincar, pois não?!», por «Não brinques!», ou «Não
ides cantar agora!», por «Não canteis/cantem agora!» Tratar-se-á, evidentemente, de
actos pouco corteses... mas, de novo, temos a falta do co(n)texto.
Cabe observar, a propósito, que Cunha & Cintra afirmam que, por não ter
«nenhuma forma própria», o imperativo negativo é «integralmente suprido pelo presen-
te do conjuntivo.»92 De facto, nem sempre assim acontece. Como observa Fonseca (F.),
referindo-se à ordem, o emprego do conjuntivo não se limita, em Português, «aux ordres
négatifs: il est très répandu aussi dans les ordres affirmatifs s’avérant être le mode le
plus employé comme configuration linguistique des actes injonctifs.»93 Não faltam,
aliás, situações em que o imperativo negativo, mesmo nas ordens, ou melhor, sobretudo
em actos directivos, com força injuntiva forte, é realizado por formas do presente do

90
Id., ibid.
91
Colhido pelos autores em Aníbal Machado, 1965: João Ternura. Rio de Janeiro: J. Olympio; p. 72.
92
CUNHA & CINTRA, 1984: 474.
93
FONSECA (F.), 1994: 30.
217

indicativo, como se acaba de ver. Mas podemos acrescentar mais estes, quando um pai
diz a um filho que não quer obedecer-lhe: «Não fazes isso, ouviste?» / «Não sais, pron-
to!» / «Não chegas mais àquela hora!» É evidente que construções deste tipo, formula-
das em co(n)textos e com entoações adequadas, reforçam, em maior ou menor grau, a
natureza directiva de tais enunciados, tornando-as, eventualmente, mais descorteses.
Mesmo que não se trate de ordens propriamente ditas, como se há-de ver.
Os autores da Nova Gramática encontram, por outro lado, nas perífrases do ver-
bo ir no presente do indicativo + infinitivo do verbo principal, formas substitutas do
futuro do presente simples, «para indicar uma acção futura imediata», como em
94
«Vamos entrar no mar.» Os autores não referem, contudo, os valores de natureza
imperativa que estas formas, como vimos acima, também podem expressar. É de referir,
porém, a observação feita pelo autores, segundo a qual, o uso da primeira pessoa do
plural (do presente do conjuntivo, subentende-se), como forma imperativa, «denota
estar o indivíduo que fala disposto a associar-se ao cumprimento da ordem, conselho ou
súplica que dirige aos outros.»95 Em nosso entender, tais valores também se podem
encontrar, segundo o co(n)texto, na primeira pessoa do plural do presente do indicativo,
como na pergunta «Vamos cuidar deste coração?», feita/dita pelo médico ao doente.
Claro que, neste caso, a forma verbal e a pergunta fazem com que esta ordem, indirec-
tamente formulada (o que o médico diz é «Tenha cuidado com / Cuide do coração!»), se
enquadre também na estratégia cortês do nós inclusivo, tendendo a criar uma relação de
maior proximidade e solidariedade entre médico e doente.
Como substituto, desta vez, do futuro do indicativo,96 encontram-se, «na conver-
sação», segundo os mesmos gramáticos, perífrases verbais constituídas pelo presente do
indicativo do verbo ter + preposição de + infinitivo do verbo principal, «para indicar
uma acção futura de carácter obrigatório, independente, pois, da vontade do sujeito»97.
Em nosso entender, porém, face aos exemplos apresentados, mesmo sem os respectivos
co(n)textos, não nos parece que tal acção futura obrigatória se apresente assim tão inde-
pendente da vontade do sujeito e que não possa ser, por isso, incluída, também, no con-
junto das formas substitutas do imperativo.

94
CUNHA & CINTRA, 1984: 459. A frase foi retirada, pelos autores, de Adonias Filho, 1971: Luanda,
Beira, Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; p. 113.
95
CUNHA & CINTRA, 1984: 474.
96
Os autores designam este tempo, segu(i)ndo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, por «futuro do
presente simples», distinguindo-o, assim, do «futuro do pretérito simples», a que, segu(i)ndo a Nomencla-
tura Gramatical Portuguesa, chamamos condicional. [Cf. id.: 462, observação 3.ª]
97
Id.: 458 e 459.
218

Um dos exemplos apresentados é «Temos de resolver isso em primeiro


lugar.»98 Não sabemos quem é o locutor deste enunciado, nem quem é (são) o(s) seu(s)
alocutário(s), nem onde, nem quando, nem como, nem para quê foi proferida. Reconhe-
ce-se, apenas, que o locutor se dirige a um ou mais indivíduos, a quem aconselha (no
mínimo) que uma acção terá de ser feita antes de outra, acção que o(s) segundo(s) se
proporia(m) ou desejaria(m) fazer em primeiro lugar. Se o efeito perlocutório de
«Temos de resolver isso em primeiro lugar» se verificou e foi aceite, é porque o locutor
tinha (algum) ascendente sobre aquele(s) a quem se dirige e a sua vontade terá sido
cumprida. Ora, se a sua vontade foi cumprida, temos que o enunciado pode ser parafra-
seado por uma das imperativas seguintes: «Resolvamos isso em primeiro lugar» /
«Resolvemos isso em primeiro lugar». Os próprios autores reconheceriam, aliás, esta
interpretação, uma vez que o locutor mostra estar disposto a associar-se ao cumprimento
da ordem, conselho ou súplica que dirige ao(s) outro(s). Além disso, mantendo-se a
mesma hipótese, a primeira pessoa do plural pode ser apenas uma forma indirecta do
locutor dar uma ordem - «Resolva(m) / resolve(i) isso em primeiro lugar» - sem que ele
participe, de facto, na acção. Trata-se de mais um nós inclusivo, expresso pela desinên-
cia verbal, uma forma cortês e solidária de atenuação do acto injuntivo, mas de intensi-
ficação ao nível do efeito perlocutório desejado.
Henriqueta Costa Campos observa que, a substituição do modal dever pelo semi-
-modal ter de ou ter que99 se processa «quando o enunciador-locutor pretende exprimir
um valor [modal] mais forte», ou «quando o enunciador não se assume como origem da
obrigação, nem como solidário com ela, mas apenas como seu transmissor».100 Embora
a ausência de co(n)texto não no-lo permita afirmar categoricamente, cremos que, ao
dizer-se «Temos de resolver isso em primeiro lugar», parece que se está perante «a
constatação duma necessidade imposta por leis», que o próprio locutor não controla.
Intensifica-se, assim, a obrigatoriedade e a prioridade da acção a realizar, cuja formulação
reforçada se apresenta como «obrigação constatada – e não construída – em Sit0, tendo,

98
Pepetela, 1982: Mayombe. São Paulo: Ática; p. 130.
99
A autora observa, em nota, que as diferenças entre TER DE e TER QUE serão de «natureza sócio-cul-
tural», sem influências «no comportamento sintáctico-semântico destes marcadores. TER QUE – acres-
centa – parece ser apenas uma variante estilística de TER DE, já que lhe posso atribuir o mesmo valor
modal.» [CAMPOS, 1998: 130, nota 16]
100
Id.: 131.
219

portanto, uma origem que é exterior ao enunciador-locutor».101 Uma estratégia de poli-


fonia, portanto, dizemos nós, e de cortesia negativa.
Enunciados como estes dão origem, por isso, a valores aparentemente contradi-
tórios: ao mesmo tempo que se reforça o acto ilocutório injuntivo, apresentando a acção
a realizar como obrigatória, necessária e prioritária, o locutor atenua a sua formulação,
cortesmente, como se se tratasse duma exigência de todos, dele e do(s) outro(s), mas
para que, no fim de contas, seja feito, de facto, o que há a fazer, como ele quer (e man-
da).
Cabe observar, por isso, que «Temos de resolver isso em primeiro lugar» nos
remete para uma construção modal deôntica, lexicalizada na forma Temos de..., que lhe
confere um valor de obrigatoriedade, associada à modalidade alética, porque a acção a
executar é apresentada também como necessária.102 A entender-se tal enunciado como
acto directivo, a executar apenas pelo(s) alocutário(s), estaremos perante uma «desloca-
ção da fonte deôntica», desta vez, porém, inversa à acima referida, a propósito do verbo
modal querer, ou seja do alocutário para (também) o locutor. Por uma questão de corte-
sia, evidentemente, ou melhor, por uma questão de cortesia estratégica.

2.2.Tempos / modos do futuro

2.2.1. Futuro do indicativo

É outro tempo / modo cujas formas Cunha & Cintra registam como podendo
substituir também o imperativo, como em «Tu irás comigo», por «Vem comigo» /
«Não matarás», por «Não mates». Com estes enunciados, «atenuamos ou reforçamos
o carácter imperativo», consoante «a entoação que lhes emprestarmos».103 Ao descreve-
rem o «futuro do presente simples», estes autores registam que este tempo/modo se

101
Id.: 133. A propósito dos valores da forma ter de / ter que, a autora cita Epifânio da Silva Dias e Said
Ali. O primeiro anota: «Com o verbo ter e também haver (nos tempos simples) e o infinitivo precedido
da preposição de, exprime-se que o praticar a acção é necessidade imposta pelas leis da natureza (ou da
lógica), ou pelas circunstâncias, ou conveniências, ou pela lei moral». O segundo observa que a forma ter
de em relação à forma haver tem «a vantagem de exprimir com mais precisão a necessidade imperiosa, o
acto a praticar independentemente da vontade.» [Cf. id.: 131-132] A primeira citação foi retirada de
DIAS, E. da S., [1918] 19705: Syntaxe Histórica Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora; p. 248; a
segunda citação foi retirada de ALI, M. S. [1908] 19666: Dificuldades da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Livraria Académica; p. 118.
102
Sobre os valores modais de ter de / ter que, cf. CARREIRA, 2001: 112 e CAMPOS, 1998: 125-135,
particularmente 131-135.
103
CUNHA & CINTRA, 1984: 477. Cuesta & Luz também registam que, tanto no Português como no
Espanhol, se usa o futuro «com valor de imperativo». [CUESTA & LUZ, 1971: 525]
220

emprega também «como forma polida de presente», como em «-E que vou eu fazer para
Angola, não me dirá?»104
O segmento não me dirá?, embora pergunta retórica, tem, a nosso ver, um claro
valor imperativo (que os autores, todavia, não referem), como se pode verificar, facil-
mente, pela sua paráfrase afirmativa diga-me. Mas também de discórdia, pois o locutor
[apesar da ausência do co(n)texto] parece não concordar com o facto de ser mandado ou
aconselhado a ir para Angola. Em contrapartida, anotam os gramáticos que o futuro do
presente simples se emprega «como expressão de uma súplica, de um desejo, de uma
ordem, caso em que o tom de voz pode atenuar ou reforçar o carácter imperativo»,105
como na ordem «Honrarás pai e mãe», cujos valores imperativos são semelhantes ao
exemplo «Não matarás», acima descritos.
Vilela anota que o futuro do indicativo, por exemplo em «Levantar-nos-emos
amanhã às dez horas. Entendido?», pode exprimir uma ordem. Acrescenta, depois, que,
«além do sema “futuridade”», se encontram, ao nível do texto («textualmente», escreve)
outros valores, «como, por exemplo, a “atenuação” ou “modalização” de uma
“ordem”». É o caso de «Far-me-á o favor de abandonar imediatamente a sala!» Ocor-
rências como «Não matarás» são consideradas, pelo autor, como «ordem de natureza
moral intemporal».106 A sua localização num futuro indefinido, formulada por um EU
anónimo e dirigida a um TU igualmente anónimo, numa situação de enunciação situada
em T0, é que torna enunciados como estes menos descorteses, porque não lesam nem a
face do(s) alocutário(s) nem do locutor.
Carreira mostra que o futuro do indicativo serve para reforçar a formulação indi-
recta do acto da ordem, quando ocorre numa pressequência do tipo «Será que posso
pedir-lhe / dar-lhe um conselho...?» Deste modo, o efeito prospectivo do enunciado é
intensificado. O acto de ordem é indirectamente formulado e por isso atenuado, como se
fosse um pedido ou um conselho, porque os actos a realizar são apresentados «comme
étant postérieurs à l’acceptation par le TU du questionnement du JE.» Além disso,
observa a autora que, em tais processos de indirecção do acto da ordem, se verifica tam-
bém uma desactualização modal, mais precisamente uma sobremodalização do incerto:
«Dans “Será que posso...?”, le valeur prospective est exprimé par: - le futur d’un verbe

104
CUNHA & CINTRA, 1984: 457. Exemplo colhido, pelos autores, em Joaquim Paço d’Arcos, Crónica
da Vida Lisboeta, p. 699.
105
Id.: 458.
106
VILELA; 1995: 128 e 133.
221

d’existence (ser) – l’interrogation et le verbe modal poder qui s’applique à JE, source
deôntique.»107
Estes processos de indirecção discursiva e de desactualização temporal e modal
constituem, por outro lado, estratégias de cortesia negativa, ou seja, meios linguísticos
de atenuação, por substituição e/ou por compensação, de actos directivos: «modulée par
une intention de politesse, une injonction subit des procédés de modalisation, parmi
lesquels les jeux d’indirection illocutoire et de desactualisation modale».108
Referimos, acima, ocorrências com valores de maior ou menor imperatividade,
em construções onde o presente do indicativo substitui o futuro do indicativo. A este
propósito, Cunha & Cintra chamam a atenção para os «efeitos estilísticos opositivos» de
tais construções: «se o emprego do presente pelo futuro empresta ao facto a ideia de
certeza, o uso do futuro pelo presente provoca efeito contrário, por transformar o certo
em possível.»109
Campos regista, a propósito desta observação, que este é um dos valores modais
do futuro, o de «suposição» ou «dubitativo», através do qual, segundo explica, o locutor
não pode ou não quer assumir a validação da relação predicativa modalizada.110 E cita,
em nota, Said Ali, que se refere a um modo de inquirir polido e cauteloso. O gramático
brasileiro distingue, no «futuro problemático» (outra possível designação para o «futuro
de suposição»), o caso particular do «futuro diplomático», que descreve assim: «servir-
me-ei de um modo de inquirir polido e em todo o caso cauteloso. Revelarei a minha
curiosidade, e, embora desejoso de informação, finjo não esperar que me respon-
dam».111 Segundo Campos, a explicação que o gramático brasileiro atribui a cada um
destes usos «identifica as operações que lhes são subjacentes e que consistem, funda-
mentalmente, na deslocação de um “facto da actualidade para uma época vindoura”,
seja esse facto objecto de uma asserção ou de uma interrogação.»112 Além deste, Cam-
pos descreve ainda o «futuro de certeza», que «corresponde à construção, por parte do
locutor, da certeza de que um determinado estado de coisas terá lugar, quer essa certeza
tenha origem na própria vontade do locutor, quer ela se baseie numa crença e/ou resig-
nação perante as imposições de uma força exterior.»
107
CARREIRA, 2001: 107. Cf. também 1995: 233-234.
108
CARREIRA, 2001: 108.
109
CUNHA & CINTRA, 1984: 458.
110
Cf. CAMPOS, 1998: 243. A autora regista outras designações para este valor do futuro, entre gramáti-
cos e linguistas portugueses e estrangeiros. [Cf. id.: 250]
111
ALI, 19717: 319, cit. por CAMPOS, 1998: 243. Para Said Ali há «futuro problemático», «quando se
tem dúvida ou incerteza sobre fatos ou sucessos próprios do tempo presente».
112
CAMPOS, 1998: 243.
222

A linguista conclui que, ao contrário do «futuro de suposição», o valor de certe-


za, «ao combinar-se com o verbo que constitui o predicado da relação predicativa,
reforça o valor assertivo do enunciado» que, todavia, corresponde «a um valor imperati-
vo». Por exemplo, em e a propósito de «Farás o que te digo», observa que se trata duma
«situação de enunciação em que o futuro substitui a forma do imperativo, a certeza, em
T0, da realização em T2 de um estado de coisas que é apresentado como tal ao interlocu-
tor». E explica:

«Há, com efeito, a acentuação da relação intersubjectiva locutor-interlocutor, pela


minimização do papel deste último. Formalmente, nada é pedido ou imposto ao interlo-
cutor, ao contrário do que se passa com o imperativo. Tudo está, de antemão, decidido,
sem que, nessa decisão, o interlocutor seja chamado, sequer, a intervir.»113

É evidente que, neste caso, tal enunciado se situa no âmbito dos fenómenos ver-
bais da descortesia, mesmo que a relação assimétrica de lugares entre os interlocutores
permita ao locutor falar assim.
A propósito dos «valores particulares» que o «futuro de certeza» pode exprimir,
a autora cita novamente Ali, que chama a este tempo «futuro compulsivo», em que
reconhece valor de imperativo e por isso ser também seu substituto, tanto com valor de
«categórico» como apenas de «sugestivo», de acordo, sempre, com a entoação. Segundo
o gramático brasileiro, o futuro categórico «exprime uma ordem dada no tempo presen-
te, contando-se que será cumprida.» Neste caso, trata-se, em nosso entender, de um
reforço da ordem, uma vez que, como explica, estamos perante uma «linguagem mais
enérgica que o modo imperativo, pois que não faz o mínimo caso da vontade do indiví-
duo com quem se fala.» O futuro sugestivo «tem sobre o imperativo comum a vantagem
de dar a perceber que se conta com a realização vindoura da acção, que esta realização é
uma quase profecia, mas que não se entende senão como simples conselho, pedido ou
sugestão.»114 Trata-se duma estratégia de cortesia negativa, acrescentamos nós, de ate-
nuação duma ordem. Estamos, novamente, no âmbito dos processos discursivos de indi-
recção, pois que se formula uma ordem, por atenuação, como se fosse um simples con-
selho, pedido ou sugestão.

113
CAMPOS, 1998: 244 e 245-246. Também para este valor a autora regista outras designações do futu-
ro, quer de autores portugueses, quer de estrangeiros, as quais, «consoante os contextos, será designado
por futuro volitivo, futuro compulsivo, futuro profético, futuro gnómico.» [Id.: 250]
114
ALI, 19717: 317-318, cit. por CAMPOS, 1998: 244.
223

Por último, Campos regista que o futuro tem ainda um valor modal de «atenua-
ção», cuja descrição retoma de Robert Martin:

«Futur d’atténuation: Je vous avouerait que ..., Je vous dirai que ... Ce futur n’est pos-
sible qu’avec un verbe en emploi performatif. Il donne à l’interlocuteur l’illusion qu’il
peut faire obstacle à l’énonciation.»115

A autora, por sua vez, recorda que este valor modal do futuro de atenuação cor-
responde àquele que, como vimos acima, Cunha & Cintra designam como «forma poli-
da de presente».

«A explicação deste valor do futuro é a mesma que para o futuro de suposição: embora
construído por S0 em T0, o acontecimento é projectado num tempo T1, posterior a T0,
onde é/será assumido por um locutor S1, numa situação de enunciação Sit1 construída
como distinta de Sit0. Esta dissociação abstracta entre enunciador S0 e locutor S1, defi-
nindo situações de enunciação distintas, marca a distanciação do enunciador em relação
a uma asserção da qual o responsável é S1 e não ele próprio. Atenua-se assim a tensão
modal entre S0 e o seu coenunciador.» 116

E aliviar tal tensão é, acrescentamos nós, uma forma de, polifonicamente de


novo, se estabelecer ou manter uma boa relação interpessoal, numa dada interacção ver-
bal, ou seja, respeitar a(s) face(s) do alocutário, isto é, utilizar estratégias de cortesia
negativa. A propósito deste e outros processos de atenuação por modalização, explica
Kerbrat-Orecchioni que, quando os modalizadores «accompagnent une assertion, instau-
rent une certaine distance entre le sujet d’énonciation et le contenu de l’énoncé, et par là
même lui donnent des allures moins péremptoires, donc plus polies», uma vez que «au
lieu d’asséner des vérités», a modalização «se présente comme laissant à autrui toute
liberté de conserver son quant-à-soi».117 Observa a autora de La Conversation que há,

115
MARTIN, 1983: 128, cit. por CAMPOS 1998: 246. Rober Martin descreve o funcionamento do «futu-
ro de cortesia» a partir duma forma interrogativa: «Ce sera tout, Madame? Je fais comme si, par une
délicatesse toute commune, je ne prenais pas encore la responsabilité d’une telle question, restant à
l’entière disposition de mon aimable clientèle.» [MARTIN, 1983 : 207]
116
CAMPOS, 1998: 246.
117
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57-58 e 1992: 221. Vem a propósito citar Michel Lacroix: «Aucune
société n’a porté au même degré que la nôtre la dissemblance des individus. Les opinions, les valeurs, les
choix moraux, les styles de vie, les convictions religieuses et politiques, les éducations varient à l’infini.
Dans nos sociétés, deux personnes qui dialoguent ont de fortes chances d’être en désaccord sur
224

em francês, uma espécie de «futuro de cortesia», cuja descrição retoma de Maurice


Grevisse, para quem o futuro simples «prend la valeur d’un présent pour atténuer la
pensée et marquer une nuance d’extrême politesse. En recourant au futur on semble
donner l’illusion que le fait présenté n’est pas encore en voie de s’accomplir».118
Admitindo ser possível aproximar o valor de suposição do valor de atenuação,
Campos observa, todavia, que no futuro de suposição, «é a validação da relação predica-
tiva que é distanciada», enquanto que no futuro de atenuação, «é a própria enunciação
que se projecta, abstractamente, num tempo T1 posterior a T0.» Por outro lado, o primei-
ro «corresponde a um valor não assertivo», enquanto o segundo «marca um valor de
asserção estrita.» Como teste distintivo, a autora faz notar que, no futuro de suposição, a
forma, por exemplo, haverá, pode ser substituída por talvez haja, enquanto que, no futu-
ro de atenuação, a forma, por exemplo, direi, não pode ser substituída por talvez diga.
Neste caso, ao dizer Direi que..., «o enunciador-locutor está efectivamente a dizer que
...»119 Exemplificando, nos enunciados seguintes, haverá pode ser substituído por talvez
haja, mas Direi não admite a substituição por Talvez diga:

«Ao destruir tal poema (...), Antero haverá [/talvez haja] imaginado ter-se enfim liber-
tado do peso do modo herculiano.»120

«Direi [/*Talvez diga] apenas que há uma outra razão para nos desinteressarmos dos
“grandes problemas” da vida nacional: a consciência muito nítida de que não atrasa nem
adianta dar-lhes atenção.»121

De facto, ao futuro de atenuação corresponde «um valor de asserção e marca o


enfraquecimento da tensão intersujectiva criada pela enunciação.»122 Direi é aqui, evi-
dentemente, como diriam Cunha & Cintra, «uma forma polida de presente»,123 como

d’innombrables sujets, et la probabilité de heurter les convictions de l’interlocuteur est très élevée.» E
conclui: «Il est donc impératif d’accepter d’exprimer ses opinions sous une forme atténuée, pour per-
mettre aux idées de chacun de coexister pacifiquement. Tel est le rôle de la délicatesse.» [LACROIX,
1990: 339-340]
118
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 206. A autora cita a edição de Le bom usage, de 1964, cuja
primeira edição data de 1936. Na nova edição da obra de Maurice Grevisse, revista e actualizada por
André Goosse, apresenta uma descrição mais reduzida: «Le futur simple peut s’employer au lieu de
l’indicatif présent, par politesse, pour atténuer: // Je vous DEMANDERAI une bienveillante attention.»
[GREVISSE, 199313: 1257]
119
CAMPOS, 1998: 247.
120
A frase foi colhida, pela autora, em Joel Serrão, Jornal de Letras, 07.07.81.
121
A frase foi colhida, pela autora, em Augusto Abelaira, O jornal 18.12.81.
122
CAMPOS; 1998: 250.
123
Ver, supra, ou CUNHA & CINTRA, 1984: 457.
225

facilmente se verifica pela paráfrase «Digo apenas ...». O locutor, por uma questão de
cortesia, diz que dirá o que está a dizer, naquela situação de enunciação, mas como
quem não o está a dizer, porque diz que o dirá depois. Há uma desactualização temporal
e modal, do presente para o futuro, e do certo para o contingente, sugerindo, assim, um
certo distanciamento relativamente ao que é dito, mas também um certo apagamento do
locutor. Atenua-se, assim, a força do modo de dizer e, neste sentido, encontramo-nos no
âmbito da modalidade intersujeitos e no âmbito da cortesia negativa, por substituição. E
mais uma vez, polifonicamente.
É como processo de atenuação, inscrito no quadro da cortesia linguística, que
Carreira situa também a escolha do futuro do indicativo, em vez do presente do indica-
tivo:

«Dans le cas du futur de l’indicatif le non-présent postérieur à T0 a une forte affinité


sémantique avec l’incertain. Ceci expliquerait la possibilité que le futur de l’indicatif
(accompagné d’une intonation interrogative et suspensive) a, en portugais, d’exprimer
l’incertitude, par rapport non seulement à des événements futurs, mais aussi à des évé-
nements de T0.»124

2.2.2. Futuro do conjuntivo

Como vimos acima, formas do imperativo são empregues, em vez do futuro do


conjuntivo, para sugerir uma hipótese, em lugar de asserções condicionadas. Mas o
inverso também ocorre, isto é, o futuro do conjuntivo, numa asserção condicionada,
substitui o imperativo e o acto directivo que realiza, atenuando-o. Assim, invertendo o
exemplo acima dado - «Se suprimir a vírgula, o sentido ficará mais claro», por
«Suprima a vírgula, e o sentido ficará mais claro»125 - a asserção condicionada, no futu-
ro do conjuntivo, substitui a forma imperativa.
É evidente que o segundo enunciado, dito com a entoação adequada, é, além de
directo, mais directivo que o primeiro. O futuro do conjuntivo serve, assim, para atenuar
a directividade das formas imperativas, valor que, todavia, os autores da Nova Gramáti-
ca não referem, pelo menos explicitamente.

124
CARREIRA, 1995: 235.
125
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 475.
226

2.3. Tempos / modos do passado

2.3.1. Imperfeito do indicativo

Este tempo substitui o imperativo, segundo Cunha & Cintra, em frases de entoa-
ção interrogativa. Nesses casos, usa-se, «não raro», o infinitivo do verbo que exprime a
ordem, precedido do imperfeito do indicativo do verbo querer (como o presente do
indicativo, segundo foi já referido acima), como em «Queria fechar a janela?», por
«Feche a janela!»126 Trata-se duma construção indirecta e atenuada, tanto pela interro-
gativa como pela desactualização temporal, bem como pela deslocação da fonte deônti-
ca da vontade do locutor para o alocutário. Estamos, portanto, diante dum processo de
modalização com o verbo modal querer, cujas observações acima feitas, a propósito de
idênticos valores do presente do indicativo, se mantêm. Resta acrescentar que o recurso
ao imperfeito do indicativo atenua ainda mais o acto injuntivo, na medida em que, sen-
do o imperfeito um tempo do passado, como que faz do acto a realizar uma acção irreal.
Os autores da Nova Gramática já haviam referido que este tempo pode substituir
o presente do indicativo, «como forma de polidez para atenuar uma afirmação ou um
pedido», destacando que tal emprego constitui o chamado «imperfeito de cortesia».127
Os exemplos desco(n)textualizados não serão, todavia, os mais indicados para mostrar
tais valores. Na vida quotidiana não faltam, porém, ocorrências simples do imperfeito
de cortesia. Num bar ouve-se pedir «Queria um café», com ou sem a fórmula atenuado-
ra de cortesia por favor, e na casa de um amigo dizemos «Tomava um copo de água»,
ou «Com a janela fechada, estava-se melhor, não estava?...», para, em co(n)texto ade-
quado, pedirmos que nos dêem de beber, ou autorização para fechar a janela.
Michael Metzeltin, com a colaboração de Marcolino Candeias, refere o «uso do
imperfeito do indicativo para indicar um acontecimento do presente», a que chama tam-
bém «imperfeito de cortesia». Estes autores situam estas construções no conjunto dos
usos metafóricos dos tempos verbais, que descrevem assim:

«A relação entre to e tq tal como se exprime num comunicado pode coincidir com a rea-
lidade dos factos. Tq, porém, também se pode deslocar ficticiamente (tf), o que permite
actualizar um acontecimento do passado [...] ou do futuro [...], distanciar para o passa-

126
Id.: 478.
127
Id.: 451. Lapa chama ao imperfeito «o tempo da simpatia». [LAPA, 18758: 205] Cuesta & Luz regis-
tam também que, tanto no Espanhol como no Português, há «o imperfeito de cortesia». [CUESTA &
LUZ, 1971: 525]
227

do um acontecimento presente, tornando-o assim menos brutal e por isso mais cortês
[...] ou deslocar um acontecimento do seu momento real para um momento posterior,
dando-lhe assim um matiz de insegurança».128

O imperfeito do indicativo em Português, como noutras línguas, é de facto um


tempo de cortesia, pela desactualização temporal e consequente atenuação dos actos
directivos que realiza ou acompanha. Observa Carreia que este tempo / modo «situe un
événement ou un état envisagés dans leur durée dans un temps antérieur au moment de
l’énonciation, T0. Cette désactualisation temporelle (pedia, aconselhava à la place de
peço, aconselho) crée une distance, un décrochage relativement à T0.» E acrescenta,
para explicar o valor modal também deste tempo: «L’affinité entre le non-présent anté-
rieur a T0 et l’irréel expliquerait la valeur modale d’une forme verbal (imparfait de
l’indicatif) ayant par ailleurs une valeur temporelle.»129
«Inséré comme temps d’arrière-plan dans des textes de commentaire – regista
por seu turno Weinrich – l’imparfait peut aussi exprimer une nuance de politesse, en
particulier de discrétion et de modestie.» Além disso, combinado com a conjunção con-
dicional se, «il désigne la condition irréelle (“irrealis”), qui peut aussi exprimer, lors-
qu’elle n’est suivie d’aucune conséquence, un souhait qui n’est pas – ou difficilement –
réalisable».130 E Kerbrat-Orecchioni também refere o imperfeito, a que chama «passé de
politesse», no conjunto dos processos substitutivos de realização da cortesia negativa,
orientada para o alocutário. Em Francês, segundo refere, o imperfeito é o tempo de ate-

128
METZELTIN & CANDEIAS, 1990: 135. Os itálicos são da nossa responsabilidade e correspondem ao
uso metafórico do imperfeito de cortesia. O símbolo «to» corresponde ao «momento em que o emissor
actual (Eo) manifesta o seu comunicado» e tq ao «momento em que se dá o acontecimento (Q1) de que
fala Eo». [Id.: 120] Ao estudar as relações de tempo no verbo português, Fonseca (F.) também se refere à
noção de metáfora temporal, para afirmar que a sua realização, no nosso sistema verbal, ocorre tanto com
tempos do indicativo como do conjuntivo, nomeadamente do imperfeito e do mais-que-perfeito. [Cf.
FONSECA (F.), 1994: 26-27] Sendo a metáfora temporal «uma modalização do enunciado», através da
qual se passa do potencial para o irreal, tal noção aproxima-se da noção de «tempo fictivo» que a mesma
autora trata desenvolvidamente em FONSECA (F.), 1992. Defende a linguista que «fictivo é, de um ponto
de vista enunciativo, tudo o que não está directamente ancorado na situação de enunciação.» E explicita:
«Sempre que há a necessidade de estabelecer, no enunciado, um marco de referência não-coincidente com
a situação de enunciação, institui-se uma ficção em sentido amplo, desencadeia-se a força referencial da
linguagem, a sua capacidade de projectar mundos». [Id.: 152] O recurso aos tempos verbais de cortesia,
que atenuam, regra geral, os actos directivos, podem ser interpretados, nesta ordem de pensamento, como
uma ficção dos enunciados que os realizam, sobretudo indirectamente. Sobre a noção de metáfora tempo-
ral, cf. também WEINRICH, 1973: cap. VIII (225-258).
129
CARREIRA, 2001: 108. A propósito dos valores modais e temporais das formas verbais, também
Fonseca (F.) defende que, segundo uma perspectiva enunciativa, «longe de haver incompatibilidade, há
íntima ligação entre o que era tradicionalmente designado por valor modal e por valor temporal: a escolha
dos tempos verbais tem uma incidência em toda a organização do discurso por parte do locutor e consti-
tui, pois, um meio importante de modalização do enunciado.» [FONSECA (F.), 1994: 22]
130
WEINRICH, 1989: 143.
228

nuação mais usado, pois com ele «on atténue l’imposition en présentant la requête
comme caduque, fictivement bien sûr puisqu’on la formule du même coup».131 E tam-
bém cita Rober Martin: «Je voulais vous dire que... Là aussi je le veux toujours, puisque
je suis en train de le dire. Le rejet dans le passé fait naître l’impression d’une rupture
que seul appelle le souci de la politesse».132
Brown & Levinson também observam que a mudança de ponto de vista é uma
estratégia, através da qual o locutor se distancia do alocutário ou da realização de um
acto ameaçador de face (FTA):

«One set of mechanisms involves manipulating the expression of tense to provide dis-
tancing in time. As the tense is switched from present into past, the speaker moves as if
into the future, so he distances himself from the here and now. Hence we get negative
polite FTAs with increasingly remote, for requests:

I have been / was wondering whether you could do me a little favour.

and for questions:

I was kind of interested in knowing if ...»133

Haverkate aborda também o «imperfecto de cortesía», como estratégia atenua-


dora dos actos de fala não corteses, ou seja, dos «actos exhortativos impositivos» que
correspondem aos nossos actos directivos.134 O autor parte da observação, já referida
por Brown & Levinson e também por Alarcos Llorach,135 segundo a qual «el imperfecto

131
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 206.
132
MARTIN, 1983: 118, cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 207. Grevisse / Goosse, por seu tur-
no, distinguem, entre os usos particulares deste tempo, o «imparfait d’atténuation» que «concerne un
fait présent que l’on rejette en quelque sorte dans le passé, pour ne pas heurter l’interlocuteur.» [GRE-
VISSE, 199313: 1251]
133
BROWN & LEVINSON, 19966: 204-205.
134
Haverkate distingue «actos exhortativos impositivos» de «actos exhortativos no impositivos», basean-
do-se na «intención del hablante»: «el hablante impositivo procura conseguir que el oyente realice el acto
exhortado primariamente en beneficio del mismo. Ejemplos prototípicos de esta clase son: el ruego, la
súplica y el mandato. El hablante no impositivo, en cambio, procura conseguir que el oyente realice el
acto exhortado primariamente en beneficio de sí mismo. Los principales componentes de esta clase son el
consejo, la recomendación y la instrucción.» [HAVERKATE, 1994: 148]
135
«La perspectiva de alejamiento común a todos los pasados (en cualquier modo) explica los usos llama-
dos de “modestia” o “cortesía”: “quería pedir-te un favor” (en lugar de quiero), donde el hablante se
“aleja” por cortesía del hecho objetivo, su propio “querer”...» [E. Alarcos Llorach, 1978: Estudios de
gramática funcional del español. Madrid Gredos; p. 107, cit. por HAVERKATE, 1994: 192] Geoffrey
Leech também observa que os pedidos, realizados com verbos nos tempos do passado, «signify a hypo-
thetical action by h, and so in reply, h can in theory give a positive reply to the question without commit-
229

de cortesía opera mediante un proceso de distanciamento», de natureza deíctica, porque


se trata, «efectivamente, de un distanciamiento estratégico del momento del acto de
habla, que constituye el núcleo de la coordenada de tiempo». Por outro lado, o linguista
holandês observa que só o imperfeito, entre os tempos do pretérito, «puede utilizar-se
para transmitir cortesía.» E explica que esta escolha se fica a dever ao valor aspectual
imperfectivo deste tempo «que, en el contexto metafórico referido [«podemos interpre-
tar la distancia temporal entre presente y pasado como espacio metafórico»], actualiza
una interpretación durativa, sugiriendo que la situación hipotéticamente colocada en el
pasado puede convertirse en realidad.»136

2.3.2. Imperfeito do conjuntivo

É outro tempo/modo que pode substituir o imperativo, na medida em que «trans-


forma a ordem numa simples sugestão», como em «(E) se você se calasse!?», por
«Cale-se!», segundo interpretam Cunha & Cintra.137 Ao descreverem o «conjuntivo
subordinado», observam ainda estes gramáticos que, nas orações substantivas, se usa
«geralmente» este modo, quando a oração principal exprime, entre outros valores, «a
vontade (nos matizes que vão do comando ao desejo) com referência ao facto de que se
fala». Por exemplo, «Em todo o caso, gostava que me considerasse um amigo.»138
Encontramos, nesta frase, também valores de relativa directividade, se bem que
atenuados, ao nível do desejo / pedido, axiologicamente modalizado, desactualizado
pelo imperfeito do indicativo da oração subordinante («gostava»), como aliás a sua
paráfrase mostra, com o presente do conjuntivo valendo como imperativo: «Em todo o
caso, considere-me um amigo.»
De referir, a propósito, que Fonseca (F.) mostra que o emprego independente do
imperfeito do conjuntivo, como em «Estudasses!» (bem como no mais-que-perfeito
composto do conjuntivo, como em «Tivesses estudado!») apresenta também valores
semântico-pragmáticos do imperativo, ainda que ao nível da frutração, porque expres-
sos a posteriori, quando utilizados com intenções de censura ou crítica, como se viu
acima.

ting himself to anything in the real world.» As orações hipotéticas são, por isso, «pragmatically highly
specialized towards the function of indicating “on the record” politeness.» [LEECH, 199610: 121]
136
HAVERKATE, 1994: 193.
137
CUNHA & CINTRA, 1984: 477.
138
Cf. id.: 466. A citação foi retirada, pelos autores, de M. Judite de Carvalho, 19782: Armários Vazios.
Amadora: Bertrand; p. 119.
230

2.3.3. Mais-que-perfeito

Os autores da Nova Gramática não incluem o mais-que-perfeito na lista dos


substitutos do imperativo, mas observam, ao descreverem os valores deste tempo ver-
bal, que ele é usado também para «atenuar uma afirmação ou um pedido», denotando
«um facto passado em relação ao momento presente», como em «-Eu tinha vindo para
convencê-lo de que Pedro é seu amigo e pedir-lhe que apoiasse Hermeto.»139 Observam
depois que, na linguagem corrente, o emprego do mais-que-perfeito, em lugar do preté-
rito imperfeito do conjuntivo, «fixou-se em certas frases exclamativas», como «Quem
me dera!», por «Quem me desse!», «Pudera!» e «Tomara (que)!»140
Em nosso entender, porém, o mais-que-perfeito também se emprega com valores
imperativos (e um pedido também se pode formular com formas do imperativo), como
em «Quem me dera que não me interrompesses!», por «Não me interrompas!», ou
«Tomara eu que conseguisses acabar esse trabalho!», por «Faz só o trabalho que tens a
fazer!» Estes usos, porém, consoante o co(n)texto e os valores entonacionais, preparam
e atenuam o acto directivo que a integrante realiza, já de si afectada de atenuação, tam-
bém, pelo emprego do imperfeito do conjuntivo.
Também a este respeito se pode falar de «metáfora temporal» e de «tempo ficti-
vo», por se tratar da deslocação, para o passado, da realização dum estado de coisas que
se deseja concretizado no presente ou num futuro breve. Por outro lado, o locutor toma
como revertendo a seu favor ( sinceramente ou não), o êxito do acto a realizar pelo alo-
cutário. A relação interpessoal assim criada pode ser interpretada como cortês ou des-
cortês, consoante o efeito do acto desejado pelo alocutário reverta a favor deste ou não.

2.3.4. Condicional

Os autores da Nova Gramática não referem, explicitamente, que o futuro do pre-


térito simples (seguindo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, que preferem), ou o
condicional (segundo a Nomenclatura Gramatical Portuguesa141), se emprega também
como substituto do imperativo. Registam, contudo, que se usa «como forma polida de

139
CUNHA & CINTRA, 1984: 455. O exemplo foi colhido, pelos autores, em Ciro dos Anjos, 1956:
Montanha. Rio de Janeiro; p. 243.
140
Id.: 455 e 456.
141
Os autores explicam a sua opção pela designação «futuro do pretérito», porque se trata, «na verdade,
de um tempo (e não de um modo)», porque só se distingue do futuro do presente por «se referir a factos
passados», enquanto este último «se relaciona com factos presentes.» [CUNHA & CINTRA, 1984: 462]
231

presente, em geral denotadora de desejo», como em «Seríeis capazes, minhas Senhoras,


/ De amar um homem deste feitio?»142 Além disso, registam que serve para denotar
«surpresa ou indignação», em certas frases interrogativas e exclamativas, como em «O
nosso amor morreu... Quem o diria?»143
O condicional utilizado nestes exemplos, desco(n)textualizados, não mostra
valores imperativos. A nosso ver, porém, encontrámos tais valores, em frases como
«Gostaria que soubesses que já não vou nas tuas cantigas!», por «Sabe ou fica sabendo
que não acredito em ti!», ou em «Eu faria doutra maneira!», por «Faz doutra maneira!»,
ou em «Eu não diria isso!», por «Não diga(s) isso!», desde que, evidentemente, realiza-
das em co(n)textos adequados.
Cunha & Cintra não registam, por outro lado, que o condicional composto tam-
bém pode ser empregue com valores imperativos. Uma pergunta, evidentemente irónica
e possivelmente de censura, como «Quem teria feito tão bem a cama da Eva?...», dita
por um dos pais, de maneira que a filha ouça, é, claramente, por indirecção, desactuali-
zação temporal e modalização, uma ordem (indirecta e atenuada, é certo, mas uma
ordem) dirigida à filha, parafraseável por: «Eva, vai fazer a tua cama!»
Vilela também não inclui o condicional (que, na sua definição, «exprime o
“irreal” no passado») entre os processos indirectos de realização da ordem. Regista,
todavia, que também exprime o pedido, como em «Eu desejaria (= desejava) visitar o
Palácio da Bolsa» ou em «Eu quereria / queria falar com o chefe». Além disso, refere
que é também utilizado para «suavização de uma afirmação», como em «Eu diria que o
senhor não tem razão» / «Dir-se-ia que estamos perante um caso de corrupção».144 Con-
vém referir que as orações subordinantes funcionam como preactos que atenuam a for-
mulação das asserções, inscrevendo-se nos processos de cortesia negativa, portanto.
Ao estudar as formas injuntivas, face às formas de cortesia linguística, Carreira,
a propósito do(s) enunciado(s) «Pedir-lhe-ia / Aconselhá-lo-ia a / que não atendesse o
telefone», observa que o acto directo de ordem «Não atenda o telefone!» sofre uma ate-
nuação, graças ao emprego do condicional, que considera «la forme verbale prototypi-
que de l’irréel», ainda que, como sublinha, o imperfeito do indicativo seja o tempo/modo
mais usado actualmente em Português «pour exprimer l’hipothèse, en quelque sorte à la

142
Citação colhida pelos autores em António Nobre, 18982: Só. Lisboa: Guillard & Aillaud; p. 79.
143
CUNHA & CINTRA, 1984: 461. O exemplo é retirado pelos autores de Florbela Espanca, 196210:
Sonetos. Porto: Tavares Martins; p. 168.
144
VILELA, 1995: 140. É, certamente, a empregos deste tipo que Cuesta & Luz chamam «condicional de
modéstia», realizado tanto por portugueses como por espanhóis. [CUESTA & LUZ, 1971: 525]
232

place du conditionnel.» Para a autora, escolher entre o imperfeito e o condicional tem


apenas, como efeito, uma diferença de grau ao nível da desactualização modal que
resulta «tout particulièrement de la moindre usure que subit le conditionnel, employé
dans un registre plutôt soigné.» A escolha do condicional é, por isso, uma forma cortês
de reforço da expressão «de l’hypothèse contrefactuell, ou, en d’autres termes, de
l’irréel.»145 Nesta ordem de ideias, o condicional é um processo de atenuação dos actos
directivos e uma manifestação linguística de cortesia, pelo relativo distanciamento que
estabelece, aos níveis da construção discursivo-textual e das relações interpessoais, sen-
do assim uma forma de manifestar respeito relativamente a «le “territoire”, la “face” de
l’allocutaire».146 E, mais uma vez, uma estratégia polifónica.
O valor semântico de incerteza que o caracteriza faz com que o condicional,
segundo Weinrich, sirva para a expressão da cortesia, mesmo irónica, ainda mais que o
futuro. O linguista alemão refere que o condicional se emprega «souvent dans la ques-
tion polie ou dans une demande discrète, en particulier lorsqu’il est associé à des verbes
de modalité», quando não se tem a intenção de não importunar o interlocutor. Realça, a
propósito, o papel particularmente importante da «sintaxe da cortesia», quando alguém
se compromete, de algum modo, numa interacção verbal, com um interlocutor desco-
nhecido ou pouco familiar: «On ne peut pas commencer par le contrarier par une préten-
tion un peu brutal, et c’est pourquoi on l’aborde au début de façon plutôt humble en lui
parlant de façon indirecte ou édulcorée.» O condicional encontra-se, por isso, com fre-
quência, «dans nombre de tournures locutionnelles qui servent à engager la conversa-
tion», como em «j’aimerais faire une petite remarque».147 Além disso, o condicional
serve muito bem para se dizer não, de forma polida: «il est souvent de restreindre ou
tout au moins d’atténuer la force de son refus par une tournure prudemment polie».148
Kerbrat-Orecchioni inclui o condicional nos «procédés substitutifs» para a reali-
zação de FTA’s, processos que, no seu conjunto, «sous la forme de divers désactualisa-
teurs modaux, temporels, ou personnels [...] ont pour fonction commune de mettre à
distance la réalisation de l’acte problématique.»149 E a autora regista que, em Francês,
este tempo é «l’adoucisseur de FTA’s par excellence», quer como «variante» do presen-
te (v.g., «Tu pourrais fermer la porte ?»), quer como processo que por si só trans-

145
CARREIRA, 2001: 108. Cf. também CARREIRA & BOUDOY, 1993: 67.
146
CARREIRA, 1995: 236.
147
WEINRICH, 1989: 156.
148
Id.: 157. Para usos do condicional, pelos verbos modais (pouvoir, savoir, vouloir, devoir), como pro-
cessos discursivos de atenuação, cf. id.: 192-195.
149
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 204.
233

forma uma asserção num pedido (v.g., «J’aimerais que tu m’embrasses», em vez de
«J’aime que tu m’embrasses».)150
O condicional é descrito por Haverkate, como processo de cortesia ou atenuação
de actos de fala, nomeadamente, das asserções «argumentativas» e «sob reserva», por
um lado, e dos actos directivos («exhortativos»), directos e indirectos, por outro.151 O
autor situa a asserção e a injunção no conjunto dos actos de fala não corteses, mas anali-
sa apenas as suas realizações não descorteses, porque os actos descorteses «son incom-
patibles con la expresión de cortesía». O interesse do estudo destes actos tem a ver com
o facto de serem «neutros en el sentido de que no sirven para comunicar cortesía intrín-
seca.» A cortesia que possam manifestar é, portanto, de «tipo extrínseco.»152

2.3.5. Pretérito perfeito

Cunha & Cintra não referem este tempo como podendo substituir também, em
contextos apropriados, formas do imperativo e realizar, por isso, actos directivos.153
Mas Mário Vilela regista-o entre os meios possíveis para a realização da ordem, como
em «[na aula de ginástica] Levantou! Rodou à esquerda!» 154
Além deste valor imperativo, outros idênticos se encontram no pretérito perfeito
do indicativo, os quais denotam que a acção a realizar é urgente, como quem diz que ela
já devia ter sido praticada. Por exemplo, o enunciado interrogativo negativo «Ainda não
acabaste?!...», com tom exclamativo e suspensivo, denotador de censura, pode substi-
tuir, em co(n)texto adequado, a directiva imperativa «Acaba depressa!»
Repare-se que, em «[na aula de ginástica] Levantou! Rodou à esquerda!», é o
co(n)texto, minimamente descrito na informação entre parênteses rectos, que faz com que

150
Id.: 205-206.
151
Ver HAVERKATE, 1994: 141-147 e 185-192. O autor faz uma análise «pragmalingüística» das for-
mas do espanhol, mas afirma que valores semelhantes se encontram noutras línguas. O linguista holandês,
professor de Linguística Espanhola na Universidade de Amsterdão, descreve os fenómenos da cortesia
verbal segundo uma perspectiva complementar dos seus aspectos pragmáticos e linguísticos (daí a desig-
nação). Através da perspectiva pragmática presta atenção particular «a las nociones de cortesía positiva y
negativa, al análisis coste-beneficio y a las máximas conversacionales y de cortesía.» No plano linguísti-
co, «el centro de gravedad será el estudio de las características formales de los actos de habla corteses y
no corteses», distinguindo claramente «entre actos de habla directos e indirectos», bem como «entre foca-
lización y desfocalización referencial.» [Id.: 9]
152
Id.: 116.
153
Convém referir, contudo, que é nesta Nova Gramática que se encontram, apesar de incompleto e com
algumas descrições menos precisas, mais descrições dos valores semântico-pragmáticos das formas pró-
prias, supletivas e substitutas do imperativo, mesmo que os exemplos apresentados, independentemente
de serem literários ou não, não se encontrarem minimamente co(n)textualizados.
154
VILELA, 1995: 141.
234

o exemplo (e outros como este), realizado num determinado tempo de enunciação pre-
sente, mas usando um tempo verbal do passado, com acção a realizar num futuro ime-
diato, seja interpretado pelo(s) destinatário(s) como uma ordem. Além disso, como
veremos, a relação taxémica existente entre quem possui a voz de comando e aquele que
executa a acção comandada mostra que há uma assimetria de lugares (poder ou autori-
dade), naquele co(n)texto de interacção verbal.
Cuesta & Luz referem, por seu turno, que os portugueses usam o pretérito perfei-
to simples, «com certos verbos», em vez do imperativo, «em casos de ordem muito
enérgica e tão impaciente que se dá por realizada no ânimo daquele que a exprime,
como em «Girou!», «Andou!» e «Calou!».155
Recordando situações certamente vividas por todos, «Acordou, vá, acordou!» é
forma com valor imperativo utilizada, por exemplo, pelos pais, ao acordarem uma
criança e para que se levante. Quando dois ou mais homens se juntam para, por exem-
plo, levantar um objecto pesado, ainda é costume um deles, quando verifica que o(s)
outro(s) está(ão) a postos para o esforço conjunto, comandar: «Levantou!» / «Puxou!» /
«Parou!»
Estaremos, nestes casos, perante mais um processo de impessoalização e de
desactualização ou metáfora temporal, pelas razões acima apontadas: enuncia-se num
tempo presente uma acção a realizar num futuro próximo, como se fosse um tempo pas-
sado. Além disso, ao não explicitar-se o sujeito gramatical, ao fazê-lo apenas através da
desinência verbal e ao referi-lo delocutivamente como terceira pessoa, impessoaliza-se
o destinatário. Neste sentido, pode-se dizer que tais ordens, comandos ou desejos
sofrem uma atenuação ao nível da sua força ilocutória e que, por isso, expressam tam-
bém cortesia negativa relativamente à face negativa («território») do(s) seu(s) alocutá-
rio(s). Mas o sujeito locutor também se apaga, ao não usar formas de 1.ª pessoa. Nestes
casos, teremos uma estratégia cortês também ao nível da polifonia, orientada tanto para
o alocutário como para o locutor.
Não temos conhecimento de usos semelhantes do pretérito perfeito com valores
imperativos atenuados e de cortesia, noutras línguas. Haverkate observa que o pretérito
é um tempo aspectualmente perfectivo e que por isso o seu uso é excluído «para produ-
cir efectos de cortesía», uma vez que «establece una separación fundamental entre pasa-

155
CUESTA & LUZ, 1971: 526. A propósito, as autoras referem que os portugueses utilizam também,
com frequência, o perfeito pelo futuro, comentando que tal se fica a dever ao facto dos portugueses serem
«um povo de imaginação exuberante que tende, como o Espanhol, a antecipar e a dar por realizados os
factos simplesmente possíveis.» [Id.: 526]
235

do y presente.»156 Todavia, Charaudeau, admite, a propósito das configurações implíci-


tas da injunção, que ela «peu égallement transparaître sous des formes qui appartien-
nent, par vocation, à d’autres Modalités, à condition que la situation de communication
permette de comprendre qu’il s’agit d’une “Injonction” masquée.»157

2.4. Formas verbais nominais

2.4.1. Infinitivo

As formas próprias e supletivas do imperativo podem ser substituídas, ainda,


pelo infinitivo impessoal, «principalmente na expressão de um comando, de uma proi-
bição», como em «Marchar!», «Não falar ao motorista com o carro em movimento.»
ou «Não fumar!»158 Ao descreverem as «tendências» (porque não lhes parece acertado
falar em «regras»), no emprego do infinitivo não flexionado, os autores da Nova Gra-
mática voltam a indicar o «valor imperativo» daquela forma verbal,159 conjugada pro-
nominalmente, como em «Se o indez morre, deixá-lo...»160
Cuesta & Luz também registam que o «infinito impessoal» se emprega como
imperativo, «em ordens rápidas ou dirigidas a um público indefinido e vago»,161
enquanto Vilela o inclui entre os vários processos possíveis «para a realização da
“ordem”».162 Carreira, por seu turno, coloca o infinitivo entre os processos de atenuação
da ordem e, por isso, entre as formas corteses da sua realização, uma vez que «posant
l’acte à accomplir comme délié de toute entité (qui, en fait, est l’allocutaire) atténuent
l’injonction.»163
Weinrich, ao descrever o imperfeito de cortesia, regista que o infinitivo, «en par-
ticulier dans la négation», é usado, em Francês, para atenuar, de forma polida, «un ordre
ou une interdiction», como, por exemplo, em «pour toute information s’adresser au
guichet d’en face» e «ne pas toucher la marchandise, s.v.p.»164

156
HAVERKATE, 1994: 193.
157
CHARAUDEAU, 1992: 582.
158
CUNHA & CINTRA, 1984: 477.
159
Cf. id.: 483.
160
Colhida pelos autores em Mário de Sá-Carneiro, 1953: Poesias. Lisboa: Ática; p. 142.
161
CUESTA & LUZ, 1971: 531.
162
VILELA, 1995: 140.
163
CARREIRA, 1995: 228. Também em 2001: 86.
164
WEINRICH, 1989: 168-169. Também em id.: 187-188.
236

Idênticas construções, com idênticos valores semântico-pragmáticos, temos tam-


bém em Português, em co(n)textos instrucionais, como, por exemplo, na chamada «lite-
ratura» que acompanha os medicamentos ou livros de receitas, ou manuais de instrução
de electrodomésticos. Ou naqueles avisos que, por vezes, se afixam na porta dos gabine-
tes, como «Não interromper! Em reunião», acto directivo de proibição, que é um FTA
dirigido a quem pretenda entrar naquele espaço, ou deseje falar com alguém aí reunido.
A sua atenuação através do infinitivo e da impessoalização, bem como a cortesia daí
resultante, serão todavia reduzidas, se aquele acto directivo, com relativo valor injunti-
vo, não for acompanhado da justificação «Em reunião». Mas será mais atenuado e mais
cortês se for acompanhado duma fórmula de cortesia, como em «Não interromper, por
favor! Em reunião».
Como a própria designação indica, este infinitivo permite uma impessoalização,
quer do locutor quer do alocutário, ou seja, será mais uma das estratégias de cortesia,
através da qual se pode proteger as faces dos interactantes, conforme o co(n)texto de
realização. E de novo encontramos a importância explicativa da polifonia, ao nível da
cortesia discursivo-textual: alguém fala como se não fosse ele, a alguém que não se
nomeia explicitamente, isto é, como se não fosse efectivamente o destinatário.

2.4.2. Gerúndio

Também esta forma verbal é usada como substituta do imperativo. Trata-se,


segundo explicam os autores da Nova Gramática, duma construção elíptica, frequente
na linguagem popular, de valor geralmente depreciativo para quem recebe a ordem,
como em «Andando!», por «Vá andando! Ande!»165 Cuesta & Luz acrescentam, por
seu turno, que o gerúndio também «serve para marcar a superioridade do indivíduo que
fala e a impossibilidade das suas ordens serem desobedecidas.»166 Vilela não inclui esta
forma verbal na lista dos processos lexicais, fonéticos e gramaticais possíveis para a
realização da ordem,167 mas Carreira refere que o gerúndio, servindo também para ate-
nuar a sua realização, faz dele um processo de cortesia, ao colocar o acto a realizar

165
CUNHA & CINTRA, 1984: 478 e 490. Actualmente, emprega-se também as fórmulas «Andou!» (ver,
supra, pretérito perfeito) e mesmo «Andor!».
166
CUESTA & LUZ, 1971: 536.
167
Cf. VILELA, 1995: 140.
237

como que desligado do interlocutor a quem é dirigido, tal como acontece com o infiniti-
vo.168
Há, porém, construções com gerúndio que, em nosso entender, funcionam tam-
bém como processos de atenuação de um acto directivo, pela impessoalização do acto a
realizar pelo alocutário. Por exemplo, no enunciado directivo directamente formulado
«Estuda e passarás no exame», a forma imperativa (descortês) é atenuada pela oração
condicional reduzida no gerúndio «Estudando, passarás no exame», equivalendo à
subordinada condicional, «Se estudares, passarás no exame», com o verbo no futuro do
conjuntivo, construção esta que dá ao acto ainda mais cortesia, como vimos acima.
É de observar, na sequência destes exemplos, a mudança de categoria nas ora-
ções. No primeiro enunciado, a oração reduzida estuda é subordinante ou principal,
numa relação consecutiva com a subordinada, passando nos enunciados seguintes a
subordinada condicional, processo que faz de tais orações formas atenuadas e por isso
corteses do primeiro enunciado, pela impessoalização e pela desactualização temporal.

2.4.3. Particípio

Tal como se verificou em relação ao pretérito perfeito, também só Vilela refere o


particípio com valor imperativo, na realização da ordem, embora se limite aos exem-
plos: «Levantado! Quieto!»169 Consoante o acto restrinja mais ou menos a liberdade do
alocutário e reverta ou não a seu favor, actos assim realizados serão mais ou menos des-
corteses. É evidente que, se um pai, ordena ao filho «Calado!», para que possa ouvir o
que outro filho diz, mesmo sem recorrer a fórmulas de cortesia, está a ser menos descor-
tês do que se tal enunciado for dito a um colega. O recurso a esta, como a outras formas
elípticas (no caso, omissão do auxiliar) revelam da parte do locutor um estatuto, real ou
presumido, de superioridade. Estatuto que, se não co(n)textualmente reconhecido e
aceite, pode dar origem a intervenções reactivas como «Manda calar a tua tia!», também
elas nada corteses.

3. Construções passivas

168
Ver, supra, ou CARREIRA, 1995: 228 e 2001: 86.
169
VILELA, 1995: 141.
238

Além dos tempos e modos, Vilela regista ainda, como processos de realização da
ordem, a «passiva de estado», como em «Agora, está-se de pé! Nesta altura, está-se sen-
tado!»170 O linguista não refere, todavia, quaisquer valores de cortesia ou descortesia
que esta e outras construções passivas possam realizar. Por outro lado, admitindo-se
embora que tal enunciado possa ser a ocorrência duma ordem, a ausência de co(n)texto
(cuja importância, todavia, o autor assinala, na interpretação das formas imperativas em
geral) não nos permite saber se estamos, efectivamente, perante um acto cortês ou des-
cortês.
Cunha & Cintra, Mateus et al. e Cuesta & Luz não registam que as passivas pos-
sam expressar valores imperativos. Todavia, as últimas autoras registam, na gramática
de que são coautoras, que o locutor português utiliza a passiva quando tem interesse em
que o agente não seja mencionado, indeterminando-o ou impessoalizando-o.171
Cabe observar, contudo, que as passivas servem tanto para impessoalizar e inde-
terminar o locutor, como o alocutário, como ambos. Os exemplos frequentes encon-
tram-se em locais públicos, com o valor de ordens, conselhos, sugestões, avisos, ou em
literatura de avisos, informações e instruções: «É proibido cortar árvores ou arbustos
neste jardim»; «É proibido fumar neste local»; «Aconselha-se o consumo do produto
antes de terminado o prazo de validade»; «Só pode vender-se mediante receita médica».
Segundo refere Kerbrat-Orecchioni, «peut être mis au service de la politesse tout
procédé visant à estomper la référence aux interlocuteurs, et ce que l’expression de la
relation intersubjective peut avoir pour eux de brutal et de menaçant.»172 A passiva ins-
creve-se, por isso, no âmbito da cortesia linguística, como um processo de atenuação,
por substituição, na realização de um FTA, isto é, como estratégia de cortesia negativa.
Brown & Levinson observam que a construção passiva «is perhaps the means par excel-
lence in English of avoiding reference to persons involved in FTAs.»173
Haverkate, a propósito dos enunciados «Esta carta no está bien traducida» e
«Usted no ha traducido bien esta carta», observa que é evidente a diferença entre
ambos, ao nível da expressão de cortesia. No primeiro, «utilizando una construcción
pasiva sin agente especificado», o locutor «deja de referirse abiertamente al oyente, por
lo que el reproche adquiere un carácter indirecto», protegendo, deste modo, a face posi-

170
Id., ibid.
171
Cf. CUESTA & LUZ, 1971: 523-524. Sobre construções semipassivas, como processo autorreferen-
cial ambíguo, de apagamento do eu locutor e da dissolução «numa não pessoa», ver também, infra, cap.
X, 5., ou MARQUES, 1995: 167.
172
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 207.
173
BROWN & LEVINSON, 19966: 194.
239

tiva do alocutário. Discordamos, contudo, que se trate, como refere o autor, duma estra-
tégia de cortesia positiva. Na linha da teoria de Kerbrat-Orecchioni, a realização dum
acto directivo por substituição, realizado indirectamente através dum assertivo, é estra-
tégia que se situa no âmbito da cortesia negativa. O segundo enunciado, «en cambio, no
manifiesta ninguna forma de cortesía», dado que «el pronombre personal de segunda
persona se refiere explícitamente al oyente, dirigiéndole un reproche directo, no atenua-
do.»174
O recurso à passiva é, por isso, também uma das «estratégias de anonimato» e,
por isso, em nosso entender, também polifónica. Ao comentar o enunciado «Ce problè-
me n’a pas été résolu correctement», em substituição de «Tu n’as pas résolu ce problè-
me correctement», observa Kerbrat-Orecchioni que «il est évident que si le passif peut
servir à l’effacement du “je”, c’est surtout en tant qu’il permet, dans les énoncés qui
impliquent quelque critique envers A[allocuttaire], de gommer pudiquement la respon-
sabilité du “tu” dans le procès qu’il peut être mis au service de la politesse.»175

Ao longo deste capítulo, referimo-nos aos valores semântico-pragmáticos que


estilistas, gramáticos e linguistas reconhecem nos usos dos tempos e modos verbais, em
construções discursivo-textuais. Tais valores foram descritos a propósito, sobretudo, da
realização cortês de actos directivos, nomeadamente na realização atenuada da ordem,
com o objectivo, consciente ou inconsciente, de proteger (por vezes atacar) as faces
próprias e dos outros, construindo ou destruindo as respectivas imagens, através de
mecanismos linguísticos como os de modalização, impessoalização, indirecção, desac-
tualização, polifonia, que se reflectem nas práticas discursivo-textuais e nas relações
interpessoais que elas estabelecem, consoante os co(n)textos e a sua dinâmica.

174
HAVERKATE, 1994: 32-33.
175
KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 208.
Capítulo VII

CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL


E DIRECTIVIDADE

Os modos e os tempos verbais não são os únicos meios linguísticos, apesar da


sua evidente importância, de que os interactantes se servem para realizar actos corteses
ou descorteses, nas diferentes interacções verbais em que intervêm. Há, de facto, outros
processos que gramáticos e linguistas também registam e descrevem, em particular a
propósito da realização dos diferentes actos directivos e das formas mais ou menos
imperativas utilizadas. Acontece, porém, que, por vezes, tais observações denotam, a
nosso ver, alguma imprecisão relativamente à definição de cada um dos actos directivos,
nomeadamente da ordem, tanto na sua realização directa como indirecta. Julgamos con-
veniente, por isso, caracterizar melhor a noção de cada um desses actos, uma vez que tal
caracterização nos ajudará também a descrever e a interpretar melhor as suas ocorrên-
cias e as relações de cortesia ou de descortesia que eles realizam e expressam. O tema
permitir-nos-á, por outro lado, clarificar as noções de directividade e de impositividade,
face às estratégias de cortesia negativa e positiva.

1. Noção e classificação dos actos directivos

Os actos ilocutórios directivos (também chamados «injuntivos», «imperativos»,


«impositivos», «jussivos») são aqueles em que o locutor, através do enunciado que rea-
liza, num determinado co(n)texto de interacção verbal, quer que o alocutário pratique
uma dada acção, num futuro mais ou menos próximo. Essa acção constitui o efeito per-
locutório desejado, o qual pode ser alcançado ou não, conforme as relações interpes-
soais existentes entre os interactantes, no momento da sua formulação.
Os actos directivos, além de poderem ser realizados directa e indirectamente,
podem ainda visar obter:
242

a) apenas respostas físicas de realização ou não realização duma acção, comportamento


ou atitude;
b) apenas respostas verbais;
c) respostas mistas, isto é, respostas físicas e verbais, ao mesmo tempo.

Além disso, os actos directivos e as suas respostas podem estar orientados para:

d) benefício ou satisfação dos interesses do locutor e exigirem da parte do alocutário um


maior ou menor custo na resposta (física ou psicológica) ;
e) benefício ou satisfação dos interesses do alocutário e, em contrapartida, exigirem um
maior ou menor custo (físico ou psicológico) ao locutor.

Os actos directivos podem ser, por outro lado:

f) «de acção explícita, i. e., os actos em que a acção, verbal ou física, que o locutor quer
ver praticada pelo alocutário é expressa pelo próprio locutor no seu enunciado, como
acontece com os pedidos, com as ordens, com os convites, com as exortações e com
as súplicas, por exemplo»;
g) «de informação, ou seja, os actos em que a acção verbal executada pelo alocutário
permite ao locutor conhecer algo que até aí desconhecia e que, portanto, não está
expressa no conteúdo proposicional do seu enunciado, como acontece com as per-
guntas».1

O acto directivo da ordem é aquele que mais frequentemente aparece indicado


como sendo realizado através de formas próprias, supletivas ou substitutas do imperati-
vo, chegando, por vezes, a considerar-se que todos os actos directivos no imperativo são
ordens. Resulta esta relativa confusão, certamente, das noções que os falantes duma
língua têm e utilizam, tanto na vida corrente, como as que encontram em textos, literá-
rios e não literários, do que é dar e/ou receber uma ordem, e que os próprios dicionários
e gramáticos também reflectem.
Em entradas lexicais de alguns dicionários e em discursos atributivos de textos
literários (ou outros), encontramos referidos como ordens actos verbais que, de facto,
não são, em termos da Pragmática Linguística. Por exemplo, o DLPACL regista, entre

1
GOUVEIA, 1996: 395.
243

um conjunto alargado de definições do lexema ordem, a seguinte: «Acto pelo qual uma
pessoa ou uma entidade manda fazer alguma coisa», apresentando como quasessinóni-
mos imposição e mandado, com os seguintes exemplos: «Em casa dele ninguém dá
ordens.», «Estar sob as ordens de alguém.» e «Executar, receber uma +.»2
O Dicionário Morais, também ele apresentando um longo conjunto de defini-
ções de ordem, regista, entre elas, as seguintes: «Prescrição, mandato, comissão para se
fazer alguma coisa» e «Acção de mandar, verbal ou por escrito, emanada por superior».3
Encontramos nestas definições deste dicionarista as duas principais noções da ordem. A
primeira cobre o seu sentido corrente e mais amplo, enquanto a segunda, ainda que tam-
bém corrente, é mais precisa, de âmbito mais restrito, uma vez que a acção ordenada só
é, de facto, uma ordem, se proferida por um superior, isto é, por alguém com poder para
a dar. É neste último sentido que entendemos a noção de ordem como acto ilocutório
directivo, dadas «as condições de felicidade» que a sua realização exige.
Procurando esclarecer a noção e a elaboração duma «tipologia», Isabel Casanova
defende haver dois grandes tipos de actos directivos - a ORDEM e o DESEJO - cuja
distinção reside na «coercividade» que acompanha a noção do primeiro, mas não a do
segundo. A coercividade é, por isso, o seu traço definidor. Neste sentido, um acto direc-
tivo só é, de facto, uma ordem «se a não satisfação da vontade do locutor for sancioná-
vel, isto é, se o acto directivo for coercivo». Será um desejo «se o alocutário puder sem
sanção satisfazer ou não a vontade do locutor».4
A expressão lexicalizada quero, posso e mando é, a nosso ver, uma síntese per-
feita da definição do acto directivo da ordem, se nos abstivermos das conotações depre-
ciativas que exercícios de poder abusivos, autoritários ou despósticos lhe deram.
Para que um acto directivo seja uma ordem é necessário que, como testes possí-
veis, o alocutário não possa ripostar, sem riscos conscientes ou inconscientes de sanção,
com, por exemplo, «(Mas) Quem é(s) você (tu), para me dar(es) ordens?!», ou «Vá / vai
mandar (n)outro!»
Uma ordem, produzida em co(n)texto adequado, independentemente da constru-
ção discursivo-textual como é formulada, pressupõe, sempre, por isso, uma relação
assimétrica entre os interlocutores: o direito de mando ou poder, da parte do locutor, e o
dever de obediência, da parte do alocutário. «Só ordena quem tem poder: sem poder só

2
DLPCACL, 2001 (vol. 2): 2681.
3
SILVA, 195410 (vol. 7): 538.
4
CASANOVA, 1996: 430.
244

o desejo é possível», observa Casanova. Por isso, «a ordem (legítima) é para ser cum-
prida», enquanto «o desejo é para ser satisfeito.» Uma ordem é legítima, ou «objectiva»,
quando, por um lado, é «dimanada de uma entidade com poderes para o fazer» e, por
outro, o seu conteúdo se inscreve «dentro do âmbito dos poderes de que essa entidade
está revestida».5 Ultrapassar esse âmbito é realizar ordens ilegítimas e, nesse sentido,
poderão ser ou não cumpridas. Mas não o sendo, o alocutário não pode ser sancionado,
pois não é obrigado a cumpri-las, por ausência do dever de obediência, ou seja, as leis
ilegítimas não são coercivas. Não manda quem quer, mas quem pode! é outra expressão
lexicalizada que vinca o aspecto coercivo da ordem, embora não denegue a vontade ou
querer que lhe está também subjacente.
Em casos de ordem ilegítima, apesar da aparência formal de ordem e do poder
que, noutros co(n)textos, o locutor possa efectivamente ter sobre o alocutário, não há
ordem, mas um outro acto, ainda que de natureza também directiva: um pedido, uma
sugestão, um conselho, um aviso, uma instrução. Porque, como observa a autora, uma
ordem não é uma questão de «grau», nem de «forma».6 O que a distingue, como aos
outros actos directivos, é a sua força ilocutória, independentemente de ser realizada
directa ou indirectamente, cuja base reside «na relação ternária locutor – alocutário –
conteúdo proposicional».7 Ou seja, tendo em consideração o co(n)texto de ocorrência e
o objectivo ilocutório de cada um, sem descuidar as relações de maior ou menor delica-
deza (a autora prefere este termo) que os interlocutores desejam (man)ter ou não entre
si.
Uma ordem pode ser formulada como desejo, pedido ou sugestão, mas isso é
uma questão de cortesia, através da qual o locutor recorre a formas menos impositivas,
de indirecção discursiva, minimizadoras dos seus aspectos desagradáveis. Por outro
lado, não é porque se formula, por exemplo, um pedido como ordem (aparentemente
ordem, portanto) que esse pedido passa a ordem. Teremos, nesses casos, uma intensifi-
cação do pedido, o qual, todavia, por mais intensificado que seja, não passa, apesar dis-
so, a ordem. Mesmo quando o alocutário, também por uma questão de cortesia,
(cor)responda ao locutor, comentando, sem ironia, ou com descortesia e com ironia, «O
seu / teu pedido é uma ordem!»

5
Id.: 431-432.
6
Id.: 430.
7
Id.: 435.
245

De facto, é o co(n)texto e, dentro dele, a relação de poder existente (ou a sua


ausência) entre os interactantes que fazem, não com que um pedido seja uma ordem, ou
que uma ordem seja um pedido, mas tão só com que uma ordem seja cortesmente for-
mulada, isto é, atenuada, como se fosse um pedido, e que um pedido seja descortesmen-
te formulado, intensificado, como se fosse uma ordem.
Há, porém, situações em que uma ordem ilegítima se torna coerciva, isto é, se
torna uma ordem subjectiva. Verifica-se nos casos de salvaguarda da integridade física
ou da própria vida, ou de segredos comprometedores. Casanova dá, como exemplos de
ordens subjectivas, para o primeiro caso, «um bandido que, de pistola em punho, exige
a entrega de dinheiro»; para o segundo, a posse de segredos cuja revelação pode com-
prometer alguém.8 É esse poder que, pela força das circunstâncias, num caso como nou-
tro, legitima tais ordens e as torna por isso coercivas.
A ordem e o desejo, são assim, para a autora, no que toca à sua força ilocutória,
duas subclasses completamente distintas dos actos directivos, os quais têm em comum a
satisfação da vontade (QUERER) do locutor, mas cuja satisfação, por parte do alocutá-
rio, é obrigatória num caso (ordem) e facultativa no outro (desejo).
Estabelecida esta primeira distinção, a autora elabora uma tipologia dos actos
ilocutórios directivos, mostrando que o pedido e a sugestão são formas ou actos directi-
vos de realização do desejo, e que o conselho, o aviso e a instrução são formas ou actos
directivos de realização da sugestão, personalizada ou despersonalizada.
Casanova resume e esquematiza, no quadro seguinte, a sua proposta de tipologia
dos actos directivos:

Objectiva (i. e. ordem social


ou institucionalmente reconhecida)
ORDEM
Subjectiva
QUERER
Pedido (→ LOC)
DESEJO
conselho
personalizada
Sugestão (→ ALOC) aviso
despersonalizada aviso

8
A autora refere, concretamente, a chantagem que, n’O Primo Bazílio, Juliana exerce sobre Luíza, uma
vez na posse das cartas que a patroa recebera do amante. [Cf. id.: 432]
246

instrução

FIG. 1 – Tipologia dos actos directivos, segundo CASANOVA, 1996: 435.

Para satisfazer um desejo, pode-se fazer um pedido ou dar uma sugestão, um e


outra constituindo actos directivos não sancionáveis, por não coercivos. Mas se o traço
coercividade é que distingue a ordem do desejo, que traço distingue um pedido duma
sugestão? A «direcção de interesses», responde a autora, que acrescenta: «o pedido visa
beneficiar e satisfazer o locutor, a sugestão visa beneficiar o alocutário.» Também aqui
«a forma não é determinante da força ilocutória».9 Por uma questão de cortesia, o locu-
tor pode fazer um pedido, dando-lhe a forma de sugestão, ou fazer uma sugestão, dan-
do-lhe a forma de pedido. No primeiro caso, atenua-se o pedido; no segundo, intensifi-
ca-se a sugestão.
Ao formular uma sugestão, o locutor pode manifestar, contudo, maior ou menor
empenho na sua concretização pelo alocutário. Quando tal acontece, está-se perante
uma «sugestão personalizada» que se transforma então em conselho: «acto directivo não
sancionável (desejo), cuja direcção de interesses aponta para o alocutário (sugestão),
revelando um empenhamento expresso do locutor». Quando, porém, o locutor manifesta
indiferença relativamente à realização da sugestão, está-se perante uma «sugestão des-
personalizada», ou seja, uma instrução: «acto directivo não sancionável (desejo) cuja
direcção de interesses aponta para o alocutário (sugestão) não manifestando empenha-
mento expresso do locutor».10
Restam os avisos, para se completar a descrição da tipologia. Segundo a autora,
quando os conselhos e as instruções se revestem de «carácter preventivo», estamos
perante avisos, que, se «personalizados», estão mais próximos do conselho, e que, se
«despersonalizados», estão mais próximos da instrução.11
Casanova propõe a sua tipologia dos actos directivos apenas em relação aos
actos de resposta física, mas, em nosso entender, a referida tipologia poder-se-á aplicar
também aos actos directivos de resposta verbal. Por outro lado, os exemplos que apre-
senta são todos recolhidos em textos literários de autores portugueses.12 Por se tratar de
estudo integrado num volume colectivo de introdução ao estudo da Linguística Geral e

9
Cf. id.: 433. A «direcção de interesses» é assinalada, no quadro, pelas setas.
10
Id.: 434.
11
Cf. id.: 435.
12
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição; Júlio Dinis, Uma Família Inglesa; Vergílio Ferreira,
Manhã Sumersa; Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal; Eça de Queiroz, O Primo Bazílio; Alves
Redol, Avieiros.
247

Portuguesa, destinado, por isso, sobretudo a estudantes do ensino superior que começam
a estudar esta(s) matéria(s), quer na sua complexidade global, quer a propósito de temas
mais particulares, a autora não terá desenvolvido a problemática dos actos directivos
quanto a sua complexidade exige. Trata-se, porém, duma abordagem que permite uma
clarificação, a nível semântico e pragmático, dos principais actos directivos, à luz das
relações de cortesia. A propósito, é de referir que a autora se situa, apenas, no quadro
teórico proposto por Leech,13 embora ao longo do artigo nunca lhe faça referência.

O acto directivo da ordem ou injunção e a sua expressão, mais ou menos cortês,


em Português europeu contemporâneo, é também analisado por Carreira, na sua disser-
tação de doutoramento,14 a que já nos referimos.15 Além disso, trata a problemática dos
actos directivos em geral, na sua estreita relação com os fenómenos da cortesia linguís-
tica, em vários estudos dispersos que recentemente reuniu em volume.16
Em todos estes estudos, a linguista descreve os processos semântico-pragmáticos
que a Língua Portuguesa põe à disposição para a realização, com maior ou menor corte-
sia, dos actos directivos, directa ou indirectamente, que meios linguísticos e paraverbais
(entoação) utilizar para atenuar a ameaça que a realização directa de tais actos acarreta
(sobretudo) para a face negativa do alocutário. Em resumo, tais processos situam-se ao
nível da indirecção, da desactualização temporal e/ou modal, e do recurso a formas e
fórmulas de cortesia.
Interessa-nos, agora, verificar o que a autora entende por acto directivo de ordem
ou injunção, e por actos mais ou menos indirectos da sua realização, ou seja, que actos,
com valor injuntivo, são utilizados também para realizar, indirectamente, uma ordem
com maior ou menor cortesia ou descortesia. A autora considera que a ordem, isto é, a
realização directa e manifesta da ordem, se situa num pólo ou área polar de um eixo, e
que as suas realizações indirectas se situam num pólo ou área polar oposto, situando
nesta última o pedido, o conselho, a sugestão e o desejo, desde que realizados com
«valor injuntivo», como frisa.17 Para a descrição semântico-pragmática do acto da
ordem directa e das usas realizações indirectas, a linguista parte da «classe conceptuelle,
sous-jacente aux manifestations linguistiques à valeur injonctive», a saber, «FAIRE EN

13
Para uma visão de síntese deste modelo de análise, ver, supra, cap. II, 1.2.
14
Cf. CARREIRA, 1995.
15
Ver, supra, cap. V, 1.
16
Cf. CARREIRA, 2001.
17
Cf. id.: 86 e 107, ou, supra, cap. V, 1.3..
248

SORTE QUE L’AUTRE AGISSE (un DIRE, un FAIRE).»18 Explicitando, acrescenta


que, de um ponto de vista comunicativo,

«le JE vise à provoquer un changement dans le comportement du TU, mais ce change-


ment ne peut se produire que si le VOULOIR/POUVOIR du TU est en syntonie,
quelque peu soit-il avec le VOULOIR FAIRE L’AUTRE (= TU) AGIR du JE.» 19

E mais adiante, ao sintetizar as descrições feitas da injunção e dos actos que,


com valor injuntivo, a substituem (pedido e conselho), como realização indirecta e ate-
nuada ou cortês, resume como segue o acto directo da ordem:

«Le VOULOIR du JE s’impose au TU en vue de la satisfaction du JE.»20

A noção de ordem, enquanto acto directivo directo, proposta pela autora, é, em


nosso entender, incompleta, por não ter em consideração todos os aspectos necessários à
felicidade ilocutória da sua realização. Há, de facto, na sua noção, como descreve, um
locutor que quer que o seu alocutário faça ou diga qualquer coisa, mas desde que o
segundo possa ou queira fazer o que o locutor quer. Acrescenta ainda que o querer do
locutor se impõe ao querer ou poder do alocutário e que a resposta deste se destina a
satisfazer o querer daquele.
Estamos, a nosso ver, perante a noção comum de ordem, isto é, aquela que inclui
tanto as ordens reais (objectivas e subjectivas), como as ordens aparentes. Não é releva-
do o aspecto de poder do locutor, não enquanto capacidade, mas sobretudo enquanto
autoridade, apesar de se dizer que o querer do locutor se impõe ao alocutário. Querer
impor a sua vontade não é suficiente, para que haja ordem. É preciso que aquele que
ordena tenha poder (legítimo ou não) para a impor e que tal poder seja reconhecido
(socialmente ou por meios violentos) pelo alocutário. Por outro lado, é dado como efeito
desejado, com a realização da ordem, a satisfação do locutor. Ora acontece que nem
sempre uma ordem visa a satisfação do locutor. Pode satisfazer o próprio alocutário ou
terceiros. Pode, por outro lado, visar apenas impedir (ou prevenir) a realização de algu-
ma acção, cujo efeito prejudicaria o locutor, o alocutário ou terceiros. Além disso, como

18
Id.: 104.
19
Id.: 107.
20
Id.: ibid.
249

acima foi referido por Casanova, uma ordem não é para ser satisfeita, mas para ser
cumprida. Daí que o seu incumprimento esteja sujeito a sanções, mesmo que estas não
venham a ser aplicadas.
Outro aspecto em relação ao qual discordamos diz respeito ao poder ou querer
do alocutário. Numa situação de ordem legítima, o poder do alocutário não significa
autoridade, mas apenas capacidade ou possibilidade para fazer o que o locutor ordena.
E quanto ao querer, o alocutário, numa situação de ordem objectiva ou subjectiva, não
tem propriamente querer, mas obedecer. A vontade do alocutário, numa situação de
ordem, não é tida em conta, regra geral. Repare-se nas expressões que, por vezes,
acompanham as ordens, quando o alocutário se recusa a obedecer:

Quer queira(s) quer não / Queira(s) ou não queira(s) / Aqui não há querer ou não que-
rer / Aqui a sua / tua vontade não conta / Neste caso, o seu / teu querer nada vale,
vai(s) fazer X, dizer Y, ou mesmo ser Z.

O par poder / querer, isto é, ser capaz de agir e ter vontade para agir faz parte
da definição do pedido, desde que o efeito desejado reverta a favor do próprio locutor.
Esta é, aliás, a definição semântico-pragmática que, com outras palavras, dá de pedido
(«demande») a autora:

«L’accomplissement du VOULOIR du JE est sous la dépendance du VOULOIR du TU.


C’est la satisfaction du JE qui est visée.»21

Só que esta é a definição de pedido que a autora dá como forma de realização


indirecta do acto da ordem, definição que, em nosso entender, é de pedido, desde que
não seja injuntivo, isto é, desde que não seja uma ordem disfarçada de pedido. Porque
numa ordem, mesmo quando formulada indirectamente, a realização da vontade do
locutor nunca está dependente da vontade do alocutário. Dá-se a entender que está, sem
de facto estar, por estratégia polifónica de cortesia, ou exercício de poder mal assumido.
A autora define, por outro lado, o conselho, com valor injuntivo, isto é, enquanto
realização indirecta da ordem, nos seguinte termos:

21
Id.: ibid.
250

«Le SAVOIR du JE est mis au service de la satisfaction du TU. Pour que celle-ci soit
effective, le VOULOIR du TU est nécessaire.»22
O que aqui temos é uma definição de conselho, independentemente de ser injun-
tivo ou não. O locutor põe o seu saber (que é também, como se sabe, uma forma de
poder) ao serviço do alocutário. Numa situação injuntiva, porém, o que temos é uma
ordem disfarçada de conselho e não um conselho propriamente dito. E as razões para
optar pelo conselho (realização indirecta da acto da ordem) serão certamente as mesmas
que foram indicadas para fazer um pedido, em vez de se dar uma ordem directa: questão
de cortesia ou exercício tímido ou incompetente do poder ou autoridade.
Quando se convoca o querer do alocutário (v.g., «Queira ter a bondade de
sair!», «Quer / queres ter a bondade de sair?») não se está a colocar, de facto, a realiza-
ção efectiva do objectivo ilocutório da ordem na dependência do vontade do alocutário,
mas antes a intensificar ou a atenuar, por indirecção e desactualização temporal e/ou
modal, conforme o co(n)texto de ocorrência, a realização dessa ordem. O facto do locu-
tor realizar, por cortesia real ou aparente,23 em vez do acto directo da ordem, um acto
indirecto com o mesmo objectivo ilocutório, seja ele um pedido ou um conselho, um
desejo ou uma sugestão, não faz de cada um destes actos uma ordem, apenas a «masca-
ra», ou seja, realiza-se uma ordem indirectamente (implicitamente), formulando direc-
tamente (explicitamente) outros actos ilocutórios. Um processo, como temos referido,
também de polifonia enunciativa ao serviço da cortesia verbal, isto é, das boas relações
entre os interactantes e das suas práticas discursivo-textuais.
O alocutário, ao ser sancionado por não ter cumprido uma ordem indirecta, dada
por um locutor legítimo, não poderá advogar, em sua defesa, que o que o locutor lhe
comunicou foi um pedido ou um conselho. Está subjacente a esta observação uma outra
a que nem sempre se dá a devida atenção: a importância duma competência de comuni-
cação, desenvolvida não só ao nível da produção, mas também ao nível da recepção,
competência que tem de incluir uma dimensão pragmática também ao nível da cortesia
linguística. Para que, por exemplo, ninguém seja «condenado» por ter tomado um pedi-
do, um conselho ou uma sugestão por ordem, ou o contrário.

22
Id.: ibid.
23
Exemplo típico de ordem indirecta, formulada com cortesia aparente, verifica-se quando um professor,
depois de ter admoestado determinado aluno (a quem trata por tu) por comportamento incorrecto, decide
expulsá-lo da sala de aula dirigindo-lhe, em vez de «Sai!», «Fora!», ou «Rua!», o seguinte enunciado,
com a entoação apropriada: «Queira ter a bondade de sair!» Neste caso, a cortesia é irónica e serve apenas
para intensificar a ordem dada, evidenciando a diferença de lugares que, institucionalmente, um e outro
ocupam, ou seja, o poder / autoridade de um (professor) e o dever de respeito e obediência do outro (alu-
no).
251

A sanção, nestes casos, poderá ser aplicada ou não e, a sê-lo, através de sanções
mais ou menos pesadas. Poderá ser apenas uma repreensão ou observação verbal, mais
ou menos directamente formulada, com maior ou menor cortesia (irónica ou não). Por
exemplo, o locutor que indirecta, mas legitimamente deu uma ordem, poderá
dizer/comentar:

«Não foi isso que eu lhe / te disse [i.e., mandei] para fazer!»
«Porque não fez / fizeste como eu lhe / te disse / pedi / sugeri / aconselhei [i.e., man-
dei]?»
«Desculpe / a, mas vai / s fazer isto de novo, tal como eu lhe / te disse / pedi / sugeri /
aconselhei [i.e., mandei]!»
«Está bem, mas não foi isso o que eu lhe / te pedi [i.e., mandei]!»
«Está bem, mas para a próxima faz / es como lhe / te disse [i.e., mandei]!»

Trata-se de comentário(s) a actos de discurso que só aparentemente foram pedi-


dos / desejos / conselhos / sugestões / avisos, do mesmo modo que há ordens aparentes,
isto é, actos mais ou menos directivos que, apesar de acompanhados ou não de formas
ou fórmulas de cortesia, não passam de pedidos, desejos, conselhos, sugestões ou avi-
sos.

Resumindo, não é por ser formulado como sendo outro acto directivo, com mais
ou menos cortesia, ainda que com valor injuntivo, que uma ordem deixa de ser ordem,
isto é, pode deixar de ter de ser cumprida e o seu incumprimento deixar de ser sancio-
nável. As próprias escolhas lexicais e morfossintácticas exigem coocorrências metalin-
guísticas, ao nível do efeito perlocutório desejado, que respeitam aqueles valores
semântico-pragmáticos. Diz-se que uma ordem foi ou não foi cumprida, que um pedido
foi ou não foi atendido, que um desejo foi ou não foi satisfeito, que um conselho ou
sugestão foi ou não foi seguido.

2. Impositividade e cortesia / descortesia

Vem a propósito retomar-se a questão colocada por Emília Pedro, sobre se certos
pedidos são ou não impositivos, por um lado, e a importância que a impositividade tem
252

no modelo teórico de Brown & Levinson, por outro. Para os autores de Politeness, na
leitura da linguista portuguesa, «os pedidos envolvem sempre algum grau de imposi-
ção» e, portanto, pedir cortesmente é «uma questão de ter cuidado na minimização de
imposições», o que se consegue «usando os meios de atenuação adequados.»24 Ora,
segundo a autora, na sociedade portuguesa (como na grega, segundo Maria Sifianou,
onde existem «fortes relações de dependência grupais e uma certa “desconfiança” insti-
tucional»), «a “instituição”, psico-socialmente mais próxima, do amigo ou do “padri-
nho”, parece produzir mais espaço de confiança do que a instituição na sua forma
impessoal e distante.»25 Conclui a autora que há, por isso, situações em que os pedidos
não são interpretados como imposições, isto é, «quando os participantes têm determina-
dos direitos e obrigações de realizar actos particulares, específica, cultural e situacio-
nalmente (eu [i. e., Pedro] acrescentaria institucionalmente) condicionados, ou quando o
resultado de um pedido beneficia directa ou indirectamente o interlocutor.»26
Nesta ordem de ideias, Emília Pedro é de opinião que, em Português e em Por-
tugal, «pedir um “copinho de água” dificilmente será considerado uma imposição, tanto
mais que o uso do diminutivo acrescenta mitigação.» E, reforçando a sua interpretação,
acrescenta que, «mesmo sem usar o diminutivo, pedir um copo de água ao empregado
do café ou a um amigo que visitamos, estará longe de ser considerado uma imposição»,
porque se trata, no primeiro caso, de ter «o direito a um serviço» e, no segundo, de «um
pedido agradavelmente satisfeito.»27
É de referir que Brown & Levinson consideram que os pedidos, melhor, a for-
mulação atenuada de pedidos constitui também realização de estratégias de cortesia
positiva e não apenas de cortesia negativa. Depende da relevância que cada um dos fac-
tores D (distância social), P (relação de poder) e G (grau de imposição do FTA), além
de outros, tem na avaliação de R (o risco global) 28 de um FTA, realizado pelos interlo-
cutores, em determinadas circunstâncias. Assim, por exemplo, para Brown & Levinson,
enunciados como:

(a) «Got the time, mate?»


(b) «Mind if I smoke?»

24
PEDRO, 1993: 409-410.
25
Id.: 410-411.
26
Id.: 410.
27
Id.: 410.
28
Cf., supra, cap. II, 1.3.
253

(c) «Hey, got change for a quarter?»

realizam FTA’s, mas com recurso a estratégias de cortesia positiva. Já enunciados como
os seguintes realizam FTA’s, mas com recurso a estratégias de cortesia negativa.

(d) «Excuse me, would you by any chance have the time?»
(e) «Excuse me sir, would it be all right if I smoke?»
(f) «Look, I’m terribly sorry to bother you but would there be any chance of your lend-
ing me just enough money to get a railway ticket to get home? I must have dropped
my purse and I just don’t know what to do.»

A distinção entre as frases (a) e (d) reside, segundo Brown & Levinson, no facto
do factor D ser o único a variar, no entendimento que o locutor tem relativamente ao seu
alocutário, «where the relative power of S and H is more or less equal, and the imposi-
tion is not great.»29 E assim, (a) ocorrerá «where S and H were close (either known to
each other, or perceptibly “similar” in social terms)», e (d) «where (in S’s perception) S
and H were distant (strangers from different parts, say)». O que distingue, por seu turno,
(b) de (e) é a variável P, mantendo-se constantes e de baixo valor as outras duas. Nestes
casos, o “bem livre” a pedir será formulado com recurso a (b), se for um patrão a diri-
gir-se a um empregado, ou com (e), se a situação for a inversa, i. e., o empregado a diri-
gir-se ao patrão.
A diferença entre as formulações (c) e (f) radica, por último, continuando a
exposição de Brown & Levinson, no facto de ser G a única variável que muda, sendo P
de baixo valor e D de elevado valor, mas constantes. O viajante de comboio considerará
que o pedido de dinheiro para o bilhete é um FTA de alta imposição para a face do alo-
cutário e, nesse caso, utilizará (f), ou então considerá-lo-á um FTA de baixa imposição e
utilizará (c).30
Quando, por isso, Pedro põe em causa a noção de imposição e de hierarquia de
imposições, e apresenta como uma das razões o facto de Brown & Levinson terem em

29
A propósito, os autores referem como actos que encerram imposições menores («small impositions»),
os pedidos de «bens livres» («free goods»), que definem como «those things and services (like a match,
or telling the time, or giving directions) which all members of the public may reasonably demand from
one another.» [BROWN & LEVINSON, 19966: 80]
30
Cf. id.: 80-81, para citações feitas e descrições mais desenvolvidas.
254

consideração exemplos que «se referem, claramente, a imposições menores»,31 convém


recordar que, como se viu no que acaba de ser exposto, a avaliação do grau de imposi-
ção de um pedido, mesmo que se trate de “bens livres”, não resulta apenas do conteúdo
proposicional do acto de discurso, mas também das formas verbais utilizadas na sua
formulação. Um e outras condicionados, inevitavelmente, pela relação interpessoal (de
poder e/ou de distância) existente entre os interactantes, ou desejada pelo locutor, ou da
maior ou menor vontade e necessidade que o locutor tem de ver esse acto perlocutoria-
mente satisfeito, tal como das condições co(n)textuais em que o acto se realize, bem
como da competência de cortesia que o locutor possua, a nível verbal, paraverbal e
mesmo não verbal. Tudo isto tem influência, por outro lado, no recurso às formas de
cortesia a utilizar, mais ou menos elevadas, em maior ou menor número, o que se reflec-
te também nas práticas discurso-textuais mais ou menos extensas.
Como observa Kerbrat-Orecchioni, a propósito precisamente das diferentes rea-
lizações linguísticas de cortesia que os pedidos podem ter nas diferentes línguas e cultu-
ras, é de ter na devida conta, em primeiro lugar, os factores contextuais, mas, ao mesmo
tempo, que «la politesse d’une requête doit être proportionnelle au “degré d’imposition”
qu’elle représente pour le destinataire» e que «le degré de politesse d’un énoncé de re-
quête repose non seulement sur la formulation de l’acte lui-même, mais aussi sur ses
divers [procédés] accompagnateurs».32 Uma questão de competência comunicativa, ao
nível da cortesia verbal, numa palavra:

«A person who is skilled at assessing such rankings, and the circumstances in which
they vary, is considered to be graced with “tact”, “charm”, or “poise”.»33

Para nós, porém, dentro do modelo de cortesia linguística proposto pela linguista
francesa, na continuação e desenvolvimento do modelo de Brown & Levinson, não só
enunciados como (d), (e) e (f), mas também enunciados como (a), (b) e (c), em Portu-
guês e em Portugal, encerram estratégias de cortesia negativa, na realização dos respec-
tivos FTA’s. Embora nos primeiros se encontrem processos de atenuação de um pedido

31
PEDRO, 1993: 413.
32
KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 43. Para uma análise sobre a variação intercultural na realização
cortês dos pedidos, com abundante referências a estudos, contrastivos ou não, realizados por outros lin-
guistas, cf. id.: 40-44. Também em KERBRAT-ORECCHIONI, 2000, onde a linguista traça as linhas
gerais de uma abordagem dos actos de linguagem numa perspectiva intercultural, nos seus valores ilocu-
tórios e de retórica interaccional, no quadro da cortesia linguística.
33
BROWN & LEVINSON, 19966: 78.
255

mais desenvolvidos e em maior número, nos segundos a sua formulação é acompanhada


também de processos de atenuação (por substituição e/ou compensação) que também
protegem, objectivamente, a face negativa e/ou positiva do alocutário e, indirectamente
(pelo efeito de «boomerang»), as faces negativa e/ou positiva do locutor. Sendo certo,
porém, que, nestes últimos enunciados, os processos de cortesia são em menor número e
apontam para níveis de cortesia mais baixos.
Em nosso entender, não é só o facto de locutor e alocutário serem conhecidos ou
próximos, nem o facto do locutor ocupar uma posição superior à do alocutário, nem o
facto da imposição estimada pelo locutor, em relação a um determinado acto, ser maior
ou menor, que fazem com que um pedido deixe de ser, em maior ou menor grau, uma
invasão do «território» (face negativa) e/ou um «ataque» ao «narcisismo» (face positi-
va) do alocutário. Mesmo em situações em que o efeito do pedido resulte, directa ou
indirectamente, em benefício do alocutário, frequentemente o locutor recorre a formas
ou fórmulas de cortesia. É que, em tais casos, pedir a alguém que faça alguma coisa em
seu próprio benefício não deixa de ser, em certa medida, uma interferência na liberdade
de acção do alocutário. Por outro lado, o recurso a formas de cortesia mais ou menos
desenvolvidas é também uma consequência ou uma exigência da noção que se tem da
cortesia e da sua importância nas relações com os outros. Noção e importância que têm
muito a ver, também, com as noções de face, sobretudo positiva (autoestima) que os
locutores têm de si próprios e querem dar de si próprios. Ninguém gosta, em condições
normais, de passar por descortês (ou mal-educado). Uma questão, sempre, de auto e
heterofiguração.
Recorde-se que, numa interacção verbal, a realização cortês dum FTA, como a
realização dum FFA, constituem sempre um acto psicossocial complexo, onde se encon-
tram sempre quatro faces em presença: a face positiva e a face negativa do alocutário, e
a face positiva e a face negativa do locutor. Mesmo sabendo-se que os actos de cortesia
se dirigem, em primeiro lugar e objectivamente, às faces do alocutário e só indirecta-
mente às faces do locutor.
Nesta ordem de ideias, não concordamos com a classificação e as explicações
que Pedro dá de actos que se possam realizar, com base nas seguintes proposições:

(a) pedir um copinho de água;


(b) pedir um copo de água (num café ou durante a visita a um amigo);
(c) pedir um pequeno favor;
256

(d) pedir um pouco de papel.

Segundo a linguista, trata-se de pedidos que os portugueses, nas suas comunica-


ções quotidianas, dificilmente interpretam como imposições, uma vez que ocorrem em
situações onde, por um lado, os locutores têm o direito de os fazer e, por outro, os seus
eventuais destinatários a obrigação (profissional, de prazer, solidariedade, afectividade)
de satisfazer; ou, então, porque a sua satisfação resulta em benefício directo ou indirecto
para os seus destinatários. E, assim sendo, são actos que se inscrevem nas estratégias de
cortesia positiva, uma vez que a sociedade portuguesa está orientada nesse sentido, facto
comprovado pelo uso extensivo e abundante de diminutivos pelos portugueses.
Pedro considera que (a),34 em Português, dificilmente será considerado uma
imposição, porque, além das razões co(n)textuais acima referidas, o uso do diminutivo
acrescenta mitigação. Mas a linguista não esclarece se essa mitigação diz respeito ao
objecto do pedido (conteúdo proposicional = quantidade de água) se ao próprio acto de
pedir. Não refere que relações taxémicas e/ou proxémicas existem entre os eventuais
interactantes, nem a finalidade do pedido, nem em que quadro espácio-temporal ocorre.
O conhecimento que temos do mundo leva-nos, contudo, à interpretação de que o dimi-
nutivo,35 em condições normais, visa mitigar o acto de pedir, isto é, minimizar o dano,
real ou simbólico (quase sempre mais simbólico que real), que um tal FTA causará
(sobretudo) na face negativa do destinatário. O recurso ao diminutivo é, por isso, uma
estratégia de cortesia negativa, com objectivos evidentes de atenuação, tendo em vista a
sua satisfação perlocutória.
A prova de que um pedido destes contém sempre um certo grau de imposição e
de que lesa, de alguma maneira, a face negativa do alocutário, reside no facto de que,
uma vez satisfeito o pedido, mesmo que agradavelmente praticado, o locutor não deixa
de agradecer. A não ser que a sua competência de cortesia seja muito reduzida (ou
mesmo nula) e ignore que a satisfação dum pedido, mesmo que de um copinho de água
se trate, não exige a recompensa simbólica dum simples obrigado.36 Ao não agradecer
(como ao não pedir com um mínimo de cortesia), o locutor põe em risco a sua própria

34
Atendemos agora apenas este pedido, por considerarmos que as reflexões que a seu propósito fazemos
valem, com as devidas reservas, para os pedidos formulados com base nas proposições (b), (c) e (d).
35
Sobre os valores corteses (e, por vezes, descorteses) dos diminutivos, ver, supra, cap. V, 2.2.
36
Recordem-se aquelas situações em que, depois de prestado um serviço a uma criança (que pode ser,
precisamente, um copinho de água), os pais, com o objectivo claro de lhe educarem a competência de
cortesia, lhe ensinam: «Diz (muito) obrigado(a)!, filho(a)», ou «Como se diz, filho(a)?» Evidentemente
que, se os pais forem competentes em cortesia, também agradecerão o serviço prestado.
257

face positiva, como já se referiu,37 a não ser que o alocutário saiba tanto de cortesia,
quanto o locutor. Mas se for mais competente, pode ser que, da próxima, em vez de
água, lhe sirvam antes um chá,38 adoçado com pozinhos de cortesia.
Se, por uma questão de cortesia, o amigo não deve deixar de satisfazer com (real
ou hipócrita) agrado o pedido, também por uma questão de cortesia, quem pede não
pode deixar de agradecer o pedido satisfeito (e mesmo não satisfeito39). Sempre que a
sua face negativa é (muito ou pouco) «ferida», o alocutário espera sempre que, em com-
pensação, a sua face positiva seja, de algum modo, «curada». Mesmo quando comenta,
por uma questão de cortesia, que é com (muito) prazer que satisfaz o pedido. Porque, a
este nível de análise, não é só (ou apenas) o acto ilocutório que se tem em consideração,
mas também e sobretudo o valor retórico interaccional desse acto, no estabelecimento e
preservação de harmoniosas e equilibradas relações interpessoais. Relações que só se
conseguem, em nosso entender, no respeito que os interlocutores / interactantes / co-
agentes têm pelos princípios ou regras de cortesia, sem excessos nem defeitos, de parte
a parte, conforme o co(n)texto de cada interacção verbal.

37
Na altura em que redigimos este comentário, ouvimos várias vezes, no estabelecimento onde habitual-
mente tomávamos o nosso café matinal, interacções verbais (pedidos) como a seguinte:

Cliente – Olhe, um café e um copo de água, faz favor.


Empregado (pousando as bebidas) – Com licença!
Cliente – Obrigado!
38
No sentido de que, em Português, dar chá a alguém é «censurá-lo indirectamente», «ridicularizá-lo». A
propósito, recorde-se a expressão «Não tomou chá em pequeno», relativamente a alguém que «se mostra
falto de educação, de quem é grosseiro, mal-criado». [SILVA, 1949-195910 (vol. 3): 13] A cortesia tam-
bém se educa e aprende, evidentemente.
39
Quem não assistiu ou participou já numa interacção verbal (pedido) idêntica à seguinte?

Locutor – Tem horas, por favor?


Alocutário – Não tenho relógio, desculpe.
Locutor – Obrigado!
Capítulo VIII

CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL


FORMAS SUBSTITUTAS DO IMPERATIVO
E INTERJEIÇÕES

Além dos processos linguísticos e discursivo-textuais até agora referenciados e


descritos, dispõem os falantes, escreventes e escritores da Língua Portuguesa de outros
processos, mais ou menos lexicalizados e gramaticalizados que, consoante os contextos
de ocorrência, podem realizar também valores imperativos e constituírem, por outro
lado, expressões de maior ou menor cortesia ou de descortesia verbal. Um deles é o
recurso a interjeições e a locuções interjectivas. Trata-se de formas linguísticas geral-
mente esquecidas e ainda insuficientemente estudadas, apesar da sua recorrência nas
práticas discursivo-textuais e dos valores pragmáticos que nelas expressam e desempe-
nham. Decidimos, por isso, dedicar-lhes este capítulo, no quadro das estratégias portu-
guesas de cortesia / descortesia linguística que temos vindo a descrever.

1. Formas substitutas do imperativo

Cunha & Cintra, no registo que fazem de formas substitutas do imperativo, refe-
rem que uma ordem pode ser realizada por frases nominais e por «simples interjeições».
Por exemplo, quando se diz «Fogo!», por «Atire! Faça Fago!», ou «Silêncio!» por
«Cale-se! Faça silêncio!», ou «Avante!», por «Siga avante!», ou «Mãos ao alto!», por
«Levante as mãos! Ponha as mãos ao alto!» Explicam os gramáticos que, em tais cons-
truções, «a supressão do verbo reforça o tom de comando», uma vez que «perdem o seu
valor próprio para denotar uma ideia verbal de acção.»1

1
CUNHA & CINTRA, 1984: 476.
260

Além destas, muitas outras formas, doutras categorias gramaticais, podem reali-
zar, em ocorrências mais ou menos isoladas, tanto actos directivos (que não apenas a
ordem) como de outro tipo. Referimos, a título de exemplo:

a) advérbios, v.g. «(Mais) Acima!», «(Mais) Abaixo!», «Depressa!», «Devagar!», etc.);


b) conjunções («E?!...», «E depois?...», «E então?», «Mas?...», «Quando?», etc.);
c) numerais («O decálogo é constituído por dez mandamentos. Primeiro?...»);
d) pronomes («Qual?», «O quê?», etc.), etc.

Para que cada uma das formas anteriores constitua a realização concreta dum
acto discursivo-textual, seja de que tipo for, com valores de cortesia ou descortesia, é
necessário, por um lado, que ocorra em co(n)texto adequado e que, por outro, esteja
orientado, directa ou indirectamente, para a valorização (cortesia) ou a desvalorização
(descortesia) da(s) face(s) do(s) alocutário(s), ou para a desvalorização (por modéstia
cortês) da face do locutor.
Tomemos em consideração, por exemplo, a forma «Fogo!». Proferida em vez de
«Atire! Faça fogo!», será uma ordem ou comando, se a sua ocorrência se verificar num
co(n)texto de guerra, de instrução militar, ou escola de tiro. Nestes casos, trata-se de
ordem proferida por alguém com autoridade para a dar e cuja acção ordenada (disparar)
se quer realizada rápida e imediatamente. Noutros co(n)textos, aquela frase nominal
poderá ser um pedido de socorro.
Por exemplo, nas aldeias, os incêndios são (ainda) anunciados pelo toque a reba-
te do sino da igreja e por gritos de «Fogo!»
Pode ser também um aviso. Rebentamentos em pedreiras eram anunciados por
«Fogo!», prevenindo quem se encontrasse no respectivo raio de acção.2
Pode ainda ser um simples pedido. Uma pessoa, com cigarro nos dedos, aproxi-
ma-se de outra e pede «Fogo, por favor!»
Pode constituir ainda uma oferta. Uma pessoa que vê outra de cigarro apagado
prontifica-se a acender-lho, perguntando: «Fogo?...»3

2
Recordam-se tempos de infância vividos em aldeia situada a sul do concelho de Ponte de Lima, onde,
com excepção dos rebentamentos em pedreiras, o aviso e o pedido de socorro contra incêndios continuam
a fazer-se do mesmo modo.
3
É de observar que, se até há bem poucos anos, oferecer um cigarro era uma cortesia, hoje tal gesto (gen-
tileza) começa a ser visto como descortesia, dada a consciência que as pessoas vão tendo sobre os malefí-
cios do tabaco. Já se ouve responder, entre amigos, a quem oferece um cigarro: «- Queres-me matar,
não?» E há quem chame aos cigarros «pregos para o caixão!»
261

Além destes e outros valores, «Fogo!» pode ainda ocorrer como interjeição,
exprimindo irritação, admiração, espanto, indignação, dor, desagrado, etc., usada, nor-
malmente, como eufemismo do palavrão «Foda-se!»4
É sabido que, em casos de urgência (v.g., pedido de socorro), exercício do poder
das autoridades legítimas (v.g., tribunal, polícia) ou ilegítimas (v.g., assalto), ou de ins-
trução, as regras de cortesia ficam suspensas no realização do acto. O exemplo dos auto-
res da Nova Gramática inscreve-se, evidentemente, neste quadro. A forma «Fogo!»,
como outras frases nominais, pode expressar também cortesia, no caso da oferta, ou
seja, quando o acto ilocutório visa beneficiar o alocutário. É, porém, descortesia, no
caso de interjeição-palavrão eufemística, mesmo quando usada para expressar ou acom-
panhar a expressão de admiração por alguém ou alguma coisa.
Tal descortesia será mais ou menos forte, consoante os co(n)textos de ocorrên-
cia. Em certos locais, na presença de certas pessoas, a cortesia proíbe o uso de pala-
vrões, ainda que eufemísticos. É admissível (desculpável) que um jovem manifeste a
outro a sua admiração por uma bela rapariga que vê passar, dizendo «Fogo, que
mulher!»
Se for proferido de modo que ela ouça, o comentário será um piropo cortês, ain-
da que as boas maneiras não aconselhem o uso de galanteios deste tipo, pelo menos em
público. Mas se o mesmo jovem disser a um colega «Fogo, tens cá uma máquina!»,
exprimindo a sua admiração pelo novo carro do amigo, é mais elevada a cortesia
expressa, uma vez que o elogio se centra no objecto e não na própria pessoa. Num caso
como noutro, a interjeição «Fogo!» reforça a admiração (sincera ou fingida) do jovem
pela beleza da rapariga e pela beleza ou potência do automóvel.
Trata-se dum processo de cortesia positiva, realização de FFA’s, orientados
sobretudo para a valorização da face negativa («território») do outro. Directamente (alo-
cutivamente), no caso do carro, indirectamente (delocutivamente), no caso da rapariga.
Advérbios, em contextos adequados, empregam-se também como substitutos do
imperativo, na realização de actos de maior ou menor directividade, com graus diferen-
tes de cortesia ou de descortesia. Por exemplo: na noite em que raptou Brízida, António
Malhadas, chegado com ela, montados no «machito», ao cimo dos montes Adominguei-
ros, onde havia «cortes de gado para os pastos de verão», ordenou «– Abaixo, Brízida

4
Cf. DLPCACL (vol. I), 2001: 1778; NEVES & SANTOS; 2001: 60 e PRAÇA, 2001: 114
262

[...] Vamos aqui pernoitar.»5 O advérbio abaixo, neste co(n)texto, concentra um acto
directivo de ordem ilegítima, cuja paráfrase é «Desce do cavalo, Brízida. [...]» A forma
concentrada do acto directivo, reduzida ao advérbio, intensifica, por um lado, a ordem
dada e, por outro, apresenta a acção ordenada como inquestionável e de obediência
imediata. Ordem, todavia atenuada, quer pelo vocativo do nome próprio da moça, quer
pela justificação acrescentada, ainda que formulada também com alguma imperativida-
de / directividade, através da realização da primeira pessoa do plural do presente de ver-
bo ir + infinitivo do verbo principal.6 Entendemos que, no co(n)texto narrativo do epi-
sódo, não nos parece que se possam invocar, neste caso, os valores de atenuação e
sobretudo de cortesia do nós inclusivo. António Malhadas rapta Brízida contra sua von-
tade e força-a a entrar na corte para passarem o resto da noite, com o bjectivo inconfes-
sado, mas pressentido, de fazer da donzela (sua) mulher.7

2. As interjeições

Como vimos, algumas destas formas também ocorrem, frequentemente, como


interjeições. E as interjeições podem ser também formas imperativas e simultaneamente
realizar e/ou acompanhar a ocorrência de diferentes actos discursivo-textuais, mais ou
menos corteses ou descorteses. Analisemos, por isso, os seus valores a este nível.
A interjeição é definida por Cunha & Cintra como «uma espécie de grito com
que traduzimos de modo vivo as nossas emoções», ou seja, «sentimentos súbitos e
espontâneos» que equivalem «a frases emocionais», não sendo de incluir, por isso,
«entre as classes de palavras».8 Habitualmente subcategorizadas consoante o sentimento
que expressam, este «depende fundamentalmente do contexto e da entoação».9
Cuesta & Luz, consideram que existe em Português, como no Espanhol, uma
grande variedade de interjeições e de locuções exclamativas, muitas delas coincidentes,

5
RIBEIRO, 1989; 54. Itálico da nossa responsabilidade. É de esclarecer que o Malhadinhas acrescentou
ainda outra explicação, terminando com (nova) informação, também ela com valor de ordem, naquele
co(n)texto: «A noite está escura como breu e caminhos mais estuporados não os trilhou Cristo quando
veio a este mundo para salvar os pecadores. Amanhã, com a alba, rompemos.» [Id.: ibid.]
6
Ver, supra, cap. VI, valores semântico-pragmáticos, a propósito das estruturas perifrásticas das formas
do presente ir + infinitivo do verbo principal.
7
«Entrámos para a cortinha bem lastrada de mato, com um alpendre de giestas a agasalhá-la do cieiro.
Entrámos é um modo de dizer, que foi-me preciso dar-lhe um bom empurrão. Acomodei o machito ao
fundo; com a roupa do aparelho armei a cama. E ali, sem mais testemunhas que Deus do céu, depois de
breve briga – tinha de ser – da coitanaxa fiz dona.» [RIBEIRO, 1989: 54]
8
CUNHA & CINTRA, 1984: 587 e 588.
9
Id.: 587.
263

ainda que sem correspondência no significado. As autoras apresentam uma lista das
interjeições portuguesas, incluindo as que são usadas para atrair ou afastar animais.10
Resumimos, no quadro seguinte (FIG. 1), os valores das interjeições / locuções
interjectivas que Cunha & Cintra e Cuesta & Luz registam nas respectivas gramáticas:

INTERJEIÇÕES / LOCUÇÕES INTERJECTIVAS VALORES


ah!; oh!; ai!; óptimo!; magnífico!; belo!; estupendo! Alegria
avante!; coragem!; eia!; vamos!; bis!; bem!; bravo!; viva!; mag- Animação, aplauso entu-
nífico!; hip; hip hurra!; muito bem!; ânimo!; anda!; agora!; olé! siasmo
oh!; oxalá!; tomara eu!; quem me dera!; Deus queira!; Deus o Desejo
permita!; prouvera a Deus!; quem nos dera!
ai!; ui!; ah!; oh!; ai, de mim!; ai, meu Deus!; Deus meu! Dor
ah!, chi!, ih!, ué!, oh!, olá!, olé!, eia!, ena!, ih caramba!, cáspi- Admiração, espanto ou
te!, essa é boa!, ora toma! surpresa
hum!, hem!, irra! Impaciência
alô!, ó!, olá!, psiu!, psit!, escuta!, ouve cá!, olha lá!, cuidado! Invocação, chamar a aten-
atenção!, cautela!, socorro! ção, pedir socorro
psiu!, pschiu!, schiu!, chut!, caluda!, cale-se!, pouco barulho!, Pedir ou impor silêncio
silêncio!
alto!, basta!, alto lá!, morra!, abaixo!, fora!, safa!, credo!, apre!, Suspensão, indignação,
irra!, abrenúncio!, basta!, diacho!, diabo! repulsa, cólera
ui!, uh! Terror
ai!; hui!; uf!; ai, Jesus!; oh!; valha-me Deus!; coitadinho!; meu Desagrado ou pena
Deus!; ai de mim!; coitado do homem!; que pena! Raios te par-
tam; ora bolas;
hum!; heim! Dúvida, falta de confiança
bich-bich!; prr, prr!; te, te, te!; pio, pio!; xó!; xó-xó!; uxtix!; Chamar ou afastar animais
uxte!

FIG. 1 – Interjeições portuguesas, com base em CUNHA & CINTRA, 1984: 587 e CUESTA & LUZ,
1971: 461-462.

O quadro não mostra, como é óbvio, todas as interjeições utilizadas pelos portu-
gueses, nem todos os valores que podem expressar nas diferentes práticas discursivo-
-textuais. Trata-se duma categoria aberta e a lista pode ser enriquecida com consultas de
outras gramáticas, dicionários, guias de conversação, manuais de ensino do Português,
mas principalmente através da leitura e registo de ocorrências realizadas em práticas
discursivo-textuais orais e escritas, sabendo-se, de antemão, que a exaustividade será
difícil.
Uma recolha e classificação, baseada na análise das respectivas ocorrências
co(n)textualizadas, segundo os seus valores corteses e descorteses, faria exceder, larga-
mente, os limites e os objectivos deste estudo. Cabe referir, todavia, a tentativa levada a
10
Cf. CUESTA & LUZ, 1971: 461-462.
264

cabo por Delmira Maçãs, em estudo publicado em 1976, onde faz um levantamento de
interjeições e respectivos valores semântico-pragmáticos que, integradas no conjunto
das «fórmulas interlocutórias», os portugueses utilizam em diálogos coloquiais. Seguin-
do estudo de Jutta Gorgas sobre o uso de tais fórmulas, com características comuns ao
Espanhol e ao Francês, a autora portuguesa agrupa as interjeições do Português confor-
me a classificação feita pela autora alemã, registando ocorrências e propriedades
comuns às três línguas, e acrescentando as que são específicas da nossa. Apresenta,
depois, uma longa lista de palavras e de expressões (cerca de 750), colhidas em transcri-
ções de conversas, na audição de entrevistas radiofónicas e sobretudo em textos literá-
rios (romances e teatro), que depois agrupa segundo uma exagerada e por vezes redun-
dante classificação onomasiológica, em 70 categorias.11
No conjunto das fórmulas interlocutórias que regista, encontram-se interjeições e
exclamações, perguntas retóricas e de cortesia, formas de tratamento corteses e descor-
teses (insultos), formas e fórmulas de cortesia (saudação, agradecimento, atenuação e
reforço), figuras retóricas, etc.
No que às interjeições portuguesas diz respeito, Maçãs descobre, nas ocorrências
analisadas, valores que podemos integrar no quadro acima apresentado. O seu inventá-
rio permite verificar que uma mesma interjeição ou locução interjectiva pode realizar,
consoante o co(n)texto, valores semântico-pragmáticos e discursivo-textuais diferentes.
Por outro lado, ao mesmo tempo, um mesmo sentimento pode ser expresso por diferen-
tes interjeições ou locuções interjectivas. Por exemplo, a interjeição ha! expressa,
segundo a recolha e interpretação da autora, admiração agradável, desgosto, espanto,
prazer, surpresa agradável ou desagradável, podendo funcionar ainda como forma ape-
lativa e de intensificação, bem como para retardar e fazer a transição discursiva.12 Mas
o sentimento, por exemplo, de admiração, mais ou menos agradável, pode ser expresso
também através das interjeições am!, anh!, ham!, apre!, arre!, ena!, hom!, caramba!,
safa!, bestial!, boa!, uma (coisa) assim!, não me diga(s)!13
De facto, como observa Vilela, uma mesma expressão interjectiva pode ter «uma
ampla bateria de valores e sentidos», como seja «alegria, ódio, receio, etc.»14 O autor

11
Cf. MAÇÃS, 1976. A autora toma como modelo de classifcação o estudo de GORGAS, J., 1969:
Begleitformen des Gesprächs im Französischen und Spanischen (Inaugural-Dissdertation zur Erlangung
der Doktorwürde der Pgilosophischen Fakultät der Albert-Ludwigs- Universität zu Freiburg im Breisgau),
de que fez recensão crítica no vol. XVI da Revista Portuguesa de Filologia, 1972-74: 2-4.
12
Cf. id.: 167-168.
13
Cf. id.: 162-179.
14
VILELA, 1995: 210 e 211.
265

não menciona, explicitamente, as interjeições no conjunto dos processos imperativos de


realização da ordem, mas observa que se integram no discurso, «como formas de sauda-
ção e cumprimento, formas de cortesia e de diálogo, ou expressões parentéticas, etc.»
Apesar de, em seu entender, não terem qualquer caracterização morfológica e sintáctica,
por se situarem fora da frase, as interjeições fornecem à semântica desta valores emo-
cionais importantes, para exprimir, «de forma condensada sentimentos e emoções».15 O
significado das interjeições depende, porém, do co(n)texto, onde a entoação, a mímica,
o gesto do falante, etc., desempenham também um papel importante.16
Muito pouco estudadas ainda em Português,17 como aliás noutras línguas,18 as
interjeições têm vindo a merecer, nos últimos tempos, a atenção de linguistas, em parti-
cular daqueles que centram o seu campo de investigação no âmbito da Linguística
Pragmática. Miguel Gonçalves procura estudar as interjeições em Português «fora dos
cânones de análise tradicionalmente utilizados»19 (entenda-se perspectivas de gramáti-
cos e linguistas «tradicionais»), a fim de lhes evidenciar «o lugar que verdadeiramente
lhes cabe na linguagem, bem diverso do carácter marginal ou “adicional” que quase
todos, sem excepção, lhes atribuem.»20
Contrariando a «fragilidade das breves análises», «a marginalização» ou «defini-
tiva exclusão» a que têm sido votadas estas «partículas», o autor considera que as inter-
jeições constituem categorias gramaticais que podem e devem ser também linguistica-
mente descritas ao nível da sintaxe e da semântica intencional. E explica, justificando:

«Ao enunciarmos uma interjeição, não nos limitamos apenas a exprimir algo; fazemos
mais do que isso: manifestamos, representamos... Utilizamo-la como um “objecto dis-

15
Id.: 211.
16
A importância da entoação e do co(n)texto na realização e interpretação das interjeições é referido e
reconhecido por todos os autores que estudam as interjeições, com maior ou menor desenvolvimento.
Digamos que se trata dum universal pragmático.
17
Miguel Gonçalves observa que, a par da «floresta de enganos» que envolve a definição de interjeição,
há «um árido deserto, em termos de investigação e de produção sobre o assunto.» Isto, «entre nós», por-
que em relação a outras línguas, que não a Portuguesa, «será injusto manter, hoje, idêntica afirmação.»
[GONÇALVES, 1998: 90 e 88]
18
Apesar da ressalva feita por Gonçalves, na nota anterior, alguns autores referem que as interjeições
foram e continuam a ser pouco estudadas. Por exemplo, Haverkate observa: «La interjección es una cate-
goría cuyo estatus gramatical está poco claro, lo que se explica por el escaso interés que ha recibido en la
bibliografía lingüística.» [HAVERKATE, 1994: 198] E Antonio Jesús Camacho observa que as interjei-
ções têm sido «marginadas durante siglos por gramáticos y lingüistas». [CAMACHO, 2000: 1]
19
GONÇALVES, 1998: 93.
20
Id.: 101.
266

cursivo”, numa estratégia elaborada e dirigida a um alocutário. E é a este nível que a


interjeição se relaciona com os constituintes da frase ou com a frase em si mesma.»21

O autor não descreve os valores das interjeições ao nível das relações de cortesia
ou de descortesia, mas importa salientar o facto de, no seu estudo, ter chamado a aten-
ção para os valores informativos e sobretudo pragmáticos que as interjeições têm no
discurso, que considera o «seu campo de acção privilegiado».22
Christine Sirdar-Iskandar (que Gonçalves também cita, em parte) observa que a
interjeição «c’est le lieu privilégié où se marque l’interaction des individus», aí desem-
penhando duas funções fundamentais:

a) modalizadora, através da qual o enunciador «peut adopter des attitudes, jouer des
rôles»;
b) argumentativa, através da qual o enunciador «peut également se présenter comme
agissant sur autrui en le faisant entrer dans son jeu, en le forçant en quelque sorte à
tirer une conclusion qu’il a lui-même déterminée à l’avance».23

É sobretudo a estes níveis que, a nosso ver, as interjeições podem substituir for-
mas imperativas e realizar ou acompanhar actos de maior ou menor directividade, bem
como, por isso, expressar ou ajudar a expressar actos de cortesia ou de descortesia, entre
os interatantes.

3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa

O Português europeu utiliza uma grande variedade interjeições cujos valores lin-
guísticos (semântico-pragmáticos) e (sobretudo) discursivo-textuais, todavia, estão ain-
da por descrever e sistematizar, com o desenvolvimento e a profundidade que a sua fre-
quência e funções merecem. Não podemos realizar, neste trabalho, um levantamento das
suas ocorrências, em número significativo, de modo a podermos retirar conclusões váli-
das. É nosso intenção, todavia, prosseguir, no futuro, o estudo das interjeições portugue-

21
Id.: 95.
22
Id.: 96.
23
SIRDAR-ISKANDAR, 1980: 161. Alineação da nossa responsabilidade. Cf. também DUCROT et al.,
1980: passim; Weinrich considera que as interjeições «sont essentiellement des morphèmes phatiques
dont le sens se rapporte à l’action.» [WEINRICH, 1989: 501]
267

sas, cujas ocorrências em práticas discursivo-textuais (orais e escritas) temos vindo a


recolher, bem como bibliografia.
Observamos, porém, desde já, que as diferentes interjeições portuguesas podem
expressar ou ajudar a expressar diferentes valores, consoante os co(n)textos de ocorrên-
cia. Parece, todavia, que o seu emprego, sobretudo daquelas cuja realização mais se
aproxima dos sons instintivos produzidos pelo homem24 (ah!, eh!, nh!, ai!, ui!, etc.), é
socialmente visto como uma descortesia, ou pelo menos, pouco cortês. É o que se pode
depreender, por exemplo, deste fragmento dialogal, travado entre Rola e Florinda, em
Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro:

«- Dize cá, Florinda [...], se hoje larapiasses dinheiro, que é um supor, e tivesses de o
esconder, onde é que o metias?
- Sei lá! [...] Num buraco.
- Mas ouve, cabeça de arolo, há esconder e esconder. Esconder coisa de que ninguém
deu fé e de que ninguém anda à coca, é um cantar; esconder coisa que deu nas vistas e
que escape ao lúzio do mais pintado, é outro cantar. Estás percebendo?
- Ham?
- Ham, zurram os burros.
- Entendo-te lá, homem!
- Se suspeitasses que vinham a descobrir a ariosca, onde o metias?»25

A intervenção de Rola, comentando e censurando o uso da interjeição Ham? por


Florinda, mostra que estas fórmulas não são maneiras próprias de gente, mas de ani-

24
Herculano de Carvalho observa que está na «origem dos significantes interjectivos nas suas formas
mais típicas, - como ah!, ó!, ai!, ui!, arre!, irra!, etc. – não qualquer cópia ou imagem intencional de um
objecto sonoro, mas sons que, produzidos pelo homem, constituem prolongamentos externos, com carác-
ter instintivo – não intencional, portanto -, de estados emocionais, de perturbações internas de natureza
psico-física, como são o grito – de dor, de surpresa ou medo, de alegria -, o gemido, o suspiro, etc.» Estes
«puros indícios, da mesma natureza que um esgar de dor, ou que os sons emitidos pelos animais» trans-
formaram-se, com o tempo, em interjeições plenamente constituídas, ganhando um carácter intencional,
uma forma constante e um valor significativo, ao serem produzidos «repetidamente pelos mesmos sujei-
tos numa série de actos determinados por circunstâncias similares». O linguista considera, todavia, que
«tanto como as onomatopeias, também as interjeições não são verdadeiras palavras», porque (i) «repre-
sentam globalmente a situação a que se referem», (ii) «não desempenham função na frase», antes valendo
por si mesma como «toda uma frase» e (iii) «o conteúdo intelectual (informativo) das interjeições é
mínimo, sendo o seu significado, portanto, quase exclusivamente conotativo, de natureza emotivo-
volitiva». O autor considera, em síntese, que «temos nas interjeições sinais intencionais em que, apesar de
uma parcial convencionalidade, se conserva sem dúvida uma também parcial conexão originária natural
com o objecto – emoção – que representam», ocupando, portanto, «um lugar inteiramente marginal relati-
vamente ao sistema linguístico da comunidade a que pertencem.» [Cf. CARVALHO, 1973 (Tomo I): 194
a 198]
25
RIBEIRO, 1983b: 98. Itálicos da nossa responsabilidade.
268

mais. Por outras palavras, o seu emprego é uma descortesia, não só em relação ao alocu-
tário, mas também em relação ao próprio locutor, conforme resulta da metáfora depre-
ciativa utilizada.26 Embora o comentário de Rola também nada tenha, por isso, de cor-
tês, a verdade é que, fruto da evidente relação assimétrica de lugares existente entre os
interactantes, Florinda, compreendendo a censura do homem, substitui a interjeição pela
asserção de que não havia entendido a explicação por ele dada, sem contudo utilizar
uma negativa explícita. É a partícula «lá» que aí desempenha essa função. A interjeição
Ham?, neste co(n)texto, funciona, na sua forma elíptica, por um lado, como resposta
negativa (parafraseável por «Não estou a perceber») e, por outro, como pedido de repe-
tição (parafraseável por «Como?», ou «Repete.»)
Ao produzir uma interjeição não lexical, em vez dum enunciado, o locutor esta-
belece com o seu alocutário uma relação de proximidade e familiaridade, dada a conota-
ção da interjeição com o grito instintivo e emocional, pondo assim em causa a face posi-
tiva do outro. É por isso que, entre conhecidos, iguais e/ou próximos (sobretudo jovens),
as interjeições não lexicais (de saudação, de estabelecimento, manutenção, recuperação
ou confirmação de contacto), num co(n)texto informal, são consideradas, regra geral,
não propriamente descorteses. Já entre desconhecidos, com relações taxémicas e pro-
xémicas de relativa distância (real ou presumida), são consideradas descorteses. É por
isso também que, em co(n)textos informais de natureza polémica, em que há uma rela-
ção assimétrica (real ou presumida) de lugares entre o locutor e o alocutário, conhecidos
ou desconhecidos, o primeiro entra e/ou mantém o contacto com o segundo, recorrendo
a interjeições. É o que se verifica, a título de exemplo, nas intervenções que a seguir
apresentamos.
Durante o rapto de Brízida, o jovem António Malhadas, ao ser surpreendido por
Agostinho, pai da rapariga, acompanhado pelo padre de Britiande, também interessado
na moça, e duma «choldra sem conta» que os perseguiam, deitou mão ao bacamarte e
gritou «– Olá, amigos, que é isso?» E um pouco mais adiante, quando o povoléu em
alarido se juntou aos perseguidores, tolhendo-lhes o passo, de novo gritou o jovem
almocreve: «- Eh lá, gentes! [...] Se alguém se atravessa, está aqui está no inferno!...»27

26
Lê-se em livro relativamente recente de etiqueta e boas maneiras: «Se não percebemos qualquer coisa
que nos digam, nunca deveremos perguntar “O quê?”, e muito menos “Hã?”, pois há outras expressões
bastante mais delicadas, como por exemplo, “Desculpe, não percebi o que disse”, ou simplesmente
“Como?”» [GIÃO, 1988: 144]
27
RIBEIRO, 1989: 61 e 63. Itálicos da nossa responsabilidade.
269

Trata-se, evidentemente, de situações onde as relações entre os interactantes


nada tinham de amigável, apesar de mutuamente conhecidos e próximos. O raptor criara
com o grupo perseguidor uma relação hostil, por isso de distanciamento28 e de assime-
tria de poderes. Em tal circunstância, as cortesias deixaram de ter lugar, para o objectivo
da empresa ser bem sucedido. Tais interjeições, neste co(n)texto [e em co(n)textos
semelhantes] funcionam, por isso, como actos exortativos (com valores fáticos e de
advertência), mas descorteses. Repare-se que é o co(n)texto de ocorrência, ao nível de
cada uma das intervenções e, neste caso, ainda do discurso-texto narrativo em que se
integram, que faz com que estas interjeições expressem aqueles valores. A ausência do
co(n)texto levaria a que as mesmas interjeições fossem interpretadas como formas de
estabelecimento ou revelação de relações de proximidade e camaradagem, e por isso de
cortesia. Comparem-se as intervenções anteriores com, respectivamente, «- Olá, ami-
gos!» e «- Eh lá, gentes!», onde os vocativos de ordem afectiva e proximidade, reforça-
riam as relações e atenuariam eventuais «ataques» à(s) face(s) negativa(s) do(s) alocutá-
rio(s), causados pela «invasão» dos seus «territórios».
Cabe ainda observar que, aquelas interjeições (e outras com valores idênticos)
ocorrem, obrigatoriamente, ao nível da sintagmática, no início da intervenção, uma vez
que a sua colocação no final ou no interior do enunciado, com o mesmo objectivo ilocu-
tório, torná-las-ia agramaticais: «*- Que é isso? Olá, amigos!» e «*- Se alguém se atra-
vessa, está aqui está no inferno, eh lá, gentes!»
A primeira intervenção seria apenas aceitável, se o curioso locutor se tivesse
esquecido de saudar os amigos, circunstância que, para ser cortês, deveria depois reme-
diar, acrescentando uma intervenção reparadora. Nesse caso, a redacção da intervenção
complexa poderia ser: «- Que é isso? Olá, amigos! Desculpem não ter começado por
cumprimentá-los!» Mas neste caso, o co(n)texto já não seria, claramente, o de confron-
to. Não nos parece possível, por outro lado, que, alterando o objectivo ilocutório, haja
um co(n)texto em que a intervenção «*- Se alguém se atravessa, está aqui está no infer-
no, eh lá, gentes!» possa deixar de ser agramatical. Os valores semântico-pragmáticos
dos segmentos anteriores à locução interjectiva não consentem que se explique primeiro
e se exorte depois.

28
Distanciamento que a partícula «lá» reforça, tanto numa como noutra intervenção de António Malha-
das. Recorde-se que, como explica Herculano de Carvalho, olá! é uma forma «a respeito da qual se per-
deu inteiramente a consciência dos elementos etimológicos da sua formação», a saber, «de “Ó lá” = “ó tu
que estás lá”». [CARVALHO, 1973 (Tomo I): 198, nota)
270

Utilizámos exemplos ficcionais, mas são conhecidas interacções verbais da vida


quotidiana, como a seguinte.
Em casa (na rua, ou na escola), dois ou mais rapazes começam à bulha, ou então,
vê-se um dos grandes maltratar, física e/ou verbalmente, um dos pequenos. Alguém,
com poder (institucional, físico ou moral, reconhecido ou assumido) intervém, procu-
rando pôr fim à contenda, proferindo, muito possivelmente, como advertência e censura,
um dos seguintes enunciados, entre outros possíveis:

«Eh lá, menino/a, que vem a ser isso?!»


«Eh lá, menino/a, isso faz-se?!»
«Ei!, tu aí, que estás a fazer?!»
«Pst! / Ei! / Ó tu! / Então!, não tens vergonha?!»
«Ó, tu aí, que vem a ser isso?!»

Ou então, aquelas situações em que alguém tenta furar uma fila e é repreendido
por outrem, cansado ou não de esperar: «Eh / Ei / Ó senhor / cavalheiro / minha senho-
ra, não viu a bicha?!»

Referimos, sobretudo, ocorrências de interjeições não lexicais. Passar-se-á o


mesmo com ocorrências de interjeições lexicais, isto é, com aquelas interjeições que
constituem lexemas e expressões dotadas, apesar do seu estatuto, de relativa autonomia
referencial? Vejamos.
Encontram-se, na lista de interjeições portuguesas acima apresentada, várias
delas cujos valores semântico-pragmáticos, por um lado, se encontram já lexicalizados
e, por outro, estão mais orientados para a valorização e/ou ameaça [em contextos não
irónicos)] da(s) face(s) do(s) alocutário(s) e que, por isso, podem ser consideradas, res-
pectivamente, corteses e descorteses.
Reunimos, no quadro seguinte, as interjeições que, em tais c(o)ntextos não iróni-
cos, consideramos orientadas para a(s) face(s) do(s) alocutário(s) (A-orientadas), valori-
zando-a(s) (FFA’s) ou ameaçando-a(s) (FTA’s). Há, porém, outras interjeições que,
consoante os co(n)textos de ocorrência, tanto podem valorizar a(s) face(s) do(s) alocutá-
rio(s), como ameaçá-la(s). Trata-se de interjeições que, quando proferidas com o sentido
de, por exemplo, advertir alguém de perigo eminente, ou de ajuda e incentivo a acção, ou
271

comportamento favorável ao alocutário, realizam ou acompanham FFA’s. Quando,


porém, o seu sentido visa efeitos contrários a estes, realizam ou acompanham FTA’s.
Colocamos na coluna de «Mistas» as interjeições que podem realizar e/ou acompanhar
FFA’s ou FTA’s.29

INTERJEIÇÕES A-ORIENTADAS
De valorização (FFA’s) Mistas De ameaça (FTA’s)
Belo! Alto! Abaixo!
Bravo! Avante! Abrenúncio!
Coitadinho/a! Caramba! Basta!
Coragem! Cuidado! Bem, bem!
Estupendo! Deus queira! Fora!
Óptimo! Oxalá! Morra!
Que pena! Quem nos dera! Ora esta!
Viva! Silêncio! Toma!
... ... ...

FIG. 2 – Orientação de interjeições portuguesas para o alocutário

As interjeições lexicais, apresentadas na FIG. 2, constituem uma selecção das


apresentadas no quadro das interjeições, supra. A título de exemplo, vamos descrever os
valores semântico-pragmáticos que, ao nível da expressão de cortesia ou de descortesia,
uma interjeição de cada um dos conjuntos pode expressar.
Consideremos, por exemplo, a interjeição «Alto!», acompanhada ou não de par-
tículas de reforço e apelo. O DLPCACL dá desta interjeição as seguintes definições:

«1. Voz de comando usada para mandar parar ou suspender determinada acção ou acti-
vidade. Alto!, gritou o polícia, levantando a mão. 2. Usa-se para manifestar desacordo
com o que acaba de ser dito e para interromper o discurso. alto aí, o m[esmo] que alto.
Alto aí que esse carro é meu! alto lá, o m. que alto. Alto lá, não te admito que me fales
dessa maneira.»30

As definições 1 e 2 situam a utilização desta interjeição no âmbito dos fenóme-


nos descorteses, uma vez que se trata de actos directivos que lesam, de algum modo,

29
Para a distribuição destas interjeições, segundo os seus valores de cortesia e de descortesia, servimo-
-nos, por um lado, da nossa experiência pessoal e das definições que se encontram nas entradas do DLP-
CACL.
30
DLPCACL, 2001 (vol. I): 191.
272

a(s) face(s) do alocutário, ao serem realizados sem atenuadores. Cabe observar, porém,
que o primeiro exemplo se situa fora do âmbito dos fenómenos da cortesia / descortesia,
por se tratar duma ordem dada por uma autoridade legítima. A definição 1 pode verifi-
car-se, todavia, noutras situações, ainda com objectivos ilocutórios directivos, mas com
efeitos perlocutórios diferentes, ao nível dos benefícios que podem reverter ou não para
o alocutário.
Imagine-se, por exemplo, o seguinte contexto de ocorrência. Um condutor pára o
automóvel numa via inclinada, descuida-se e a viatura começa a deslizar em direcção a
uma parede. Um transeunte apercebe-se do caso e grita, batendo no veículo: «Alto!»
O aviso preocupado interjectivo é, neste caso, um acto A-orientado e cortês, pois
o efeito desejado é a protecção da face negativa («território» bem material, o automó-
vel) do alocutário. Trata-se, por isso, dum FFA, cuja realização exige, como contrapar-
tida, um acto reparador da parte do alocutário, se for cortês: «(Muito) Obrigado!»
Imagine-se agora que o transeunte se encontra entre a viatura e a parede. O grito
«Alto!» seria descortês, um FTA, uma vez que o efeito desejado reverteria a seu favor,
na protecção da sua face negativa («território» corporal). O acto reparador formulado
pelo condutor já não seria de agradecimento, mas de desculpa. Ainda que devesse tam-
bém agradecer, pois que o aviso do peão ter-lhe-ia evitado graves responsabilidades
civis e eventuais prejuízos materiais. Neste sentido, a última ocorrência da interjeição é,
numa primeira instância, descortês para o automobilista e cortês para o peão, mas, numa
segunda instância, também cortês para o distraído condutor.
A definição 2 dada pelo DLPCACL, referindo que a interjeição «Alto!» se usa
para manifestar desacordo e/ou interrupção da intervenção do interlocutor, situa as suas
ocorrências no âmbito da descortesia. Se não forem acompanhadas de atenuadores, repi-
ta-se. A interjeição é, nesses casos, um FTA que lesa as faces positiva e/ou negativa do
alocutário, tratando-se, por isso, de actos mais ou menos descorteses. O sentido geral
para a descortesia de tal interjeição prender-se-á, em nossa opinião, com o facto dela,
como refere o DLPCACL, ter a sua etimologia na forma alemã «halt!, imp[erativo] de
hakten», que significa parar.31 Valor imperativo que se mantém em Português e que, por
isso, é também um meio que pode substituir a realização do imperativo, no sentido de
proibição, isto é, de acção ou actividade física ou verbal que não deve ser concretizada.

31
DLPCACL, 2001 (vol. I): 191.
273

As interjeições que colocámos na coluna dos FFA’s realizam actos de cortesia


positiva, através dos quais o locutor valoriza e/ou enriquece as faces positiva e/ou nega-
tiva do alocutário. É o caso, consoante o co(n)texto, das interjeições que expressam em
relação ao alocutário, por um lado, felicitações, elogios, cumprimentos, incitamentos,
etc., e, por outro, as que expressam ou compartilham sentimentos de pesar, de dor, de
compaixão, etc. Por exemplo, a interjeição «Viva!», para o primeiro conjunto, e a inter-
jeição «Coragem!», para o segundo.
Esclarece o DLPCACL que a interjeição «Viva!» é uma exclamação que «traduz
aclamação, saudação festiva, júbilo.»32 Por exemplo, terminado o jogo do pau entre o
jovem António Malhadas e o jogador de Santa Eulália, os assistentes gritaram: «–
Vivam os valentes! Vivam! – [...] – Não há vencedor nem vencido!»33 Nesta ocorrência,
a interjeição é um FFA, uma vez que se trata duma valorização da face (no caso positi-
va) dos jogadores.34
Segundo o DLPCACL, um locutor ao utilizar a interjeição «Coragem!», visa
«incutir ânimo, força perante o sofrimento ou qualquer dificuldade», como em «Cora-
gem!, tudo se há-de resolver. Coragem!, a dor vai passar.»35 Ainda que a interjeição
encerre directividade (conselho e/ou desejo), trata-se dum FFA, pois que está orientado
para a protecção da face positiva do alocutário, ao ser uma manifestação de solidarieda-
de para com o alocutário, consolando-o e incentivando-o a vencer uma situação difícil.
As interjeições lexicais A-orientadas que realizam ou acompanham a realização
de FTA’s são descorteses, porque constituem ameaças para a(s) face(s) do(s) alocutá-
rio(s). Trata-se de expressões através dos quais o locutor reprova, abomina, critica, se
indigna, se revolta, se distancia, etc., em relação a alguém e/ou ao seu comportamento,
por um lado, ou se satisfaz, alegra, congratula, etc., com o mal que fez ou sucedeu
ao(s) alocutário(s), por outro.36 É o que se verifica, por exemplo, com o uso da expres-
são «Bem, bem!», cuja definição lexical, segundo o DLPCACL, diz que «exprime
repreensão, censura ou reprovação», como em «Bem, bem! Olha que já sabes como elas
te mordem!» Ou, então, com a locução «Bem feita!», que o mesmo dicionário diz servir
«para indicar que, na opinião do locutor, o mal que acontece é merecido», exprimindo
32
DLPCACL, 2001 (vol. II): 3769.
33
RIBEIRO, 1989: 39. Itálicos da nossa responsabilidade.
34
É de esclarecer que, de facto, sempre tinha havido um vencedor – o António Malhadas. Nem sequer os
assistentes se tinham apercebido da facilidade e rapidez com que o jovem almocreve cortara os botões do
colete ao outro jogador. Cf., para o episódio, id.: 35-41.
35
DLPCACL, 2001 (vol. I): 972. Definição 8 da respectiva entrada.
36
Os termos em itálico resultam das definições que o DLPCACL dá de interjeições que, em nosso enten-
der, ameaçam a(s) face(s) do alocutário (FTA’s).
274

também «satisfação pelo mal sucedido a alguém.»37 É, pois, a face positiva e/ou a face
negativa do alocutário que é mais ou menos atingida e lesada por cada uma destas inter-
jeições e que, por isso, situamos no âmbito dos fenómenos verbais da descortesia.
Os valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia que as expressões interjec-
tivas lexicais podem exprimir tornam-se mais evidentes, ao manipular-se o seu empre-
go, procedendo ao teste da comutação. Verifica-se, por um lado, haver expressões inter-
jectivas que podem funcionar como quasessinónimos, mas, por outro, que nem todas as
substituições são possíveis, uma vez que tornam a frase agramtical ou de aceitabilidade
duvidosa, ao nível das relações de cortesia, pelo menos. Considere-se, por exemplo, a
seguinte troca verbal.

L – Então, Eugénio, já acabou o curso?!...


A – Sim, sr. professor.
L – Parabéns!
A – Obrigado!

A segunda intervenção de L é constituída apenas pela interjeição «Parabéns!»,


através da qual felicita o êxito de A. Não cuidando agora o tipo de relação interpessoal
que as formas interjectivas também expressam ou pressupõem entre o locutor e o alocu-
tário, a interjeição de felicitação proferida por L pode ser substituída, entre outras, por

«- Muito bem! / Bravo! / Viva! / Boa! / Bestial / Sim senhor! / Óptimo! / Estupendo! /
Magnífico! / Excelente! / Porreiro! / Maravilha! / Formidável!»,

mas não por

«– *[Cruzes! / Livra! / Safa! / Ora bolas! / Francamente! / Essa é boa! / Credo! / Pude-
ra! / Bem feita! / Raios te partam! / Valha-te Deus!]38

Sintetizando-se, temos que as interjecções, enquanto expressões de cortesia e/ou


de descortesia, podem expressar valores corteses ou descorteses, consoante os
co(n)textos de ocorrência, tanto ao nível da sua localização/relação sintagmática na

37
DLPCACL, 2001 (vol. I): 510. O exemplo é retirado do livro Cavalo do Lenço Amarelo (p. 20), de
Mário Castrim.
38
O asterisco marca a agramaticalidade de todas as expressões interjectivas, naquele contexto, colocadas
entre parênteses rectos.
275

intervenção, como da(s) unidade(s) textual(is) de maior dimensão em que se integram e


de que fazem parte, bem como do universo discursivo-textual construído e/ou em cons-
trução.
São sobretudo as interjeições não lexicais que, a este nível, mais ocorrem com
valores diferentes e mesmo opostos. A explicação deve-se, a nosso ver, ao facto de se
tratar de morfemas que, por não serem dotadas de autonomia referencial (ou terem-na
muito reduzida), apenas adquirem valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia,
isto é, adquirem referência actual, em contextos de ocorrência. Valores que, por isso,
são frequentemente explicitados pelo(s) acto(s) de discurso que essas expressões inter-
jectivas acompanham. É por isso, também, que as expressões interjectivas não lexicais
ocorrem com menor frequência como constituintes únicos duma intervenção, ao contrá-
rio do que se verifica com as lexicais. No que a estas últimas diz respeito, os valores
pragmáticos de cortesia ou de descortesia que podem expressar, embora estejam tam-
bém muito dependentes do co(n)texto, resultam dos valores semântico-pragmáticos que
o uso lhes fixou e consagrou, gozando duma relativa autonomia referencial.
A reduzida autonomia referencial faz, por outro lado, com que as formas inter-
jectivas sejam utilizadas, frequentemente, como processos de intensificação ou de ate-
nuação de actos discursivo-textuais, ora para os tornar mais corteses, ora menos descor-
teses, ora mais descorteses. Tomemos, a título de exemplo, a seguinte interacção verbal,
colhida no conto «Mestre grilo cantava e a giganta dormia», de Aquilino Ribeiro.
Co(n)textualizando-se temos que, irritada com o permanente cantar do Grilo, que assim
não a deixava dormir descansada, uma noite gritou-lhe a Abóbora menina:

[A1] – Eh lá, seu casaca! Você não pode calar a caixa? Com tal brequefesta como
hei-de eu dormir?!
[G1] – Ora a palerma! – retorquiu o grilo escandalizado - Não querem lá ver, tem-se
na conta de menina e é tão mona. Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a
chamar o Sol que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e
claridade.
[A2] – Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir
quem tem sono.
[G2] – Outro ofício!... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar.
Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.»39

39
RIBEIRO, 1989a: 12-13. Segundo os métodos de análise das interacções verbais, numerámos os turnos
de fala de cada personagem – Abóbora e Grilo – precedendo-as da respectiva inicial ([A1], [G1], etc.).
276

É com uma locução interjectiva - Eh lá – constituída por uma interjeição pro-

priamente dita (Eh) e por uma partícula enfática (lá), seguida dum vocativo que é tam-

bém um tratamento insultuoso com valor também interjectivo - seu casaca - que A, com

[A1], se dirige a G. Com ela, A visa chamar a atenção de G para o comportamento que

este está a ter, o qual é visto por A, simultaneamente, como estranho, desagradável e

reprovável, procurando, assim, impedir a sua continuação, objectivo que o acto injunti-

vo (director) realiza e os seus actos justificativos (subordinados) seguintes reforçam.

Trata-se, por isso, duma intervenção que fere a face dupla do alocutário. A face negati-

va, porque viola o seu território, ao entrar abruptamente em contacto com ele, mas tam-

bém ao invocá-lo depreciativamente através duma sinédoque, ao dirigir-lhe um acto

injuntivo (ainda que seguido de justificação) e ao fazer comparações, também deprecia-

tivas, em relação à actividade de G. A face positiva, porque é a autoestima do alocutário

que é ferida, não só através destes processos, mas também através dos insultos que lhe

dirige.

É também com uma interjeição – Ora a palerma! – que inclui também um tra-
tamento insultuoso, que G reage, expressando estranheza, indignação, desprezo e desva-
lorização pelo interlocutor e pelo que ele disse. Reacção emotiva que acentua quando,
em vez de responder directamente a [A1], convoca terceiros, através duma fórmula
interlocutória também ela com valor interjectivo - Não querem lá ver – para lhe desfi-
gurar, de seguida, a face pública de menina. Este processo de referência delocutiva é
uma estratégia de descortesia: o locutor trata e refere-se ao interlocutor como um ausen-
te, recusando, por um lado, aceitar participar na interacção verbal iniciada e, por outro,
dando início a outra troca verbal de que o interlocutor é aparentemente excluído, ainda
que seja o tema desta nova troca verbal (incompleta, porque retórica). Trata-se, por isso,
duma estratégia polifónica de distanciamento descortês em relação a A. Só depois G se
dirige directamente a A, começando também por uma interjeição que, mais que confir-
mar o contacto, o (re)estabelece, negativamente, porque acompanhado duma forma
vocativa insultuosa – Ah! Sua calaceira. Num caso como noutro, G lesa, sobretudo, a
face positiva de A. Mas ao dirigir-lhe, na mesma intervenção, um acto directivo com
277

valor injuntivo - cante, cante connosco a chamar o Sol - ainda que acompanhado de
justificação - que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e clarida-
de - o locutor fere sobretudo a imagem negativa do interlocutor, ao propor-lhe uma acti-
vidade para a qual não estava nada (pre)disposto, como se verá pela resposta. Cabe
observar que, com esta intervenção complexa, através da qual, por um lado, não respon-
de directamente a [A1] e, por outro, lhe propõe outro tema de conversa, G acentua a
conflitualidade e as relações descortesia entre ambos.
Que A não estava (pre)disposta a cantar, di-lo na intervenção reactiva, formu-
lando um enunciado exclamativo irónico – Estou mesmo para isso! – exclamação que,
por isso, encerra também valor interjectivo. Em [A2], A dá de imediato início a uma
nova troca verbal, com uma nova intervenção, recorrendo, para o efeito, mais uma vez,
a formas que podemos considerar como preactos que apresentam, ao mesmo tempo,
valores de natureza injuntiva (imperativos), fática (contacto e orientação discursiva),
enfática (intensificação) e interjectiva (sentimentos) - Olhe, sabe que mais, outro ofí-
cio - preparatórios do acto director – deixe dormir quem tem sono. Acto este que consti-
tui uma reformulação que explicita e reforça a injunção já realizada (tentada) com o acto
«Você não pode clara a caixa?» Desta feita, porém, A não recorre a insultos nem a refe-
rências depreciativas. Aliás, A, apesar de tudo, dirige menos insultos e é menos descor-
tês que G. Além disso, denota uma capacidade discursiva e argumentativa menor. Repa-
re-se que a fórmula interlocutória e interjectiva sabe que mais revela não só isso mes-
mo, mas também (e por isso) que não é capaz de continuar a interacção verbal.
Como desde início se percebeu, G desenvolve este «diálogo de surdos» reto-
mando e repetindo o acto interjectivo «Outro ofício!», transformando-o em acto direc-
tor, quando para A mais não era do que expressão (interjeição) de desagrado e desvalo-
rização pela e da actividade do interlocutor. O acto director de [A2] continua a ser que
G se cale e a deixe dormir. Ao tomar «Outro ofício!» como acto director, na interven-
ção [G2], G não só desvaloriza e desconsidera, mais uma vez, a face positiva da interlo-
cutora, como também denega o objectivo ilocutório pretendido por A. Denegação que é
reforçada por mais uma locução interjectiva, desta feita irónica – «Essa não é má!» –
que, além dos valores de estranheza e discordância, funciona também como avaliação
negativa da tentativa de injunção.
O locutor ridiculariza deste modo a interlocutora, ao afirmar, ironicamente, que
ela não sabe o que diz. Daí os preactos de natureza fática e enfática, também interjecti-
vos, além de directivos e insultuosos, e por isso descorteses, com que G inicia a última
278

intervenção – «Saiba, sua estúpida que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever.
Quando não cantar, rezem-me por alma.» É com esta intervenção que G responde,
efectivamente, à questão inicialmente posta por A - «Você não pode calar a caixa? Com
tal brequefesta como hei-de eu dormir?!» depois repetida, por reformulação, em [A2],
com «deixe dormir quem tem sono.»
São evidentes as várias funções que, nesta interacção verbal polémica, desempe-
nham as expressões interjectivas destacadas ao nível da estruturação da sequência dia-
logal e, sobretudo, ao nível das relações interpessoais que os interlocutores estabelecem
e desenvolvem. A este nível, são evidentes as funções fáticas de estabelecimento e/ou
de manutenção de contacto, com que, através das interjeições, os interlocutores sistema-
ticamente se interpelam um ao outro. É criada, assim, uma relação de claro conflito,
com emoções e sentimentos extremados que as interjeições expressam de modo intenso,
a par dos insultos (também eles fáticos, enfáticos e interjectivos), ao mesmo tempo que
anunciam, orientam e intensificam os actos directivos realizados com intenções de
ordem, mas que a relação interpessoal estabelecida e desenvolvida, fortemente antagó-
nica e descortês, fez redundar em actos discursivos falhados. Aliás, quando dois interlo-
cutores dirigem «ordens» um ao outro é porque entre ambos não existe uma relação de
poder e nenhum se encontra obrigado, por isso, a cumpri-las, porque não coercivas, não
sancionáveis.
Fica assim clara, em nosso entender, a importância que as expressões interjecti-
vas têm ao nível das práticas discursivo-textuais e das relações interpessoais (corteses e
descorteses) que através delas também se estabelecem e manifestam.
TERCEIRA PARTE

CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL


E FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS

Em Portugal, uma pessoa está sujeita a ser interpelada de quatro,


ou mesmo de cinco modos diferentes e a cada um desses modos
está associado um grau diverso de intimidade ou de respeito, cada
um deles fixa firmemente o tipo de relação entre a pessoa
interpelada e a pessoa que se lhe dirige.
Peter Fryer & Patricia McGowan Pinheiro1

1
FRYER, P. & PINHEIRO, P. McG., 1961: Oldest Ally. Londres, p. 230, cit. por CINTRA, 19862: 9-10.
Capítulo IX

INTRODUÇÃO

Se a cortesia e, correlativamente, a sua falta vigiam permanentemente as práticas


discursivo-textuais de quem fala ou escreve, isto é, de quem realiza actos de comunica-
ção in præsentia ou in absentia, as formas de tratamento (FT’s), corteses e descorteses,
são as marcas mais evidentes dessa vigilância.
As FT’s corteses são meios linguísticos de que os interlocutores se servem para
estabelecer uma plataforma de relacionamento interpessoal capaz de, à partida, assegu-
rar o bom andamento duma interacção verbal. Em princípio, não se entra e mantém con-
tacto com outro(s) através de FT’s descorteses, a não ser em casos especiais de conflito
existente ou procurado, ainda que se saiba que a simples abordagem do outro, nomea-
damente desconhecido ou pouco conhecido, ou dum superior conhecido, possa ser
entendida como invasão da sua privacidade, do seu território, e por isso uma descorte-
sia, e por isso se deva pedir desculpa, atenuando e reparando a lesão causada por tal
invasão, segundo mandam as regras da cortesia.
A primeira função dos tratamentos corteses é, por isso, de natureza relacional.
Através dos usos que deles fazem, os interactantes estabelecem contactos, atribuem,
reconhecem ou negoceiam lugares, no respeito mútuo pelas faces positivas e/ou negati-
vas de cada um, conforme os co(n)textos em que se encontram e de que eles próprios
também fazem parte e que podem alterar.
Esse bom relacionamento pode servir também como estratégia para alcançar
outros fins, confessados ou não. É o que acontece, por exemplo, quando um locutor pre-
tende algo que resulte em seu benefício e considera de realização mais ou menos custo-
sa para o alocutário. Nesses casos, o locutor prepara e desenvolve a revelação desse
objectivo, recorrendo para o efeito, sincera ou fingidamente, a diferentes formas e níveis
de cortesia verbal, incluindo as de auto e heterorreferência, de que os tratamentos tam-
bém fazem parte. Pode, contudo, tal objectivo apresentar-se inviável, por impossibilida-
de, dificuldade ou recusa pura e simples do interlocutor. Neste último caso, pode acon-
tecer que o bom relacionamento diminua, ou degenere em conflito aberto, ou mesmo
282

acabe. Pode, então, o locutor tentar conseguir, pela descortesia, o que não conseguiu,
pela cortesia. Neste caso, um dos interlocutores coloca-se, explicitamente, fora do qua-
dro da cortesia, das boas relações interpessoais, alterando, por completo, o equilíbrio
das posições de cada um, até aí existentes.
Uma vez dado o primeiro passo para o campo da descortesia, a interacção verbal
poderá terminar imediatamente ou continuar por mais ou menos tempo. Regra geral,
uma interacção verbal agonal é de curta duração. Em se enveredando, então, pelos insul-
tos (noção em que incluímos as FT’s descorteses), unilateral ou bilateralmente dirigidos,
o fim dessa interacção torna-se eminente. Os cuidados que cada interactante tem das
faces do(s) outro(s) e, devido ao efeito boomerang, das suas próprias faces (em primeiro
lugar, em tais casos), não consentem que uma interacção se inicie e desenvolva assente
em insultos, a não ser em casos lúdicos. Tudo depende, mais uma vez, da competência
de cortesia e, a contrario, de descortesia, que cada interactante possui e da sua perfor-
mance, em relação a si próprio e ao(s) outro(s), conforme os co(n)textos.
Consideramos, portanto, que a utilização das FT’s constituem um dos processos
mais eficazes, por um lado, de captatio benevolentiæ, como via para a persuasão ou
convencimento, e, por outro, como meio de agressão verbal, com os mesmos objectivos
retóricos ou não. Já Aristóteles observava:

«Os elementos que se relacionam com o auditório consistem em obter a sua benevolên-
cia, suscitar a sua cólera, e, por vezes, atrair a sua atenção ou o contrário.»1

Colocamos, assim, as FT’s no âmbito da Retórica, procurando destacar os seus


valores nos processos de argumentação e persuasão, de acordo, aliás, com a «definição
geral» que Michel Meyer dá da Retórica contemporânea:

«c’est la négociation de la distance entre des hommes à propos d’une question, d’un
problème. Celui-ci peut d’ailleurs aussi bien les réunir que les opposer, mais il renvoie
toujours à une alternative.»2

1
ARISTÓTELES, 1998: 211.
2
MEYER, 1993: 22-23.
283

Evelyne Largueche (se bem que refirindo-se à injúria), também considera que se
trata «de l’art de convaincre ou d’argumenter, ne reposant pas forcément sur la vérité (le
vérité précisément) mais aussi bien sur le vraisemblable (le vérifiable, le justifiable?).»3
De facto, se num acto de injúria se encontra «l’idée d’empêcher l’autre de répli-
quer, de lui “clouer le bec”», «de combat oratoire – de joute, dit-on parfois – où perd
celui que se tait et dans lequel l’art de répliquer est considérée comme une maîtrise de
soi», 4 os tratamentos corteses visam objectivos inversos, isto é, que o locutor, agindo
verbalmente sobre o interlocutor, o seduza e o leve também a agir, física ou verbal-
mente, de determinada maneira. Seduzir e convencer o outro, recorrendo a estratégias
corteses que também são as FT’s, é uma forma de vitória do locutor sobre o alocutário.

Nos estudos sobre as FT’s em Português de Portugal, cujos principais pontos


sintetizaremos no capítulo seguinte, os seus autores apresentam e/ou referem diferentes
classificações, segu(i)ndo critérios essencialmente morfossintácticos, por um lado, e
semântico-pragmáticos, por outro. Ao mesmo tempo, de forma mais ou menos explícita
e explicitada, situam-nas em categorias que podemos considerar subclasses ou hiper-
classes daquelas. Assim, além de classificadas em pronominais, pronominalizadas,
nominais e verbais, são ainda classificadas em formas sujeito, vocativo e objecto. Ao
nível da referência enunciativa, em alocutivas, delocutivas e elocutivas, e ao nível da
semântica lexical, no que toca à classe das nominais, distinguem-nas, consoantes os
referentes, em FT’s que têm como termo principal:

a) nome próprio (NPp) e/ou nome apelido (NAp) (v.g.: António, Antónia; (António)
Marques; Antónia Marques5);
b) nome de parentesco (NPt) (v.g.: pai; mãe; filho/a; avô/ó; tio/a; irmão/ã; etc.);
c) nome de afecto (NAf) (v.g.: querido/a; caro/a; lindo/a; amor; etc.);
d) nome de profissão (NPf) (v.g.: carpinteiro; taxista; porteiro; professor; etc);
e) título académico (TAc) (v.g.: engenheiro; professor; arquitecto; doutor, etc.), político
(TPl) (v.g.: secretário de estado; ministro; Presidente da República; deputado; etc.),
civil (TCv) (v.g.: administrador; presidente; secretária; chefe; etc.), militar (TMl) (v.g.:
sargento; capitão; coronel; general; comandante; etc.) ou religioso (TRl) (v.g.: padre;
frade; irmã; cónego; bispo; etc.);

3
LARGUECHE, 1983: 7.
4
Id., ibid.
5
Em Português, ainda não é usual indivíduos do sexo feminino serem tratados apenas pelo NAp.
284

f) título nobiliárquico (TNb) (v.g.: duque; conde; fidalgo; príncipe; majestade; etc.);
g) títulos honoríficos (THf) (v.g.: [Vossa] Graça; [Vossa] Magnificência; [Vossa] Reve-
rência; Vossa Santidade; etc.);
g) senhor/a e/ou dona (Sr /Srª /Dª) (v.g.: senhor; senhora; dona; senhora dona);
h) nomes de relação especial (NRe) (v.g.: camarada; vizinho/a; colega; amigo/a; etc.);
i) insultos (Ins) (v.g.: burra/o; canalha; estúpida/o; bacoco/a; palerma; cão; cabra; etc.).6

Convém observar que os tratamentos que realizam cada uma destas subclasses
podem vir acompanhados ou não de determinantes (definidos e/ou possessivos), de
adjectivos, ou/e de outras FT’s, bem como, no caso de vocativos, da respectiva partícula
interjectiva. O determinante utilizado (definido e/ou possessivo, em regra) poderá
aumentar ou reduzir a expressão de cortesia ou de descortesia da FT usada e, conse-
quentemente, a relação de proximidade (proxémica) ou de afastamento (taxémica).
A nível semântico-pragmático, além de classificadas como marcadores fáticos e
deícticos pessoais e sociais, as FT’s portuguesas pronominais, pronominalizadas e
nominais aparecem-nos ainda também classificadas como de intimidade, familiaridade,
solidariedade, proximidade, afectividade, informalidade, por um lado, e de distancia-
mento, hierarquia, formalidade, respeito, poder, etc., todas elas marcadas por traços de
[+] ou [-], ou ainda por [±]. Ao mesmo tempo, determinadas FT’s são classificadas de
cortesia ou de deferência. A par destes tratamentos (e com eles se confundindo), encon-
tram-se também os títulos honoríficos (mais lexicalizados), em oposição aos tratamen-
tos auto-humiliativos e de modéstia.

Se conjugarmos as classificações propostas pelos autores que estudam as FT’s


em Português contemporâneo e situarmos os tratamentos alocutivos mais habituais num
eixo, em cujos pólos e centro situamos os termos classificatórios, teremos o seguinte
quadro:

6
As subclasses das FT’s nominais referidas correspondem, no essencial, à tipologia proposta por
MEDEIROS, 1985: 56 e sobretudo por BRAUN 1988: 9-11. Medeiros resume, depois, a sua primeira
classificação, de 14 para 6 categorias «mínimas», três das quais integramos na classe das FT’s pronomi-
nais (tu, você e V. Ex.ª) e outras tantas na das nominais (NPp ou NAp; Sr./ª, Dª ou Sr.ª Dª; Sr./ª + TAc,
TPf. [Cf. MEDEIROS, 1985: 194] Por outro lado, a autora inclui a FT V. Ex.ª na classe dos «pro-
pronomes», que corresponde aos tratamentos nominais de Lindley Cintra, enquanto chama às pronomi-
nais «pronomes puros» e às verbais «formas zero», como se verá. [Cf., infra, cap. X, 1. 2.]
285

+ FAMILIARIDADE ± FAMILIARIDADE -FAMILIARIDADE


- DISTÂNCIA ± DISTÂNCIA +DISTÂNCIA

Tu Você(s) o/a + NPp o/a (NPp) NAp. o/a Sr./ª /Dª o/a T. o/a Sr./ª + T V. Exª /Sria

- CORTESIA ±CORTESIA +CORTESIA

FIG. 1 – As FT’s e as relações interpessoais

Seguimos em parte, na elaboração deste quadro, a apresentação feita por Carrei-


ra, limitando-nos, porém, aos tratamentos que consideramos mais correntes, nos dias
hoje, situando-os na escala da cortesia. Como se verá, esta linguista portuguesa analisa
as FT’s segundo os eixos da horizontalidade (cujas ocorrências podem expressar fami-
liaridade superior, igual ou inferior) e da verticalidade (cujas ocorrências podem
expressar distância superior, igual ou inferior), segundo os valores semântico-
pragmáticos de cada uma, disponíveis em língua. A autora não inclui, explicitamente,
no seu quadro, o eixo de cortesia superior, igual e inferior, relacionado com as noções e
eixos de horizontalidade e de verticalidade. Em nosso entender, porém, o estudo que faz
das FT’s está enquadrado também no campo das formas de cortesia, tanto na sua disser-
7
tação de doutoramento, como noutros dos seus estudos. Aliás, ao concluir o ensaio
«Délimitation sémantico-pragmatique des formes d’adresse en portugais», esclarece ter
procedido segundo pontos de vista complementares que entre si se articulam, sendo um
deles, precisamente, o da cortesia das FT’s.8 Em nosso entender, as noções semântico-
pragmáticas de familiaridade e de distância não são compreensíveis, nem operativas,
sem as dimensões de cortesia e de descortesia que elas também claramente expressam.
Segundo alguns autores, são consideradas apenas de cortesia aqueles tratamen-
tos que expressam, sobretudo, -FAMILIARIDADE e +DISTÂNCIA, seguindo-se-lhes
aqueles que se situam entre este pólo e a zona média do eixo de ±FAMILIARIDADE e
±DISTÂNCIA, espaço onde é possível encontrar ou situar diversos níveis ou graus de
cortesia. Os tratamentos situados no pólo +FAMILIARIDADE e -DISTÂNCIA serão os
que expressarão níveis mais baixos de cortesia, ou de cortesia neutra ou nula, mas que
nós preferimos designar por cortesia de grau zero, sendo possível encontrar ou situar

7
CARREIRA; 1995, ou 1997 e 2001.
8
CARREIRA, 2001: 75. Também em 1995: 114.
286

também neste espaço (entre este pólo e a zona média do eixo), FT’s que expressem dife-
rentes níveis ou graus de cortesia.
A FIG. 1, a par das descrições feitas pela autora e por outros linguistas, permite-
-nos verificar que as FT’s portuguesas actuais que expressam reduzida cortesia ou o seu
grau zero, por um lado, e de mais elevada cortesia, por outro, são realizadas por trata-
mentos pronominais. É certo que os tratamentos de mais elevada cortesia, hoje incluídos
na categoria das FT’s pronominais, foram, na sua origem e durante muitos anos, FT’s
nominais. Como explicar que tratamentos constituídos por nomes abstractos tenham
perdido o valor semântico-pragmático de elevada cortesia que denotavam (pense-se no
caso de Vossa Mercê / você, por exemplo) e, ao perderem-no, tenham mudado de cate-
goria lexical, enquanto outros, embora tendo mudado de categoria (V. Ex.ª, por exem-
plo, seja considerado hoje um tratamento pronominal), mantenham ainda esse valor?
Cremos que a explicação se poderá encontrar na abordagem histórica dessas e outras
FT’s.
Perante o quase total desaparecimento do tratamento voseado (utilização do pro-
nome vós), dirigido a um só alocutário como a vários, é nossa opinião que o actual sis-
tema de tratamentos em Português de Portugal se desenvolve dentro de dois grandes
paradigmas, a saber, o das FT’s de tuteamento e o das FT’s de voceamento. À seme-
lhança da proposta de Brown & Gilman,9 também representamos tais paradigmas, res-
pectivamente, pelas iniciais T e V, mas cuja decodificação não é coincidente, tanto ao
nível das formas que cada um pode representar, como ao nível dos valores de maior ou
menor cortesia que cada um pode expressar.
A nossa redução a estes dois paradigmas fica-se a dever ao facto dos portugueses
europeus actuais se dirigirem uns aos outros empregando frequentemente FT’s de T ou
FT’s de V, o que não quer dizer que utilizem, necessariamente, as formas pronominais
tu e você, respectivamente. Poderão utilizá-las ou não, mas, mesmo não as utilizando, a
coocorrência de outras FT’s (verbais e/ou nominais) no discurso em curso permite veri-
ficar facilmente em qual dos paradigmas se processam os tratamentos e as relações que
os interlocutores mantêm ou estabelecem.
Cabe aqui uma observação sobre a expressão tratamentos de cortesia. Em nosso
entender, segundo a concepção ampla de cortesia linguística que temos vindo a defen-
der, tratamentos corteses são todos aqueles que se inscrevem e contribuem para que os

9
Sobre a proposta T vs. V de Brown & Gilman, ver, supra, cap. V, 1.1., ou BROWN & GILMAN, 1960.
287

interlocutores estabeleçam e desenvolvam relações interpessoais de harmonia e equilí-


brio, ao longo duma interacção verbal e na coconstrução dessa mesma interacção verbal.
Relacionemas, por isso, lhe chamamos, proxémicos ou taxémicos, consoante regulem,
respectivamente, as distâncias horizontais ou verticais. Neste sentido, FT’s de cortesia
são tanto as formas e/ou fórmulas de V como de T, sendo certo, porém, que dentro de
cada paradigma encontramos formas e/ou fórmulas que expressam diferentes níveis ou
graus de cortesia. Daí que entendamos, por outro lado, que uma outra classificação dos
tratamentos em Português (como noutras línguas) pode ser feita em FT’s corteses e
FT’s descorteses (ou insultos),10 podendo as realizações destas últimas situar--se tam-
bém no paradigma T ou V. Aliás, com excepção das ocorrências de ó tu e ó você (ainda
que pouco frequentes), que se situam, respectivamente, apenas em T e V, todos as res-
tantes FT´s Ins podem ocorrer tanto num como noutro paradigma. Contudo, os Ins pre-
cedidos de possessivo de 1.ª pessoa (v.g., meu besta) e de 3.ª pessoa (v.g., seu besta)
tendem a ocorrer, respectivamente, em T e V. Acontece, por vezes, que quando a inte-
racção verbal evolui ou se situa no âmbito declarado das ofensas verbais, a relação entre
os interlocutores, se se situa em formas de T, passa a formas de V, e passa a formas de
T, se situa em formas de V. Num caso como noutro, porém, a mudança de paradigma
acentua o conflito, ao aumentar a distância entre os interlocutores que os Ins também já
denotavam. Por exemplo, no fragmento da sequência dialogal seguinte, travado entre
pai e filho desavindos, em Terras do Demo de Aquilino Ribeiro:

«- Sabe que mais, meta a sanfona no saco dos seus sermões, bah...! – e o Luís traçava
a mão espalmada pela boca, num arremedo de náusea.
- Dizes bem, cão. Ao meu rico dinheirinho já nem Deus nem Santa Maria lhe vale.
Tem-lo no papo, excomungado, mas ninguém o há-de dizer!
- Ladre, enquanto ladra não morde! – tornou-lhe o filho, voltando face, pois já o Rola
arrancava dum estaqueiro para o desancar.
- Larápio! Safado! Casou-se com a fome! Vá, coma da bêbera da mulher. Saia às
estradas!
- Unhas de fome! Judeu duma fona! Monturo! – repontava o filho, andando seu cami-
nho.»11

10
Cabe observar que uma FT pode ser descortês sem ser propriamente um insulto. Por exemplo, tratar
alguém inadequadamente (usar o tuteio quando seria de esperar o voceio) não é propriamente um insulto,
mas apenas descortesia.
11
RIBEIRO, 1983b: 67. Itálicos da nossa responsabilidade.
288

Destacámos, apenas os Ins vocativos (ou exortativos), deixando de parte outras


ocorrências que, com idênticos valores semântico-pragmáticos, seja o emprego do verbo
ladrar, como metáfora depreciativa do falar do pai, a qual pode ser interpretada como
uma forma indirecta de lhe chamar cão, seja a metáfora depreciativa que o pai dirige,
delocutivamente, à mulher do filho, referindo-a (tratando-a) por bêbera,12 entre outros
processos de referência insultuosa. O que interessa destacar, de momento, é o emprego
de FT’s Ins, dirigidas a alocutários a quem um dos locutores começa por dirigir formas
de T, passando depois a formas de V. Repare-se, a propósito, na mudança do paradigma
de T para V, operada pelo pai em relação ao filho, depois deste o ter tratado, indirecta-
mente, por cão. Interpretamos estas mudanças de tratamento, corteses e descorteses,
entre os mesmos interactantes, no decurso duma mesma interacção verbal, como pro-
cessos retóricos e de polifonia enunciativa de práticas discursivo-textuais.

Os valores pragmáticos das FT’s portuguesas, corteses e descorteses, e suas con-


dições de uso dependem, fundamentalmente, além dos valores semântico-lexicais que
cada uma denota, das propriedades reais ou presumidas (representações) dos interlocu-
tores (considerados individualmente ou como auditório) – idade, sexo, cultura, estatuto
socioprofissional, etc. – das suas relações de poder ou solidariedade, do quadro espácio-
tem-poral onde se encontram e onde se dá e desenvolve a interacção verbal, bem como
do objectivo pretendido. Numa palavra, do co(n)texto.
Na sequência de proposta de Parkinson, Kerbrat-Orecchioni reconhece também
que as FT’s desempenham três funções pragmáticas essenciais em relação

(i) ao acto de linguagem que acompanham (e, em certas situações, também rea-
lizam, a nosso ver, como se verá);
(ii) à «mecânica da conversação»;
(iii) ao nível das relações interpessoais.13

Quanto a (i), o tratamento é uma exigência dos actos de chamamento, sendo


usual também nos actos de cumprimento e de agradecimento, e facultativo nos actos de

12
«bêbera – figo temporário da primeira novidade que dão as figueiras; cal. gorda, porca.» [ALMEIDA,
1988: 46] Evidentemente que o pai utiliza o termo com a definição de cal[únia].
13
Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 24. A autora refere, a propósito, PARKINSON, D. B., 1985:
Constructing the Social Context of Communication. Terms of Address in Egyptian Arabic. Berlin / New
York / Amsterdam: Mouton de Gruyter.
289

pedido. O seu emprego serve, segundo os casos, tanto para atenuar um FTA, como para
reforçar um FFA. Neste caso, trata-se, evidentemente, duma FT cortês, porque um Ins,
além de ser, em si mesmo, um FTA, serve também para reforçar o FTA. A linguista
francesa não considera que a realização duma FT possa ser também um acto de discur-
so. Em nosso entender, tal também se verifica, nomeadamente, em ocorrências de cha-
mamento e/ou como vocativo, actos estes que incluímos no domínio dos directivos, uma
vez que exigem do alocutário uma resposta, uma re-acção. Estabelecer contacto come-
ça, geralmente, por se dirigir uma FT a alguém. Por exemplo:

– (Ó) António!
– Diz / Diga!
– Pode(s) chegar aqui, por favor?

É evidente que o sucesso do acto (directivo) de contacto depende muito, como


veremos, da FT utilizada e do contexto (incluindo os aspectos prosódicos). O emprego
duma determinada FT está dependente, por outro lado, do tipo de acto de linguagem que
acompanha e do objectivo ilocutório pretendido. As FT’s desempenham papel impor-
tante, também ao nível de (ii), em particular no que toca à gestão dos turnos de fala, isto
é, da sua distribuição, da tomada de palavra, das interrupções e intrusões. Por último,
quanto a (iii), cada FT desempenha um papel importantíssimo ao nível da negociação
das identidades e das relações que se têm ou se desejam estabelecer. Através da FT
escolhida, pode-se mostrar deferência ou desprezo, distância ou intimidade, ternura ou
agressividade, elogiar-se ou injuriar-se, ser-se sedutor ou impertinente, simpático ou
antipático. E ser-se tudo isto (e até brincar), cortês ou descortesmente. De facto, as FT’s
têm um papel vital, a todos os níveis da comunicação humana e nas suas diferentes prá-
ticas discursivo-textuais, em todas as sociedades mais ou menos organizadas, de que
constituem um dos reflexos e marcas mais evidentes.

Servem estas considerações gerais de introdução aos capítulos que constituem


esta parte da dissertação, onde procuraremos desenvolvê-las e aprofundá-las. Depois
duma apresentação crítica dos principais estudos realizados por autores nacionais e
estrangeiros sobre o sistema, as formas e os valores sobretudo semântico-pragmáticos
dos tratamentos portugueses, procederemos a uma abordagem da origem e evolução das
principais e mais frequentes FT’s portuguesas actuais, segundo uma perspectiva diacró-
290

nica, tendo presente os seus aspectos de cortesia ou de descortesia. Geralmente pensa-


dos como servindo sobretudo para referir e situar o(s) interlocutor(es) – alocução - as
FT’s servem também para o locutor se referir e situar a si próprio – elocução – e a ter-
ceiros, presentes ou ausentes – delocução - consoante o co(n)textos, que incluem os
círculos de afectos favoráveis ou desfavoráveis, a que o locutor e/ou o(s) alocutário(s)
pertençam, digam pertencer ou desejem pertencer.
Capítulo X

TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS
Principais estudos

Os tratamentos em Português de Portugal são, dentro das formas de cortesia e de


descortesia verbal, o tema mais abordado por estudiosos, nacionais e estrangeiros,
segundo perspectivas ora morfossintácticas, ora semântico-pragmáticas, ora sociolin-
guísticas. Daremos conta, neste capítulo, dos principais estudos realizados sobre os tra-
tamentos em Português.

1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização


(diacrónica e sincrónica)

Os trabalhos que este autor reúne, em 1972, no volume Sobre “Formas de Tra-
tamento” na Língua Portuguesa,1 constituem, ainda hoje, uma referência obrigatória
nos estudos dos tratamentos em Português europeu. Trata-se dum conjunto de três
ensaios: «Origens do sistema de formas de tratamento do português actual»2, «Trata-
mento de intimidade e tratamento de cortesia nas obras de Gil Vicente»3 (escritos em
1965) e «“Tu” e “Vós” como formas de tratamento de Deus em orações e na poesia em
língua portuguesa»4 (escrito em 1971). O livro contém, ainda, como apêndices, uma
apresentação esquemática das formas-sujeito de tratamento no português padrão con-
temporâneo,5 um esquema da evolução do sistema das formas de tratamento na língua
portuguesa6 e dois documentos régios, conhecidos por leis das cortesias (um de 1597,
de D. Filipe II,7 e outro de 1739, de D. João V8). Com estas leis, os monarcas procura-

1
Cf. CINTRA, 19862.
2
Id.: 9-37.
3
Id.: 38-62.
4
Id.: 63-102.
5
Id.: 103-105.
6
Id.: 106-108.
7
Id.: 109-111.
8
Id.: 112-115.
292

vam regulamentar os tratamentos devidos àqueles que ocupavam os lugares mais altos
na pirâmide da hierarquia social, nessas épocas.
Dos ensaios referidos interessa-nos sobretudo o primeiro - «Origens do sistema
de formas de tratamento do português actual». Nele, o linguista descreve o sistema de
formas-sujeito utilizadas no Português de Portugal9 e apresenta, segundo uma perspecti-
va diacrónica, a evolução dos tratamentos que conduziu ao aparecimento da «complica-
da estrutura»10 que actualmente o caracteriza. Conclui o ensaio enumerando as «tendên-
cias» na evolução dos tratamentos portugueses.11
Ao analisar as origens, evolução e complexidade das FT’s portuguesas, o autor
tem sempre em consideração factores de natureza sociocultural, os quais, como afirma,
contribuem ora para a relativa estabilidade do sistema, ora para a sua inevitável trans-
formação, dentro da dialéctica interrelação língua - sociedade ou sociedade - língua.
Observa, com efeito, que:

«não são só os indivíduos e a sociedade em que se organizam que agem sobre a língua
que falam, e que por isso mesmo os reflecte em algumas das suas características, mas
que a própria estrutura da língua herdada ou aprendida pode moldar, e molda muitas
vezes, a maneira de ver o mundo dos indivíduos que a empregam».12

É de opinião, por isso, que o sistema português, em particular «a escala riquís-


sima» dos tratamentos de cortesia, está ligado intimamente, por um lado, a «uma socie-
dade fortemente hierarquizada» e, por outro, «a um certo comprazimento, a um certo
gosto na própria hierarquização e na matização estilística», ou, ainda, «a uma dificulda-
de inconsciente ou subconsciente em aceitar uma nivelação maior».13

9
Cintra não analisa, «a não ser como termo de comparação ocasionalmente aludido», as FT’s utilizadas
no Português do Brasil. [Cf. id.: 11]
10
Id.: 16. Cintra confessa, na introdução à 2.ª edição, que ambicionava escrever uma História das formas
de tratamento em Português, de que estes ensaios eram o «ponto de partida» [Id.: 7-8].
11
Cf. id.: 34-35.
12
Id.: 35.
13
Id.: 15-16. O comprazimento dos portugueses por uma sociedade fortemente hierarquizada, através dos
tratamentos, parece continuar. Dois exemplos. Miguel Esteves Cardoso, em crónica publicada no jornal
Expresso, em meados da década de oitenta, insurge-se contra o facto de, «aspecto da maior importância»,
os partidos políticos serem «desrespeitosos e malcriados», por «nos cartazes tutearem-nos todos até à
medula», «com uma familiaridade angustiante e ordinária», enquanto «nos debates os dirigentes partidá-
rios, apesar de se conhecerem, tratarem-se com o maior respeito – “senhor doutor” para aqui, “senhor
professor” para lá». O cronista considera, por outro lado, que «este abuso de confiança», o tutear, é «um
novo fenómeno mil vezes mais perigoso e contagiante que a S.I.D.A.», «uma infecção vulgar que afecta
aquelas partes do cérebro normalmente destinadas a desempenhar as funções da boa educação, da cortesia
e do respeito», que «provoca anomalias galopantes nas diversas formas de tratamento que a língua e a
293

No inventário e descrição dos tipos fundamentais de tratamentos em uso,14 Cin-


tra limita o seu campo de observação, por um lado, ao «conjunto das formas que se
usam actualmente na alocução ou tratamento directo – isto é, no diálogo entre dois
interlocutores – não como simples vocativos intercalados na frase [...], mas sim como
sujeitos do próprio enunciado» e, por outro, «à linguagem das camadas cultas (ou semi-
cultas) das grandes cidades de Portugal». Não considera, portanto, «as formas que hoje
se empregam exclusivamente na linguagem popular, quer das cidades, quer dos campos,
apesar do interesse que algumas dessas formas apresentam».15 Para o inventário e des-
crição histórica das FT’s, cujo objectivo principal é apresentar «todas as grandes trans-
formações que estão na base da fixação da estrutura actual»,16 o autor serve-se apenas
de documentos escritos (históricos e literários).17
Cintra classifica, segundo uma perspectiva morfossintáctica, as formas com fun-
ção de sujeito, em

cultura portuguesa há muitos séculos consagraram.» E observa mais à frente: «A praga da CÚNFIA [sigla
do «vírus» Condescendência Untuosamente Néscia Fomentando Informalidades Aberrantes] alastra-se
insidiosamente [...]. As formas de tratamento que permite a nossa língua são de uma complexidade e
variedade maravilhosas e constituem uma parte do património pelo menos tão importante como os pedre-
gulhos romanos e os javalis selvagens. Todas estas subtilezas tendem hoje a perder-se, através da CÚN-
FIA, numa redução preocupantemente parola ao “Tu” e ao “Você”». E conclui: «Urge des-CUNFIAR a
sociedade portuguesa. [...] Hoje em dia já quase que não se pode “dar” confiança, porque a confiança já
foi de antemão, e colectivamente, tomada. Tratar alguém por “tu” é cada vez menos um sinal de intimida-
de mutuamente desejada, e cada vez mais um automatismo desprivilegiado e banal. Perde-se, com o res-
peito, outras qualidades, como todos os matizes subtis de erotismo, de ironia e de cumplicidade que per-
mite a manipulação perita e deliciosa das formas de tratamento. [...] Nós, os portugueses, somos um povo
respeitoso, polido e formal – mesmo quando desejamos ofender alguém. Ou não tem mais graça dizer “V.
Ex.ª não me levará a mal se eu o mandar respeitosamente à merda” do que simplesmente “vai à merda”?»
[CARDOSO, 1986: 65-67, reproduzido em MARQUES, 1995: 173-175.] Agora este excerto de aconte-
cimento vivido pelo colaborador desportivo do Jornal de Notícias, Vaz Mendes: «Fernando Santos [trei-
nador do Futebol Clube do Porto] intimidou este jornalista, perante a estupefacção dos outros meus cole-
gas: “Tu (mas que confiança é essa senhor engenheiro...) não falas alto para mim, tu não tens esse direi-
to!”, tu isto, tu mais aquilo. Só visto. [...]. Com muita pena minha, ontem, pela primeira vez, um treinador
de futebol dirigiu-se-me em tons agressivos e indelicados, sem que nada o justificasse.» [Jornal de Notí-
cias, 14 de Setembro de 1999]
14
Outras sínteses em CARREIRA & BOUDOY, 1993: 295-298; CUESTA & LUZ, 1971: 482-490;
CUNHA & CINTRA, 1984: 292-298; LAPA, 19758: 151-155.
15
CINTRA, 19862: 11.
16
Id.: 32.
17
Além das leis acima referidas (também chamadas pragmáticas), o linguista refere, expressamente, as
novelas de cavalaria, as crónicas de Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara, autos de Gil Vicente e Fran-
cisco Manuel de Melo, peças de teatro de Correia Garção, António José da Silva, Manuel de Figueiredo e
Almeida Garrett, bem como a Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo. A propósito das peças dramáticas,
considera as comédias e as farsas de cada época como os textos mais informativos sobre os tratamentos,
uma vez que elas «mais claramente do que qualquer outra fonte, nos provam como a preocupação com a
forma de tratamento adequada não era exclusiva de Filipe II ou de D. João V e das suas cortes, mas cons-
titui, durante séculos, uma espécie de “preocupação nacional” – ou, melhor: uma preocupação de toda
aquela pequena parte da população que vive nas cidades e que costuma tradicionalmente considerar-se a
si própria como “a nação”.». [CINTRA, 19862: 26-27] Recorde-se que, nos outros dois ensaios, o autor
analisa os tratamentos de intimidade e de cortesia nas obras de Gil Vicente, e nas orações e na poesia
portuguesa.
294

a) pronominais (v.g., «tu, você, vocês, V. Ex.ª, VV. Ex.as»);


b) nominais (v.g., «o senhor, a senhora, os senhores, as senhoras»; «o senhor Doutor,
o senhor Ministro»; «o pai, a mãe, o avô»; «o António, a Maria»; «o meu amigo, o
patrão, etc»);
c) verbais ou seja, «a simples utilização da desinência do verbo como referência ao
interlocutor-sujeito» (v.g., «Queres?, Quer?, Querem?»)18

Há, todavia, diferenças de valor fundamentais entre estes três tipos. Enquanto as
FT’s pronominais e verbais, segundo refere o autor, nada evocam do que caracteriza o
interlocutor, limitando-se a chamar a sua atenção para o enunciado que lhe diz respeito,
o tratamento nominal, pelo contrário, distingue-se por ser, «em certa medida, caracteri-
zador e por se opor, com as suas referências a traços concretos e individualizadores, à
tendência para a abstracção própria das partículas de relacionação, das unidades pura-
mente gramaticais como os pronomes ou as desinências.»19
O tratamento nominal lembra sempre, por isso, alguma coisa própria do alocutá-
rio, a saber:

a) o sexo, «unicamente», em o senhor, a senhora;


b) a categoria social ou a profissão, em o senhor Doutor, o senhor Ministro;
c) o parentesco, em o pai, a mãe;
d) alguma coisa de «intimamente ligado à personalidade de cada um» - o nome próprio,
o nome de baptismo, como em o António, a Manuela.20

Além desta classificação (morfossintáctica), o autor distingue ainda duas carac-


terísticas principais: uma diz respeito à «extraordinária variedade e frequência de
emprego dos tratamentos de tipo nominal», alguns dos quais com «muitas variantes»21;
outra à «estruturação» dos tipos fundamentais em três planos:

«a) Formas próprias da intimidade [tu];


b) Formas usadas no tratamento de igual para igual (ou de superior para inferior) e que
não implicam intimidade [você];

18
Id.: 12-13. Para um inventário mais completo, Cf. «Apêndice 1», em id.: 103-105.
19
Id.: 13-14.
20
Id.: 13. Alineação da nossa responsabilidade.
21
Id.: 14.
295

c) Formas chamadas “de reverência” - “de cortesia” -, por sua vez repartidas por uma
série muito variada de níveis, correspondentes a distâncias diversas entre os interlo-
cutores. [V. Ex.ª, o senhor, o senhor Dr., o António, a Maria, o Sr. António, a Sr.ª
22
Maria, a D. Maria, etc.] »

Estes planos correspondem a uma classificação semântico-pragmática dos trata-


mentos. As FT’s são agrupadas segundo níveis psicossociais de intimidade, de igualda-
de e de distância, onde um tuteamento íntimo se opõe a um voceamento igualitário23 e
cada um destes, por seu turno, ao conjunto dos tratamentos ditos de cortesia.
A parte mais desenvolvida do ensaio trata da evolução das FT’s que estão na
base do actual sistema português. Cintra inventaria e descreve, tendo sempre presente
factores socioculturais, as FT’s em uso desde o Português antigo (finais do século XIII),
ao Português contemporâneo (primeira metade do século XX).24 Ao fazermos a «histó-
ria» de cada uma das principais FT’s usadas no Português europeu, ainda hoje em uso,
retomaremos observações que, a propósito, o autor tece sobre esta questão.
Cintra termina este seu estudo enumerando as quatro tendências mais vivas de
evolução que, em seu entender, iriam verificar-se no sistema das FT’s portuguesas, a
partir dos anos sessenta do século XX. Consistiam tais tendências:

1.º Progressiva eliminação do tratamento por V. Ex.ª, mantendo-se, todavia, «profunda-


mente enraizado na língua escrita», enquanto, na língua falada, se usaria apenas em cer-
tos ambientes (academias, tribunais, diplomacia, etc.) e certas profissões (empregados
do comércio, telefonistas, etc.).

2.º Progressivo alargamento do emprego de tu e da 2.ª pessoa do singular dos verbos,


sobretudo entre os jovens, mas também entre pessoas de diversas idades; o tuteamento
perderia o carácter de intimidade, mas não eliminaria a distância associada ao emprego
dos tratamentos na 3.ª pessoa.

22
Id.: 15. Os exemplos, apresentados entre [ ] são os fornecidos pelo autor, mas aí colocados por nós.
23
Tuteamento e voceamento são da nossa responsabilidade. O autor nunca usa estes termos, como não
utiliza os termos tutear e vocear.
24
Cf. também «Evolução do sistema das formas de tratamento na Língua Portuguesa (Esquema)»,
«Apêndice 2», em id.: 106-108. Em LUZ, 1956, 1957 e 1958-59, encontra-se um desenvolvido levanta-
mento das FT’s no Português arcaico.
296

3.º Progressiva ampliação do emprego de você; o matiz despectivo que o caracterizava


tenderá a desaparecer; o emprego de tu expande-se e você ganha terreno no tratamento
afectuoso.
4.º Manutenção de tratamentos nominais variados, continuando uma das riquezas e
principais dificuldades do Português; lenta mas progressiva eliminação de tratamentos
assentes na diferenciação social.25

Um dos aspectos mais importantes a relevar neste ensaio diz respeito à distinção
que o autor faz entre formas próprias da intimidade, da igualdade, de superior para
inferior e de reverência ou cortesia. Tal distinção destaca, desde logo, os valores que, a
nível semântico-pragmático, as FT’s expressam, bem como as relações interpessoais de
simetria e assimetria, proximidade e distanciamento, que elas também estabelecem. O
linguista, todavia, não explicita tais relações, em virtude, certamente, das restrições que
impôs ao estudo, ao situar a sua análise apenas no âmbito da alocução, deixando de par-
te a elocução e a delocução. Cabe observar, por outro lado, que é discutível a colocação,
sem mais, dos tratamentos V. Ex.ª e VV. Ex.as a par das formas pronominais tu e você(s).
Além disso, os tratamentos o senhor e a senhora começam por ser colocados entre as
formas nominais, para de seguida serem considerados os mais pronominalizados de
todos.26
Por último, devemos observar que, em nosso entender, há uma distinção entre
tratamentos de cortesia e tratamentos de reverência e/ou deferência. Estes constituem
apenas uma subclasse dentro da classe daqueles. Tratamentos corteses são, para nós,
todos aqueles que, consoante os factores sociais existentes e reconhecidos entre os inte-
ractantes, se adequam aos co(n)textos de ocorrência, tendo em vista o estabelecimento,
a manutenção e/ou a recuperação dum estado de equilíbrio favorável ao desenvolvimen-
to das interacções verbais, a nível linguístico e interpessoal. A nossa noção de FT’s cor-
teses é, por isso, mais abrangente do que a pressuposta por Cintra, nela cabendo tanto as
formas de tuteamento (T) como de voceamento (V). Uma última observação para a
ausência de referência aos tratamentos descorteses.

25
Id.: 34-35.
26
Cf. id.: 12 e 13.
297

2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico - entre a


variação e a (re)negociação

Um dos estudos mais desenvolvidos sobre as FT’s em Português europeu con-


temporâneo encontra-se em A Model of Address Form Negotiation: a Sociolinguistic
Study of Continental Portuguese, dissertação de doutoramento que Oliveira (Medei-
ros)27 apresentou à Universidade do Texas (EUA), em 1985.28 Esta investigadora norte-
americana29 estuda os tratamentos portugueses, analisando as formas usadas sobretudo
por informantes residentes em Évora, com breves referências a outras zonas de Portu-
gal.30
Oliveira (Medeiros) elabora as suas conclusões baseando-se na análise da rique-
za, variedade e complexidade do sistema português, na interpretação dos valores semân-
ticos das suas formas e no uso individual destas, considerando também um número sig-
nificativo de factores sociais e individuais, com destaque para a importância da imagem
pública positiva e de autoconceito. Conclusões que, no tocante sobretudo ao uso inter-
pessoal das FT’s, resume assim:

«The results indicate that address form relationships are negotiated by speakers; in such
relationships, conventionalized considerations by markedness and appropriateness are
superseded by the negotiation process. The manipulability of address form system
makes negotiation possible. Negotiation, in turn, leads to variation in the semantic in-
terpretation and use of the forms.»31

A autora considera, além disso, que tais conclusões, embora resultado de estudo
levado a cabo essencialmente numa comunidade linguística particular (Évora), são tam-
bém verificáveis e aplicáveis a todo Portugal e a outras comunidades linguísticas.

27
A autora assina os seus trabalhos mais recentes usando apenas o apelido Oliveira. [Cf. OLIVEIRA,
1995 e 1997]
28
Cf. MEDEIROS, 1985.
29
A autora é natural dos EUA, apesar do(s) apelido(s), e declara, não só, falar fluentemente o Português,
como também conhecer intimamente a cultura portuguesa. [Cf. id.: 4]
30
Para uma descrição física e sobretudo social de Évora, cidade onde a investigadora residiu e trabalhou,
entre Setembro de 1982 e Agosto de 1983, bem como das condições em que realizou a recolha de dados e
a metodologia respectiva adoptada, cf. id.: caps. II e V.
31
Id.: vi-vii. Cf. também id.: 247-252.
298

Oliveira (Medeiros) procedeu à recolha dos dados em convívio diário com a


comunidade eborense,32 recorrendo para o efeito a «participant and non-participant
observation, semi-structured interviews, spontaneous conversations on directed topics,
personal narratives and questionnaires involving both discrete-item and open-ended
questions».33 Precisando a opção pela nossa língua, refere que as FT’s em Português
europeu não constituem um «sistema binário», ao contrário do que acontece com outras
línguas europeias (Castelhano, Alemão, Francês), cujos sistemas são baseados, funda-
mentalmente, nas formas pronominais tu e vos, como propõem Brown & Gilman e seus
seguidores. É que, segundo refere, além destas formas, «a large number of nouns and
noun phrases are used as pronouns in direct address».34 E acrescenta, explicando e con-
cluindo:

«The variety in forms means that some aspects of the address form phenomenon which
have escaped description in other languages are more overt in Portuguese, making Por-
tuguese a good starting point for a study of nuances in address. In fact, Portuguese
nearly demands a comprehensive approach because so many choices exist. To limit
one’s discussion of Portuguese address forms to tu and você would be inaccurate, mis-
leading, and totally inadequate to describe the variety of communicative patterns.»35

A sociolinguista critica a classificação proposta por Cintra, porque «does not


capture the essence of the inter-relationship of the pronominals and nominals».36 Pro-
põe, por isso, uma nova classificação das FT’s portuguesas, baseada mais em distinções
comunicativas que gramaticais.37 Substitui, assim, a designação morfossintáctica do
linguista português em tratamentos pronominais, nominais e verbais, por, respectiva-
mente, «”pure” pronouns, “pro-pronouns”, and Zero Form».38 Na categoria dos primei-
ros, refere tu, você e vossemecê (e plurais); na segunda, nomes e sintagmas nominais
usados, à semelhança do Inglês, como pronomes; na terceira, as formas dos verbos, das
segunda e terceira pessoas, sem sujeito expresso. Estabelece, ainda, uma distinção entre

32
A investigadora conseguiu uma «social network» de cerca de centena e meia de pessoas, 85 do sexo
masculino e 71 do sexo feminino, que agrupa, por um lado, segundo as idades (0-34 anos e mais de 34
anos) e, por outro, segundo a estratificação social (classe alta, média e baixa). [Cf. id.: 108-110]
33
Id.: vi, 1 e 96. Em anexo, são apresentados questionários e entrevistas realizados. [Cf. id.: 260-302]
34
Id.: 3 e 4.
35
Id.: 4.
36
Id.: 41.
37
Cf. id.: 40.
38
Id.: 41.
299

a forma zero [você] (graficamente representada entre parênteses rectos) e o pronome


“puro” você (representado sem parênteses rectos), porque, explica:

«Você refers to the actual spoken form, while [você] is used to represent those instances
when the verb form (third-person singular) is used without the “pure” pronoun (você or
vossemecê) or a form originating from a noun phrase, such as senhor.»39

A justificação para a designação de pro-pronomes, é a seguinte:

«Portuguese is distinct from other Romance languages because of its capacity to use
nouns and noun phrases as pronouns in direct address. I have labelled them “pro-
-pronouns” because they substitute the “pure” pronoun you both in the grammatical
structure of the sentence and in their semantic indication of direct address.»40

Outra distinção diz respeito aos «Integrative and Vocative Pronouns». Os


primeiros «are an integral part of the sentence (i.e., the Integrative pronoun is the sub-
ject of the sentence)», enquanto os segundos «can be used to attract the attention of the
hearer at a distance, initiate a conversation, or close the conversation.»41
Tendo em consideração estas classificações e baseada na recolha feita, elabora
um quadro das FT’s em Português europeu, que distribui por catorze categorias:
«“Pure” pronouns»; «Zero Form»; «First or Last Name»; «Kinship»; «Potentially
Status--Free Forms»; «[Senhor(a) +] Educational Title [+ Name]»; «[Senhor(a) +] Pro-
fession»; «Senhor(a) + Profession»; «Profession»; «Senhor(a) + Professional Title»;
«Senhor/Mestre [+ Trade or FN]»; «Senhor/Mestre + Profession/Trade + Rank (humo-
rous)»; «Social Class»; «Protocol/Ceremonial»; «Solidarity»; «Terms of Affection».42
Nestas categorias, que antes definiu e descreveu, a investigadora encontra as principais
possibilidades do sistema de tratamento português, segundo «[the] norm, or unmarked,
usage»,43 limitando-se às formas alocutivas ou de referência alocutiva.

39
Id.: 40.
40
Id.: 41. Partindo de frases portuguesas como “O senhor / A mãe / O senhor engenheiro / O colega tem
tempo agora para falar comigo?”, observa a autora: «All of those questions are correctly translated as “Do
you have time now to talk with me?”», onde os sintagmas nominais sublinhados são traduzidos para
Inglês pelo pronome you.
41
Id.: 41 e 42. A autora retoma e descreve a importância dos vocativos no fenómeno dos tratamentos, em
id.: 203-207.
42
Id.: 56. Os termos entre [ ] podem coocorrer ou não.
43
Id.: 59.
300

Construindo um hipotético destinatário do sexo feminino (a quem chama Maria),


oriundo duma família abastada e com formação académica superior, a investigadora
exemplifica a variação das diferentes FT’s, conforme as diferentes «identidades» desse
destinatário e reconhecidas na comunidade, e as relações existentes com o locutor.
Resumimos o exemplo no quadro seguinte (FIG. 1):

DESCRIÇÃO DO LOCUTOR FT’s


Amigos e familiares tu
Amigo ou familiar, irritado ou zangado você
Rural, como sinal de respeito vossemecê
Amigo, familiar ou colega com semelhante posição social, sem Maria
intimidade, ou superior no local de trabalho
Conhece desde a infância, mas sem intimidade menina [Maria]
Estranho que lhe desconhece o estatuto minha senhora
Vizinhos urbanos oriundos de meios rurais vizinha
Subordinados e desconhecidos com quem não têm relações título profissional
Colegas de posição inferior, ou igual, sem intimidade, que sabem o doutora [Maria]
seu grau académico
Jovens ou conhecidos que, exteriores ao trabalho, não têm intimi- [senhora] dona Maria
dade para a tratar por tu ou por Maria simplesmente
Situação de protocolo44 Vossa Excelência

FIG. 1 – Variação das FT’s segundo as «identidades» dum mesmo destinatário, baseado em MEDEIROS,
1985: 58-59.

A sociolinguista defende que, além do uso segundo a norma ou não-marcado, os


tratamentos portugueses constituem «a complex system based on the semantic variabi-
lity of the forms and the conscious and subconscious manipulability the system itself.»
45
E é porque podem ser manipuladas que as FT’s podem ser negociadas e, consequen-
temente, sofrer variação semântica (semântico-pragmática, diríamos nós), segundo um
processo que representa assim:

«Manipulability Negotiation Semantic Variability»46

44
Traduzimos «protocol» por protocolo, que Oliveira (Medeiros) traduz por «cerimónia». [Cf. id.: 281]
45
Id.: 168.
46
Id.: 222. Apesar de distinguir a «variabilidade semântica» da «manipulação» são, todavia, duas das
«three broad areas of variability in the address form system» que a autora considera no seu estudo. (A
terceira grande área é constituída pelas «individual attitudes toward the role of address in society and the
301

O processo47 da variabilidade semântica situa-se ao nível da interpretação que o


locutor faz de cada FT, resultando daí que «the gloss of each address forms is a set of
semantic features»48 e que, por isso, «there is no one-to-one correspondence between
form and meaning.»49 Para provar esta conclusão, apresenta, como exemplo, a seguinte
FT que, consoante o conhecimento que se tem do alocutário e o tipo de relação existen-
te, num dado contexto de comunicação, apresentará valores semânticos diferentes. Um
indivíduo, habitualmente tratado por outros por senhor+título, pode ser tratado apenas
por senhor. Neste caso, o tratamento inclui os valores semânticos de [+Confiança],
[+Intimidade], [−Respeito], [−Protocolo] e [−Afastamento]. Mas um indivíduo que não
possua qualquer título, poderá ser tratado também por senhor. Neste caso, é caracteriza-
do pelos valores [−Confiança], [+Protocolo] e [+Afastamento]. Por último, alguém que
seja tratado por outros por menino, pelo nome próprio ou pelo apelido, pode ser tratado
também apenas por senhor. Neste caso, o tratamento denota valores de [+Irritação],
[+Ironia] e [+Afastamento].50 A FT senhor ilustra claramente a ausência de total corres-
pondência entre forma e sentido dum tratamento, segundo a autora.
A variabilidade semântica das FT’s, tanto ao nível da percepção e interpretação
que delas têm e fazem os informantes, como ao nível do uso, é que permite a sua mani-
pulação e (re)negociação. Aliás, «without manipulability, negotiation is impossible.» 51
A manipulação do sistema das FT’s encontra-se logo ao nível da variabilidade
semântica, se bem que de forma «inconsciente». Mas é sobretudo52 ao nível das mudan-
ças «in mood (humor, anger, and irony), behavior modification, and various uses of
vocatives»53 que a manipulação consciente se realiza.54 Por outro lado, a manipulação

number of address forms available to the Portuguese speaker.») [Id.: 170] A sociolinguista considera, por
isso, que a variabilidade semântica é também um processo de manipulação do sistema das FT’s por cada
um dos locutores, consoante as situações e os respectivos repertórios de formas disponíveis. [Cf. id.: 173]
47
Oliveira (Medeiros) distingue «variation» de «variability», definindo a primeira como «resultado» e a
segunda como «processo». É sobretudo neste sentido que analisa os sistema das FT’s. [Cf. id.: 173]
48
Id.: 174
49
Id.: 175.
50
Cf. id.: 174-175. A autora, por um lado, não traduz para Português «Respect», «Protocol», «Anger» e
«Irony», e, por outro, os valores semânticos que apresenta em Português estão sublinhados. A propósito
de «[−Respect]», no caso dum alocutário com título ser tratado apenas por senhor, a sociolinguista obser-
va que «Lack of respect may be shown via use of senhor, but use of senhor does not automatically
impply a lack of respect.» [Id.: 175]
51
Cf. id.: 189.
52
«Manipulation can take many forms». [Id.: 189]
53
Id.: 189.
54
«The section on variability in semantic interpretation illustrates manipulation of the system which may
be subconscious by the speaker, while the section entitled “Manipulability of the Address Form System”
describes overt [or “conscious”] manipulation of the address form system.» [Id.: 173]
302

mostra que a escolha duma forma «can alter participants’ perception of the situation.»55
A manipulação do sistema das FT’s, segundo diferentes objectivos, «is an important
aspect of individual variation», pois indica:

«a) that address forms do more than merely reflect the social status of the speaker and
hearer; b) that the system is flexible rather than monolithic or stagnant; and c) that there
is not a one-to-one correspondence between the form and its semantic interpretation.»56

Quanto à manipulação, consequência também da variabilidade semântica, são os


locutores que, individualmente, negoceiam e renegoceiam as FT’s que utilizam. Várias
situações, relatadas ou directamente observadas, revelam a utilização de «estratégias»
(que correspondem, por sua vez, a «um grupo de processos cognitivos»57) pelos locuto-
res, consciente ou inconscientemente,58 para negociar ou renegociar, explícita ou impli-
citamente, o tratamento mais adequado ao tipo de relação social desejada.59
Nesta ordem de ideias, a autora retoma e segue a noção de estratégia proposta
por Brown & Levinson,60 para considerar que a escolha duma FT é automática,
(«involving no conscious thought»), semi-automática («normally involving no thought,
until a situation arises in which the speaker has no ready response»), ou não-automática
(«involving constant thought»).61 É apresentado um conjunto de nove «estratégias» para
o processo de renegociação das FT’s, cujos exemplos resultam duma interpretação dos
dados recolhidos junto de eborenses.62 Nem todas elas, porém, se situam, por um lado,
ao mesmo nível de consciência dos interlocutores, nem, por outro, incluem negociação
explícita da mudança. As estratégias de renegociação consciente, directa e explícita,63

55
Id.: 189.
56
Id.: 207.
57
Id.: 128. Os «processos cognitivos» serão descritos aqui, a seguir, ao apresentar-se o modelo de análise
das FT’s, baseado na «negociação individual», proposto por Oliveira (Medeiros).
58
«The concept of “negotiation” implies some level of consciousness, although some of the strategies
may be applied without conscious forethought.» [Id.: 129]
59
Cf. id.: 221-222.
60
Cf. id.: 129, ou BROWN & LEVINSON, 19966: 85.
61
MEDEIROS, 1985: 131.
62
Cf. Id.: 163.
63
Oliveira (Medeiros) não vai tão longe, quanto nós, nas suas distinções, uma vez que se situa apenas ao
nível da consciência e da espontaneidade. [Cf. id.: 165]. Julgamos, porém, que é possível e legítimo fazer
as distinções que fazemos, uma vez que elas se encontram também na formulação que a investigadora dá
de cada uma das estratégias, se bem que não explicitamente.
303

são, conforme enumera: n.º 1 − «Suggest use of the new form»;64 n.º 2 − «Ask to use the
new form»;65 n.º 3 − «Ask how the other likes (or prefers) to be addressed»;66 n.º 4 −
«Invite the other to use a new form»;67 n.º 5 − «Clue verbally the change to a new
form»;68 e n.º 8 − «Take a humorous approach in trying to “force” use of tu or some
other form signally greater intimacy».69 Estas estratégias de (re)negociação são introdu-
zidas, como se vê, através de uma proposta de mudança de FT, a qual é, assim, consti-
tuída tema (tópico ou assunto) duma troca verbal de natureza fática.70
Como processos de ®enegociação consciente, directa, mas implícita (i. e., não
antecedida de indicação explícita de mudança de tratamento ou de troca verbal, cujo
tema foi, precisamente, essa mudança), temos as estratégias n.º 6 − «Initiate use of the
new form without prior cluing»71 − e a n.º 7 − «Use discourse markers which are either
morphologically marked as tu-forms or are generally used in tu-relationships».72
A estratégia n.º 9 − «Spontaneous and subconscious use of the new form» − é,
por último, directa, mas inconsciente e implícita. A propósito, a investigadora comenta
que estes casos «are probably based on a subconscious feeling of rapport.»73
As estratégias de renegociação de tratamento visam estabelecer entre os interac-
tantes uma relação sobretudo de tuteamento, mas serve igualmente «for renegotiating to

64
A sociolinguista considera que esta estratégia pode ser realizada por uma das perguntas seguintes:
«Shall we stop this “você” bit? / Wouldn’t it be easier if we address each other by tu? / I think we could
address each other by tu, don’t you?» [Id.: 164. Cf. também 1993: 333]
65
A sociolinguista apresenta o seguinte exemplo, para a realização desta estratégia: «“Do you mind if I
address you by tu?» [MEDEIROS, 1985: 164]
66
A sociolinguista comenta que esta é uma estratégia de renegociação «when the speaker is hoping that
the hearer will respond by saying that a form signifying greater intimacy be used.» [Id.: 164]
67
Exemplo: «“(If you like,) [Y]ou may address me by tu.”» [Id.: 164]
68
Como exemplo que, segundo comenta a autora, «dá ao alocutário uma possibilidade de objectar», é
indicada a frase: «“I’m going to begin addressing you by tu.”» [Id.: 164]
69
Exemplo, fornecido à investigadora por uma informante do sexo feminino: «“If you don’t address me
by tu, I’ll never speak to you again!”» [Id.: 164-165]
70
Sobre as trocas verbais fáticas e transaccionais, Cf. RODRIGUES, 1994: 125 e, supra, cap. I, 1.2.
71
Segundo descreve a investigadora, alguns informantes disseram que «after initiating the new form they
listen carefully for clues as to how the other speaker views this new usage and how he/she reacts». Out-
ros, por sua vez, dizem que usam a nova forma «without checking for a reaction», enquanto que alguns
jovens informantes «(teenagers)» disseram que «they automatically address people of the same age by
tu.» [MEDEIROS, 1985: 164] Assim sendo, este procedimento dos jovens deveria ser referido, como se
verá a seguir, no conjunto das estratégias de negociação.
72
Oliveira (Medeiros) indica, como exemplos de tais marcadores discursivos, formas imperativas como
««Olha» e «Sabes». A investigadora considera, por outro lado, que esta estratégia é «really an “explorato-
ry choice”, as these forms are used as discourse markers and not address forms.» [Id.: 164]. A escolha
exploratória tem a ver com a «máxima exploratória», proposta por Scotton. Conforme cita Oliveira
(Medeiros), a máxima de escolha exploratória «urges the speaker to “make an exploratory choice as a
candidate for an unmarked choice in a nonconventionalized exchange” (1983: 125).» [Id.: 71]
73
Id.: 165.
304

any form reflecting greater Intimidade or Confiança than the form previously negotia-
ted.» 74
Nem sempre resultam, porém, as propostas e as tentativas de renegociação. A
autora diz que a falha se fica a dever, principalmente, a uma de duas razões: «a) the
desire of the other speaker to maintain the affective distance (Afastamento); or b) timi-
dity on the part the speaker.»75 No primeiro caso, observa, baseada nos dados, que o
alocutário, querendo manter-se distante do locutor, recusará o tuteamento, respondendo
com «[você], você, senhor, TITLE, or senhor + TITLE; avoid the other person; or
give a direct reprimand to the other, requesting a discontinuance of use tu (or some
other offending form).» No segundo caso, a timidez é um importante obstáculo à reali-
zação da renegociação do tratamento. «The person who feels inferior may be too timid
to accept the other’s suggestion for reciprocal tu», em virtude das grandes diferenças
que existam entre ela e o interlocutor, «in terms of education, rank, age, [and] social
class».76
O uso individual que cada locutor faz do sistema de tratamento, tanto em relação
a estranhos, como entre conhecidos e amigos, está sempre dependente, por isso, de
vários factores, cuja relativa importância afecta a escolha. Factores que são tidos, ou em
menor ou maior consideração, consoante, respectivamente, a rotina ou o hábito predo-
minem, ou quando o locutor tem necessidade de (re)avaliar a importância desses facto-
res.77
Os factores dizem respeito não só «to considerations of respect, intimacy, soli-
darity and relative age and/or status (educational, professional or social)», mas também
a «the protocol of the situation, the way the hearer wishes to be addressed, the way the
hearer is known, a change in mood or environment, the presence of certain other people,
a desire to modify the behavior of the hearer or to renegotiate the address form relation-
ship, current fads, a desire for reciprocity and a speaker’s reaction to the hearer’s efforts
to renegotiate the relationship.»78
Ao nível dos factores que determinam a escolha da FT, a sociolinguista presta
especial atenção, por um lado, à importância que os interlocutores dão à preservação da
sua «imagem pública positiva» («positive public image») e ao seu «autoconceito»

74
Id.: 163.
75
Id.: 165-166.
76
Id.: 166.
77
Cf. id.: 248.
78
Id.: vii.
305

(«self-concept»). Por outro lado, analisa – a fim de mostrar a sua inadequação e insufi-
ciência explicativa – a importância tradicionalmente atribuída aos factores «poder» e
«solidariedade» (propostos no modelo de Brown & Gilman), face à importância que
outros factores têm, efectivamente, na complexidade dos processos convencionais (ou
não negociados) e (re)negociados das FT’s, usadas pelos eborenses, em particular, e
pelos portugueses, em geral.
Mais que a própria FT usada, é a personalidade de cada uma das pessoas envol-
vidas que constitui o factor mais importante na sua escolha. Muitos informantes referi-
ram a necessidade de pensar no tratamento a utilizar, antes de se dirigirem a alguém,
sobretudo com quem não têm muita confiança. E as razões são:

a) porque não sabem quem é o alocutário, nem como ele quer ou gosta de ser tratado;
b) porque têm opiniões e atitudes diferentes em relação ao uso e valores dos tratamen-
tos tradicionais;
c) porque receiam ofender o alocutário;
d) porque se encontram em contexto de comunicação não habitual (formal);
e) porque se encontram perante alguém que tem múltiplas identidades;
f) porque, entretanto, o destinatário mudou de estatuto ou posição social;
g) porque aguardam ser primeiro tratados pelo outro, para só depois lhe corresponde-
rem com uma forma explícita, que pode ser de aceitação ou de recusa da relação
pretendida pelo outro.79

Em consequência dos estudos realizados, os factores de «poder» e de «solidarie-


dade», propostos no modelo de Brown & Gilman, são para a autora, apesar da sua
comodidade e popularidade, «insufficient to account for all address form choices».80 A
investigadora sujeitou, para o efeito, à apreciação de informantes um conjunto de dez
factores, por eles também sugeridos, sobre a importância nas escolhas duma FT, a saber:
confiança, respeito, solidariedade, intimidade, chique, superioridade, protocolo, hábito,
afastamento e inferioridade.81
Os informantes foram convidados, em primeiro lugar, a avaliar a importância de
cada um destes factores e a indicar se cada um deles «afecta muito», «afecta pouco» ou

79
Cf., para exemplos, id.: 130-135 e passim.
80
Id.: 225.
81
Id.: 227. Traduzimos para Português os factores que a investigadora apresenta em Inglês: «Respect»,
«Chic», «Protocol» e «Habit».
306

«não afecta» a sua decisão. Havia ainda uma quarta opção: «não sei; nunca pensei nis-
so».82 Em segundo lugar, foi-lhes pedido que hierarquizassem, de 1 a 10, esses factores,
«assigning a 10 to the most important characteristic, a 1 to the least important, and 2 a 9
to the intermediate characteristics.»83 Foram obtidas 49 respostas, depois divididas, por
um lado, segundo as idades (entre os 18 e os 33 anos, e com 34 anos ou mais) e, por
outro, segundo o seu nível socioeconómico84 (classe média alta, classe média baixa e
classe trabalhadora). Observe-se o quadro seguinte (FIG. 2):

Informantes com 18 a 33 anos POSIÇÃO Informantes com 34 ou +


Intimidade 1 Intimidade
Respeito 2 Respeito
Solidariedade 3 Igualdade
Igualdade 4 Hábito
Hábito 5 Solidariedade
Protocolo 6 Protocolo
Afastamento 7 Inferioridade
Inferioridade 8 Superioridade
Superioridade 9 Afastamento
Chique 10 Chique

FIG. 2 – Hierarquia dos factores, por idades, baseado em MEDEIROS, 1985: 232.

Apresentámos no quadro (adaptado e traduzido por nós) a posição que os infor-


mantes eborenses mais novos, por um lado, e os mais velhos, por outro, atribuíram a
cada um dos factores, segundo a ordem da sua importância.
A conclusão mais importante a retirar é, observa a autora, o facto de todos os
informantes atribuírem posições muito idênticas aos factores, inclusive a mesma posi-
ção a alguns: intimidade, respeito, protocolo, e chique. Por outro lado, os cinco primei-
ros lugares85 são ocupados pelos mesmos factores, com pequena variação de posições:
intimidade, respeito, solidariedade, igualdade e hábito.

82
Id.: 281 e 227.
83
Id.: 227.
84
As respostas dos estudantes universitário foram excluídos desta análise. Para as razões, cf. id.: 235.
85
A consideração, sobretudo, dos cinco primeiros factores é devida ao facto de, segundo a investigadora,
«as 5 is the mid-point on the scale (1 to 10), one might logically assume that any factor with a value abo-
ve 5 is [+influential].» [Id.: 242]
307

Os resultados das respostas, segundo as classes sociais, vêm no quadro seguinte

(que também traduzimos e adaptámos):

Posição C. Média Alta C. Média Baixa Classe Trabalhadora


1 Respeito Intimidade Respeito
2 Intimidade Respeito Igualdade
3 Protocolo Solidariedade Intimidade
4 Solidariedade Hábito Solidariedade
5 Igualdade Igualdade Hábito
6 Hábito Protocolo Protocolo
7 Afastamento Afastamento Chique
8 Superioridade Inferioridade Inferioridade
9 Inferioridade Superioridade Superioridade
10 Chique Chique Afastamento

FIG. 3 – Hierarquia dos factores, por classes sociais, baseado em MEDEIROS, 1985: 236.

Com ligeira variação de lugar e algumas coincidências de posição, os factores


que, neste quadro, ocupam os cinco primeiros lugares são praticamente os mesmos do
quadro anterior. Todavia, cremos ser de assinalar, embora a investigadora não faça tal
leitura, mas os dados estão lá, que, a considerar-se a média das preferências das três
classes sociais, respeito ocuparia o 1.º lugar, seguindo-se intimidade, solidariedade,
igualdade, hábito e protocolo. Curiosa a posição de protocolo, ao ocupar, para a classe
média alta, o terceiro lugar, enquanto que, nas classes média baixa e trabalhadora, ocupa
o sexto. Em contrapartida, o factor chique vem em sétimo lugar, na preferência da clas-
se trabalhadora, e o último lugar, nas outras duas classes. São, aliás, aqueles seis facto-
res, com o de confiança (não sujeito a avaliação, mas também sugerido por informan-
tes86), que Oliveira (Medeiros) considera, tendo em consideração os dados colhidos,

86
A sociolinguista considerava, a princípio que confiança era sinónimo de intimidade e daí, certamente, a
sua não inclusão na lista de factores que sujeitou a apreciação dos informantes. [Cf. id.: 227] A sua inclu-
são na lista definitiva de factores foi-lhe sugerida por um par de informantes. [Cf. id.:242] Baseada em
noções de informantes eborenses, Oliveira (Medeiros) distingue, como segue, as noções de [+Confiança]
de [+Intimidade]: «Having a [+Confiança] relationship with someone implies a verbal sharing of one’s
feeling and social activities. Having a [+Intimidade] relationship with someone implies a more complete
sharing of feelings as well as joint participation in social activities. Confiança, then, leads to Intimidade,
and is a prerequisite for it. Whereas Intimidade implies a very close relationship, one can have Confiança
in someone without having a particularly close relationship.» [Id. : 22]
308

como os mais determinantes na escolha duma FT. Por isso, a conclusão: «This means
that address form choice can be linked to at least six dimensions, rather than two, as
suggested by Brown and Gilman.»87
Oliveira (Medeiros) reconhece algumas limitações nos métodos utilizados na
recolha das apreciações, nomeadamente, o facto dos informantes não terem sido infor-
mados se, nas suas respostas, deveriam considerar as FT’s em situações de relação
negociada ou não negociada, uma vez que «the cognitive processes are not the same
when addressing strangers as when addressing acquaintances or friends.»88 Além disso,
em nosso entender, a recolha dos dados através de questionários, leva a que as respostas
dos informantes se situem, sobretudo, no nível da meta-comunicação, o que poderá não
coincidir, totalmente, com o uso efectivo dessas FT’s. Uma coisa é dar uma resposta
sobre o uso hipotético duma FT, num hipotético co(n)texto de comunicação, e outra é
usar, efectivamente, uma FT, num dado co(n)texto. Todavia, não se pode deixar de
reconhecer que os resultados dos questionários vieram provar, como defende a investi-
gadora, que:

«a) Portuguese speakers consider as distinct factors the various elements which Brown
and Gilman combine when redefining “Power” and “Solidarity”; and b) “Power” and
“Solidarity”, defined narrowly, do not account for all address form usage.»89

Analisando, em particular, cada uma das dimensões propostas por Brown &
Gilman, a autora considera que tanto os termos que estes autores agrupam sob a noção
de «solidariedade», como os termos que agrupam sob a noção de «poder» «are not
semantically equivalent and therefore must be considered as individual factors».90
Brown & Gilman, segundo a investigadora, consideram que a «semântica do poder»
inclui respeito, protocolo, superioridade e afastamento, enquanto que a «semântica da
solidariedade» inclui solidariedade, intimidade, igualdade e inferioridade.91
A sociolinguista, baseada no estudo feito em Évora, verifica, por seu turno, que:

87
Id.: 242.
88
Id.: 239.
89
Id.: 241. Cf. também id.: 68 e 225; também 1993: 330.
90
MEDEIROS, 1985: 241.
91
Oliveira (Medeiros) não exclui, contudo, a hipótese de todos estes factores poderem ser combinados
«under the broader terms to explain choice». [Id.: 241] Por outro lado, admite que o uso de um modelo
«in which all relationships are reduced to a single binary contrast may appear defensible for languages
with only two pronoun choices (i.e., someone either has some sort of power or does not and uses the T- or
V-form accordingly).» [Id.: 242]
309

« Solidariedade ≠ Intimidade
Solidariedade ≠ Igualdade
Superioridade ≠ Respect
Protocol ≠ Respect »92

O modelo teórico de Brown & Gilman,93 como qualquer outro «currently used in
sociolinguistic research» não são, por isso, «adequate to examine the address form phe-
nomenon in its entirety».94 Fenómeno onde o sistema de tratamentos em Português de
Portugal constitui um caso típico e particularmente interessante.

A análise sociolinguística que, em termos teóricos e metodológicos, Oliveira


(Medeiros) faz das FT’s portuguesas, merece-nos as seguintes observações. Convém
destacar, antes de mais, aqueles aspectos que, em nosso entender, se nos afiguram mais
importantes e que a seguir enumeramos. Reconhece e prova a investigadora:

a) A riqueza e complexidade das FT’s portuguesas, ao nível sobretudo dos usos / esco-
lhas que cada locutor pode fazer, no estabelecimento e/ou (re)definição de relações
com o(s) seu(s) alocutário(s), a sós e / ou perante terceiros.
b) Uso estratégico das FT’s na construção e preservação de uma imagem pública posi-
tiva e do autoconceito do locutor, em primeiro lugar, mas também do alocutário.
c) Um mesmo destinatário pode ser tratado por diferentes FT’s, por um único ou
vários locutores, ou ser tratado por uma única FT por diferentes locutores, conforme
as múltiplas identidades e os diferentes estatutos pessoais por que é (re)conhecido,
de acordo com os contextos e as relações estabelecidas ou desejadas.
d) Importância das variáveis (factores) pessoais, sociais e contextuais, na interpreta-
ção, selecção e uso duma FT.
e) Importância do emprego de FT’s, sobretudo manipuladas e/ou re-negociadas, como
estratégia para obtenção de determinados efeitos discursivos e de relação interpes-
soal (irónicos, humorísticos, de irritação).

92
Id.: 241. Oliveira (Medeiros) refere, a propósito, que os portugueses distinguem intimidade de solida-
riedade. A intimidade «includes the important distinction of inviting people to one’s home, as opposed to
seing them around town exclusively. Solidariedade, on the other hand, implies some sort of sense of
shared situation, such as a similar political, social, religious, or professional affiliation, without implying
Intimidade. Using co-workers as example, they may have a relationship which is [+Solidariedade] but
[−Intimidade]. Such a situation is, in fact, quite common.» [Id.: 243]
93
«In the case of Portuguese, the Brown and Gilman model is inadequate because it offers only a binary
opposition, while rules of Portuguese syntax allow for an unlimited number of nouns to be used as pro-
nouns, referred to in this work as “pro-pronouns”.» [Id.: 244]
94
Id.: 2.
310

f) O uso (ou o não uso) calculado de FT’s, como forma dos interlocutores comunica-
rem ou não os seus pontos de vista acerca uns dos outros e do universo onde se
encontram.
g) A escolha duma FT é também um acto racional (e, por isso, estratégico), ao nível
das competências linguística e sobretudo de comunicação. Daí a importância do
conhecimento, por um lado, do sistema e, por outro, do uso apropriado das FT’s, na
aprendizagem do Português, sobretudo como língua estrangeira.95
h) Utilização, na recolha de dados, de métodos de observação directa e indirecta, atra-
vés de participação activa e passiva na vida dos informantes.

Apesar da importância que lhe reconhecemos, julgamos ser de questionar os


seguintes aspectos:

a) Análise das FT’s centrada apenas na dimensão alocutiva, esquecendo as dimensões


elocutiva e delocutiva.
b) Ausência duma clara e explícita perspectiva teórica ao nível da Pragmática, apesar
das constantes referências e importância atribuída às variáveis co(n)textuais.
c) Inclusão de todas as FT’s nominais na categoria dos «pro-pronomes», tomando
como paradigma de descrição a morfossintaxe do Inglês e não a do Português.
d) Conclusões sobre a variação, ao nível da interpretação semântica individual das
FT’s, baseada em opiniões de apenas alguns informantes (1 ou 2, por vezes);
e) Excessivo individualismo na interpretação (mais psicossociológica que sociolin-
guística) do sistema das FT’s e de alguns dos seus usos, esquecendo os seus valores
semântico-pragmáticos. Deixa entender que é apenas o locutor que constrói o senti-
do e o significado das FT’s, sobre que reflecte ou que usa numa dada situação de
interlocução, como se estes signos linguísticos tivessem apenas referência actual e
não referência virtual ou lexicalizada. Se assim fosse, como é que a «manipulação»
duma FT, para se obter efeitos de ironia, humor ou irritação, é entendida, com
esses significados, pelo alocutário, e não nos seus sentidos habituais?96

95
A sociolinguista termina a sua tese de doutoramento com «sugestões destinadas a professores de língua
estrangeira», uma vez que, segundo a sua própria experiência, o uso das FT’s «is generally discussed
superficially, sometimes as a cutural comment, and practiced little.» Sugere, por isso, aos professores que
«1) Expose students to the gamut of address forms»; «2) Simulated real-world strategies»; «3) Incorpora-
te address forms into all communication»; «4) Aid students in analyzing address form usage in dialogues
(oral / written) and prose»; «5) Provide basic tips». [Cf. id.: 254-256]
96
Carreira observa, a propósito desta interpretação «psicossociológica» de Oliveira (Medeiros), que,
servindo-se dum exemplo dado pela sociolinguista, «si la forme de tratamento V. Exª peut être choisie
pour plaisanter, voire critiquer quelqu’un que le locuteur tutoie habituellement et que si cette intention
peut être comprise par l’interlocuteur grâce à l’emploi de cette forme (inhabituelle pour les interlocuteurs
311

f) Considerar o estudo das FT’s fora do sistema de cortesia verbal, como se as FT’s
corteses fossem apenas as que assim são correntemente designadas. A nosso ver, as
FT’s são também manifestações linguísticas, a par de outras, de cortesia (ou de des-
cortesia) verbal. Daí, a ausência de análise de FT’s ofensivas, como se não houves-
se também pessoas verbalmente tratadas mal ou mal-tratadas.
g) Também ao nível do ensino-aprendizagem duma língua materna é importante o
conhecimento do sistema de tratamento e dos valores semântico-pragmáticos que as
respectivas FT’s denotam e expressam em situações concretas de uso. Há também
uma competência de cortesia, como dimensão fundamental da macrocompetência
comunicativa, que é preciso adquirir e desenvolver, nos seus aspectos teóricos e
práticos, isto é, uma competência discursivo-textual.
h) Considerar que os textos literários não são representativos, como refere a autora,
«of the current sociolinguistic patterns» das FT’s, «because it often presents pat-
terns which are passé».97

Convém recordar, todavia, que o domínio dos estudos linguísticos em que Oli-
veira (Medeiros) desenvolve os seus ensaios – o da Sociolinguística, sobretudo, norte-
-americana de orientação teórica e metodológiga laboviana – não é o que nós próprios
adoptamos e seguimos, na elaboração deste nosso estudo. O nosso trabalho está orienta-
do para o estudo das formas verbais de cortesia e de descortesia, em geral, e das FT’s
corteses e descorteses, em particular, enquanto relacionemas verticais e/ou horizontais,
e o papel que umas e outras desempenham na organização e configuração discursivo-
-textual, ao serem utilizadas pelos interlocutores, nas diferentes situações de interacção
verbal em que se encontrem, sempre como interactantes, isto é, co-agentes mais ou
menos directa ou indirectamente nelas implicados e por elas corresponsáveis.

3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos»


de mudanças ou rupturas sociais

Nas obras já acima referidas,98 Emília Marques analisa também as FT’s portu-
guesas, nos aspectos morfossintácticos e sobretudo sociossemânticos, segundo os parâ-

dont il est question) c’est parce qu’un des traits de V. Exª est celui d’être associée à des situations de
communication formelles et protocolaires. Ceci correspond à l’emploi banal de V. Exª. Si cette banalité
d’emploi est rompue c’est que le locuteur choisit, par une sorte de détournement de la forme d’adresse,
d’attirer l’attention sur une inadéquation.» [CARREIRA, 1995: 88]
97
MEDEIROS, 1985: 74. Sobre a nossa posição sobre esta questão, ver, supra, Introdução Geral.
312

metros da deferência e da distância que os interlocutores estabelecem, consoante os fac-


tores sociais e as características individuais. É também no domínio da Sociolinguística
que situa o estudo, definindo as FT’s como «símbolos linguísticos de tramas interactivas
urdidas entre interlocutores social e culturalmente situados».99 Afirma, por isso, que «a
situação, a interacção e as regras sociais, tanto quanto as restrições linguísticas, deter-
minam escolhas entre modos de acção e estratégias discursivas culturalmente aceites,
embora sempre de acordo com determinada intenção de comunicação, por parte do
sujeito enunciador.»100
Com o objectivo de «despistar e interpretar [...] diferenças culturalmente signifi-
cativas em manifestações de sistemas socioverbais», procede a «uma análise contrastiva
de formas de tratamento e de formas de delicadeza,101 ocorrentes em estruturas de com-
plementação com marcas interlocutórias.» A opção por tais expressões resulta do facto
de que «qualquer escolha decorrerá sempre, e directamente, da situação e das relações
estabelecidas entre os interlocutores».102 Tais formas constituem, por isso, um excelente
domínio de observação, «dado permitir conclusões relevantes quando de análises que
foquem a competência de comunicação».103 O estudo das FT’s é, por isso, campo socio-
linguístico privilegiado para «correlacionar escolhas verbais e factores sociais e cultu-
rais».104 Segundo a autora, tal estudo

a) permite delinear o modo como interagem os falantes dentro e através de determina-


do sistema social, e qual o grau de orientação - centrípeta em EU ou aberta em rede;
b) contribui para identificar e descrever estruturas sociolinguísticas definidoras de cer-
tos grupos ou determinadas comunidades;
c) verificar que comunidades diferentes apresentam diferenças significativas na mani-
festação, em discurso, dos respectivos sistemas sociolinguístiocs (tratamentos,
honoríficos, deferência, delicadeza...);
d) verificar que os tratamentos tanto permitem delinear simbolicamente uma estrutura
social como indiciar mudanças ou rupturas sociais;

98
Trata-se de MARQUES, 1988 e 1995; ver, supra, cap. V, 2.3.
99
MARQUES, 1995: 135.
100
Id.: 134.
101
A autora separa as FT’s das formas de delicadeza, termo que prefere a «cortesia».
102
MARQUES, 1995: 134.
103
Id.: 135. São sumariados alguns aspectos mais relevantes desta competência: «problema da escolha
entre fala e silêncio; o domínio, em instâncias de produção e recepção, de conteúdos discursivos referen-
ciais e sociais; a capacidade para adequar o dito/falado/escrito à ocasião [...]; a competência para escolher
a variante apropriada a determinada situação e momento social – ou seja, o ser capaz de saber ONDE,
QUANDO e COMO ALGUÉM fala a OUTREM.» [Id.: 134]
104
Id.: 135.
313

e) verificar que o sistema português das FT’s é, de entre as línguas ocidentais, o que
mais se aproxima, pela sua complexidade, dos sistemas orientais de tratamento
honorífico.105

É como indiciadores de mudanças ou rupturas sociais que Marques se interessa,


em particular, pela análise contrastiva das FT’s. Toma como corpus discursos de depu-
tados produzidos na Assembleia Nacional, nos anos de 1972-73 e 1973-74, e na Assem-
bleia Constituinte, no ano de 1975-76. Os respectivos contextos parlamentares são cla-
ramente distintos: imediatamente antes e imediatamente após a Revolução de 25 de
Abril de 1974. Segundo a autora, a complexidade e a subtileza do sistema de tratamento
português tornam-se mais facilmente observáveis em acontecimentos verbais (“speech
events”) que ocorram em:

a) «períodos de instabilidade e em comportamentos socioverbais ritualizados, além de


processados em universos fechados»;

b) «estruturas dialógicas encenadas, visando, pela argumentação e pela força discursi-


va, a obtenção de um poder – neste caso, do poder político»;

c) «situação polémica de assembleia, onde a força da palavra e a, por vezes violenta,


acção verbal orientam e condicionam debates parlamentares.»106

Marques inclui as FT’s no conjunto das formas linguísticas que manifestam


níveis de deferência, nesta «designação genérica» incluindo também níveis de fala /
registos, formas honoríficas e formas de delicadeza.107 Em seu entender, existe «coerên-
cia sintagmática entre os vários meios de expressão da deferência, [...] seja qual for o
ponto da cadeia frásica em que ocorram».108 Daí a importância que a escolha dessas
formas tem, tanto ao nível da estrutura de complementação, como das relações entre os
interlocutores. Neste sentido, considera que, em estruturas dialógicas, seja qual for o
grau ou tipo de ritualização, «é importante a escolha da forma de tratamento, como con-
dição necessária para a aceitação social dos enunciados produzidos.» E acrescenta:
«Tal escolha, mesmo se pertinente, tem contudo de ser acompanhada por outras, de

105
Cf. id.: 135. Alineação da nossa responsabilidade.
106
Id.: 136. Alineação da nossa responsabilidade.
107
Cf. id.: 137.
108
Id. ibid. e 192.
314

molde que haja, em todo o enunciado, um mesmo nível de deferência, ou de delicadeza,


resultante da situação e das relações entre os interlocutores e os participantes envolvi-
dos.» 109
A autora conclui, por isso, que a escolha da FT «quase permite prever a ocorrên-
cia de outras expressões ou de outros termos, de outras fórmulas de deferência e de deli-
cadeza.»110 Consideramos este ponto importante, uma vez que, em nosso entender, o
emprego duma FT, como de outros processos de cortesia ou de descortesia, se reflecte
nas práticas discursivo-textuais, a nível morfossintáctico, semântico e pragmático, que
os (inter)locutores realizam, consoante os contextos em que se encontram. A linguista
situa, portanto, as FT’s no âmbito da deferência e da delicadeza, noções que, como se
verifica, distingue, distinção esta que comentaremos abaixo.
Perante as relações próximas que existem entre níveis de deferência e registos,
Marques opta por incluir, no conjunto dos primeiros tanto níveis de fala / registo como
formas honoríficas, formas de tratamento e formas de delicadeza. Aliás, indo mais longe
na compreensão da expressão, a autora faz equivaler registos a níveis de fala, bem como
a estilos, uma vez que todos são «objecto de estudo com estatuto idêntico em sociolin-
guística».111 Porém, na concepção abrangente de registos / níveis de língua (fala) / esti-
los, inclui aspectos marcados não só pela gramaticalidade resultante da competência
linguística, mas também pela gramaticalidade socioverbal, resultante da competência
comunicativa.

«Em suma, não é só a gramática que obedece a regras, mas também o uso da língua em
situação – o que nos obrigará a ter em conta a adequação a situação e contexto, logo, a
aceitabilidade social do dito / falado, escrito. Daí que, para além da competência lin-
guística (conhecimento das regras que regulam compreensão e produção de frases gra-
maticais), se tenha de aceitar uma outra, a de comunicação em situação, que se pode
definir, sumariamente, como sendo o conhecimento dos usos verbais adequados àquelas
situações de comunicação que podem ocorrer em determinada sociedade – cultura. Tra-
ta--se aqui de dominar regras sociais que determinam usos diferenciados da lingua-
gem.»112

109
Id.: 137.
110
Id.: ibid..
111
Id.: 139.
112
Id.: 134
315

Trata-se, como é evidente, duma concepção ampla de comunicação, onde natu-


ralmente se inclui, conforme se deixa entrever, no co(n)texto do tema tratado pela auto-
ra, o que chamamos uma competência discursivo-textual de cortesia, adquirida e desen-
volvida em performances sociais, que não exclui, a contrario, uma competência e uma
performance de descortesia. Aliás, tal como o erro gramatical só é detectado por quem
sabe gramática, também só quem sabe cortesia identifica as descortesias.
A autora esclarece, portanto, que há «processos gramaticais (morfológicos, sin-
tácticos...) que podem surgir como características de certos níveis de fala e como seus
indiciadores.» Observa, todavia, que «a noção de registo abarca muito mais do que a
simples “gramaticalidade”», uma vez que ela reúne, entre outros, «problemas de esco-
lha, entre variantes igualmente gramaticais», escolha que é «condicionada pelo tipo de
relação entre os participantes, pelos respectivos estatutos e pelo maior / menor forma-
lismo, ou até pela total informalidade da situação.»113
Marques identifica os seguintes níveis de língua:

a) «íntimos, familiares»;

b) «não íntimos, de distanciação


. objectiva, impessoal
deferência, cortesia
. subjectiva menosprezo
desprezo»114

Os estudos realizados sobre deferência, ainda que nem todos coincidentes sobre
o número de níveis115 (até porque utilizam métodos diferentes na recolha de dados116)
acentuam a importância dos factores sociais na sua descrição, definição e taxinomia. E,
na sequência de outros investigadores, Marques destaca os seguintes:

a) «factor situação: / formal / não formal /informal»;


b) «factor estatuto condicionado por / idade / família / profissão / sexo / . . .»

113
Id.: 137.
114
Id.: 131.
115
Observa a sociolinguista portuguesa que «os estudiosos nem sempre concordam com o número de
níveis habitualmente reconhecido, nem com a respectiva ordem hierárquica. Alguns reconhecem seis
níveis; outros cinco, outros ainda quatro.» [Id.: 194]
116
Utilização de formas orais e/ou escritas, ritualizadas ou não, formais e/ou informais, recurso a testes de
escolha múltipla, de expressão de julgamento, de disponibilidade, de reconhecimento. [Cf. id.: 190-191]
316

c) «factor marginalidade ou sentido de “out-groupness” [...], em relação a situa-


ção(ões) e grupo(s).»117

Além dos registos / níveis de língua / estilos, considera ainda os padrões de usos
– comuns, assimétricos, simétricos – e o estilo pessoal de cada interlocutor, na descrição
dos referidos níveis. É de opinião, porém, que todos estes aspectos, nas escolhas que os
interlocutores fazem, são marcados por traços sociossemânticos, que distribui conforme
resumimos no quadro seguinte:

ASPECTOS TRAÇOS
Registos [± solidariedade] vs. [± estatuto]
Usos comuns [± poder/autoridade] vs. [± solidariedade/camaradagem]
Usos assimétricos [± estatutos díspares]
Usos simétricos [+ solidariedade]

FIG. 4 – Padrões de uso e traços sociossemânticos, segundo MARQUES, 1995: 193-196

Constituindo as FT’s um dos «conjuntos de expressões linguísticas que denotam


vários graus da deferência que o falante pode demonstrar ao seu interlocutor»,118 per-
gunta-se: em que (de)grau começa e em que (de)grau termina a deferência, ou que for-
ma(s) do nosso sistema de tratamento os realiza(m) e manifesta(m)?
A autora, no capítulo dos níveis de deferência, não “responde” completamente à
questão, nem mesmo quando analisa, em seu parecer, o nível mais alto de FT’s - as
formas honoríficas que define como «aquelas que permitem ao locutor mostrar grande
deferência pela pessoa de que fala, ou a quem fala.»119
São três as fórmulas que, em seu entender, poderão representar graus elevados
de tratamento deferencial: v. ex.ª, o doutor e vossência. Visando «apreender a articula-
ção de formas de tratamento e de deferência – a partir de estruturas complexas, sobretu-
do, sintácticas, de complementação – com níveis de língua»,120 Marques submeteu estas
fórmulas, integradas em frases, à apreciação e correcção de informantes, através de um
teste de reconhecimento.121

117
Id.: 196. Adaptámos a apresentação.
118
Id.: 194.
119
Id.: 198.
120
Id.: 191.
121
Aplicado, em 1975, na aldeia da Várzea, concelho de Lamego, a informantes com idades compreendi-
das entre os 10 e os 70 anos. [Cf. id.: 192]
317

Numa frase como Peço a v. ex.ª que me ajude, o tratamento v. ex.ª não foi corri-
gido, mas sim a completiva, substituída por o favor de me ajudar, o favor se me pode
ajudar, a esmola de me ajudar e que me dê uma mãozinha.122 Curiosamente, a fórmula
vossência, na frase Aviso vossência que deve ajudar, foi substituída, por todos os infor-
mantes, pela fórmula v. ex.ª. Além disso, Aviso foi substituído por Peço o favor de
(30%), ou pela reformulação da frase, apagando a estrutura de complementação. A
substituição da fórmula pronominal mostra, como noutros casos de formação semelhan-
te, que a amálgama leva à degradação do nível da deferência. Na frase O doutor supõe
estar a ajudar, a forma nominal sujeito foi substituída (45 informantes, em 100) pela
expressão O Senhor Doutor e 20 informantes substituíram supõe por acredita.123
O uso de honoríficos marca atitudes e comportamentos da parte do locutor, ora
em relação a si próprio, ora ao(s) seu(s) alocutário(s), ora ainda a terceiro(s), presente(s)
ou ausente(s), referido(s) no discurso. Temos, portanto, que as formas honoríficas
podem ser auto e heterorreferenciais. Mas, é evidente, como observa Marques, que a
autorreferência honorífica só acontece num número reduzido de casos, isto é, «aqueles
em que, por exemplo, ou se acentua ofensa, cólera», bem como «ironia, comicidade.»
Nos casos de heterorreferência, a escolha é determinada, sobretudo, por «factores
sociais, externos», os quais funcionam, dum modo geral, como na «escolha dos níveis
de língua marcados por deferência». Daí, a conclusão: «Este tipo de formas assenta em
contrastes binários de [+ honorífico] vs. [- honorífico], no caso de deferência explícita e
directa, ou de [+ humilde] vs. [- humilde], deferência explícita, mas indirecta.»124
A sociolinguista desenvolve, sobretudo, a análise de um caso particular e com-
plexo de referência, onde «o referente é uma terceira pessoa, presente ou não na situa-
ção interlocutória.»125 Trata-se duma relação triádica que tem em consideração não só a
relação locutor – referente, mas também as relações entre sujeito locutor e alocutário,
bem como entre este último e o referente. Descreve, a propósito, tendo em conta o esta-
tuto dos interlocutores e dos referentes, uma «taxonomia relacional» que, como regras,
procura explicar o uso de honoríficos em relação a esse terceiro.126 Mas também a este

122
Cf. id.: 199.
123
Cf. id.: 201.
124
Id.: 198.
125
Id.: ibid.
126
Cf. id.: 198-199.
318

nível, conclui que «as fórmulas, de deferência ou de humildade, que funcionam como
pólos centrípetos, atraem itens e formas estruturais do mesmo registo».127
Mas se, na análise dos honoríficos, por um lado, a autorreferência é considerada
em termos de elocução e, por outro, a heterorreferência em termos de alocução e delo-
cução, na análise do sistema das FT’s,128 são referidos apenas os processos de elocução
e de alocução.
É também sob a dimensão deferência que Marques analisa o sistema português
das FT’s, continuando a ter, como principal corpus, discursos de deputados produzidos
nos contextos parlamentares acima referidos. A deferência será descrita tendo em consi-
deração os seguintes descritores, no continuum seguinte, com limites máximo e mínimo:

«(Ø / ± majestático), (Ø / ± comum), (Ø / ± neutro), (Ø / ± humilde)»129

Entre a forma marcada pelo traço [+majestático], «muitas vezes denotadora de


posição distanciada em momentos de conflito»130 e a forma marcada pelo traço [+
humilde], «em que o locutor honra, ou mostra particular deferência, para com o(-s)
interlocutor(-es)»,131 a sociolinguista afirma existirem «restrições fortes na coocorrência
de formas de tratamento, auto- e hetero-referenciais». As escolhas são, por isso, «deter-
minadas por componentes extralinguísticos, socioculturais, que obrigam a níveis especí-
ficos de deferência».132
Na diversidade da autorreferência pronominal, a autora inclui e distingue formas
como eu, nós, a gente, etc., as quais têm implicações na «escolha da(-s) forma(-s), ou de
designação do(-s) outro(-s), do verbo superior de complementação ou mesmo da estru-
tura da própria completiva».133 Analisando, sobretudo, o uso do pronome de primeira
pessoa do plural, nos discursos parlamentares, isto é, produzidos por actores sociais
adultos específicos (deputados) com igual status, chega às seguintes conclusões:
127
Id.: 201.
128
Id.: 159-170. Neste trabalho, Marques omite as primeiras considerações com que introduz o tema, no
primeiro volume da dissertação. [Cf. MARQUES, 1988: 105-107] Aqui, a autora inclui, na noção de FT’s
«tanto os termos que referem o par destinador-destinatário, como os vocativos usados para chamar a aten-
ção deste último.» Além disso, transcreve dois quadros em que Jensen faz, por um lado, o inventário das
formas sujeito de segunda pessoa e, por outro, o inventário das formas pronominais objecto (directo e
indirecto) de segunda pessoa, baseado na variante do Português do Brasil. [Cf. MARQUES, 1988: 106-
-107; JENSEN, 1981: 56 e 53]
129
MARQUES, 1995: 162.
130
Id.: 163.
131
Id.: 162.
132
Id.: 163.
133
Id.: 162. Na dissertação, a autora inclui também a forma «o partido». [MARQUES, 1988: 109]
319

a) a FT nós, inclusiva, só pode ser utilizada pelo «presidente da mesa, pelo líder do
grupo parlamentar, de uma facção ou de um grupo mais geral ou abstracto», uma
vez que só estes gozam do estatuto de primus inter pares, ocorrendo ainda nas for-
mas nós - deputados, nós – esquerda, nós – povo;
b) o uso da forma majestática nós, na Assembleia Constituinte, produzia, por isso,
algum desconforto;
c) «Exceptuam-se, aqui, [...] as formas que ocorrem em certos escritos oralizados, com
fortes marcas de ritos jurídicos, por exemplo; ou aquelas em que, voluntariamente,
apenas se quer atenuar o grau de implicação-responsabilização em alguns actos.»134

Nas formas pronominais de segunda pessoa, Marques considera as formas você e


o senhor, como pólos comunicativos opostos a tu, situação que complexifica e destrói o
chamado padrão ocidental T[u] → V[ós]. A autora considera que, perante o quase desa-
parecimento de vós, utilizado apenas em tipos muito específicos de discurso (religioso e
oratório, v.g.), as formas pronominais de segunda pessoa se agrupam nos pares EU –
TU, EU – VOCÊ(s) e EU – O SENHOR (-a, -es, -as). Constituindo correlações porta-
doras de significações diferenciais, estabelecidas por regras sociolinguísticas, esta pro-
posta deve-se ao facto de «em português, este tipo de pronomes não ser mero substituto
do nome»135 e, por isso, «o seu uso ter de ser compreendido, não apenas no âmbito do
conceito gramatical tradicional de “pessoa”, mas a partir de conceitos reflexos de inte-
racção, de títulos e de formas de distância comunicativa, de fórmulas / formas de defe-
rência e de delicadeza, decorrentes de vários tipos de situações sociais.»136
Nesta ordem de ideias, o par EU – TU aponta para usos recíprocos, independen-
temente da existência, ou não, de traços adicionais de solidaridade. Tais usos implicam
«relações de simetria (idade, estatuto...), situações informais, e algumas mais formais,
por vezes assimétricas (+ → –) – abstracção feita de efeitos pontuais de moda, de
extracto social e de marcas idiolectais, ou sociopolíticas.»137
Os pares EU – TU, EU – VOCÊ e EU – O SENHOR, por seu turno, represen-
tam, com frequência, usos assimétricos ( + → – e – → +). A autora faz notar, todavia,
que o par EU – O SENHOR é uma forma de delicadeza que pode designar qualquer

134
Id.: 163.
135
Id.: ibid. Trataremos esta questão no cap. XI, 3.1.
136
Id.: 163-164.
137
Id.: 164.
320

adulto e que os pares EU – TU ou EU – VOCÊ raramente ocorrem naqueles casos em


que um locutor, com menor estatuto, se dirige a, refere alguém com estatuto superior ou
alguém mais velho. É que esta é uma relação diádica que reflecte muitas vezes relações
de solidariedade, ou seja, de pertença a um grupo especial específico. «Daí que, por
vezes, este factor apenas apague diferenças etárias, mas não, num mesmo grupo, as de
estatuto social ou hierárquico»,138 conclui.
A propósito da FT pronominal V.ª EXCELÊNCIA, regista que esta «forma de
cortesia» é usada «quando o destinatário tem estatuto social ou hierárquico muito supe-
rior e quando o destinador pretende mostrar-lhe respeito e deferência.»139
Nas formas nominais, contempla o uso de apelidos, títulos, títulos mais apelidos
e/ou nomes próprios ou outras formas nominais que identifiquem a pessoa, ora como
vocativos, ora como sujeitos, ora como objectos. Acrescenta, todavia, que, se, como
vocativos [porque permitem «chamar a atenção do(-s) destinatário(-s)»], as formas
nominais se completam a si próprias, quando usadas como sujeito ou objecto referindo
o destinatário, «só a análise da totalidade da combinatória em que se inserem e do modo
como aí se distribuem permite definição mais precisa da interacção ou estabelecida
pelo, ou reflectida, no discurso.»140
O uso do nome próprio pelos deputados é raro, em contexto de Assembleia, pois
verifica-se aí um tipo de estilo formal marcado pela distância e até pela deferência, ain-
da que só aparente. Uma FT desse tipo, «meio de identificação de crianças, ou seja,
daqueles que ainda não têm estatuto social»141 e «índice social de um grau de intimida-
de», não se adequa a marcas honoríficas, incompatível com o lugar de ênfase atribuído
aos deputados. Estes são referenciados, por isso, pelo nome de família, precedido ou
não de título, independentemente do sexo.142
O apelido ou nome completo, acompanhados de título, usam-se, sobretudo,
quando, numa situação determinada, são muitos os que têm o mesmo título (doutor,
professor, deputado...). Em tais casos, tal FT aparece como meio de identificação e
como processo de evitar confusões. Nos contextos parlamentares, contudo, tais trata-
mentos são geralmente «apagados, dada a necessidade de, simetricamente, se mostrar

138
Id., ibid.
139
Id.: 165.
140
Id.: ibid.
141
Id.: 168.
142
Cf. id.: 166.
321

deferência mútua e se diluir, tanto quanto possível, o indivíduo, dele ficando apenas o
papel que desempenha na Assembleia.»143
A autora conclui que, nos contextos parlamentares, «há uma procura de termos
que neutralizam o indivíduo e lhe enfatizam a função – a mesma para todos», pelo
recurso a «designações genéricas neutras (Sr. Deputado, por exemplo)». É assim insti-
tuído «um nível de tratamento zero», através do qual os discursos dos participantes nos
debates são marcados por «formas democráticas e igualitárias».144
Na categoria de terceira pessoa verbal, definida pela não ocorrência de formas de
sujeito gramatical expresso ou de sujeito indeterminado ou indefinido, chama-se a aten-
ção para alguns modos da sua realização. Os usos de formas verbais, sem sujeito
expresso, por exemplo, «tanto podem remeter para uma primeira, como para uma tercei-
ra pessoa». Tais usos permitem e originam ambiguidades referenciais, pela «dissolução
do eu numa não pessoa» (alguém), o que pode significar «voz de autoridade», ou
«desejo de não implicação-responsabilização no discurso». Dá-se, deste modo, um
«apagamento do eu», processo que se verifica também em formas de semipassiva. Nes-
tas, o sujeito real «surge marcadamente indefinido em estruturas do tipo “diz-se”,
“dizem” ou do tipo “ocorre dizer que ...”, “o que equivale a dizer que ...”, “o que quer
dizer ...”, etc.» Marques conclui, por isso, que estes processos revelam haver uma ten-
dência nas FT’s de deferência do português para um «sistema fortemente hierarquizado
e ritual», revelador duma vontade de distanciação e objectividade, e mesmo «como
reformulação de um discurso sentencioso, que se tenta marcar de universal».145
A sociolinguista termina o capítulo sobre as FT’s com um conjunto de reflexões
que, sob o título de «perspectivas», sintetizam aspectos importantes deste sistema. Em
Portugal, «a diferenciação nas relações sociais, por factores de idade, de estatuto profis-
sional ou outros, ainda está profundamente enraizada», e não atingiu ainda «a expressão
diádica habitual nas sociedades ocidentais.»146 O português continua, assim, «a ter dois
pólos orientadores das escolhas designativas de O OUTRO: por um lado poder/status,
por outro solidariedade.» Tendo em consideração factores sociais como idade, estatuto
social e nível profissinal, é afirmado, como princípio genérico, que «em português, todo
o adulto, estranho, é tratado com marcas de deferência e que a hierarquia, numa organi-

143
Id.: ibid.
144
Id.: 167.
145
Id., ibid.
146
Id.: 167-168.
322

zação, funciona sempre, independentemente da idade.»147 Na língua e sociedade portu-


guesas, ainda «se mantém um certo estatismo», de tal modo que «as relações formais de
autoridade são definidas por ritos quase pormenorizados e ainda observados estritamen-
te.» Admite que, em alguns aspectos, a sociedade portuguesa se encaminha para «for-
mas mais igualitárias, o que é indiciado, sobretudo, pelo uso de formas, mais marcadas
por deferência, em direcção a pessoas que, noutras épocas, teriam sido tratadas de modo
menos deferente.» Por outro lado, verifica-se uma certa expansão de formas familiares
recíprocas (tratamento por tu, você ou nome próprio), «o que conduz, apesar de tudo, a
padrões mais irregulares e complexos.»148

Este estudo de Marques é importante, sobretudo, por chamar a atenção para os


mecanismos morfossintácticos e semântico-pragmáticos de coocorrência, exigidos pelo
uso, consoante os contextos, de determinadas formas de cortesia, com destaque para as
formas de tratamento. De criticar, a nosso ver, uma certa imprecisão relativamente às
noções de deferência e delicadeza, a que já nos referimos acima.149

4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções


sociais

A complexidade do sistema das FT’s em Português é analisada também numa


dissertação de doutoramento que Gunther Hammermüller defendeu, em 1992, na Uni-
versidade de Kiel, Alemanha, e que foi publicada, em 1993. Trata-se de Die Anrede im
Portugiesischen. Eine soziolinguistische Untersuchung zu Anredekonventionen und
Anredeformem des gegenwärtigen europäischen Portugiessisch, título que Carreira tra-
duz para Francês por «L’adresse en portugais. Une recherche sociolinguistique des con-
ventions et des formes d’adresse du portugais européen contemporain».150
O estudo de Hammermüller pode ser considerado, segundo resumo feito por
Carreira,151 sob três planos concêntricos: «celui de l’adresse en général (problématique

147
Id.: 168.
148
Id.: 170.
149
Cf., supra, cap. V, 2.3.
150
CARREIRA, 1995: 89. Original em HAMMERMÜLLER, 1993.
151
Cf. id.: 89-96. A exposição do estudo de Hammermüller sobre as FT’s portuguesas é feita por Carreira
«sur des parties traduites amicalement, par l’auteur et par Willemien Visser, sur des questionnaires en
portugais et sur d’autres travaux en portugais de G. Hammermüller.» A linguista portuguesa considera,
por isso, que se trata duma apresentação «forcément incomplète». [Id.: 89, nota 1] A nossa exposição dos
323

linguistique, sociolinguistique, antropologique et histoire de la recherche), celui du tra-


tamento en portugais et enfin, le noyau de cet ouvrage, l’étude empirique sociolinguis-
tique des conventions du tratamento dans le portugais européen contemporain, à partir
tout particulièrement de la forme d’adresse Você.»152
O tratamento está particularmente relacionado, segundo o autor alemão, com o
carácter convencional das relações interpessoais, os estatutos e os papéis sociais, bem
como com o distanciamento social e comunicativo. Para certas FT’s são evocadas as
suas relações cotextuais (contexto linguístico) com formas de saudação, de cortesia, de
apelo e com o vocativo, bem como questionados os valores de FT’s directas e indirectas
(respectivamente, alocutivas e delocutivas).
Um dos aspectos mais interessantes deste estudo prende-se com o que Ham-
mermüller designa por tratamento de evitação, ou seja, segundo Carreira, o emprego da
3.ª pessoa das formas verbais é suficiente para o locutor «evitar» a escolha de formas
pronominais ou nominais que explicitam a referência aos estatutos dos interlocutores.153
O autor alemão centra a parte empírica do seu estudo na forma Você. Servindo-
-se de dois tipos de questionários, realizados a informantes adultos do Norte de Portugal
(Porto e Barcelos), o autor investiga as avaliações que os locutores fazem desta FT e as
dificuldades que sentem em categorizá-la. Com base na análise de Você, forma polissé-
mica, resultou o diagrama seguinte (FIG. 5, pág. seguinte), onde se coordenam as suas
variantes semânticas. (Reprodução conforme tradução de Carreira.)
Hammermüller também classifica as FT’s em nominais, pronominais e verbais.
Distingue, todavia, as FT’s propriamente ditas das que chama apelemas. Estas podem
ser realizadas como vocativo, como em Ó João, vem cá, ou sem vocativo, como em
Vem cá, João!154 Além de perspectivas de transposição didáctica, apresenta também
perspectivas de investigação das FT’s, destacando Carreira as seguintes:

principais aspectos do estudo de Hammermüler corre, assim, o risco de ser ainda mais incompleto: leitura
de leitura alheia, síntese de síntese alheia.
152
Id.: 90.
153
Cf. id.: 90-91.
154
Cf. HAMMERMÜLLER, 1993: 36 e 40-41, segundo CARREIRA, 1995: 95. Em nosso entender, o
enunciado Vem cá, João! não deixa de ser vocativo, pelo facto de o invocado não se encontrar precedido
da partícula interjectiva ó e/ou de vir posicionado no princípio ou no fim do enunciado. Tal construção
apenas lhe reduzirá a força de chamamento, tornando a sua formulação, por isso, mais próxima da
nomeação e, por isso, menos directiva e, por isso, menos descortês. A propósito da noção de apelemas,
Carreira observa, em nota: «Cette catégorie intègre parfaitement la forme pá (ex. (Ó) pá, vem connosco! /
vem connosco, pá!) qui ne peut être employée comme une forme d’adresse au sens strict, selon G. Ham-
mermüller.» E acrescenta, depois de recordar que pá é uma abreviação de rapaz: «L’emploi de pá s’est
généralisé à divers groupes d’âge (par exemple, des hommes d’un âge avancé peuvent se dire pá) et à
324

a) «- le choix de la forme d’adresse mis en relation avec la distance»;


b) «- le tratamento selon la norme ou plutôt selon l’initiative du locuteur»;
c) «- la liberté dans le choix des formes d’adresse portugaises»;
d) «- la possibilité d’examiner les règles de tratamento.»155

Différenciation au niveau de l’application


langagier métalinguistique

Différenciation concernant l’intention communicative Você méta


positionnement de l’interlocuteur fonction communicative
(celui / celle à qui l’on s’adresse) «spontannée»
dans la structure sociale

positionnement de la relation pour assurer la changement selon la situation


envers l’interlocuteur compréhension Distance
diminution augmentation
VOCÊdesamb
VOCÊafect VOCÊdist
celui / celle à qui l’on s’adresse peut être
envisagé(e)

supérieur(e) égal(e) inférieur(e)


VOCÊresp VOCÊigual VOCÊcond

Abréviations : VOCÊmeta = VOCÊ métalinguistique


VOCÊdesamb = VOCÊ désambiguisateur
VOCÊafect = VOCÊ affectif
VOCÊdist = VOCÊ de mise à distance
VOCÊresp = VOCÊ respectueux
VOCÊigual = VOCÊ d’égalité
VOCÊcond = VOCÊ de condescendance

156
FIG. 5 – Polissemia da FT você, segundo HAMMERMÜLLER, 1993: 108.

O estudo termina com o subcapítulo «Wahl der “richtigen” Anredform», que


Carreira traduz por «“Choix de la forme d’adresse correcte”».157 Das reflexões que o
investigador alemão tece sobre esta questão, a linguista portuguesa releva:

certains groupes féminins (restrictions d’âge tout particulièrement mais aussi de milieu socioprofession-
nel).» [CARREIRA, 1995 : 95, nota 1] Sobre a forma pá, ver WILHELM, 1976/77.
155
CARREIRA, 1995: 95. Alineação da nossa responsabilidade.
156
Cit. por CARREIRA, 1995: 94.
325

a) «- le tratamento est un moyen de situer le partenaire de l’interaction»;


b) «- le choix adéquat correspond au tratamento non marqué. Ce niveau non marqué
permettrait la construction d’échelles de politesse»;
c) «- il est possible d’analyser les “conventions” de tratamento et leur dynamique dans
l’interaction»;
d) «- en conséquence, il est possible d’enseigner / apprendre ces moyens linguistiques
interactifs.»158

Hammermüller e Oliveira (Medeiros), apesar de terem seguido vias diferentes,


visam encontrar essencialmente, como observa Carreira, respostas para a pergunta Que
forma de tratamento escolher? Porém, enquanto Oliveira (Medeiros) situa a escolha da
FT, como vimos, segundo apenas o ponto de vista do locutor, Hammermüller dedica
também uma parte da investigação ao efeito que essa escolha tem no interlocutor. Ou
seja, é tido em consideração o par interlocutivo EU-TU, deste modo se sublinhando «la
dynamique de l’interaction qui intervient dans la constitution et dans la mise en œuvre
des normes d’adresse.»159

5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das


distâncias interpessoais

Para responder a questão semelhante à acima formulada - «Qu’est-ce qui rend


une forme d’adresse théoriquement plus adéquate qu’une autre à une certaine régulation
de l’espace interlocutif?»160 - Carreira analisa também, na sua dissertação de doutora-
mento já referida, as FT’s em Português europeu contemporâneo. Nesse sentido, proce-
de, por um lado, à sua delimitação semântico-pragmática161 e à caracterização das suas

157
Id.: 95.
158
Id.: 95-96.
159
Id.: 96.
160
Id.: 97.
161
Id.: 99-100.
326

principais formas,162 tendo em conta os seus valores próximos da ortonímia,163 e, por


outro, a sua escolha em relação a possíveis conceptuais.164
A autora define as FT’s como «des moyens verbaux de régulation proxémique
auxquels les locuteurs ne peuvent pas échapper en interlocution», pois é com elas que
«les interlocuteurs s’adressent les uns aux autres en se désignant et en désignant des
tiers.»165 Em Português, como nas outras línguas, os tratamentos constituem, assim,
também um meio de regulação das distâncias entre os interlocutores (de aproximação,
de contacto, ou de afastamento), que se expressa linguisticamente tanto ao nível da lín-
gua, como ao nível do discurso, como vimos.166
Antes de analisar, semântico-pragmaticamente,167 as FT’s, a autora faz um
balanço crítico dos principais estudos, realizados por autores portugueses e estrangeiros.
A partir da análise de gramáticas, de métodos de ensino do Português LE, e de estudos
linguísticos, segundo uma perspectiva comparativa entre as variantes do Português de
Portugal vs. Brasil,168 Portugal vs. Angola169 e Portugal vs. Moçambique,170 ou conside-
rando apenas a variante do Português europeu, a linguista conclui que os sistemas de
tratamento naqueles países lusófonos tendem para a simplificação, enquanto que o Por-
tuguês «garde une gamme diversifiée, complexe et très vivante, de possibilités de
modulation de la distance interlocutive». 171
Como nos estudos acima referenciados, também Carreira considera que são múl-
tiplas e complexas as escolhas das FT’s em Português, devido a um elevado número de
factores, com especial destaque para a hierarquização sócio-profissional, embora seja
também elevada a sua variabilidade a nível individual. Apesar disso, as FT’s são estu-
dadas apenas ao nível da língua, uma vez que, em seu entender, «il est possible
d’attribuer des valeurs sémantico-pragmatiques de bases aux formes d’adresse», os
quais «permettent d’identifier les formes d’adresse, les unes par rapport aux autres, et
d’en ébaucher les potentialités de sens que les discours actualiseront dans leur variabili-

162
Id.: 100-114.
163
«L’hortonymie - concept emprunté à B. Pottier- correspond au caractère immédiat de la désignation:
“L’expression ‘il faut appeler un chat un chat’ révèle cette intuition que les entités ont une désignation,
immédiate, dans une situation, un environnement bien déterminés.” (B. Pottier, 1992, p. 123.» [Id.: 98]
164
Id.: 96-98 e 114-124.
165
Id.: 6.
166
Cf., supra, cap. V, 1., ou CARREIRA, 1995: 5.
167
«La classification sémantico-pragmatique tient compte des conditions d’emploi des formas de trata-
mento dans le contexte psychosocial.» [Id.: 55]
168
JENSEN, 1981; BIDERMAN, 1972/73; WILHELM, 1979.
169
SILVA-BRUMMEL, 1984.
170
CARVALHO, 1991.
171
CARREIRA, 1995: 48.
327

té.»172 A delimitação semântico-pragmática das diferentes FT’s funda-se, por isso, «né-
cessairement sur un ensemble de valeurs et de facteurs sociaux et intersubjectifs dont il
convient de dégager les éléments les plus pertinents.»173
Assim sendo, baseando-se nas reflexões produzidas pelos autores cujos estudos
expusera criticamente, e articulando os eixos vertical (hierarquização de lugares) e hori-
zontal (grau de intimidade), apresenta uma nova proposta de delimitação semântico-
-pragmática das FT’s em Português europeu contemporâneo.
No estudo das FT’s portuguesas, os valores sociais e profissionais, por um lado,
e os valores de familiaridade e de idade, por outro, constituem, segundo a linguista, os
factores mais importantes na hierarquização dos lugares que os interlocutores podem
ocupar no eixo vertical. Tendo em consideração tais hierarquizações, cada locutor esco-
lhe o tratamento que resulta da avaliação que faz desses factores e situar-se-á a si pró-
prio (elocução) e ao(s) outro(s) a quem se dirige (alocução) ou de quem fala (delocu-
ção), «au même niveau, à un niveau supérieur ou à un niveau inférieur.» O grau de in-
timidade, de respeito e até de deferência, bem como o sexo, coloca os interlocutores em
torno do eixo horizontal e a FT a utilizar será aquela que melhor exprimir tal grau. Este
está muito ligado, por outro lado, «au degré de connaissance des interlocuteurs, aux
places relatives dans l’échelle hiérarchique, au degré de formalité de la situation de
communication.»174
Com estes pressupostos teóricos, Carreira elabora quatro quadros em que apre-
senta, segundo um continuum, a gradação das FT’s, num eixo horizontal, cujos pólos
são +FAMILIARIDADE / -DISTÂNCIA e -FAMILIARIDADE / +DISTÂNCIA, con-
forme se trate de usos alocutivo (cf. FIG. 6) delocutivo (cf. FIG. 7) e elocutivo (cf. FIG.
8). Para cada caso são indicadas as formas sujeito, as desinências verbais, os comple-
mentos (tónicos e átonos) e o vocativo (para a alocução). O conjunto destes quadros
constitui, a nosso ver, uma excelente visão de sínteses da variedade e riqueza das FT’s
portuguesas, nas suas diferentes categorias e funções semântico-pragmáticas, em termos
de distâncias. A linguista elabora também um quadro sobre as relações que as FT’s de
parentesco estabelecem entre os interlocutores, a nível alocutivo, delocutivo e elocutivo,
que a seguir se reproduz (FIG. 9) (Traduzimos para Português informações dadas em

172
Id.: 97.
173
Id.: 99.
174
Id.: 99.
328

Francês. Por facilidade de exposição, apresentam-se as referidas figuras nas páginas


seguintes.)
Carreira formula, de seguida, algumas considerações importantes acerca dos tra-
tamentos nominais alocutivos. As suas ocorrências, em Português, são sempre acompa-
nhadas do verbo na 3.ª pessoa (voceamento) e podem estar omissas, ficando a marca de
tratamento reduzida à respectiva desinência verbal. Neste caso, essas formas só serão
interpretadas como alocutivas graças aos dados contextuais. E, a propósito, cita Maillard
que, ao comparar o Português ao Francês e às línguas orientais, diz encontrar em tal
processo de tratamento «un phénomène d’interférence entre Personne et Honorification
qui n’est pas très éloigné de ce qui se passe en coréen et en japonais, où la même forme
verbale se prête, selon les situations de communication à des usages locutoires diffé-
rents.»175 Para a linguista portuguesa, esta «evitação» da explicitação duma forma no-
minal ou pronominal de tratamento «correspond à une sorte de degré zéro de
l’expression de respect», tornando-se «une solution de recours quand, par exemple, le
locuteur ne sait pas exactement quelle forme d’adresse choisir.»176 Mas pode funcionar
também, em nosso entender, como estratégia para não se utilizar tratamentos a que o
alocutário ou o delocutado possam ter direito.

175
MAILLARD, 1994: 58, cit. por CARREIRA, 1995: 105.
176
Id.: 105. Ao referir a estratégia de «evitação», a autora recorda e cita Hammermüller; ver supra.
329

+ FAMILIARIDADE ± FAMILIARIDADE – FAMILIARIDADE


← – DISTÂNCIA ± DISTÂNCIA + DISTÂNCIA →

SUJEITO tu Você o / a nome pr. o + (nome pr.) apelido o senhor o + título o senhor V. Ex.ª Vossa
a + (nome pr.) apelido [apelido / [nome pr.] apelido]; profissional ou outro + título Senhoria
+ 3.ª pessoa verbal a senhora / Dona a senhora Dona a + título; a senhora
+ nome pr; + nome pr. [apelido]; + título
N.B. As formas nominais de o menino [nome pr.]
tratamento combinam-se com a a menina [nome pr.]
3.ª p. Verbal
A desinência -s (2.ª p.) Ø 3.ª
L verbal p. sing
O VOCATIVO (ó) tu! você! nome pr.! (nome pr. +) apelido! Senhor título! Senhor V. Ex.ª!; Vossa
C (ó) pá! + nome pr. / [nome pr.] apelido! + título! Senhoria
U Senhora / Dona Senhora Dona título! Senhora
T + nome pr. + nome pr.[apelido] + título!
Á menino
R [nome pr.]
I menina
O [nome pr.]
COMPLEMENTO ti você si si si / o senhor a senhora Dona o + título s senhor V. Ex.; Vossa
o / a [nome pr. +] apelido o / a [nome pr. +] apelido [nome pr. / [nome pr.] apelido] + nome pr. [apelido]; a + título + título! Senhoria
[você] [você] si / a senhora o menino [nome pr.] a senhora
[/Dona + nome pr.] a menina [nome pr.] + título
te
o/a o/a o/a o/a
se se se se
lhe lhe lhe lhe
SUJEITO vocês vocês vocês / o / a nome pr. / [apelido] / o + apelido os senhores [+ título] Vossas Ex.as
/o / a ... ... ... ... as senhoras [+ título] Vossas Senho-
A N.B. É possível acrescentar as formas do singular rias
L desinência - 3.ª
O verbal p. pl.
C VOCATIVO vocês! vocês! vocês! / nome pr. [nome pr. +] apelido V. Ex.as!
U (+ verbo 3.ª p. pl.) Vossas Senho-
T rias!
Á COMPLEMENTO vocês vocês vocês / vós / o / a / + nome pr. [apelido] / o + nome pr. vós / os senhores Vossas Ex.as
R TÓNICO /o/a etc. (ver acima) Vossas Senho-
I rias
O / as senhoras
S COMPL. acusativo vos / os / vos/ vos / os / as vos / os / as
ÁTONO / as os / as se se
dativo vos / lhes vos / lhes vos / lhes

FIG. 6 - Tratamento alocutivo e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo CARREIRA, 1995: 101.
330

+ FAMILIARIDADE – FAMILIARIDADE
– DISTÂNCIA + DISTÂNCIA
← →
SUJEITO ele (s) o nome pr. o [nome pr.] o Sr. + [Nome pr.] apelido O Sr. + título Sua Ex.ª
ou
COMPLEM. ela (s) a nome pr. a nome pr. a Sr.ª / Dona / Sr.ª Dona A Sr.ª + título Sua Ex.ª
TÓNICO + Nome pr.


verbo
desinência 3.ª p. sing
verbal -m
verbo
3.ª p. pl.

COMPLEM.
ÁTONO
- acusativo o(s), a(s) o(s), a(s)
- dativo lhe(s) lhe(s)

FIG. 7 - Tratamento delocutivo e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo
CARREIRA, 1995: 102.

+ FAMILIARIDADE – FAMILIARIDADE
– DISTÂNCIA + DISTÂNCIA
← →
SUJEITO paradigma aberto: eu o + função Nós
ex: este teu amigo / a + função
L esta tua amiga (ex: o / a engenheiro / a)
O ... ... ... ... ... ...
C
U desinência verbal -o (1.ª pes. sing.) mos (1.ª pes. pl.)
T COMPLEMENTO paradigma aberto mim o / a + função nós
O TÓNICO (v. acima forma sujeito)
R ... ... ... ... ... ...

COMPLEMENTO me se nos
ÁTONO
L SUJEITO a gente (paradigma nós os / as + função (ex: os / as
O aberto; ex: estes vossos engenheiros / as responsá-
C amigos / estas vossas veis)
U amigas)
T desinência verbal -mos (1.ª pes. pl.)
O COMPLEMENTO nós os / as + função
R TÓNICO
E COMPLEMENTO se nos se
S ÁTONO

FIG. 8 - Tratamento «elocutivo» e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo
CARREIRA, 1995: 102.
331

(1) ALOCUÇÃO (2) DELOCUÇÃO (3) ELOCUÇÃO


PAI / MÃE → ← FILHO / FILHA PAI / MÃE → ← FILHO / FILHA PAI / MÃE FILHO / FILHA
nome pr. o pai / a mãe o / a + nome pr. o [meu] pai o pai do / da + nome pr. o filho de + nome pr.
diminutivo(s) o paizinho / a mãezinha diminutivo(s) a [minha] mãe [apelido] [apelido]
tu o papá / mamã o meu filho / a minha filha [ou diminutivos] a mãe do / da + nome pr. a filha de + nome pr.
o [meu] filho / a [minha] filha + 3.ª pes. do verbo ele / ela ele / ela [apelido] [apelido]
3.ª pes. do verbo ou [tu], 2.ª pes. sing. eu eu
vocativo: (Ó) filho! / (Ó) filha! vocativo: (Ó) pai ! (Ó) mãe!
nome pr. etc.
AVÔ / AVÓ → ← NETO / NETA AVÔ / AVÓ → ← NETO / NETA AVÔ / AVÓ NETO / NETA
nome pr. o avô / a avó o / a + nome pr. o avô / a avó o avô do / da + nome pr. o neto de + nome pr.
diminutivo(s) o avôzinho / a avozinha diminutivo(s) o avôzinho / a avozinha [apelido] [apelido]
tu o meu neto / netinho o vôvô / a vóvó a avó do / da + nome pr. a neta de + nome pr.
o meu neto / a minha neta o vôvô / a vóvó a minha / netinha ele / ela [apelido] [apelido]
netinho / netinha + 3.ª pes. sing. ele / ela eu eu
+ 3.ª pes. do verbo [ou tu + 2.ª pes. do sing.
vocativo: vocativo: (Ó) avó! / (Ó) avó!
(Ó) nome pr. / (Ó) neto! / (Ó) neta! (Ó) vôvô! (Ó) vóvó!
TIO / TIA → ← SOBRINHO / SOBRINHA TIO / TIA → ← SOBRINHO / SOBRINHA TIO / TIA SOBRINHO / SOBRINHA
nome pr. o tio / a tia o / a + nome pr. o [meu] tio [+ nome pr.] o tio do / da + nome pr. o sobrinho de + nome pr.
diminutivo(s) + (3.ª pes. do verbo ou 2.ª pes. diminutivo(s) a [minha] tia [+ nome pr.] [apelido] [apelido]
tu sing.) o meu sobrinho / a minha sobrinha ele / ela a tia do / da + nome pr. a sobrinha de + nome pr.
(o sobrinho / a sobrinha) ele / ela [apelido] [apelido]
3.ª pes. do verbo eu eu
vocativo: (Ó) nome pr.
(Ó sobrinho! / Ó sobrinha!) (Ó) tio! / (Ó) tia!
PRIMO / PRIMA → ← PRIMO / PRIMA PRIMO / PRIMA → ← PRIMO / PRIMA PRIMO / PRIMA
reciprocidade: nome pr. o / a nome pr., diminutivo(s) o primo de + nome pr. [apelido]
diminutivo(s) [+ nome pr.] a prima de + nome pr. [apelido]
vocativo: (Ó), nome pr.! tu o meu primo [+ nome pr.] eu
a minha prima
+ idade - idade ele/ ela
não reciprocidade (factor idade): nome pr. a primo / a prima
diminutivo(s)
tu
MARIDO → ← MULHER MARIDO → ← MULHER MARIDO MULHER
tuteamento recíproco a + nome pr. o + nome pr. o marido de + nome pr. [apelido] a mulher de + nome pr.
nome pr., diminutivo(s) diminutivo(s) diminutivo(s) a esposa de + nome pr.
(voceamento excepcional) a minha mulher o meu marido eu eu
vocativo: (Ó) nome pr. a minha esposa [o meu esposo (pouco usado)]
Ó mulher! Ó homem! ela [o meu homem (popular)]
ele

FIG. 9 - Tratamento [(1) alocutivo, (2) delocutivo, (3) elocutivo] e formas de parentesco, segundo CARREIRA, 1995: 104.
Os valores semântico-pragmáticos das formas portuguesas de voceamento dispo-
níveis em língua, seguindo a mesma gradação, são também descritos por Carreira. Toda-
via, porque tais descrições são, na sua maior parte, idênticas às que foram feitas por
outros autores, registamos, apenas, aquelas que nos parecem mais originais e inovado-
ras.177
O emprego de O / A + NOME PRÓPRIO, com o verbo na 3.ª pessoa, tanto pode
ser alocutiva como delocutiva. Apenas o contexto permitirá distinguir se o locutor se
refere ao alocutário ou a um terceiro, presente ou ausente. A propósito do carácter delo-
cutivo deste tratamento, Carreira cita a reflexão de Joly sobre o modo como Benveniste e
Guillaume encaram a noção de pessoa. Segundo Joly, Benveniste privilegia a função
referencial («parler de quelqu’un ou de quelque chose»), não tendo em consideração a
função predicativa («en dire quelque chose»). Por isso, a análise de Benveniste, para
Joly, é incompleta, uma vez que «rien n’est dit du fonctionnement linguistique de je dans
le cadre de l’énoncé».178 Guillaume, por seu turno, considera que

«la personne locutive n’est pas seulement la personne qui parle; elle est, de plus, celle
qui, parlant, parle d’elle-même. De même, la personne allocutive n’est pas seulement la
personne à qui l’on parle; elle est de plus, la personne à qui l’on parle d’elle. Seule la
troisième personne est vraiment une, n’étant que la personne de qui l’on parle».179

Joly retoma a análise de Guillaume e completa a de Benveniste, apresentando um


modelo em que o plano da enunciação e a função referencial são relacionados com o
plano do enunciado e a função predicativa. Resultam, deste modelo, combinações entre a
pessoa delocutiva (sempre subjacente ao nível do enunciado e da função predicativa) e as
pessoas locutiva ( «eu»), alocutiva («tu») e delocutiva («ele»), situadas ao nível da fun-
ção referencial da pessoa, isto é, no plano da enunciação. Joly representa, assim, três
ordens de pessoas, a saber, segundo refere Carreira :

« première: “je” = loc /dél


deuxième: “tu” = all / dél

177
Para a descrição semântico-pragmática das formas alocutivas de voceamento, Cf. id.: 106-113.
178
JOLY, 1994: 49, cit. por CARREIRA, 1995: 109.
179
Carreira cita G. Guillaume [Leçons, 1943-44, vol. X, p. 114], via JOLY, 1994 : 48, a quem pertencem
também os destaques a itálico na citação. Cf. CARREIRA, 1995: 109.
333

troisième: “il” = dél / dél »180

Deste modo, para Joly, na sequência de Guillaume, o papel da terceira pessoa,


sempre implícita, está «sous-jacente à toutes les personnes» e, por isso, é «le fondement
du système, puisqu’il est toujours parlé de quelqu’un (ou de quelque chose)».181
Analisando, deste ponto de vista, o uso alocutivo das formas delocutivas (uma
das características do tratamento português), a linguista portuguesa acrescenta um tercei-
ro nível ao modelo, quanto às formas de voceamento, passando a haver, assim, para a 2.ª
pessoa, « dél / dél / allo, puisque l’allocution est implicite, elle aussi.»182 A 3.ª pessoa
verbal exprime um afastamento quer em relação ao EU quer em relação ao TU. Adapta-
-se, além disso, à manifestação duma distância interlocutiva, mais ou menos acentuada,
consoante a escolha do tratamento que a acompanhe.183
No caso da escolha de formas nominais de voceamento, o nome próprio é mais
familiar do que o apelido, ou do que o nome próprio + apelido. Quando estes tratamen-
tos são acompanhados por o / a senhor /a, ou, no caso de adultos do sexo feminino, por
a dona, ou de a senhora dona, o grau de familiaridade diminui, aumentando, correlati-
vamente, o de distância. Idêntica gradação se verifica quanto ao emprego do título pro-
fissional (dr./a, eng.º/ª, arq.º/ª, professor/a, etc.), ou título de função (presidente, minis-
tro/a, director/a, etc.), quando acompanhados ou não de o/a senhor/a.

O estudo que, segundo uma perspectiva semântico-pragmática, Carreira faz das


FT’s portuguesas põe em destaque vários aspectos importantes quanto aos seus valores
sociais, quer em termos taxémicos, quer em termos proxémicos, ou melhor, em termos
taxémico-proxémicos, ao mesmo tempo.
A ordem social e as suas hierarquias, as funções de familiaridade, as diferenças
de idade e de sexo são, por ordem decrescente, os factores que, mais directamente,
influência têm na escolha dos tratamentos, através dos quais os portugueses se relacio-
nam entre si, com maior ou menor cortesia ou descortesia.

180
JOLY, 1994: 50, cit. por CARREIRA, 1995: 109.
181
JOLY, 1994: 48, cit. por CARREIRA, 1995: 109 e 110.
182
CARREIRA, 1995: 110. A autora exclui deste modelo o tratamento pronominal vós, por exigir a segun-
da pessoa do verbo. Além disso, o seu uso é restrito a certas regiões do Norte e Centro de Portugal, e ao
discurso religioso e político. [Cf. id.: 110, nota 1]
183
Cf. id.: 110.
334

Os quadros organizados segundo os pólos +FAMILIARIDADE / -DISTÂNCIA e


-FAMILIARIDADE / +DISTÂNCIA, além de constituírem um inventário das FT’s dis-
poníveis em Português, mostram também a quantidade e diversidade de formas e de
valores, bem como a sua complexidade, quer ao nível da sua análise, quer ao nível do
seu uso, em particular por estrangeiros. Os diferentes factores sociais que influenciam a
escolha do(s) tratamento(s) [alocutivo(s), delocutivo(s) e elocutivo(s)] que os interactan-
tes podem fazer nas suas práticas discursivo-textuais, interajam directa ou indirectamen-
te, são os mesmos que levam, ao mesmo tempo, a que as FT’s possam expressar ou criar
relações interpessoais de maior ou menor cortesia ou descortesia.

Um dos pontos, sem dúvida, mais importantes e originais do estudo de Carreira é


aquele em que a linguista, na sequência de propostas conceptuais e metodológicas de
Pottier, analisa a escolha das FT’s, relacionando-as com representações esquemáticas do
espaço interlocutivo, de que fizemos acima uma apresentação breve.184 Tais propostas
podem ser consideradas, em nosso entender, um modelo de análise das FT’s, com aplica-
ção universal, ao nível das relações dinâmicas de distância horizontal e vertical que elas
podem estabelecer. Observe-se a figura seguinte (FIG. 10):

I II III

Posições simétricas de A e B
A/B A/B A/B

Posições assimétricas de A e B
A B
A B
B A
A B
B A
B A

184
Ver, supra, cap. V, 1., ou id.: 13-15.
335

FIG. 10 – Organização semântica da combinatória dinâmica das posições no espaço interlocutivo, segun-
do CARREIRA, 1995: 115.

Com base naqueles esquemas conceptuais, a linguista elaborou um quadro (FIG.


10, supra) sobre as posições simétricas (três) e assimétricas (seis) dos interlocutores (A e
B), no uso das FT’s em Português europeu contemporâneo, no espaço interlocutivo de
aproximação (I), de contacto (II) e de afastamento (III).185
As posições dos interlocutores (A e B) são simétricas se a orientação dinâmica
evidenciada é do mesmo tipo (por exemplo de aproximação); são assimétricas se não for
do mesmo tipo (por exemplo, quando a posição de A segue o movimento de aproxima-
ção, enquanto a de B segue o movimento de afastamento). As três posições simétricas,
que correspondem à parte superior do quadro anterior, são representadas no quadro
seguinte (FIG. 11):

I II III

A/B A/B A/B

FIG. 11 – Posições simétricas no espaço interlocutivo de A e B, segundo CARREIRA, 1995: 116.

Na posição II A / B, zona média do trimorfo (de presença ou contacto), onde se


dá uma espécie de equilíbrio dos movimentos centrípeto (I) e centrífugo (III), as FT’s
imediatamente disponíveis são menos marcadas. O interlocutor que ocupa a posição alta
faz escolhas alocutivas e elocutivas que, em princípio, atenuam as diferenças hierárqui-
cas, ou que, pelo menos, não as acentuam. No caso do interlocutor ocupar a posição bai-
xa, espera-se que as suas escolhas não neguem a hierarquização dos respectivos lugares.
No limite, estas escolhas poderão levar à neutralização da diferença dos lugares. Se,
porém, não há diferenças hierárquicas, sejam elas sociais ou profissionais, familiares ou
etárias, as escolhas serão recíprocas. Por seu turno, na delocução, designação de tercei-
ro(s), presente(s) ou ausente(s), ter-se-á em consideração a hierarquização dos lugares
(EU – TU – ELE / A) ou a sua reciprocidade.

185
A descrição que a seguir fazemos, dos esquemas de representação das possíveis posições interlocutivas,
segue de perto a exposição de Carreira.
336

Na zona I A / B, de aproximação, o interlocutor que ocupa o lugar mais elevado


escolhe as FT’s que atenuarão claramente a hierarquia dos lugares. E o interlocutor que
ocupa o lugar inferior escolherá tratamentos que manifestem as diferenças hierárquicas.
Nesta situação as escolhas são recíprocas, «lorsque les places hiérarchiques sont sem-
blables et les formes d’adresse de base sont accompagnées d’expressions affectives,
telles que les diminutifs.»186 Quanto à designação delocutiva, os interlocutores seguem
as mesmas tendências, quanto ao grau de manifestação verbal das diferenças hierárqui-
cas.
Na zona III A / B, de afastamento, a tendência para o emprego das FT’s é a inver-
sa à esboçada em II A / B. As diferenças hierárquicas manifestar-se-ão claramente, mas,
no caso delas não existirem, é provável que se recorra a usos metafóricos. As manifesta-
ções de afectividade, nesta zona, serão de carácter negativo, com recurso, por exemplo,
ao uso irónico de diminutivos.
As seis posições assimétricas, são as seguintes (FIG. 12):

I II III

1. A B
B A
2. A B
B A
3. B A
A B

FIG: 12 – Posições assimétricas no espaço interlocutivo de A e B, segundo CARREIRA, 1995: 118.

As seis posições de cada um dos interlocutores (A e B), representadas na figura


anterior, correspondem às três posições assimétricas de base, numeradas de 1 a 3. Na
posição assimétrica 1, um interlocutor (B ou A) situa-se relativamente ao movimento II
do trimorfo (presença / contacto), numa zona de equilíbrio interlocutivo, caracterizada
pela adequação. O outro interlocutor (A ou B), por seu turno, situa-se relativamente ao
movimento I (de aproximação), isto é, procura atenuar a distância interlocutiva resultante
de diferenças hierárquicas (sociais, profissionais, familiares ou etárias) ou/e de regulação

186
Id.: 117.
337

do grau de familiaridade ou proximidade (eixo horizontal). Na posição assimétrica 2, um


interlocutor (A ou B) situa-se em relação ao movimento II e o outro interlocutor (B ou
A) em relação ao movimento III (de afastamento). Este último cria, assim, um distancia-
mento interlocutivo, reforçando as diferenças hierárquicas ou/e representa (finge) uma regula-
ção do grau de familiaridade que o interlocutor sente como inadequado. Na posição
assimétrica 3, por fim, um interlocutor (B ou A) situa-se relativamente a I e o outro (A
ou B) relativamente a III.
Carreira indica, de seguida, quais as FT’s imediatamente disponíveis em língua
para a realização de cada uma destas três possíveis posições. Na combinatória 1, consti-
tuída pelos movimentos de aproximação (I) e de presença/contacto (II), o interlocutor,
que ocupe o lugar mais alto e se situe relativamente ao movimento de aproximação (I),
escolherá tratamentos de atenuação das diferenças hierárquicas existentes. Por exemplo,
usará uma forma verbal de 3.ª pessoa simples. Mas se ocupa um lugar inferior, escolherá
FT’s que dêem conta da hierarquização dos lugares. Por exemplo, usará uma forma
nominal que refira o nível profissional do interlocutor, v.g. o senhor engenheiro. O inter-
locutor que se situa na zona II, tenderá sobretudo a aceitar as escolhas do outro, ou a ate-
nuá-las, caso elas manifestem uma inferioridade hierárquica. A escolha, por exemplo,
duma forma de respeito, como o senhor, seguida duma forma verbal na 3.ª pessoa, ate-
nua a inferioridade hierárquica do interlocutor.
Na combinatória 2 – com os movimentos II e III – as escolhas a a fazer serão
inversas às anteriores. O interlocutor que se situe no movimento de afastamento (III),
optará por FT’s que acentuem a separação entre ele e o interlocutor, se houver diferenças
hierárquicas. Neste caso, se o locutor ocupa um lugar alto, escolherá uma FT que subli-
nhe o lugar de inferioridade do seu interlocutor. Por exemplo, usando a forma a senhora
Maria, quando a adequada seria a dona Maria. Mas se o locutor ocupa um lugar baixo,
recorrerá a uma forma que minimize o lugar alto do interlocutor. Por exemplo, em vez de
o tratar por o senhor doutor Jacinto, tratá-lo-á apenas por o senhor Jacinto. No caso de
ambos os interlocutores ocuparem lugares do mesmo nível, o locutor escolherá FT’s que
criem distância. Por exemplo, utilizará o nome próprio, quando o tratamento habitual-
mente utilizado é o diminutivo. A propósito, observa Carreira que os diminutivos e
outras expressões afectivas, no seu valor ortónimo, não são utilizados, nesta situação.
Acontece, pelo contrário, que o recurso a formas que se afastam desse valor, como o
emprego, por exemplo, duma metáfora irónica, se adapta perfeitamente ao movimento de
afastamento. O locutor que se situa no movimento II (de presença/contacto) fará escolhas
338

que irão no sentido duma atenuação das formas marcadas pela distância realizadas pelo
interlocutor. Em vez de escolher uma forma de evitação de 3.ª pessoa verbal simples,
usará um tratamento de respeito, que considere adequado. Por exemplo, utilizar a senho-
ra dona Maria, ou um diminutivo afectivo, em vez do nome próprio.
Por último, os tratamentos na combinatória 3, aquela que une dois movimentos
opostos, a aproximação (I) e o afastamento (III). Trata-se da combinatória que corres-
ponde às escolhas mais diversas das FT’s, sobre o eixo da distância. Ao movimento de
afastamento estão ligadas as formas que acentuam claramente a separação. O que distin-
gue as escolhas deste movimento relativamente à combinatória anterior é o grau de
intensidade das marcas hierárquicas ou de distanciamento (nomeadamente afectivo), se
os interlocutores ocupam lugares semelhantes. Essa intensidade é mais forte no movi-
mento de afastamento da combinatória 3, do que no movimento de afastamento da com-
binatória 2. As escolhas do locutor que se situa em relação ao movimento I seguirão a
tendência inversa às do interlocutor: as FT’s escolhidas atenuarão fortemente as diferen-
ças hierárquicas e acentuarão a proximidade. Os diminutivos e expressões afectivas, no
caso de haver familiaridade, reforçam as escolhas dos tratamentos que tendem a atenuar,
até mesmo a contrabalançar, escolhas ligadas ao movimento de afastamento.
Em todas estas combinatórias, as tendências dizem respeito tanto à alocução,
como à delocução e à elocução. Trata-se de tendências de base, subjacentes às escolhas
dos tratamentos, em relação quer às posições simétricas e assimétricas, quer ao trimorfo,
como na figura seguinte (FIG. 13, página seguinte) se representa, com tradução para Por-
tuguês. Esse quadro permite visualizar a hierarquização (+ / - ) ou a reciprocidade ( = )
dos lugares, conforme as tendências gerais que caracterizam as escolhas das FT’s, sem-
pre situadas em relação às três zonas do trimorfo.

A proposta respeita apenas às FT’s próximas da ortonímia, «en rapport avec des
positions interlocutives saillantes.»187 Trata-se, portanto, de formas muito diversas, para
as quais foram indicadas «les tendances de base sous-jacentes à leur choix, par rapport à
des possibles conceptuels liés à l’espace interlocutif».188 Mas se, ao nível conceptual e de
língua, é possível relacionar as FT’s com os seus potenciais interlocutores, e assim saber,
até certo ponto, qual a forma teoricamente mais adequada a uma certa regulação,

187
«Le caractère “saillant” d’une forme est à mettre en relation avec la “latence” et la “prégnance”. En
effet, comme le souligne B. Pottier, il convient de tenir compte du caractère dynamique de la perception
qui, parmi un certain nombre de formes latentes isole un certain nombre de formes saillantes. Si ces formes
prennent un intérêt particulier, elles deviennent prégnantes. Il s’agit, par conséquent, de différents “dégrés
de perception”. B. Pottier les présente selon un continuum». [Id.: 98]
188
Id.: 124.
339

«c’est au niveau des discours produits en interlocution que les formes d’adresse prennent
des significations particulières, plus au moins proches ou éloignées de leur noyau séman-
tique.»189

189
Id., ibid.
340

I II III

a) Formas de tratamento
Posições
não recíprocas
simétricas + atenuação das diferenças hierárquicas + atenuação das diferenças hierárquicas + atenuação das diferenças hierárquicas
+

(em relação ao - manifestação das diferenças hierárquicas - manifestação (ou leve atenuação) das dife- - acentuação ou pelo contrário não respeito das
-
renças hierárquicas diferenças hierárquicas
«trimorphe»)
b) Formas de tratamento
recíprocas: = = reforço da familiaridade = manutenção do contacto = distanciamento

a) Formas de tratamento Reforço Reforço Reforço


Posições
não recíprocas das tendências das tendências das tendências
+ + +
assimétricas +

(em relação ao - _ _ _
Ver acima Ver acima Ver acima
trimorfo) b) Formas de tratamento
(posições simétricas) (posições simétricas) (posições simétricas)
recíprocas: =
= = =

FIG. 13 - Tendências básicas, subjacentes às escolhas das FT’s, relativamente aos possíveis conceptuais, segundo CARREIRA, 1995: 1
Capítulo XI

PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO


EM PORTUGUÊS EUROPEU
Uma história de cortesias

As FT’s que os portugueses actuais mais utilizam não são criação sua, apesar da
maior ou menor originalidade de realização que lhe possam emprestar e das formas
novas que possam criar. Os tratamentos fazem parte dum sistema linguístico e sociocul-
tural português, cujas primeiras manifestações encontram-se documentadas em fontes
escritas medievais (séculos XIV e XV).1 É muito provável, por isso, que já circulassem
oralmente em tempos anteriores. A partir de então, essas FT’s não deixaram de sofrer
alterações de natureza diferente ao longo dos tempos, de forma mais ou menos lenta.
Desde logo, quanto às pessoas a quem eram dirigidas, com maior ou menor exclusivi-
dade, como se de um direito social inalienável se tratasse. Nem todas as pessoas podiam
ser tratadas pelas mesmas fórmulas ou formas. O nível de poder político, religioso, eco-
nómico e social conferia aos seus detentores diferentes estatutos e determinava formas
mais ou menos institucionalizadas de tratamento (fórmulas) que deviam ser respeitadas.
A uma sociedade altamente hierarquizada correspondia um sistema de FT’s igualmente
hierarquizado. Às alterações sofridas pela sociedade pensava-se e defendia-se que deve-
riam corresponder alterações nos direitos a usar e a receber determinados tratamentos,
ou, dito de outro modo, as alterações verificadas no sistema das FT’s eram reflexo tam-
bém das alterações verificadas, em curso ou desejadas pela sociedade.2 Como observa
Delphine Perret:

«Les hommes, par l’usage de termes d’adresse institutionnalisés, tendent à se constituer


eux-mêmes en système. Chaque homme se veut comme un terme distinct et lié aux

1
Ver CINTRA, 19862: 16 e ss. Para a origem e usos das «fórmulas de tratamento» no Português antigo,
ver LUZ, 1956, 1957 e 1958-59.
2
É em períodos de revolução política e social que, consoante a orientação ideológica dominante, se busca
uma igualitarização ou uma hierarquização dos tratamentos. Sobre esta problemática, ao nível político
parlamentar, cf. MARQUES, 1988. A título de exemplo, como reflexo social e crítico dos «abusos» dos
tratamentos em Portugal, após o 25 de Abril de 1974, cf. CARDOSO, 1995, ou 1986: 65-67.
342

autres termes par le type de relation qu’il entretient avec eux. X est “Pierre” pou A,
“monsieur” pour B, “papa” pour C, “oncle Pierre” pour D, “monsieur le directeur” pour
E, etc. C’est ainsi qu’il définit socialement et il semble y tenir. […] L’homme veut être
appelé adéquatement à ce qu’il pense être pour l’autre. Le terme d’adresse affirme alors
cette relation.»3

Intimamente ligadas com as relações sociais, de que são uma das suas manifes-
tações mais evidentes, as FT’s sofreram também alterações linguísticas, ao longo dos
tempos, a nível morfológico, morfossintáctico, semântico e pragmático. Tais alterações
levaram à formação de novas FT’s e à recategorização linguística de outras, bem como
ao aparecimento de novas regras de coocorrência. Paralelamente, à medida que a socie-
dade se foi tornando menos hierarquizada, pela ascensão de cidadãos aos bens económi-
cos e culturais, por um lado, e a uma maior participação na vida social e política, por
outro, o sistema de tratamento português foi reduzindo o seu número de formas, ao
mesmo tempo que outras, ainda em uso, iam e vão perdendo alguns dos seus valores
semânticos e pragmáticos tradicionais. Algumas das FT’s nominais e pronominais caí-
ram em desuso ou ocorrem com reduzida frequência, limitadas a contextos particulares
e/ou a certos estratos sociais e/ou regiões. Outras, pelo contrário, recuperam usos, antes
menos recomendados por descorteses, a par de outras que passaram a ocorrer com maior
frequência. São os casos de vós, vossa senhoria e vossa excelência, quanto ao primeiro
aspecto, e de você e senhor, quanto ao segundo.
Na história do sistema de tratamento em Português de Portugal encontram-se,
segundo Lindley Cintra,4 três grandes períodos. O primeiro, situado entre finais do séc.
XIII e as primeiras décadas do séc. XV, é o tempo das FT’s pronominais tu e vós, a
primeira usada entre íntimos e próximos, a segunda entre pessoas cuja relação não con-
sentia o uso de tu, fosse ela o rei ou o arcebispo, o rústico ou o vilão. Entre o séc. XV e
finais do séc. XVIII, embora se mantenha o emprego de tu e vós, como no período ante-
rior, dá-se o aparecimento e a expansão, por um lado, de algumas FT’s nominais de ele-
vada cortesia (vossa mercê, vossa senhoria, vossa excelência, vossa alteza, vossa majes-
tade, vossa excelência, vossa reverência, etc.) e, por outro, a degradação e abandono de

3
PERRET, 1968: 9.
4
Cf. CINTRA, 19862:16-33 e 106-108.
343

algumas delas, a par de tentativas régias de regulamentação do seu uso, nos reinados de
Filipe II e João V, através das pragmáticas de 1597 e 1739, respectivamente.5
A partir da segunda metade do séc. XVIII, dá-se a invasão de novas formas
nominais corteses, com expansão nos dois séculos seguintes. Os tratamentos de vossa
excelência e vossa senhoria mantêm-se, mas a FT vós, como tratamento cortês de 2.ª
pessoa, dirigido apenas a um alocutário, desaparece. Ao mesmo tempo, aumenta a
degradação de vossa mercê, com a correspondente expansão de você e outras formas
igualmente contraídas. Ficava assim aberto o caminho, refere Cintra, ao uso de «outras
formas substantivas que levam o verbo para a 3.ª pessoa – desde o senhor a o senhor
Dr., a o pai, o meu pai, o meu amigo, o patrão, o António, a Maria, a D. Maria, a Sr.ª
D. Maria, a Sr.ª Dr.ª D. Maria, etc. »6
Cada uma das FT’s tem, porém, a sua própria história. Não cabe fazê-la, como é
evidente, aqui e agora. Julgamos, todavia, importante apresentar a evolução que, a
vários níveis, sofreram algumas delas, nomeadamente tu e vós, você, senhor, vossa
excelência e vossa senhoria. A propósito de cada uma destas FT’s, faremos referência a
outras que tenham estado na sua origem ou evolução, ou que com elas tenham estreita
relação.

1. Tu e vós

Tu é FT que andou sempre associada a relações de proximidade e/ou intimidade.


Na Idade Média, era mesmo tratamento dirigido ao rei, «em textos literários, com valor
estilístico.»7 Actualmente, tende a ser empregue não só entre íntimos e próximos, mas
também entre desconhecidos (jovens) e mesmo de filhos para pais. O tuteamento tende,
assim, «a ultrapassar os limites da intimidade propriamente dita, em consonância com
uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa.»8 O uso de formas T, de filhos
para pais (que pessoalmente também já verificámos ocorrer de alunos para professores),
mostra, em nosso entender, que a cortesia também se encontra em T.
A história da FT vós foi, no início, comum à de tu, por ser entendida como o seu
plural (que de facto não é). Começou por ser usada também como forma de relação

5
Cf. id.: 109-111 e 112-115, respectivamente, para as leis filipina e joanina.
6
Id.: 33.
7
LUZ, 1956: 49 e 107.
8
CUNHA & CINTRA, 1984: 293.
344

entre aqueles que não se tuteavam, passando depois a forma de cortesia ou cerimónia9
dirigida ao rei, antes deste ser tratado por vossa mercê. Já no latim vos tinha emprego de
distinção e com esse valor transitou para o tratamento régio em Portugal e assim se
manteve, durante toda a Idade Média, segundo anota Marilina Luz. Acrescenta esta
autora que, no século XVI, «ainda podia falar-se ao rei por vós», mesmo que o pronome
não viesse «obrigatòriamente expresso», bastando para isso a forma verbal, o que «pro-
va a simplicidade do primitivo tratamento real.»10
Não era, porém, só ao rei e à rainha que os portugueses se dirigiam antigamente
por vós. Observa Cintra que, mesmo no século XV, segundo se depreende das crónicas
de Fernão Lopes, era o tratamento de cortesia mais utilizado:

«Normalmente, o rei, a rainha, o condestável, os nobres tratam os seus vassalos por vós
e é este mesmo tratamento que esses vassalos empregam quando se lhes dirigem. Tam-
bém é este o tratamento que tanto nobres como eclesiásticos como plebeus empregam
quando falam uns com os outros.»11

O tratamento por vós, dirigido a um só indivíduo, masculino ou feminino, como


manifestação de cortesia, manteve-se ao longo dos séculos, pelo menos até meados do
XVIII. Baseado em textos dramáticos («muito claros a este respeito»12), Cintra situa, na
passagem do reinado de D. João V para o de D. José, a queda em desuso desta FT. No
caso, porém, de continuar em uso, era «traço arcaizante e um tanto ridículo da fala de
pessoas velhas ou provincianas».13 Aliás Bluteau, em 1721, estranhava que os cristãos

9
Cunha & Cintra chamam «de cerimónia» ao pronome vós, «com referência a uma só pessoa». [Id.: 287]
Lapa também chama ao pronome vós, nestes casos, «tratamento de cerimónia». [LAPA, 19758: 153]
10
LUZ, 1956: 357 (107). Para os valores de vos, no latim, como «pronome de cortesia», ver id.: 276 (26).
Lapa refere também o modo modesto e humilde dos nossos primeiros reis. «Quando os soberanos tinham
o bom costume de ouvir os povos, convocando cortes, especialmente durante o período que vai de D.
João I até D. Afonso V, usavam nos documentos um estilo de modéstia: Nós, el-rei, fazemos saber... A
fórmula quadrava bem com o espírito mais ou menos democrático das instituições medievais; o rei era
uma espécie de emanação da vontade geral, era, por assim dizer, o que o povo queria que fosse. De aí se
compreende a austeridade do tratamento que a si próprio se dava, que não excluía aliás uma certa grande-
za. Com D. João III aparece o absolutismo real. O monarca não dá satisfação dos seus actos, porque
supõe-se enviado de Deus na terra. Tudo lhe deve obediência. Esta nova concepção do orgulho da realeza
já não podia suportar a fórmula antiga do nós. A provisão de 16 de junho de 1524 mandou mudar a 1.ª
pessoa do plural para a 1.ª do singular. Passou a escrever-se – Eu, el-rei, faço saber... Diz o cronista,
percebendo perfeitamente a razão estilística, que assim se fez “por ser mais próprio e decente à majestade
real”.» [LAPA, 19758: 152] Sobre a introdução e os valores do «nós de majestade», pelos imperadores
romanos, consequência do tratamento por Vos recebido, cf. LUZ, 1956: 1276-278 (26-28).
11
CINTRA, 19862: 17.
12
São referidas as obras de António José da Silva, Manuel de Figueiredo e Correia Garção. [Cf. id.: 30]
13
Id.: 29-30.
345

tratassem a Cristo por vós, quando tal tratamento, «de hum homem a outro homem,
pareça injúria». E acrescenta: «Em Hespanha, e particularmente em Portugal, sem gran-
de familiaridade, ou dependência, ninguém leva hum Vós com paciência.»14
Cintra explica que a extrema degradação do vós, como pronome próprio da 2.ª
pessoa do singular do discurso, se ficou a dever à rápida ampliação do emprego de vos-
sa mercê, vossa senhoria e vossa excelência. Este fenómeno social e linguístico ficou-se
a dever ao «número progressivamente maior de pessoas a quem se tornou possível apli-
car estes tratamentos de cortesia», ficando o emprego do vós reduzido a pessoas que não
mereciam aqueles. E o autor conclui:

«Vós e a 2.ª pessoa do plural dos verbos acabaram por ser uma maneira demasiadamen-
te rude, rasteira, baixa, de se dirigir até mesmo a um amigo com quem não existia a
intimidade que permitisse o emprego de tu. Por outro lado, para o lugar que o vós dei-
xou vago no sistema apresentou-se a partir de certo momento, como candidato possível,
o você, decaído do seu valor inicial, mas não tanto que não pudesse assumir gradual-
mente estas funções.»15

Apesar da anunciada «morte» desta FT, a verdade é que ela, como tratamento
individual, continuou no séc. XVIII e seguintes, pelos menos em alguns meios rurais.16
Luz, baseada em estudo de Dorinda Agualusa, anota que o emprego deste vós era ainda
usado, em oitocentos, «em casos de exaltação de ânimo, de afectação e na linguagem
cuidada, “falando com meia cortesia”, o que prova o seu relativo vigor.» Mas acrescenta
que esta FT arrasta hoje «a sua existência cansada, no tratamento popular de algumas
regiões do Norte, assim como “nas preces, no estilo oratório, na poesia, na linguagem
de ficção quando a pluralidade não se refere a seres humanos e no estilo oficial”.»17

14
BLUTEAU, Raphael, 1721: Vocabulário Portuguez e Latino ... VIII. Coimbra, s. v. vossê, cit. por
CINTRA, 19862: 30. Em Espanha, porém, parece que a desgraça do tratamento por Vós começou mais
cedo. Segundo refere Cárceles, citada por Luz, já nos princípios do séc. XVI «vosear a una persona im-
plicaba, cuando no un insulto, una intima familiaridad, o superior categoría social por parte del que
hablaba». [Revista de Filología Española, vol. X, 1923, p. 245, cit. por LUZ, 1956: 279 (29) e nota 50]
15
CINTRA, 19862: 30-31.
16
Recorde-se que Cintra limita o seu «campo de observação [...] à linguagem das camadas cultas (ou
semicultas) das grandes cidades de Portugal». [Id.: 11]
17
LUZ, 1956: 279 (29). O estudo de Agualusa, intitulado Fórmulas de tratamento em português no sécu-
lo XIX, é, segundo informa a autora na bibliografia, dissertação de licenciatura, dactilografada, inédita e
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1947. A autora cita ALI, M. S.,
19312: Gramática histórica da língua portuguesa, S. Paulo, Cayeirasm, Rio; p. 94.
346

Em 1931 já se tinha perdido «o hábito do tratamento de vós, tam galante», anota


Cláudio Basto, registando também que quase só o povo o empregava, em alguns pontos
do norte do país e nos Açores, «não falando das rezas, bem que muitas vezes o povo se
dirija a Santos, tratando-os por tu.»18 Lapa chama-lhe «pronome perdido», quer como
FT individual, quer como FT colectiva. Anota:

«Antigamente vós também se empregava como tratamento de cerimónia, substituindo a


2.ª pessoa do singular. Um poeta dirigia-se a uma dama e desfechava-lhe este galanteio:
Vós sois meu bem e meu mal. Hoje este modo de dizer está abolido. Os poetas preferem
tratar mais democraticamente as suas inspiradoras por tu, encurtando a distância entre
um e outro.»19

Quando, porém, «o namoro estava pegado», os namorados abandonavam o tu e


passavam a tratar-se por vós, não fossem as más línguas dizer que havia entre eles
«familiaridades comprometedoras». Como forma de segunda pessoal do plural, desig-
nando mais que um indivíduo, vós já não existe «na linguagem de todos os dias».20 O
seu uso no sul é considerado arcaísmo, sendo, por isso, geralmente substituído por
vocês.
Cunha & Cintra também registam o desaparecimento, «praticamente», do pro-
nome vós, da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Acrescentam, todavia, que
«em discursos enfáticos alguns oradores ainda se servem da 2.ª pessoa do plural para se
dirigirem cerimoniosamente a um auditório qualificado.» Observam, por outro lado, que
«com referência a uma só pessoa, normal como tratamento em português antigo e clás-
sico», vós «emprega-se ainda, uma vez por outra, em linguagem literária de tom arcai-
zante para expressar distância, apreço social».21
O uso desta FT, como pronome recto ou oblíquo, como expressão de alta corte-
sia, isto é, como forma majestática de tratamento e designação de um só indivíduo,
parece ter chegado definitivamente ao fim. E quanto ao seu emprego, como tratamento e

18
BASTO, 1931: 193-194. Para um estudo das FT’s tu e vós, «como formas de tratamento de Deus em
orações e na poesia em língua portuguesa», ver CINTRA, 19862: 63-102.
19
LAPA, 19758: 153.
20
Cf. id.: 153 e 154. Por experiência pessoal, podemos afirmar que, ainda hoje, no distrito de Viana do
Castelo, há muita gente, rural como urbana, mais ou menos escolarizada, que continua a utilizar vós como
FT de segunda pessoa do plural, para se referir a vários indivíduos, a quem individualmente se trate por tu
ou por você.
21
CUNHA & CINTRA, 1984: 287.
347

designação de vários, parece ter também os dias contados. Fonseca (F.), ao analisar a
«substituição» do imperativo pelo conjuntivo, na expressão da ordem, observa:
«En portugais […] la troisième personne est devenue la forme d’interpellation la plus
courante: au singulier dans le vouvoiemnet (le «você» tout à fait généralisé au Brésil et
coexistant avec le “tu» au Portugal) et, au pluriel, comme forme presque unique (la
deuxième personne ne survit que dans quelques variétés régionales, dans l’oratoire –
surtout religieuse – et dans certaines formes du langage soutenu, senties comme “démo-
dées”).»22

Ocorrências com vós, ou apenas pela correspondente forma verbal, tendem a ser
consideradas agramaticais, ou, pelo menos, pouco aceitáveis, mesmo quando o enuncia-
dor trata, individualmente, cada um dos destinatários por tu. Assim, por exemplo, quan-
do, numa conversa a dois, pais e filhos se tuteiam mutuamente, os mesmos passam a
formas de voceamento, isto é, de terceira pessoa, quando se dirigem a mais que um dos
membros da família.23
Quando usada, hoje, como 2.ª pessoa do plural, vós expressará pouca ou reduzi-
da cortesia, dado, por um lado, a sua condição de pronome e, por outro, o facto de indi-
car proximidade ou superioridade do locutor para com os alocutários. A nosso ver, tratar
por vós um auditório, mesmo que se tuteie, individualmente, cada um dos elementos, é
diluir no plural a individualidade e a identidade de cada um, é tratar como iguais quem é
diferente, mesmo quando integrados num mesmo contexto de comunicação. E a cortesia
tem muito a ver, ainda hoje, com o respeito pelas diferenças, mesmo entre indivíduos
aparentemente iguais, ou que como tal se consideram ou são considerados. Cortesia e
respeito são uma mesma via com trânsito nos dois sentidos, mas onde há sempre alguém
com direito reconhecido de prioridade, para que não haja lugar para descortesias.

2. Você

22
FONSECA (F.), 1994: 29.
23
A propósito da distinção entre as expressões «vou sair com vocês» e «vou sair convosco», José Pedro
Machado observa que não se trata de expressões sinónimas e acrescenta, em jeito de explicação: «A
segunda utiliza-se com quem se faz certa cerimónia no trato, ao passo que a primeira costuma ser utiliza-
da quando há intimidade com os interlocutores, geralmente pessoas que tratamos por tu.» Verbete sobre
«Língua portuguesa», Diário de Notícias, 01-08-99. Lapa escreve que «a forma da 2.ª pessoa do plural
não se usa em estilo corrente e tem carácter antiquado», acrescentando que no estilo familiar, «substitui-
-se pela 3.ª pessoa: - Não venham tarde! – Não sejam impacientes!» [LAPA, 19758: 210]
348

Compreender a formação e evolução de você, a nível morfossintáctico e semân-


tico-pragmático, leva-nos, inevitavelmente, à descrição de vossa mercê. Vossa mercê foi
o primeiro tratamento nominal dirigido ao rei, depois de vós, antes de ser tratado por
vossa alteza e depois por vossa senhoria, com usos prováveis a partir de meados do séc.
XV.24 A primeira ocorrência escrita de vossa mercê encontra-se nas cortes de 1331.
Deixa, porém, de ser utilizada para o rei, a partir de 1490, passando para duques e infan-
tes, para, nos inícios do século XVI, ser dirigida também a patrões burgueses.25 Era tra-
tamento nominal, pois caracterizava uma qualidade do soberano, a mercê, isto é, a gene-
rosidade, mas também «o arbítrio do poder real».26 Importada do Castelhano, depressa
se tornou tratamento a conquistar por cada vez maior número de pessoas, de tal modo
que, na lei de 1597, Filipe II já não regula o seu emprego. Observa Cintra que vossa
mercê teria já, nesta altura, «um campo de utilização mais vasto, situado em todo o caso
a um nível superior ao do simples vós».27
A vulgarização de vossa mercê, tratamento que «já nos fins do século XV era
corrente para fidalgos e mesmo para gente não tão altamente colocada», passou a preo-
cupar muitos que continuavam a ser por ela tratados, e sobretudo pelas suas «formas
fonéticas decadentes vossancê ou você».28 Veja-se, como exemplo, a reacção de D.
Urraca, filha de fidalgos, quando um criado se atrevera a tratá-la por vossa mercê:
«Mercê? A mim, Mercê? Mercê? Maroto / Atrevido, insolente! Vai-te embora! / Tu não
sabes falar? Dize a teu amo / que te mande ensinar: logo pareces / criado de vilão ...»29

24
Cf. CINTRA, 19862: 17, 18 e 21. Cf. também LUZ, 1956: 300 (50), que informa: «Nos primeiros tem-
pos da nossa monarquia, o rei mal se distinguia dos outros nobres. Nem o poder real era suficientemente
forte para afastar de si as outras classes, nem as condições de vida medievais lhe permitiam sustentar um
tal fausto que tornasse quase obrigatórias fórmulas de tratamento profundamente reverenciosas e mais ou
menos complicadas. / Os riscos da guerra contra o inimigo comum e a familiaridade que a vida militar
daquele tempo pressupunha, ainda mais irmanavam o rei com os seus vassalos. [...] / No século XIII, [o
rei] distancia-se das outras classes, deixando de ser um simples “primus inter pares”, mas é só no século
XV que o rei consegue aniquilar qualquer espécie de autoridade oposta à sua e apresentar-se [...] grandio-
so, magnânimo, esforçando-se por rodear de sumptuosidade a sua pessoa, a sua mulher, os seus filhos, os
seus acostados, a sua habitação.» [Id.: 274-275 (24-25)]
25
Cf. CINTRA, 19862: 21.
26
LUZ, 1956: 359 (109). A propósito, a autora esclarece que se usava, na Idade Média, «a palavra mercê
para formular pedidos e agradecê-los, assim como noutras ocasiões em que era preciso mostrar delicadeza
(cumprimentos, saudações, fórmulas de despedida): encomendo-me em vossa mercê, vou-me com vossa
mercê, beijo as mãos de vossa mercê.» [Id.: 359 (109)]
27
CINTRA, 19862: 23.
28
Id.: 26 e 27. Basto regista ainda as variantes «vossemecê, voss’mecê, vomecê, vom’cê, võcê (voncê)»,
além de outras, ainda nos anos 20-30 do séc. passado. [BASTO, 1931: 191]
29
A citação é de Assembleia ou Partida (1770) de Correia Garção. GARÇÃO, Correia, Obras Completas.
Texto fixado, prefácio e notas por António José Saraiva, II, Prosas e Teatro, Lisboa [1958], pp. 52-53,
citado por CINTRA, 19862: 29 e 37, nota16.
349

Na segunda metade do século XVIII, o tratamento de vossa mercê parece ocorrer


dirigido sobretudo a indivíduos de estatuto social menos elevado, ainda que gozando de
algum prestígio. Frei Luiz do Monte Carmelo,30 ao tratar as FT’s, no seu Compendio de
Orthografia,31 publicado em 1767, refere-se, indirectamente, a vossa mercê, ao advertir
que «nunca se-diga juntamente Senhor, e Seu; ou Senhora, e Sua», em formas como «O
Senhor seu pae, o Senhor seu irmâm, a Senhora sua filha, a Senhora sua Esposa, &c.»,
porque não é assim que se diz na corte nem é moda. De tais incorrecções é exemplo a
seguinte fala dum rústico, dirigindo-se «ao Magnate da sua Aldêa»: «O Senhor seu por-
co entrou hoje na minha horta, e comeu até dizer: Nam quero mais. Eu estimei isto por
ser coisa de V. Mercê.»32 Por outro lado, Carmelo observa que também nunca se deve-
ria dizer «Senhor irmâm, &c. de V. Mercê, de V. Senhoria, de V. Excellencia»,33 o que
prova, em nosso entender, que o tratamento de vossa mercê figurava ainda a par dos
tratamentos mais elevados de vossa senhoria e de vossa excelência.
Observa Menéndez, a propósito da «anedota» do rústico, que com ela Carmelo
está «a criticar a divulgação do tratamento de “senhoria” fora da alta nobreza e casa
Real.»34 Concordando com esta observação, gostaríamos de acrescentar que o uso de
vossa mercê, pelo rústico, ao dirigir-se ao Magnate da Aldeia, mostra também o desgas-
te que, a nível semântico-pragmático, esta fórmula tinha já sofrido. Além disso, encon-
tramos nela também uma crítica ao emprego dos possessivos seu e sua nos tratamentos,
processo já ridicularizado também por Rodrigues Lobo, na Corte da Aldeia.35
Vossa mercê chegou mesmo a ser considerado tratamento insultuoso, nos sécu-
los seguintes. Num curioso livro intitulado Codigo do Bom Tom [...],36 publicado em

30
Frei Luís do Monte Carmelo (1715-1785) era natural de Viana do Castelo. Foi um dos principais filó-
logos que, na segunda metade do séc. XVIII, se preocupavam com a pureza e a correcção da Língua
Portuguesa. Sobre a vida e a importância, a nível linguístico, da sua obra, cf. MENÉNDEZ, 1997: 89-96,
159-175, 235-241, 311-319 e passim.
31
O título da obra, conforme uso na época, é muito mais extenso. Menéndez regista o seguinte: «Com-
pendio de Orthografia, com sufficientes catalogos, e novas Regras, paraque em todas as provincias, e
Dominios de Portugal, possam os curiosos comprehender facilmente a Orthologia, e Prosodia, isto he, a
recta pronunciaçam, e Accentos proprios, da Lingua Portugueza (...). Lisboa: Na Officina de Antonio
Rodriguez Galhardo.» [MENÉNDEZ, 1997: 390] As reticências entre parênteses curvos são da responsa-
bilidade de Menéndez, sinal de que o título do Compendio é ainda mais extenso.
32
Citado por MENÉNDEZ, 1997: 163. Por considerarmos que as observações dizem respeito sobretudo
ao uso de senhor / a, apresentaremos a transcrição completa do excerto ao abordarmos estes tratamentos.
33
Citado por MENÉNDEZ, 1997: 163.
34
Id.: 164.
35
Sobre o uso impróprio de seu / sua, ver, infra, 3.4.
36
Para título completo, ver Bibliografia. Veja-se, infra, também a passagem onde o deputado Calisto
Elói, n’A Queda dum Anjo, de Camilo, refere o facto dum «tendeiro» que, em Lisboa, vendia «figos de
comadre», se ter sentido ofendido com o tratamento de «vossemecê» que lhe dirigira. [Camilo Castelo
Branco, 197011: A Queda dum Anjo. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; p. 63]
350

1845, com segunda edição, «Consideravelmente augmentada e corrigida», em 1859 (a


que consultámos), o autor ensina aos filhos que «numa sala de pessoas bem criadas o
Vossa Mercê não tem entrada».37 Nos finais do séc. XIX, você teria passado já a trata-
mento pronominal e seria adoptado, «embora não definitivamente», como «forma a uti-
lizar entre iguais».38 Recorde-se, ainda, a reacção-comentário de «você é estrebaria» a
quem tal fórmula utilizava: «“Você” é estrebaria; / Nela come e nela se cria / Com dez
réis de palha por dia.»39
Nos anos trinta do século XX, porém, segundo refere Basto, «é moda, é do bom
tom, é chic, o tratamento de você.»40 Muito recentemente, José Pedro Machado, escla-
recia o uso «de estrebaria», associado a você:

«Lembro-me bem de tal comentário [«é de estrebaria»], na verdade agora em decadên-


cia, ou mesmo já caído em desuso. Era manifestação de repugnância dita por alguém a
quem desagradara ser tratado por você, sobretudo quando o alvejado se julgava atingido
por pessoa que considerava sua inferior sob qualquer ponto de vista.»41

Acrescenta, todavia, que «o mesmo tratamento era tolerado entre aqueles que,
conhecendo-se, não faziam cerimónia entre si sem conseguir a amizade, sendo também
há décadas frequente no relacionamento de raparigas com rapazes.» Além disso, era
ainda frequente «entre dirigentes e dirigidos, sobretudo em situações difíceis, por vezes
mesmo substituindo o tu: - então você não está a ver o que fez?» E conclui: «Não era,
portanto, vocábulo em bom conceito, antes julgado forma de gente ordinária, de quem,
por exemplo, lidava com cavalos, gente de cocheiras, de estrebarias.»42
Cunha & Cintra sintetizam o uso actual da FT você, no que toca ao Português de
Portugal, como segue:

37
ROQUETTE, 18592: 50.
38
CINTRA, 19862: 32.
39
Cf. BASTO, 1931: 198, nota 4. O terceto foi colhido por Basto na Revista do Minho, vol. XII, coluna
84, mas o dito é dado como existindo nos Açores e no Alentejo.
40
Id.: 193.
41
José Pedro Machado, «Língua Portuguesa», Diário de Notícias, 21 de Maio de 2000.
42
Id.: ibid. A propósito, o mesmo autor refere que «é de estrebaria» também se dizia de «expressão reles
ou de um disparate». Ver também, infra, crónica de José Barata-Feyo. Há cerca de cinco anos, no final
duma palestra realizada na ESE de Viana do Castelo, em que abordámos as FT’s em Português de Portu-
gal, uma professora do Primeiro Ciclo confidenciava-nos que a mãe lhe ensinara que «tratar alguém por
você era uma falta de educação». Em algumas localidades (por exemplo, em certas zonas rurais do conce-
lho de Ponte de Lima), a forma você corre, geralmente, sem sentido depreciativo, mas a forma vossemecê
é considerada mais respeitosa. Basto também anota que «Vossemecê, para os aldeãos, é mais respeitoso
que você.» [BASTO, 1931: 187] Será por ser contracção que se encontra foneticamente mais próxima da
fórmula primitiva (Vossa Mercê) e dos seus valores semântico-pragmáticos originais?...
351

«É este último valor, de tratamento igualitário ou de superior para inferior (em idade,
em classe social, em hierarquia), e apenas este, o que você possui no português normal
europeu, onde só excepcionalmente – e em certas camadas sociais altas – aparece usado
como forma carinhosa de intimidade. No português de Portugal não é ainda possível,
apesar de certo alargamento recente do seu emprego, usar você de inferior para superior,
em idade, classe social ou hierarquia.»43

Actualmente, face ao que se ouve e lê, o tratamento de você encontra-se larga-


mente expandido entre os portugueses de Portugal, sinal de que os valores depreciativos
ou insultuosos que outrora o marcaram terão já desaparecido, ou estarão em vias de
desaparecer.44 Deu-se, assim, uma inversão de tendência. A fórmula vem sendo usada
não só entre desconhecidos, ou entre conhecidos com assimetria de lugares, mas tam-
bém entre iguais e próximos, mesmo como termo de afecto.45 Tudo isto fruto, certamen-
te, da evolução democrática da sociedade portuguesa, mas devido também à existência

43
CUNHA & CINTRA; 1984: 294. Apesar da reconhecida autoridade dos autores na matéria, todos nós
já ouvimos, certamente, inferiores tratarem superiores por você. Em nosso entender, você é, nos dias de
hoje, uma fórmula passe-partout. Talvez se esteja a chegar a um sistema simplificado e binário. Perdido
de vez o voseamento, aproxima-se o sistema binário (ao nível das FT’s pronominais), com formas de
tuteamento para relações de intimidade e proximidade, e de voceamento para relações de relativo distan-
ciamento proxémico e/ou taxémico. Ou mesmo a um sistema unitário, como já desejava Basto, nos anos
trinta do séc. passado: «Talvez não fôsse mau aproveitar esta monção favorável da moda [uso de Você], e
fixar-se em Portugal o tratamento único de você, correspondente ao Usted espanhol (fr. vous, etc.) – desa-
parecendo assim a incómoda multiplicidade de tratamentos que temos.» [BASTO, 1931: 193] Não se
pense, todavia, que esta tendência ou desejo dum sistema binário ou unitário é recente. Já em meados do
século XIX, no início do capítulo «Dos Tratamentos», observava Roquette: «Se alguma cousa invejo na
lingua franceza é a facilidade com que podêmos tratar com toda a sorte de pessoas (que não são da familia
real) sem estarmos com duvidas se lhe fallaremos por Excellencia, por Senhoria ou por Mercê; nada mais
commodo que o vous francez, e nada mais embaraçoso que as distincções que entre nós somos obrigados
a fazer, e que muitas vezes por descuido ou por ignorancia involuntaria nos fazem passar por impoliticos
e grosseiros.» [ROQUETTE, 18592: 46]
44
Continua a haver, contudo, pessoas a quem ainda desgosta e incomoda o tratamento de você e por isso
protesta. Em carta publicada na revista Notícias Magazine, uma professora de Carcavelos, identificada
apenas pelas iniciais A. A., diz lutar de «forma incessante contra o hábito» dos seus alunos tratarem os
professores por você. Hábito, acrescenta, que considera uma característica da região onde vive «há quase
30 anos», quando forçadamente teve de deixar a terra onde nascera. A docente, saindo do âmbito escolar,
confessa sentir-se «francamente incomodada» com o uso «repetitivo» de você, por «humilhante», dirigido
por Maria Elisa aos concorrentes do Quem quer ser milionário. Além disso, protesta por ter visto, no
programa Acontece, uma entrevista «ao dr. Graça Moura, em que o jovem entrevistador, que não identifi-
quei, se dirige a uma pessoa mais velha, de nível cultural mais elevado, de condição social mais elevada
porque é convidado, utilizando o dito “você”». Esta professora começa, porém, a carta, assim: «Estou a
chegar aos sessenta anos e luto contra moinhos de vento.» [Notícias Magazine, n.º 460, 18-03-01, p. 14]
45
Na terceira «tendência», de entre as «actualmente mais vivas», quanto à evolução do sistema de trata-
mento Português de Portugal, escreve Cintra que, por um lado, se verifica uma «progressiva ampliação do
emprego do pronome você – a que raramente se atribui o matiz depreciativo que ainda não há muitos anos
lhe era associado com muita frequência em determinados meios» e, por outro, que «à medida que o
emprego do tu se vai expandindo, você aparece adoptado como tratamento afectuoso, mais íntimo do que
tu». [CINTRA, 19862: 34] Cf. também BOBONE, 1999: 88.
352

de programas televisivos com audiências garantidas: por um lado, as telenovelas brasi-


leiras e, por outro, aqueles programas em que os protagonistas passaram a ser gente
anónima (para deixar de o ser), com coragem para se expor publicamente, de qualquer
forma e a qualquer preço, por outro.46
Usada entre iguais ou desiguais, de superior para inferior ou vice-versa, você é
hoje tratamento corrente que situa, todavia, os interlocutores no quadro da cortesia, se
bem que a um nível ou grau pouco elevado.47 A sua ocorrência numa situação de inte-
racção verbal marca sempre uma relação minimamente respeitosa (que até pode ser
íntima ou próxima) e servirá, por isso, para acompanhar um FFA, ainda que de grau
pouco elevado. Como pouco atenuará, por outro lado, o FTA que acompanhe. Mas estes
valores usuais podem ser alterados, de acordo com o co(n)texto a evolução da interac-
ção, ou as relações que se tem ou deseja ter (ou mostrar que se tem) com o(s) interlocu-
tor(es).

3. Senhor / a

Com origem na forma latina senior («homem mais velho»), esta FT parece ter
entrado em Portugal, contudo, por via francesa. Aparece nos textos antigos portugueses
com o significado de pessoa que tem autoridade e direitos sobre alguém ou alguma coi-
sa. Senhor, na Idade Média, não era, portanto, «uma simples apóstrofe cortês» dirigida
ao monarca, já que o monarca era «o primeiro dos “senhores”» e, por isso, o termo era
também «sinónimo de “rei”».48 Como aconteceu em relação a outros tratamentos ditos

46
Veja-se, a propósito, o estudo de CHARAUDEAU & GHIGLIONE, 2000.
47
Veja-se, como exemplo do uso actual de você, corrente mesmo entre desconhecidos, e com valores de
relativa cortesia, a sua inclusão, também significativo por isso, no subtítulo de O Pequeno Livro da Eti-
queta e Bom Senso. 501 conselhos para você brilhar em qualquer ocasião [cf. MENEZES, 2001]. Ou,
para confirmar, a seguinte publicidade dum banco: «No X, achamos que o seu dinheiro é um assunto tão
pessoal que você até deve ter uma pessoa a trabalhar só para si: o seu Director Particular. Alguém que,
inclusive, vai pessoalmente ao seu encontro, sempre que não quiser deslocar-se até ao X. Que está sempre
contactável, até por telemóvel. Que, no entanto, não fica à espera que você lhe ligue para lhe dizer qual a
melhor aplicação a dar ao seu capital. Que o aconselha sobre todas as soluções que o X lhe oferece [...]. E
que só não lhe escolhe a roupa porque, de facto, isso é realmente muito pessoal.» [Publicidade inserida
em Ensino Superior, Revista do SNESup, n.º 1, Novembro de 2001. Substituímos, obviamente, o nome do
banco por X. Itálicos da nossa responsabilidade]
48
LUZ, 1956: 284 (34) e 357 (107). O historiador Oliveira Marques, ao estudar a nobreza portuguesa na
Idade Média, observa, a propósito dos ricos-homens, que eles «detinham os principais cargos governati-
vos, administrativos e militares», possuíam as propriedades fundiárias «mais extensas e rendosas», e
«outro tipo de benesses», e acrescenta: «Tinham direito ao título de dom (> dominus), visto serem senho-
res de pendão e caldeira, mantendo sob a sua chefia contingentes numerosos que alimentavam e prote-
giam à maneira feudal, recebendo fidelidade (posteriormente, aliás, tanto dom como senhor se generaliza-
ram à maioria dos nobres).» [MARQUES, 1971: 149-159]
353

de cortesia, os reis portugueses sempre gostaram de ser tratados por senhor. Na provisão
de 1597, Filipe II prescreve:

«Ordeno, e mando, que no alto das Cartas, ou papeis que se me escreverem se ponha,
Senhor, sem outra couza, e no fim dellas, Deos guarde a Catholica pessoa de V. Mages-
tade; [...] e no sobre escrito, só porá a El Rey Nosso Senhor. E os Duques, e Marquezes,
e seus filhos primogenitos sómente poderão pôr no sobrescrito: A El Rey meu Senhor, e
o mesmo sobrescrito poderão pôr todos os mais filhos dos Duques alem do primogenito,
que tiverem parentesco com a Coroa Real dentro quarto grao, contando conforme a
direito Canonico. E quando não tiverem o dito parentesco, ou não estiverem dentro do
dito grao, não poderão pôr o dito sobrescrito, nem o poderá pôr outra algũa pessoa de
qualquer qualidade, dignidade, e condição, que seja.»49

E D. João V, na pragmática de 1739, manda «abolir e revogar» a lei filipina,


«excepto o que nela foi disposto a respeito da formalidade que deve praticar-se nas Car-
tas e papeis que se me escreverem, ou às Rainhas, Principes herdeiros, Princesas, Infan-
tes, e Infantas destes reinos».50 Repare-se que o rei regulamentava não só como ele pró-
prio devia ser tratado por senhor, mas também quem assim o devia ou podia fazer.
O rei não era, evidentemenmte, o único senhor. Havia outros, entre a alta nobre-
za e o alto clero, a quem os reis concediam o privilégio de também assim serem trata-
dos. Além do rei, a quem se devia tratar por vossa majestade, também aqueles a quem a
provisão obrigava a tratar por vossa alteza e por excelência51 (ou seja, em resumo, os
chamados grandes do reino) tinham o direito de receber cartas e papéis com a invoca-
ção e o endereço de senhor. Todavia, os filhos e filhas legítimos dos infantes, aqueles a
quem a lei filipina obrigava que fossem tratados por excelência, além de poderem ser

49
Cf. CINTRA, 19862: 109-110. Itálicos da nossa responsabilidade, à excepção de V. Magestade. Segun-
do a Corte na Aldeia, publicado em 1619, «sobrescrito é uma notícia vulgar da pessoa a quem se escreve
e do lugar aonde lhe mandam a carta, exprimindo-se nele o nome e a dignidade por onde é mais conheci-
da, e o lugar onde naquele tempo assiste.» [LOBO, 1990: 90] Esta obra, segundo Maria Ema Tarracha
Ferreira, «obedece a um objectivo simultaneamente didáctico e social: estabelecer as características do
cortesão ou do discreto.» [Cf. LOBO, 1990: 50] A leitura da Corte ajudará a compreender as regras de
cortesia e alguns dos termos utilizados nas leis régias que procuravam regulamentá-la, regras e termos
que eram praticados e discutidos em Portugal, nos princípios de seiscentos, pouco tempo depois da publi-
cação da primeira pragmática, à qual, aliás, Lobo se refere: «- No sobrescritos temos pouco que tratar
(tornou Solino) que, depois que com a pragmática os cercearam, não há prezados, magníficos, honrados e
ilustríssimos, nem os senhores.» [Id.: 90]
50
Cf. CINTRA, 19862: 112.
51
Para se ver a quem Filipe II e João V obrigavam a tratar por alteza e excelência, cf. id.: 110 e 112-113,
respectivamente.
354

invocados, nas cartas, por senhor, também os sobrescritos lhes eram endereçados
assim: «Ao Senhor D. N. ou à Senhora D. N.»52
João V vai ser um pouco mais magnânimo. Além dos acima referidos, determina
que nos escritos os «Grandes Eclesiásticos e Seculares» fossem tratados, respectivamen-
te, por «Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor» e «Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor». Ficava, porém, interdito serem invocados por «Meu senhor, ou Senhor meu»
(reservados ao rei), proibição a observar também em relação aos Secretários de Estado e
a «todas as pessoas de qualquer qualidade.» E «aos Bispos que assistirem neste Reyno,
e não forem nomeados por mim, e aos Ministros da Santa Igreja Patriarchal de habito
Prelaticio», ordenava que se pusesse, nos papéis e sobrescritos, «o tratamento de Illus-
trissimo e Reverendissimo Senhor».53
Nem só o rei procurava fixar o tratamento de senhor. Também os principais filó-
logos de setecentos, em geral puristas da língua, se preocuparam com a correcção e
normativização dos seus usos, nomeadamente das FT’s dirigidas aos indivíduos de esta-
tuto político e social mais elevado. Regular o emprego das FT’s, segundo a categoria
social do destinatário era, por isso, também um processo de defesa da língua. Observa
Menéndez que «os filólogos portugueses setecentistas encontram-se preocupados em
estabelecer uma norma para a pureza e a legitimidade da língua portuguesa, de modo a
colocá-la no mesmo plano das outras línguas europeias, senão num plano superior
(sobretudo através da repetida evocação do estreito parentesco com o Latim).»54
Monte Carmelo foi um desses «puristas» que, no tocante às FT’s com senhor / a,
regista, cerca de trinta anos depois da lei joanina, como principais normas a cumprir,
para que se fale correctamente a Língua Portuguesa sem «abusos», o seguinte:

«13. Advirto, que o Prenome Senhor, e Senhora, só se-applicam aos Senhores Infantes,
e Senhoras Infantas aos naturaes, e reconhecidos Filhos, e Filhas de Rei, Principe, ou
Infante; aos Netos destes, se o Monarca lhes-faz a mercê deste Prenome Titular; e aos
Senhores de Terras, como o Senhor de Belmonte, Senhor de Pancas, &c. Tambem por
obsequiosa lembrança se-applica a algum Rei defunto, particularmente quando se-falla
com seus Descendentes, como v.g. o Senhor rei D. Joam // Joâm V. o Senhor Rei D.
Pedro, ou Senhor D. Joâm V. a ninguem mais se-applica este Prenome, ou Titulo, dian-
te das Magestades, ou Pessoas Reaes. Nunca se-diz Senhora Raînha, Senhor Principe,

52
Cf. id.: 110.
53
Cf. id.: 113.
54
MENÉNDEZ, 1997: 224.
355

Senhora Princêza, quando se-falla da Raînha, Principe, ou Princeza existentes; mas a


Raînha nossa Senhora; o Principe nosso Senhor; ou sómente a Raînha, o Prîncipe, a
Princeza. Quando se-falla com algum a respeito dos seus Consanguîneos, ou Consortes,
nam se-diz v.g. O Senhor seu pae, o Senhor seu irmâm, a Senhora sua filha, a Senhora
sua Esposa, &c. porque isto he por algum modo insinuar por escravo, ou escrava, a pes-
soa, a quem se-falla, e trata politicamente como Senhor, ou Senhora. Assim se-costume
na Corte; e nam o que disse hum rustico fallando ao Magnate da sua Aldêa, isto he: o
Senhor seu porco entrou hoje na minha horta, e comeu até dizer: Nam quero mais. Eu
estimei isto por ser coisa de V. Mercê. Costuma pois dizêr-se Seu páe, Seu irmám, Seu
filho, &c. O inferior, ou igual, que falla politicamente com seu Monarca, ou com pes-
soas principaes a respeito de consan guîneas, &c. se estas sam Reis, Principes, ou Titu-
lares, diz v.g. O senhor rei D. Joâm V, pae de Vossa Magestade, ou O Senhor Rei D.
Pedro, Avô de Vossa Magestade, ou A Fidelissima Raînha, Mâe de Vossa Magestade,
ou O Serenissimo Duque de Parma, sobrinho de Vossa Magestade, &c. e nunca se-dirá
v.g. O Pae, mãe, Sobrinho, &c. de Vossa Magestade, sem o epîtheto de Augustissimo,
Fidelissimo, ou Serenissimo; porque o contrario serîa demaziada confiança, ou proprio
de chocarreiros. E fallando politicamente com as outras pessoas referidas, diga v.g. A
Duqueza sua Mãe minha Senhora; A Condessa sua filha minha Senhora, &c. ou A
Senhora Marqueza; o Senhor Conde, seu Irmâm, &c. Se nâm tem Título, se-diz v.g. A
Senhora Dona Antonia minha Senho/ra, sua irmãa; ou A Senhora Dona Maria, sua
mãe, minha Senhora &c. Senam quer chamár-lhe Senhora, diga v.g. Sua filha, a Senho-
ra Dona Luiza; Sua mãe, a Senhora D. Jozefa, &c. de sorteque nunca diga juntamente
Senhor, e Seu; ou Senhora, e Sua; nem ainda Senhor Irmâm, &c. de V. Mercê, de V.
Senhoria, de V. Excellencia. Em fim os Prenomes Senhor, e Senhora, ou se-ham de
ajuntar aos Nomes sem respeito às pessoas, a quem se-falla; ou se-lhes hade ajuntar
Meu, Meus, ou Minha, minhas; porque assim he Móda. Pp. 11-12».55

É longa a citação, mas a sua transcrição justifica-se, em nosso entender, pelas


interessantes informações que fornece, a níveil linguístico e sociodiscursivo, relativa-
mente aos tratamentos e ao seu uso, na segunda metade do século XVIII. Tal interesse é
tanto maior quanto o autor era perito em gramática, tendo sido certamente por isso
nomeado «Deputado ordinário» da Real Mesa Censória («importante órgão de controle
da “inteligência” portuguesa», nas palavras de Menéndez), de que chegou a ser «Presi-

55
Cit. por MENÉNDEZ, 1997: 163-164. A citação, informa Menéndez, corresponde ao «ponto 13» do
parágrafo em que Carmelo trata, no Compendio de Orthografia, «Da Divisâm do Nome». [Cf. id.: 163]
356

dente Substituto». Além de «exemplo do pormenor normativo»56 que preocupava o


autor em relação ao uso da língua, Menéndez encontra também, neste excerto, vários
aspectos de interesse, destacando, por um lado, «a rigorosa gradação social que Carmelo
considera existir nas formas de tratamento» e, por outro, as «referências normativas ao
costume da Corte e à moda.»57 Além disso, considera que a preocupação do filólogo
com as formas de tratamento é também reflexo da necessidade de adequação de cada
discurso «à situação e ao interlocutor a que se destina», bem como «a sua cuidadosa
divisão da língua em níveis estilísticos.»58
É à volta da construção dos tratamentos com o «Prenome Senhor e Senhora»,
acompanhado ou não pelos possessivos seu e sua, que o carmelita desenvolve as suas
considerações. O excerto deixa entender, por um lado, a importância política e social do
tratamento de senhor / a e, por outro, a sua expansão no acompanhamento de outros
tratamentos. Consequência lógica de tal expansão reflectia-se nos usos incorrectos des-
ses tratamentos, ao nível da relação sintáctica e da referência semântico-pragmática,
como o exemplo anedótico do rústico mostra. Repare-se que o autor considera, implici-
tamente, haver uma espécie de contradição nos termos, quando se usa senhor / a segui-
do de seu/sua, «porque isto he por algum modo insinuar por escravo, ou escrava, a pes-
soa, a quem se-falla». São os valores semântico-pragmáticos, situados ao nível do eixo
taxémico, que encontramos nesta observação. Por outro lado, é simultaneamente ao
nível do eixo proxémico que se encontra a observação segundo a qual «seria demaziada
confiança, ou próprio de chocarreiros», um inferior ou igual não se referir aos parentes
dos grandes do reino com os títulos e os epítetos a que têm direito. Repare-se, por últi-
mo, que o autor regista, como norma, ser moda o uso de senhor(es) meu(s) e de senho-
ra(s) minha(s), em vez não só de senhor seu [...], ou senhora sua [...], mas também de
senhor(es) nosso(s) e senhora(s) nossa(s).
Pode-se dizer que a pragmática de D. João V e o Compêndio do frade Carmelo
se complementam: se a primeira determina politicamente os usos dos tratamentos, o
segundo prescreve-os gramaticalmente. Mas, como sempre, nem decretos nem gramáti-
cos conseguem fixar eternamente as regras a que devem obedecer os tratamentos. A
título de exemplo, recorde-se que os usos de fórmulas com a estrutura «O Senhor seu
[...]» ou «A Senhora sua [...]», criticados e corrigidos por Carmelo, não deixaram de

56
Id.: 163.
57
Id.: 164.
58
Id.: 167.
357

persistir. Aquilino Ribeiro, em Uma Luz ao Longe, novela com acção situável em finais
do século XIX, coloca na intervenção de Luís França, a seguinte referência (tratamento
delocutivo) à mãe de Amadeu, seu interlocutor:

« - O poldrinho não tem más manhas, não tem. Jurei-o ao Monge e à senhora sua mãe,
e mantenho a palavra, mas é preciso saber lidar com ele.»59

É possível que os valores semânticos de senhor/a e de seu/sua, no século XVIII,


não permitissem ainda compreender que tratar delocutivamente um progenitor com
recurso a FT’s de cortesia elevada é, por um lado, promover a face positiva do delocu-
tado e, por outro, a face negativa do alocutário. Os parentes fazem parte do «território»
de cada um.60
O tratamento de senhor, isolado ou acompanhado, percorre toda a História de
Portugal. Tratamento dirigido, de princípio, sobretudo ao rei e aos membros da família
real, depois, à alta nobreza e alto clero, o seu uso vai alargar-se progressivamente a um
número de pessoas cada vez maior, ao longo dos tempos. Actualmente, como se sabe,
usa-se frequentemente entre conhecidos (não próximos, excepto em casos especiais) e
desconhecidos, a par de você. Estas FT’s continuam, todavia, a expressar respeito do
locutor para com o(s) alocutário(s), sendo consideradas, por isso, de alguma cortesia.61
Além de ocorrer como FT isolada, senhor coocorre também acompanhando NPp
e/ou NAp, NPf ou TAc, TPl ou TCv, TMl ou TRl. Um desconhecido, porém, tratar
alguém por o senhor + NPp e/ou NAp pode ser considerado um tratamento menos cor-
tês, dada a proximidade abusiva que manifesta e/ou pretende estabelecer. Tivemos já
oportunidade de assistir a encontros em que um indivíduo se dirige a outro tratando-o
por (o) senhor NPp e este lhe ter ripostado Mas o senhor conhece-me de algum lado? É
que tratar alguém pelo NPp só é socialmente correcto (isto é, cortês), entre conhecidos e
próximos ou íntimos. Juntar, por isso, um tratamento de distância (senhor) a um trata-
mento de proximidade (NPp), quando o conhecimento entre ambos não é bilateral, ou
bilateralmente reconhecido, é misturar níveis diferentes de relação. É, no fundo, não ser

59
RIBEIRO, 1983a: 99. Itálicos da nossa responsabilidade.
60
Cf. GOFFMAN, 1973 (2): 52.
61
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 294.
358

cortês, ou seja, descortês.62 Mesmo quando o objectivo é estabelecer atendimentos ditos


personalizados que, todavia, nem todos estão dispostos a aceitar. Veja-se, a propósito, a
passagem seguinte, retirada duma crónica de José Barata-Feyo.
Conta o jornalista que, tendo perdido os números de telefone duma agenda elec-
trónica, procurou recuperá-los através de amigos, do 118 e das três redes de telemóveis.
O resultado prático, porém, foi «irrisório», diz, mas, em contrapartida, confessa que o
contacto foi «rico em ensinamentos no que respeita ao modo como os operadores de
telefones móveis tratam os seus clientes, reflectindo, certamente, a maneira como no
entender deles todos nós devíamos tratar-nos uns aos outros.» E relata:

«- Muito boa tarde, está a falar com o Fábio Bruno. Em que posso ajudá-lo? Explico que
preciso de saber qual o “puk” do meu telemóvel, omitindo vergonhosamente a minha
total ignorância sobre o que pode significar tão estrambólica palavra, mas enfim, já me
resignei a viver com e na dependência de palavras ou siglas que ultrapassam a pobreza
da língua portuguesa, a mesma que eu acho tão rica. O meu interlocutor pede-me o
nome e alguns dos números a que a administração moderna tende a reduzir o cidadão,
dá-me um pouco de música anglo-saxónica e regressa à linha: - Muito obrigado por ter
esperado, senhor José, faça o favor de tomar nota do seu “puk”...»

Comenta, de seguida, Barata-Feyo:

«Depois do “vossemecê” das aldeias, arcaico mas nosso, e o “senhor” ou “senhora” das
cidades terem sido arrasados pelo “você” das telenovelas brasileiras (que entre nós se
utilizava eminentemente nas estrebarias e nos quartéis), eis chegada a época do “senhor
José”, evolução semântica que, por mais que eu procure, só consigo explicar através do
“Sô Reinaldo” das mesmas telenovelas. Já é sina dos povos e das culturas a quem cas-
traram a personalidade!»

A crónica termina com o jornalista a comentar a informação duma amiga «espe-


cialista em publicidade de mercados», segundo a qual aquele tratamento é um «atendi-
mento personalizado, percebes?»

62
Sobre o problema do conhecimento e o tipo de relação que o uso dos nomes próprios e apelidos estabe-
lece, entre conhecidos e desconhecidos, ver PERRET, 1968. Sobre os valores semântico-pragmáticos dos
nomes próprios em textos (sobretudo) literários, ver GOUVARD, 1998: 56-98.
359

«Que não, que não percebo, antes pelo contrário, um tratamento assim parece-me incitar
à despersonalização, foi aliás isso mesmo que o maoismo fez em algumas regiões da
China, onde só agora começam a devolver às pessoas o direito a usar de novo o nome
de família. E depois em que é que o senhor José é atendido mais personalizadamente do
que o senhor Silva, visto que até deve haver mais senhores José que senhores Silva,
podes dizer-me? – Ora aí está! Não vês que já quase ninguém se trata por senhor Silva,
porque todos nos tratamos por senhor José?...»63
Convém notar, todavia, que se o tratamento de senhor / a se encontra hoje
degradado, face aos seus valores originais, em virtude da extensão do seu uso, este
mesmo fenómeno reflecte, por outro lado, segundo observa Delphine Perret, «une con-
ception capitaliste où tous les hommes peuvent devenir des “seigneurs”.»64

3.1. O senhor, pronome ?

Este fenómeno social tem as suas repercussões a nível linguístico. Ultimamente,


vem-se considerando o / a senhor / a uma forma pronominalizada e mesmo pronominal.
Cintra, começa por situá-lo no conjunto dos tratamentos nominais, mas observa, logo de
seguida, que é «o [tratamento nominal] mais pronominalizado de todos eles».65 Na
Nova Gramática, trabalho realizado em coautoria com Celso Cunha, é dado como pro-
nome de tratamento, a par de você e vossa excelência, definidos como «certas palavras e
locuções que valem por verdadeiros pronomes pessoais».66
Contrariando a definição e observação de Cintra, Eberhard Wilhelm é de opinião
que, se «visto com base num critério puramente semântico», esta FT tem «fortes carac-
terísticas duma expressão pronominal», mas que segundo um «critério formal, acompa-
nhando a linguística moderna, “o senhor” poderá já dificilmente ser considerado como
pronome.» Se é certo que, como observa, a forma serve para tratar «um empregado de
15 anos,67 em quem o superior certamente não vê um senhor como soberano, proprietá-

63
BARATA-FEYO, José Manuel: «O homem que não morde um cão / Crónica», Xis, n.º 4261, 17-11-01,
p. 7. No século XIX, Roquette recomendava aos filhos: «Por maior que seja a intimidade nada há que
desculpe o costume que muita gente tem de dizer: Sim, senhor Pedro; não, senhor Paulo... Quando tiver-
des grande confiança com algum homem, chamai-o pelo nome da pia; fóra d’isso dizei: o senhor, ou V.
Ex., V. S. [...]: assim fallão as gentes bem criadas.» [ROQUETTE, 18592: 84]
64
PERRET, 1968: 9.
65
CINTRA, 19862: 13.
66
Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 192 e 474.
67
Mesmo uma criança chega(va) a tratar outra, em relação à qual se sente inferior, por senhor. Em Uma
Luz ao Longe (1948), Amadeu, chegado ao colégio, enfrenta os novos colegas, cujas idades seriam idênti-
cas à sua. E a uma pergunta trocista dum deles, «- Não és da de riba?», respondeu: «- Não, senhor.».
360

rio, etc.», por outro lado, mesmo quando utilizada como FT, «tem comportamento de
sintagma nominal, constituído de artigo + substantivo».68 Todavia, o mesmo autor, mais
à frente, considera «o senhor, a senhora, o menino, a menina, a senhorita» como «nomes
de distância bastante pronominalizados da 3.ª pessoa do singular».69
A forma o / a senhor / a é empregue hoje com funções que a aproximam dos
valores referenciais que têm as FT pronominais que outrora foram nominais. A verdade,
porém, é que continua a haver gente que encontra nesta FT antigos valores caracteriza-
dores de «nobreza de alma». Repare-se no seguinte comentário de Isabel Stilwell, a
propósito da «raiva» que lhe causou «a indiferença» de certas pessoas que assistiram a
«um senhor tropeçar e estatelar-se mesmo no meio da rua»:

«Umas meninas dos seus 20 anos continuaram calmamente a comprar o passe no quios-
que da Carris e até o homem (ia chamar-lhe senhor, mas arrependi-me...) que esperava
a mudança de cor do “peão”, não saiu do sítio!»70

O problema da classificação de FT’s como o senhor (nominal, pronominal, pro-


pronome, pronominalizada?) não está ainda resolvido. Marques considera que o seu uso
tem de ser compreendido, «não apenas no âmbito do conceito gramatical tradicional de
“pessoa”, mas a partir de conceitos reflexos de interacção, de títulos e de formas de dis-
tância comunicativa, de fórmulas / formas de deferência e de delicadeza, decorrentes de
vários tipos de situações sociais.»71Carreira, por seu turno, diz ter encontrado a solução
num estudo de Hammermüller cuja tradução é, segundo a linguista portuguesa, «Será
que a forma de tratamento [FT] o senhor é um nome, um pronome ou antes um pro-
nome?»72). O estudioso alemão, baseando-se na distinção estabelecida por Bülher entre
«pronome (pessoal)» e função deíctica, defende que o que caracteriza as FT’s é uma

[RIBEIRO, 1983a: 31] Tratar um jovem por senhor pode até servir para ele tomar consciência de mudan-
ças na vida: «Rubens tinha cerca de catorze anos quando uma rapariguinha, que devia ter metade da idade
dele, o deteve na rua para lhe pedir! “O senhor importava-se de me dizer as horas?” Era a primeira vez
que uma desconhecida o tratava por senhor. Sentiu-se arrebatado e julgou ver abrir-se uma nova etapa na
sua vida.» [KUNDERA, M., 1990: A Imortalidade. Lisboa: Dom Quixote; p. 262]
68
WILHELM, 1979: 11.
69
Id.: 35 e 39. Recorde-se que Oliveira (Medeiros), como vimos acima, classifica o senhor e outras for-
mas nominais de tratamento como «pro-pronomes». [MEDEIROS, 1985: 41, ou, supra, cap. X, 2.]
70
Isabel Stilwell, «Que raiva que me faz a indiferença», Notícias Magazine, n.º 350, 07-02-99, p. 8. Itáli-
cos da nossa responsabilidade. Repare-se que a autora refere a pessoa que caiu por «senhor», termo que se
arrepende de utilizar em relação ao indivíduo do semáforo que ficou indiferente perante a queda, que por
isso não merece o tratamento delocutivo de «senhor», mas apenas de «homem».
71
MARQUES, 1995: 163-164.
72
HAMMERMÜLLER, 1993a. Tradução de Carreira. A indicação [FT] no título é da responsabilidade da
linguista. Cf. CARREIRA, 1995: 53.
361

relação de correferência, ao terem uma espécie de dupla referência, intra e extra-


discursiva, caracterização que se aplica a todas as FT’s de terceira pessoa, de que o
senhor é paradigma. Considerando-a inovadora «dans la littérature linguistique sur ce
sujet», Carreira observa que a proposta de Hammermüller «consiste à adopter un point
de vue de complémentarité et non pas d’opposition des classifications». Ou seja : «o
senhor […] est une forme nominale qui a une fonction déictique (o senhor) et défini-
toire (o/um senhor).» A linguista portuguesa sublinha a vantagem da relação entre as
componentes morfológica e semântica que, numa interpretação semântica (ao nível da
deixis e da definição), glosa do seguinte modo: «o senhor: voici à qui je parle + celui à
qui je parle est um senhor, d’où, o senhor à qui je parle.»73
Em nosso entender, nesta proposta de Hammermüller, encontram-se mecanis-
mos implícitos de relação anafórica. Ao tratar-se alguém por o senhor, mesmo que sai-
bamos que ele não é senhor de coisa nenhuma (bens, poder, aspecto), estamos a pressu-
por um pensamento (anterior), não formulado em discurso-texto, mas que pode ser
explicitado pela seguinte construção linguística: Aquele a quem me vou (ou estou) a
dirigir (penso que) é (ou desejo que seja) um senhor. Neste sentido, o / a senhor / a, um
SN definido, é uma retoma anafórica de um senhor, um SN indefinido, antecedente não
formulado, mas preconstruído (culturalmente). O chamado termo antecedente, segundo
uma perspectiva estritamente textual, não se encontra, de facto, introduzido no discurso
anterior, mas faz parte da memória que, numa dada situação de interacção, os interlocu-
tores aceitam e actualizam. Observa Kleiber:

«Il n’est […] plus besoin d’avoir un antécédent dans le texte pour que l’on parle
d’anaphore, le caractère saillant ou manifeste (ou encore accessible) du référent anapho-
rique pouvant provenir d’une autre source que le texte, à savoir la situation (perception
de la situation) et les inférences que l’on peut tirer du texte et/ou de la situation.»74

A FT o/a senhor/a concentra, neste sentido, um duplo valor: de deixis social, por
um lado, e de anafórico, por outro. De deixis, na medida em que designa aquele a quem
se fala. De anáfora, na medida em que, numa dada situação de comunicação, retoma e
correfere um termo antecedente implícito, não formulado no discurso-texto anterior,
mas culturalmente admitido, reconhecido.

73
CARREIRA, 1995: 54 e 54-55.
74
KLEIBER, 2001: 30.
362

3.2. «Minhas senhoras e meus senhores»

O / a senhor / a, além de anteceder os nomes e títulos acima referidos, ocorre


também precedida do determinante possessivo meu / minha, singular e plural, como
vocativo [meu(s) senhor(es) / minha(s) senhora(s)] e como sujeito ou objecto [o(s)
[meu(s)] senhor(es) / a(s) [minha(s)] senhora(s)]. Cabe observar, todavia, que a forma
meu senhor, no vocativo, como sujeito ou objecto, é menos frequente no Português
actual que a sua correspondente no feminino. A um destinatário adulto desconhecido
masculino trata-se por o senhor ou ó senhor, enquanto que um idêntico destinatário
feminino tanto pode ser tratado por a senhora e ó senhora (menos frequente), como por
a minha senhora e ó minha senhora (mais frequente). Porque expressam cortesia mais
elevada, as FT’s precedidas de possessivo são mais utilizadas em relação aos indivíduos
adultos do sexo feminino. Como se sabe, as senhoras continuam a ser o alvo prioritário
das manifestações de cortesia, cuja simples presença leva a certas restrições linguísticas.
Ainda se ouvem comentários como «Então isso diz-se diante duma senhora?» dirigidos
a quem profere, por exemplo, um palavrão. Recorde-se, por outro lado, a fórmula e a
sequência das FT’s com que, em ambientes formais (sessões mais ou menos solenes), os
oradores costumam dirigir-se a um auditório misto: «Minhas senhoras e meus senho-
res!». Só em contextos destes a fórmula meus senhores é, hoje, praticamente usada.
No quadro da cortesia linguística, as FT’s com senhor / a, tendo-se em conside-
ração apenas os seus valores semântico-pragmáticos, podem ser entendidas como valo-
rizadoras da(s) face(s) positiva(s) do(s) destinatário(s), integrando-se, por isso, no âmbi-
to da cortesia positiva. Quando acompanham a realização de FTA’s, integram-se no
âmbito da cortesia negativa, ao atenuarem as eventuais «lesões» desses actos.
As diferentes ocorrências de senhor / a, dando origem a outras tantas FT’s,
remetem, portanto, para níveis diferentes de cortesia, de acordo com o diassistema cul-
tural português. Assim, minha(s) senhora(s) e meu(s) senhor(es) são os tratamentos
mais corteses, isto é, aquelas que expressam (e por isso se situam n)um nível mais ele-
vado de cortesia, seguindo-se-lhes a(s) senhora(s) e o(s) senhor(es) e depois apenas
senhora(s) / senhor(es).

3.3. Valores interjectivos de senhor / a


363

Cabe aqui uma observação sobre o emprego (quase) interjectivo de senhor / a,


na sua forma afirmativa ou negativa, em ocorrências dialogais ou mesmo monologais.
Observa Basto que, como resposta a chamada ou pergunta, «usa-se na Beira,
Trás-os-Montes e Alentejo, nhôr, nhôra», acrescentando que «muitas vezes» é utilizada
a forma feminina, «mesmo que seja homem quem chama ou pergunta», inclusive a for-
ma plena senhora, cujo emprego, «para afirmar, negar, ou responder», diz ser «popu-
lar».75 Nestes casos, senhor / a, em sim senhor / a ou não senhor / a, funciona como
processo cortês de negação, de afirmação ou de confirmação do contacto, ainda que
intensificado, ocorrência que se aproxima dos valores de locução interjectiva.76
Nestes casos, ao utilizar a forma senhor(es) ou senhora(s), o locutor, por um
lado, não se dirige objectivamente ao(s) seu(s) alocutário(s) - por vezes parece dirigir-se
mais a si próprio - a tal ponto que, falando com um interlocutor do sexo masculino, uti-
liza senhora; outras vezes, falando com um interlocutor feminino, utiliza senhor; outras
ainda, falando a um só interlocutor, utiliza o plural, outras o singular, ou o inverso.
Além disso, encontra-se, por vezes, o emprego destes termos, em conversas de tutea-
mento simétrico ou assimétrico.

75
Cf. BASTO, 1931: 186-189. Por experiência própria, podemos testemunhar que, em freguesia rurais,
situadas a sul do concelho de Ponte de Lima, ainda hoje se usa nhôr / a e senhor / a, para se responder,
afirmativa ou negativamente, a pergunta, ou corresponder a chamamento, formulados por pessoa mais
velha e merecedora de respeito, seja familiar, conhecido ou desconhecido. Responder aos pais, avós, tios,
padrinhos, abade (aliás “Sôr’abade”, por Senhor Abade), professor(a), etc., independentemente do sexo,
não utilizando a fórmula, é falta de educação (de cortesia), porque não respeitador das distâncias, das
faces do outro. Por exemplo:

Pai: - David, foste tu que fizeste X?


Filho: - Não senhor(a)! / Sim senhor(a)!

Pai: - David! / Ó rapaz! (Chamamento)


Filho: - Nhôr(a)! / Senhor(a)!

Acontece, por vezes, que os pais, mesmo tendo ouvido a resposta, insistem na pergunta ou no chama-
mento, até que o/a filho/a lhes (cor)responda com a fórmula “educada”. Outras vezes, o / a filho / a é
advertido / a, explicitamente: «- Senhor/a, aprende!», ou «- Senhor/a!, que sou teu pai», ou «- Senhor/a!,
que não sou teu irmão!»
76
Basto também regista que «quando se diz sim senhor, não senhor, esta expressão corresponde a simples
sim e não», acrescentando que o povo «diz sim senhora sempre, quer se dirija a homens ou mulheres, - e
outras vezes sempre sim senhor!». E comenta: «A palavra “senhor” funde-se mentalmente em sim de tal
maneira que é vulgar o emprêgo de sim-senhor! como locução interjectiva», por exemplo, em «- Sim
senhor! Vocês estão bem criados!» [BASTO, 1914: 350]. Maçãs observa que «pelo muito uso, a forma
[Senhor / a] já não é sentida como título dirigido pessoalmente» e prova disso está «no facto de se empre-
gar sim senhora, não senhora dirigida a homem e não senhor, a mulher.» E noutro ponto, anota que, pelas
mesmas razões, senhor «perde o sentido primitivo e torna-se simples exclamação para chamar a atenção
sobre o ponto principal [do diálogo].» [MAÇÃS, 1976: 206 e 199, respectivamente.]
364

São evidentes, por outro lado, os valores dialógicos e polifónicos de tais expres-
sões. O locutor parece responder a perguntas, questões ou asserções implícitas, postas
por outro ou até por ele próprio.
Nem sempre será fácil, porém, reconhecer, sobretudo em textos escritos, se
senhor(es) ou senhora(s) têm (mais) função interjectiva que de tratamento, cortês ou
descortês. Aquilino Ribeiro utiliza, com relativa frequência, estas formas, as quais, em
nosso entender, umas vezes funcionam como FT’s e outras (mais) como interjeições.
Nestes casos, regra geral, o escritor tem o cuidado, por exemplo n’O Malhadinhas, de
não utilizar vírgula a separar a partícula do vocativo. Compare-se, por exemplo, os
seguintes fragmentos:

«Já os olhos de Rita se alegravam e me pareciam estorninhos a saltaricar num jardim.


Sim, senhores, não façam troça que, tê-la ali a ver-me como me via, se me não trouxe
ânimo – que tinha para dar e vender – trouxe-me sangue-frio e vontade para levar a bom
termo a desafronta que estivera magicando.»77

«Estávamos nós trincando o nosso migalho de pão com chouriça, chega o Fontinhas,
almocreve também como nós, com um rompante, Santíssimo Sacramento [...]! O
homem vai-se direito à estrebaria e deu de cara com os nossos machos. As argolas, que
lá lhe pareciam as melhores, estavam tomadas por eles, e em vez de se conformar, que
chegara depois de nós, não senhores, rompeu logo aos roncos.»78

No primeiro fragmento, o velho Malhadinhas, perante as dúvidas do auditório,


quanto ao agrado que a habilidade, no jogo do pau com o «fanfarrão» de Santa Eulália,
tinha despertado em Rita,79 reafirma a informação e convoca os ouvintes, objectivamen-
te, separando, por vírgula, a partícula afirmativa da FT: «Sim, senhores». Cabe observar,
todavia, que, neste caso, a partícula de reafirmação tem mais valor interjectivo, na
medida em que expressa (e intensifica) um sentimento pessoal que visa, ao mesmo tem-
po, convencer os ouvintes (e o leitor).80

77
RIBEIRO, 1989: 37. Itálicos da nossa responsabilidade.
78
Id.: 105. Itálicos da nossa responsabilidade.
79
Para recordar o episódio, cf. RIBEIRO, 1989: 33-42.
80
«Também se emprega como interjeição para reforçar o sentido de uma afirmativa», é uma das defini-
ções lexicais de sim [SILVA, 195710: 187] E sim é advérbio que também se usa, por um lado, para «anun-
ciar ou intensificar firmemente uma decisão, uma afirmação, podendo surgir no início ou no fim da frase»
e, por outro, «enfatizar uma realidade ou uma verdade». [DLPCACL, 2001 (vol. 2): 3414] O valor semân-
365

No segundo fragmento, a expressão «não senhores» tem valor sobretudo inter-


jectivo: o tio Malhadinhas não se dirige objectivamente aos ouvintes, procura apenas
manifestar o seu estado de espírito de desagrado e estranheza, perante o comportamento
afrontoso do outro almocreve.81 A vírgula, neste caso, é desnecessária. Aliás, uma pausa
aí colocada daria a entender que o narrador estaria a responder, como no primeiro frag-
mento, a uma reacção do auditório, interpretação que o co(n)texto não favorece.
A utilização de vírgula, a nível da expressão escrita, pode não ser suficientemen-
te determinante. No Romance da Raposa, encontramos duas ocorrências, uma separada
por vírgula e outra não, mas cujos valores interjectivos, de intensificação do discurso
anterior ou do discurso posterior, são os que em ambos os casos se revelam:

«- O mundo vai mal! O mundo vai mal! - emitiu o raposão em tom pessimista. - Quem
houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho...
Sim, senhora! Hoje em dia, assaltar uma capoeira é um problema difícil de matemáti-
ca...»82

«- Não sou mudo, não senhora - respondeu o laparoto, todo lépido. - Minha mãe é que
me mandou estar calado, senão, que vinham lá as feras e comiam-me. Sabe vosseme-
cê!?»83

No primeiro fragmento, o raposo, estando presente também a “mulher”, dirige-se


à Salta-Pocinhas, a quem trata por tu. Prevenindo a filha, prestes a ter de abandonar a
“casa” paterna, das dificuldades que iria encontrar na vida, o velho raposo diz «Sim,
senhora!». Desta vez, o autor utiliza a vírgula, mas a expressão é mais uma forma do
raposo intensificar e reafirmar a advertência e o seu pessimismo.84 Neste co(n)texto,
«Sim, senhor/ a!» funciona ainda, além de valor interjectivo, como paráfrase explicati-
va, sendo facilmente substituível por isto é, ou seja, quero dizer, ou porque, como se vê:

«- O mundo vai mal! O mundo vai mal! - emitiu o raposão em tom pessimista. - Quem
houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho...

tico-pragmático de sim pode situá-lo, também, na subclasse dos advérbios de realce, de que falam, bre-
vemente, CUNHA & CINTRA, 1984: 548.
81
Para recordar o episódio, cf. RIBEIRO, 1989: 105-111.
82
RIBEIRO, 1961: 15-16. Itálicos da nossa responsabilidade.
83
Id.: 94. Itálicos da nossa responsabilidade.
84
Para recordar o diálogo, cf. id.: 14-18.
366

isto é /ou seja / quero dizer / porque, hoje em dia, assaltar uma capoeira é um problema
difícil de matemática...»

No segundo fragmento, é um coelhinho que reage à ofensa e desafio da Salta-


-Pocinhas. A expressão «não senhora» é uma clara intensificação interjectiva da dene-
gação feita, assim respondendo à provocação da senhora de muita treta, segundo a qual
era mudinho, o láparo, agachado entre penedos, onde ela não podia chegar o dente.85
Veja-se, agora, um exemplo, construído por Bruto da Costa. À pergunta da jor-
nalista Catarina Pires se «o limiar de pobreza não é diferente nos países industrializados
e nos países em vias de desenvolvimento», responde:

«Algumas organizações internacionais, por razões de mera facilidade metodológica,


convencionaram que pobreza num país pobre seria ter menos que um dólar por dia. Mas
isso não tem qualquer base científica, é uma convenção. Um dólar – duzentos escudos –
por dia, veja o que dá. E em relação a esta questão também é preciso muito cuidado.
Sim senhor, o limiar de pobreza para um país pobre pode não ser exactamente igual ao
de um país rico, mas isso pode levar a colocar baixo demais o limiar de pobreza nos
países pobres, como se estes não tivessem o mesmo direito de dignidade humana que os
países ricos.»86

Também aqui, além de valor interjectivo e fático (e enfático) de convocação do


interlocutor para o discurso e de reforço, neste caso, do segmento discursivo-textual
imediatamente anterior («E em relação a esta questão também é preciso muito cuida-
do.»), também neste «Sim senhor» (dirigido a um alocutário do sexo feminino, repare-
-se) podemos encontrar valores de paráfrase explicativa. Bruto da Costa reformula o que
disse, explicando o cuidado que se deve ter na análise da questão do que é limiar de
pobreza. Ou seja, é preciso ter (também aqui) em atenção os contextos políticos, cultu-
rais, sociais e económicos de cada um dos países pobres. E mais uma vez, o valor poli-
fónico da fórmula se manifesta.
«Sim senhor / a!» e «não senhor / a!», como locuções interjectivas, servem ain-
da para manifestarmos, respectivamente, admiração ou aprovação, e desgosto ou repro-
vação, perante actos ou comportamentos (verbais ou físicos) de outros e até de nós pró-

85
Para recordar o diálogo, cf. id.: 93-96.
86
Notícias Magazine, n.º 487, 23/09/01, p. 11. (Itálicos da nossa responsabilidade.)
367

prios, tendo, nestes últimos casos, valores irónicos, como em «Fizeste-la boa, sim
senhor / a!» e «Não me admira nada, não senhor / a!»
Nestes casos, senhor / a perde os seus valores semântico-pragmáticos de trata-
mento propriamente dito, para se tornar sobretudo numa fórmula fática e enfática que
expressa estados de espírito (emoções e sentimentos de natureza positiva ou negativa)
perante os comportamentos dos homens ou mesmo de animais, nossos directos interlo-
cutores ou não. Quanto aos animais, já ouvimos alguém proferir, num desfile de gado
bovino, em feira rural, sem se dirigir especificamente a ninguém: «- Sim senhora! Belos
animais!»

3.4. Seu/sua, formas reduzidas de senhor/a, ou possessivos?

As FT’s senhor / a encontram-se, na Língua Portuguesa, em Portugal como nos


restantes países lusófonos, sob forma reduzida, nomeadamente através das formas abre-
viadas seu e sua, respectivamente. Acontece, porém, que estas mesmas formas, como
determinantes possessivos, constituem FT’s complexas nominais.
O aparecimento de seu(s), sua(s) em FT’s complexas, no sistema de tratamento
português, deu-se, segundo observa Luz, na segunda metade do séc. XV, quando a ter-
ceira pessoa do singular, dirigida à segunda pessoa do discurso, se consolidou, no tra-
tamento do rei. Nos princípios do século seguinte, porém, firma-se o seu «prestígio»,
com a substituição de vossa alteza por sua alteza.87
Lobo, na Corte na Aldeia, ridiculariza, todavia, tal substituição.88 No «Diálogo
II / Da polícia e estilo das cartas missivas» - encontra-se a referência ao emprego de seu
e sua, nos tratamentos. Apesar de longa, vale a pena transcrever a passagem, por mos-
trar também como a cortesia era, nos princípios de seiscentos, não só uma aprendizagem
de saber con-viver e con-versar (também oralmente, embora o diálogo gire em torno das
cartas), sem excessos nem defeitos. Recorde-se que esta obra foi publicada em 1619,
isto é, cerca de vinte anos depois da pragmática de Filipe II que determinava como se
devia falar e escrever.89 O Doutor Lívio, D. Júlio, Píndaro, Solino e Leonardo conver-

87
LUZ, 1956: 359. Cf., também, id.: 304-306. A autora anota ainda: «Ao lado das fórmulas vossa mercê,
vossa senhoria e vossa alteza, foram usadas também no período medieval [...], as fórmulas sua mercê,
sua senhoria e sua alteza, em referências ao rei.» [Id.: 356]
88
Tal crítica relativamente ao uso de seu/sua, como expressão de cortesia, parece ter durado até há bem
pouco tempo. Luz comenta: «Ainda hoje [1956], no tratamento cerimonioso, e mesmo meio cerimonioso,
evita-se com cuidado o emprego de seu, sua.» [Id.: 306]
89
Cf. CINTRA, 19862: 109.
368

sam, sobre «o que há-de ter uma carta para ser cortesã e bem escrita.»90 A dada altura,
D. Júlio pede a Leonardo:
«- E, tornando à cortesia [das cartas missivas], que cousas tem mais de que tratar?
- A terceira (tornou ele), é o nome e sinal do que escreveu a carta, que nem há-de
estar tão junto das letras que pareça sôfrego delas, nem no meio do papel como quem
escolheu melhor lugar, nem tão apartado que fique ausente das regras, nem tanto na
ponta do fim que pareça que se amuou àquele canto; mas com um meio ordinário, como
é assinar-se um pouco abaixo das regras, mais inclinado à parte direita que à esquerda,
que é uma certa modéstia e humildade de quem escreve.
- E que dizeis (perguntou o Doutor) do acompanhamento do sinal? Porque há uns
que se nomeiam servidor da vossa mercê N., outros, vassalos; outros, cativo; outros,
seu N., e há nisto muita variedade e ignorância.
- Primeiramente (continuou Leonardo) servidor já se passou das cartas para os
retretes; servo, para os matos, e cativo, para os cumprimentos refinados em a prática;
criado, era termo bem criado, e seu é descortesia; e por fugir desta, e de alguns extre-
mos, o mais seguro é escrever cada um o seu nome sem mais leitura.
- Não sejais tão estreito nas licenças (disse Solino) que deitais a perder cartas que só
pelos cumprimentos do sinal merecem fama. Um homem, escrevendo a sua própria
mulher, se assinou vosso servo N., e ela o fazia tal na mesma ausência. O outro, de que
contam vulgarmente porque corria nos sinais o menor criado de vossa mercê N., escre-
vendo a sua mulher se assinou o menor marido vosso N., e a senhora devia de ter mais
varões que a Samaritana.
- De uma gentil dama sei eu (disse Píndaro) que, escrevendo a um seu galante, se
assinou sua N., e ele, lendo a carta, voltou para um amigo com que estava, e disse: Sem-
pre temi esta nova; e perguntando-lhe o outro que era? respondeu: Sua N., e é princípio
de Verão.91 Outro, em Coimbra, querendo-se humilhar muito aos pés de um amigo a
que escrevia, se assinou Antípoda de vossa mercê N.

90
LOBO, 1990: 88. O escritor apresenta e caracteriza estas personagens, no «Diálogo I / Argumento de
toda a obra»: «Entre outros homens que naquela companhia se achavam eram nela mais costumados, em
anoitecendo, um Letrado que ali tinha um casal e que já tivera honrados cargos de governo da justiça na
Cidade, homem prudente, concertado na vida, Doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade;
um Fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria, em cujas histó-
rias estava bem visto; um Estudante de bom engenho, que, entre os seus estudos, se empregava algumas
vezes nos da poesia; um velho não muito rico, que tinha servido a um dos Grandes da Corte, com cujo
galardão se reparara naquele lugar, homem de boa criação, e, além de bem entendido, notavelmente
engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar
ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao Doutor, Lívio, ao Fidalgo, D. Júlio, ao
Estudante, Píndaro, ao velho, Solino.» [Id.: 73-74]
91
Luz refere-se, apenas, a este trocadilho semântico entre «sua», pronome possessivo de deferência, e
«sua», forma do verbo «suar». [Cf. LUZ, 1956: 306]
369

- Quanto mais galantes são essas histórias (tornou Leonardo) tanto mais de estimar
é a moderação e bom termo de não sair daquele limite da cortesia comum».92

Basto observava, em 1931, a propósito da FT vossa excelência, que «o povo diz


muitas vezes Sua: Sua Incelência (ou Inçulência)», explicando que tal emprego «não é
só influência de se dizer Sua quando se fala de terceira pessoa, mas ainda influência de
se tratar a pessoa com quem se fala, como se fosse terceira.» E acrescenta que, «em
circunstâncias excepcionais – por ironia, geralmente –, se emprega Sua, por Vossa»,
quando, por exemplo, um pai, zangado com o filho, lhe fala assim: «Sua Excelência há
de ter muito que fazer lá por fora, para não estar a horas em casa!» Segundo o autor, o
pai manifesta, desta forma, a sua irritação perante o comportamento do filho, de duas
maneiras: «1.º, por não tratar o filho por tu e lhe dar, irònicamente, o mais elevado tra-
tamento (Excelência); 2.º, por se lhe dirigir indirectamente, usando Sua, e não Vossa,
como se estivesse a falar, não a êle, mas dêle». Explicando, observa que, assim, se torna
mais saliente «a ironia do tratamento, pois quando se diz Sua Excelência de alguma
pessoa “ausente”, é porque essa pessoa é da mais alta categoria, e respeitabilíssima.»
Tratar, por isso, «uma criatura por forma muito mais elevada do que à sua categoria (ou
à intimidade havida) compete, é sinal de contundente ironia.»93 Se não for também des-
cortesia, acrescente-se.
Há, porém, quem não interprete o emprego de seu(s) / sua(s), como possessivos
que substituem as FT’s pronominais vosso(s) / vossa(s). Cunha & Cintra registam que,
apesar de se referirem à 3.ª pessoa, aquela de quem falamos, FT’s como sua alteza, sua
eminência, etc. podem empregar-se dirigidas à 2.ª pessoa, «como expressão de máxima

92
LOBO, 1990: 94. Para um estudo, segundo a perspectiva da análise conversacional, do «Diálogo I», da
Corte na Aldeia, ver FONSECA (J.), 1996. Recorde-se também a observação de Frei Luís do Monte
Carmelo, supra, 3.4., a propósito das formas senhor/a mais seu/sua.
93
BASTO, 1931: 183-184. «Usando-se Você por tu, ou o Senhor por Você, isto é, tratamento imediata-
mente superior ao habitual, há irritação, ou censura, mas em regra não há ironia», acrescenta o autor. [Id.:
184] A propósito da distinção entre «seu “dêle”» e «seu “de Você”» e da ambiguidade referencial que
pode gerar, o autor transcreve o seguinte diálogo camiliano:
«- Hontem á tarde foi o senhor procurado por um sujeito bem parecido e aceado. Disse-lhe que o
senhor estava na Foz, e elle mostrou pezar de o não achar. [...]
- Como se chama? – atalhei.
- Theotonio José de Sousa.
Meditei, e disse á senhora:
- Não sei quem é.
- De certo não sabe. Pediu um banho, tomou chá, e recolheu-se ao seu quarto.
- Ao meu?!
- Não senhor, ao d’êlle ...» [Cf. BASTO, 1927: 202.] O excerto de Camilo é retirado de Memórias do
Cárcere, I, pp. 180-181. Repare-se na fórmula com valor interjectivo - «Não senhor» - através da qual «a
senhora» intensifica a negação e mostra o seu espanto perante a pergunta do interlocutor.
370

cerimónia, mormente quando seguidas de aposto que contenha um título determinado


por artigo.» Por exemplo, em «Sua Excelência, o Senhor Ministro, aprova a medi-
da?»94 Consideram, por outro lado, que, anteposta a um nome próprio, senhor assume,
na linguagem corrente de Portugal (e principalmente do Brasil), a forma seu. Por exem-
plo, em «- Seu Malhadas, seu Malhadas, fosse você cavalheiro, não aceitava o meu
copo!» e «- Seu Firmino, o senhor duvida da minha palavra? / - Deus me livre, seu
Alexandre. Quem é que duvida?» 95
Como formas também reduzidas, respectivamente, de senhor / a, interpreta
Bechara os empregos de seu e sua. Defende este gramático brasileiro que, em frases
como «Qual cansadas, seu Antoninho!» e «Ande, seu diplomático, continue», seu «não
é, como parece a alguns estudiosos, a forma possessiva de 3.ª pessoa do singular», mas
«uma redução», que «admite ainda as variantes seo, sô», do «termo nobre, senhor»,
formas abreviadas que assim traduzem «nossa familiaridade ou depreciação». Além
destes «valores afectivos», como os classifica, Bechara observa ainda que «fingido res-
peito ou cortesia – bem entendido, aliás, pelos presentes – pode determinar a presença
da forma plena» de senhor/a, como em «Diga, senhora mosca-morta?», acrescentando
que a forma feminina sua foi modelada pela forma abreviada seu, dando, para o efeito, o
seguinte exemplo: «E ri-se você, sua atrevida?!- exclamou o moleiro, voltando-se para
Perpétua Rosa».96
Formas abreviadas de senhor / a, em Português europeu, a nível oral e popular,
são ainda «siôr (siôra), siô, sôr (sôra), sô» e ainda «ser (= s’r’)», registadas por Basto.
A última forma, na região de Entre-Douro-e-Minho, pelo menos, mas só antes de vogal
(ou h) (v.g., «“ser’António”, “ser’Ana”, “ser’Henrique”»), porque, antes de consoante,
reduz-se a se (v.g., «“Se Francisco”, “se Doutor”, “se Dona Maria”...») E o autor conta,
94
CUNHA & CINTRA, 1984: 293.
95
Id.: 296. O primeiro exemplo colheram-no os autores n’O Malhadinhas (p. 67) e o segundo em Alexan-
dre e outro heróis (p. 111), de Graciliano Ramos.
96
BECHARA, 200137: 184. As frases foram colhidas pelo autor, segundo a ordem da sua apresentação,
em: Lima Barreto, 1915: Triste Fim de Policarpo Quaresma; Machado de Assis, 1899: Memórias Póstu-
mas de Brás Cubas; Lima Barreto, id., e Alexandre Herculano, 1876: Lendas e Narrativas. Os principais
dicionários portugueses e brasileiros registam outras formas reduzidas de senhor e sobretudo senhora,
bem como definições interessantes destes termos, enquanto FT’s. A título de exemplo, vejam-se as do
Dicionário Morais, por mais completas. Para senhor: «Título honorífico de alguns monarcas», «Título
que [antigamente] se conferia a pessoas distintas, já pela sua posição, já pela dignidade de que estavam
investidas», «Título de nobreza de alguns fidalgos», «Título dado por cortesia a qualquer homem a quem
se fala, mas cujo nome se não cita ou se ignora», «Tratamento entre pessoas que se não tratam por tu, nem
por você», «Título dado por cortesia a qualquer homem a quem se fala ou a quem se escreve», «Trata-
mento de criados para os amos» [SILVA, 195710: 51-52] E para senhora: «Tratamento que se dá por
cortesia às damas seguido do adjectivo possessivo minha», forma que se diz também «em geral das
mulheres em boa ou modesta posição social», e «Tratamento dado a qualquer mulher a quem se fala ou se
escreve». [SILVA, 195710 (vol. 10): 53-54].
371

como ilustração, um diálogo ouvido em Contumil (Porto), a propósito de Sebastião,


nome próprio de rapaz que outro tratava apenas por Bastião. Advertido de que não era
Bastião, mas Sebastião a forma correcta, retorquiu o rapaz: «- Êle não é senhor.»97
Há, todavia, quem considere que seu / sua são apenas determinantes possessivos,
por um lado, ora formas contraídas de senhor / a, por outro. O Dicionário Morais regis-
ta seu como abreviatura de senhor, com exemplos colhidos em textos literários de auto-
res brasileiros.98 Refere, contudo, que se usa, «muito frequentemente [como possessivo]
por vosso quando se fala com alguém a quem não se trata por tu.»99 Não regista, porém,
que sua seja forma abreviada de senhora, mas observa que, como possessivo, serve,
entre outras funções, «para reforçar insultos», como em «Então, sua palerma, é assim
que se bota sentido num herói»100 Além disso, anota que sua e suas são formas «da
segunda pessoa, no caso do possuidor ser a pessoa com quem se fala, e não recebe, da
parte de quem fala, o tratamento de tu».101
O DLPCACL define seu e sua como possessivos relativos à terceira pessoa gra-
matical, «quer se trate da pessoa de que se fala», parafraseáveis, neste caso, por, respec-
tivamente, dele e dela, quer se trate da pessoa a quem é dirigida a mensagem, no trata-
mento formal por «o senhor», «a senhora», ou no tratamento por você. Acrescenta,
depois, que estas formas são também usadas «em apóstrofes para interpelar pessoas,
acentuando ideia de reprovação e sarcasmo», como em «Ó seu idiota! Ó sua besta!»102
O Dicionário Aurélio, por seu turno, regista, como primeira acepção de seu e
sua, que se trata de substantivos, que são equivalentes, respectivamente, a senhor e
senhora, «vindo claro o nome da pessoa, ou outro axiônimo, ou palavra designativa de
profissão, etc.», como em «Seu Acrísio», «seu doutor», «seu sargento» e «seu moço».103
Dá uma segunda definição de seu: «Com a mesma equivalência, (podendo envolver
desdém, desprezo, ou, ao contrário, simpatia, camaradagem, ou, ainda, malícia), usa-se
seguido de algum substantivo, ou em fim de frase ou período, tendo, neste último caso,
um matiz interjetivo».104 Exemplos: «Ele sorriu maliciosamente, e disse-me : - Seu

97
BASTO, 1931: 188. Para outras FT’s reduzidas de senhor e senhora (sê, senhozinho, sô, sor, sinhã ,
sinha, siá, sai, senha, sora, etc.) cf. DLPCACL, 2001; FERREIRA, 19862; FIGUEIREDO, 1985.15
98
Cf. SILVA, 195710 (vol. 10): 150.
99
Cf. id.: 149.
100
O exemplo foi colhido pelo autor em Macunaíma, de Mário de Andrade.
101
Cf. SILVA, 195710 (vol. 10): 416.
102
DLPCACL, 2001 (vol. 2): 3405.
103
FERREIRA, 19862: 1579. Os dois primeiros exemplos são colhidos em textos literários, respectiva-
mente, Infância de Graciliano Ramos e Contos Vários de José Carlos Cavalcanti Borges. Citámos, ape-
nas, as FT’s.
104
Id.: 1579-1580 e, para sua, id.: 1617.
372

maganão! Recordações do passado, hem?», «Dormiu, seu preguiçoso?», «- Mas parece


que o moço tinha razão de matar a moça. / Qual tinha razão nada, seu! Bandido!» e
«Que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa!»105
Em nosso entender, as formas seu e sua ocorrem, em Português europeu con-
temporâneo, quer como forma contraída de senhor / a (sobretudo a nível oral e popular),
quer como determinante possessivo. É este, em geral, o valor predominante, ainda que,
por vezes, nem sempre seja fácil decidir se se trata, de facto, de possessivo que acompa-
nha FT, ou de FT que acompanha outra FT, uma vez que a sua ocorrência isolada não se
verifica, a não ser em frases elípticas, como em «ó seu...», com objectivo mais ou
menos insultuoso. Por exemplo, sua bruxa, em «Você nem disse nada, sua bruxa!», sua
é determinante possessivo ou forma reduzida de senhora?
A análise de seu / sua, ao nível das FT’s, deve ter em consideração os valores
semântico-pragmáticos que, ao longo do tempo, aquelas formas foram tendo. Vimos já
como elas entraram nos tratamentos de Portugal e a sua aceitação e expansão, com
maior ou menor resistência. Quando foram introduzidas, seu / sua eram, evidentemente,
possessivos e marcavam, ao acompanharem tratamentos como mercê, alteza, senhoria,
senhor / a, em situação interlocutiva assimétrica ou simétrica, uma maior relação de
cortesia ou deferência. O destinatário passou a ser tratado indirectamente, pela terceira
pessoa, estabelecendo-se assim uma relação de maior distanciamento e de respeito entre
quem fala ou escreve e quem recebe o tratamento, tanto a nível proxémico (em caso de
simetria), como taxémico (em caso de assimetria).106 Todavia, a «qualidade individuali-
zada» dirigida aos interlocutores, através de um ou mais «substantivos abstractos hono-
ríficos»,107 continua a ser algo «que lhes cabe ou pertence», com a qual mantêm «uma
relação de posse ou pertinência, real ou figurada»,108 e que eles, explícita ou/e implici-
tamente, prezam e estimam, em virtude da figuração e preservação das faces a que têm
socialmente direito.

105
Os exemplos foram recolhidos pelo autor, respectivamente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, Maria Isabel, de Lúcia Benedetti, Novelas Paulistanas, de Antônio de Alcântara
Machado e O Jardim Selvagem, de Lígia Fagundes Teles. O último exemplo ilustra o emprego de sua,
cuja entrada se encontra na p. 1617.
106
Embora referindo-se aos requerimentos, observa Lapa que o emprego da terceira pessoa, em vez do
«orgulhoso eu», é «um processo de retenção social, de cortesia, atenuação imposta pelo próprio interesse
e pela vida em comum.» [LAPA. 19758: 153]
107
LUZ, 1956: 335. Recorde-se que, como vimos supra, Carmelo vê, na segunda metade do século
XVIII, na estrutura de tratamento o/a Senhor/a seu/sua ..., uma insinuação de escravatura do alocutário
em relação a um terceiro que lhe seja familiar próximo.
108
CUNHA & CINTRA, 1984: 318 e 323.
373

Nestes casos, os possessivos seu / sua acentuam «matizes afectivos» que, con-
soante o co(n)texto, podem ser «de deferência, de respeito, de polidez»,109 se o trata-
mento que acompanham estiver orientado para a valorização da face positiva do interlo-
cutor, directo ou apenas delocutário, num dado co(n)texto de interacção verbal. É que,
além destes valores afectivos de orientação positiva (que poderemos situar, considera-
dos isoladamente, no conjunto dos FFA’s propostos por Kerbrat-Orecchioni), os posses-
sivos seu e sua podem expressar, pelo contrário, valores «de ironia, de malícia, de sar-
casmo»,110 ou «forte sentido recriminativo».111 Visam lesar, nestes casos, com maior ou
menor profundidade, a face positiva (e, por vezes, a negativa) do referente, interlocutor
de facto ou simples delocutário. Tratar-se-á, então, de tratamentos complexos (ou locu-
ções de tratamento) que se podem inscrever no âmbito dos FTA’s.

3.5. Senhor/a, dom/dona como insultos

Convirá, distinguir, a este nível, entre tratamentos irónicos positivos, tratamentos


irónicos negativos e tratamentos objectivamente insultuosos (ou simplesmente insultos).
Vimos acima, referido por Basto, um tratamento irónico negativo, quando o pai trata o
filho por «Sua Excelência», ao repreendê-lo por chegar tarde a casa. Esta estratégia de
pseudocortesia não é nova, entre os portugueses, nem, certamente, noutros povos e cul-
turas. Quanto a Portugal, observa Luz que empregar «fórmulas supercerimoniosas», em
relação a uma pessoa, «é, de certo modo, ridicularizá-la, visto que se põe em evidência a
sua condição de inferioridade», como era o caso, no Português arcaico, do emprego
(irónico) de dom e dona, senhor / a, e mesmo títulos nobiliárquicos e outros tratamen-
tos corteses, associados a uma palavra ou a uma expressão que os tornassem despropo-
sitados. Colhidos em textos teatrais do séc. XVI, a autora regista os tratamentos de dom
ou dum e dona ou duna com nomes de animais, como «dom perro», «dum filho
d’aranha morta», «dom cabrão», «dona cegonha esfolada», «dona bugia», «dũa gaze-

109
CUNHA & CINTRA, 1984: 324. Estes autores referem-se aos valores afectivos dos possessivos em
geral, ainda que, nos exemplos (literários) apresentados, apenas se encontrem possessivos de primeira
pessoa do singular. A nosso ver, porém, tais valores encontram-se sobretudo nos possessivos de terceira
pessoa, uma vez que os de primeira acrescentam valores «de intimidade, de amizade» e «de simpatia»,
também referidos e exemplificados pelos autores. A este respeito, é de recordar o tratamento, vocativo ou
não, de «Ó meu», nos tempos actuais, entre adolescentes e jovens. Bechara também refere que, além de
«exprimir a idéia de posse», o possessivo adquire também «variados matizes contextuais de sentido», de
que destaca «simpatia [...], afeto, cortesia, deferência, submissão». [BECHARA, 200137: 183 e 184]
110
CUNHA & CINTRA, 1984: 325.
111
LAPA, 19758: 162. Lapa anota, por outro lado, que o possessivo pode exprimir, também, «certa malí-
cia e ironia familiares». [Id.: 162]
374

la». Mas também associados a «substantivos ou adjectivos injuriosos», como «dom


ladrão», «dom villão», «dom alcoviteirinho», «dum falso», «dom tredo», «duna mà»,
«dona torta», «dona sicrana», «dom rosto de funil», «dum miolo de cabaça».112 O tra-
tamento de senhor, segundo refere a autora, destronou, depois, o tratamento de dom,
«como prenome irónico e insultuoso».113 Servindo-se, ainda, de textos teatrais do séc.
XVI, regista «senhor tartarugo», «senhor madraça» e «senhor ladrão».114 Quanto aos
possessivos, usados na primeira, segunda ou terceira pessoas, anota que tais formas
também foram utilizadas, no Português arcaico, com idênticos fins, tendo sido criadas
FT’s depreciativas, à semelhança das verdadeiras, com um substantivo abstracto, como
«vossa doçura», «sua velhacaria», «minha mercê», entre outras.
Não pudemos analisar, diacronicamente, os diferentes usos de seu e sua, nos
seus valores de forma reduzida de senhor / a, como determinante possessivo, ou ainda
como simples exortativo, com maior ou menor valor interjectivo e insultuoso. Cremos,
contudo, que no Português europeu actual, além das fórmulas consagradas e formais, de
maior ou menor cortesia, acima referidas (ironicamente formuladas ou não, como sua
excelência, seu Gomes, ser António, se Joaquina, etc.), é sobretudo como determinantes
possessivos que seu e sua ocorrem, como adjuntos pronominais de nomes115 comuns ou
abstractos, nomeadamente de afecto, favorável ou desfavoravelmente orientados para as
faces positiva e/ou negativa do(s) interlocutor(es).

Se nem sempre será fácil distinguir, a nível gramatical, se estamos perante uma
redução de senhor / a ou um possessivo, cremos que, a nível pragmático, isto é, ao nível
das relações interlocutivas e interpessoais estabelecidas ou a estabelecer em co(n)textos
concretos de interacção, seu e sua, mesmo quando substituíveis por senhor ou senhora,
não deixam de marcar também o valor de propriedade positiva ou negativa que, real ou
ironicamente, pertence ou é atribuída ao(s) destinatário(s). Estes valores são mais facil-
mente reconhecidos nas locuções insultuososas. Por exemplo, tratar alguém por seu/sua
estúpido/a, embora possa ser parafraseável, por senhor/a estúpido/a, serve melhor o
objectivo de intensificação da propriedade negativa (o insulto) e assim atingir mais gra-

112
Cf. LUZ, 1958-59: 89-91.
113
Id.: 94.
114
Id.: 91. Nas cantigas de escárnio e maldizer dos cancioneiros medievais galego-por-tugueses já se
encontram muitos tratamentos irónicos, jocosos e insultuosos. Cf. LAPA, 19702.
115
Podem ser utilizadas também formas que o léxico classifica como adjectivos, mas que nestes
co(n)textos passam a nomes.
375

vemente a(s) face(s) do interlocutor. Aliás, estas formas são mais facilmente parafraseá-
veis por meu/minha .... do que por senhor/a.

4. Vossa senhoria e vossa excelência

A história destes tratamentos corre a par, ainda que vossa senhoria tenha come-
çado a ser utilizada primeiro. Terão entrado no sistema português, a partir dos meados
do séc. XV, como tratamentos dirigidos apenas ao rei.116 Começaram como FT’s nomi-
nais, dado serem caracterizadoras, por expressarem «traços concretos e individualiza-
dores»117 do destinatário. Não admira, por isso, que, face ao prestígio alcançado, tantos
tivessem lutado por receber, como títulos, tais tratamentos.
Vossa senhoria é utilizada, no tratamento régio, para isolar, como substância,
«uma das qualidades que se atribuíam à realeza: [...] a “senhoria”, isto é, o “senhorio”,
dito à italiana».118 Esta FT degradou-se, porém, muito rapidamente, ao ser usada, pri-
meiro, pela e entre a nobreza, bem como, depois, pela e entre a alta burguesia. O prestí-
gio que concedia era tal que se tornou «numa aspiração» daqueles que queriam «subir
na escala social».119
O «assalto» ao uso de vossa senhoria e de vossa excelência, bem como de outro
tratamentos de mais elevada cortesia, causou tais «desordens e abusos» que Filpe II pro-
curou regular, em 1597, o seu emprego.120 Ao tratamento de vossa excelência é reserva-
do um lugar superior ao de vossa senhoria (e ambos em relação a vossa mercê, já em
declínio). O disputado tratamento de vossa excelência passa a ser devido apenas «aos

116
Cf. CINTRA, 19862: 18 e LUZ, 1957: 74, 85 e 360-361. Como curiosidade, referira-se que Cintra
situa a entrada de Vossa Senhoria, como tratamento régio, a partir de 1442, enquanto Luz regista a sua
primeira ocorrência escrita em 1434, em carta dirigida ao monarca.
117
CINTRA, 19862: 13-14.
118
Id.: 18 e 19. A fórmula terá sido importada de Itália.
119
Id.: 21.
120
Antes de Portugal, Filipe II tinha já feito publicar, em Espanha, uma mesma «provisão», em 1586,
sinal de que idêntica situação também preocupava os espanhóis. [Cf. id.: 22]. Começa como segue a pro-
visão para os portugueses: «Dom Felippe por graça de Deos Rey de Portugal ... Fasso saber aos que esta
minha ley virem, que sendo eu informado das grandes dezordens, e abuzos, que se tem introduzido no
modo de falar, e escrever, e que vão continuamente em crescimento, e tem chegado a muito excesso, de
que tem rezultado muitos inconvenientes, e que converia muito a meu servisso, e ao bem, e sossego de
meus vassaloz, reformar os estilloz de falar e escrever, e reduzilos a ordem, e termo certo, praticando-o, e
tratando-o com pessoas de meu Conselho, e outras de letras, e de experiencia, ordenei de prover nisto na
forma e maneira ao diente declarada.» [Cf. id.: 109-111]
376

filhos, e filhas legitimos dos [...] Infantes», bem como «ao Duque de Bragança.»121 É
longa, por seu turno, a lista das pessoas a quem ficava devido o tratamento de vossa
senhoria: arcebispos (excepto o de Braga, a quem, «como Primaz, se poderá falar e
escrever por Senhoria Reverendissima»), bispos, duques e filhos, marqueses e condes,
Prior do Crato, vice-reis e governadores, o Regedor da Justiça da Casa da Suplicação,
Governador da Relação do Porto, vedores da fazenda, presidentes do Desembargo do
Paço e da Mesa da Consciência e Ordens (estes, só quando «estiverem em seus Tribu-
naes»), embaixadores com assento na capela real «e a qualquer outra pessoa, que por
algum respeito» o rei mandasse cobrir.122
Esta tentativa régia123 de regulamentar os tratamentos volta a pôr-se em 1739,
com D. João V, que, para remediar abusos, fez nova lei. Merecem nela especial atenção
precisamente vossa excelência e vossa senhoria, sinal das mudanças que, desde a prag-
mática filipina, tais tratamentos tinham sofrido. Senhoria é mesmo tomada, no preâm-
bulo, como exemplo da «confusão que sucede nos tratamentos». Aí se diz que o trata-
mento tinha vindo «a estender-se com tanto excesso e vulgaridade, que se confunde a
ordem, e se perverte a distinção que faz os tratamentos estimaveis».124
Longas são as listas daqueles a quem se devia tratar, em primeiro lugar, por
excelência e, em seguida, por senhoria. Remetemos para a pragmática joanina,125 mas
pode-se dizer, em síntese, que tais tratamentos ficavam restringidos aos grandes do rei-
no, membros do clero e da nobreza. Não tiveram sucesso, como era de esperar, estas e
outras126 tentativas de fixação, por decreto, das FT’s. Como observa Cintra, tais tentati-
vas não resistiram «às forças que, apesar de todas as pressões, continuam sempre a agir

121
Cf. id.: 110. As restantes fórmulas regulamentadas são vossa majestade, dirigida aos reis e rainhas;
vossa alteza, dirigida aos príncipes e sucessores do trono, princesas, infantes e infantas, bem como a gen-
ros e noras, cunhados e cunhadas dos reis. [Cf. id., Apêndice 3: 109-110]
122
Cf. id., Apêndice 3: 110-111.
123
Não eram os reis, evidentemente, os únicos (nem certamente os mais) preocupados com a vulgarização
dos tratamentos estimáveis. Aliás, os próprios documentos régios sugerem que outros sentiriam os seus
direitos ameaçados, a tal respeito. Filipe II diz que fora «informado das grandes dezordens, e abuzos»
[Id.: 109], e D. João V decide legislar, porque lhe constava a confusão que reinava nos tratamentos. [Id.:
112] Cintra, baseando-se nas obras dramáticas da época, é de opinião que tal preocupação seria «nacio-
nal», pois era sentida por «toda aquela pequena parte da população que vive nas cidades e que costuma
tradicionalmente considerar-se a si própria como “a nação”». [Id.: 27] O direito social a um tratamento
estimável continua, ainda hoje, a ser reivindicado. Veja-se, supra, cap. X, 1., a crónica de Miguel Esteves
Cardoso, por exemplo.
124
Cf. id.: 112.
125
Cf. id.: 112-115.
126
D. José publicou também dois alvarás, em 1759, e uma lei, em 1764, através dos quais concedia o uso
de Excelência a «Gentis Homens da Camara de Sua Magestade» e aos «Mestres de Campo Generaes», e
de Senhoria a «todos os Ministros, que tivessem carta de Conselho», bem como aos «Sargentos Móres de
batalha.» [ROQUETTE, 18592 : 49]
377

e a agitar-se, em tudo quanto depende do espírito do homem ou com a sua vida se rela-
ciona»,127 como é a língua dum povo. No que toca a vossa senhoria e vossa excelência,
continuaram a ser, durante o século XIX, tratamentos utilizados por camadas sociais
cada vez mais largas, ainda que contestados, por vezes. Porque, como observa Roquette,
«bem vedes que não era cousa indifferente entre os nossos maiores» os tratamentos. É
que, apesar dos «muitos abusos [que] se hão introduzido», eles «na sociedade e no trato
das pessoas bem educadas têem quasi força de lei.»128
Cabe aqui lembrar a conhecida intervenção que Camilo põe na boca de Calisto
Elói de Silos e Benevides de Barbuda, deputado transmontano que, no Parlamento de
1865, se insurge contra os tratamentos dados e/ou exigidos por quem deles não era dig-
no, além de atacar outras misérias sociais lisboetas.

«E eu já vi, sr. Presidente, andarem as senhorias e excelências, as pobres esfarrapadi-


nhas, por meio destes paralvilhos, que saem de casa do alfaiate com o foro grande e o
desaforo maior. Que desbarato e corruptela é esta dos tratamentos em Lisboa?»

E mais adiante, servindo-se do encontro que tivera com um tendeiro, a quem


comprara «figos de comadre», o qual se sentira ofendido «de receber um vossemecê»
que «longânimamente» lhe dirigira, o deputado Calisto recorda a pragmática de D. João
V, enumera a lista dos que podiam receber tratamento de senhoria e remata:

«sr. presidente, falta uma senhoria legal para o homem que me vendeu os figos. Crie-
mos esta senhoria, para aliviarmos de escrúpulos os que lha derem a medo. Legislemos
a podridão dos tratamentos nobilitários. Atiremos ao esterquilínio com esta moeda
refece. Isto já não vale nada, não prova nada, não estrema coisa nenhuma.»129

Nos séculos seguintes, as FT’s vossa excelência e vossa senhoria continuaram a


ser utilizadas, quer como locução, quer nas formas contraídas, respectivamente, de vos-
sência e vossoria,130 estas mais a nível oral e coloquial. Terá sido durante a primeira

127
CINTRA, 19862: 24.
128
ROQUETTE, 18592: 49-50.
129
BRANCO, Camilo Castelo, 197011: A Queda dum Anjo. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; pp. 62 e 63.
130
Basto regista também as formas vosselência e (no povo) vossa incelência ou mesmo vossa inçulência,
além de, «em circunstâncias excepcionais - por ironia, geralmente», se substituir o possessivo vossa por
sua. De vossa senhoria, o autor encontra, no «povo aldeão», aquela forma «adulterada» em Vòssinhoria,
Vòssioria e Vàssoria. [BASTO, 1931: 183 e 185]
378

metade do séc. XIX que passaram a pronominais, ainda que só nos finais do mesmo
século e/ou nos princípios do seguinte se tenha operado de facto a recategorização.131
Como locuções ou amálgamas, são fórmulas com uso actualmente muito reduzi-
do. Vossa excelência ainda se usa, na linguagem oral, em determinados ambientes ou
situações formais, ao passo que, a nível escrito (com a grafia abreviada a V. Ex.ª), «é
largo o seu uso, principalmente na correspondência oficial e comercial.»132 Vossa
senhoria é muito menos utilizada. Ocorre, todavia, na forma graficamente abreviada de
v. sr.ia, em documentos escritos (cartas comerciais, requerimentos, ofícios, etc.), «quan-
do não é próprio o tratamento de Vossa Excelência»,133 ou então «lorsque
l’interlocuteur est militaire (de haut rang)», fórmula que, neste caso, exprime «le plus
haut degré de distance».134
Se os usos degradados destes tratamentos forem análogos, por um lado, à degra-
dação semântica da forma e, por outro, a uma relativa degradação social dos primitivos
destinatários,135 quem as emprega não estará, apenas, a utilizar formas populares e con-
traídas de vossa excelência e de vossa senhoria, mas também, ao fazê-lo, a acentuar,
paradoxalmente, essa mesma degradação social, apesar de tão cortesmente tratados,
consciente ou inconscientemente.
À luz dos valores semântico-pragmáticos que o léxico e o diassistema cultural
português lhes atribui(u), estas fórmulas são dirigidas, por regra, a alguém que se tem
como ocupando um lugar superior, em relação ao qual se manifesta, real ou fingidamen-
te, respeito, consideração e deferência. Poderá ocorrer, portanto, entre iguais, mas, neste
caso, será um relacionema proxémico, havendo então um tratamento recíproco, simétri-
co. Entre desiguais, usar-se-á de inferior para superior e, neste caso, trata-se dum rela-

131
Cf. CINTRA, 19862: 32.
132
CUNHA & CINTRA, 1984: 296-297. Cf. também CARREIRA & BOUDOY, 1993: 297 e CUESTA
& LUZ, 1971: 486-487.
133
CUNHA & CINTRA, 1984: 297. Os autores registam, todavia, algumas páginas antes, no elenco das
«formas de tratamento reverente», que Vossa Senhoria ou V. S.ª se emprega para se tratar funcionários
públicos graduados, oficiais até coronel e, «na linguagem escrita do Brasil e na popular de Portugal, pes-
soas de cerimónia.» [Id.: 292]
134
CARREIRA, 1985: 113. Basto diz que «Vossa Senhoria é hoje fórmula usada no comércio e na tro-
pa», obrigando o «Regimento» desta última que o tratamento seja dado «de capitão a alferes (subalter-
nos)», enquanto v. excelência é obrigatório de «major para cima». [BASTO, 1931]. Lapa, por seu turno,
observa que a «manutenção entre nós, portugueses, [da forma v. ex.ª ] indica uma certa sobrevivência dos
costumes antigos, próprios duma sociedade decadente.» [LAPA, 19758: 154]
135
Observa Luz que as expressões de cortesia «estão particularmente sujeitas a perderem o seu significa-
do, banalizando-se. Em muitas, o desgaste fonético acompanha o desgaste semântico (por exemplo, vossa
mercê, transformada fonética e semânticamente, em você). É que as fórmulas de tratamento corteses são
expressivas, por vezes exageradas, e o valor expressivo das palavras atenua-se ràpidamente, pelo uso
frequente que delas se faz. Assim, não causa admiração que a linguagem cortês se renove mais depressa
que qualquer outra.» [LUZ, 1956: 271 (21)]
379

cionema taxémico, não recíproco, assimétrico. Tratar-se-á sempre, por outro lado, no
quadro da cortesia linguística, de tratamentos que reforçam FFA’s (cortesia positiva), ou
atenuam a realização de FTA’s (cortesia negativa). Intencionalmente ou não, com estas
FT’s, o locutor pode visar outros objectivos, o primeiro dos quais é, sem dúvida, criar,
assegurar, manter ou recuperar uma plataforma comum de conversação não conflituosa,
para que depois outros objectivos sejam alcançados.
Capítulo XII

AS FORMAS DE TRATAMENTO
NO QUADRO DA CORTESIA LINGUÍSTICA

As principais FT’s descritas no capítulo anterior, como processos de referência e


expressão de cortesia ou de descortesia que são, podem estar orientadas para o alocutá-
rio (realização mais frequente), para o próprio locutor ou para terceiros, presentes ou
ausentes. Consoante esta tripla orientação, as FT’s são designadas, respectivamente, de
alocutivas, elocutivas e delocutivas. Neste capítulo, vamos analisar os principais trata-
mentos portugueses, segundo esta tripla orientação, no quadro da cortesia / descortesia
linguística que temos vindo a seguir.

1. Tratamentos alocutivos

A descrição dos valores que, ao longo dos séculos, os tratamentos portugueses


foram expressando, foi feita, principalmente, segundo uma perspectiva alocutiva, isto é,
segundo os valores semântico-pragmáticos e o tipo de relação que um determinado
locutor, caracterizado por um determinado estatuto social, expressaria e estabeleceria
com diferentes alocutários, caracterizados também eles por diferentes estatutos sociais.
Tal locutor teria ou desejaria ter com cada um dos seus alocutários uma relação de pro-
ximidade ou de afastamento, através das FT’s utilizadas. Neste sentido, consoante a
posição em que se encontra (ou julga encontrar-se) e a posição que reconhece ou atribui
ao(s) seu(s) alocutário(s), tendo em vista também o objectivo ilocutório pretendido, o
locutor escolherá os tratamentos que julgar mais adequados e convenientes à interacção
verbal e ao co(n)texto.
As FT’s podem expressar, como vimos, relações simétricas ou recíprocas e rela-
ções assimétricas ou não-recíprocas entre os interlocutores.
Observe-se a FIG. 1 (página seguinte).
380

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª V. Ex.ª
V. Sr.ia V. Sr.ia

Eixo Sr./ Srª Sr./ Srª

Você Você
Proxémico
Tu Tu

- CORTESIA

FIG. 1 – Relações simétricas

Tendo em conta apenas as FT’s antes descritas, representámos as relações simé-


tricas, na FIG. 1. No quadro da cortesia linguística, em situações normais, os interlocu-
tores, numa relação recíproca ou simétrica, mantêm os seus estatutos e tratam-se
mutuamente utilizando, regra geral, as mesmas FT’s. Não revelam, ainda que existam,
relações taxémicas, isto é, de poder de um sobre o(s) outro(s). Todavia, à medida que se
vai subindo na escala das FT’s, aumenta a distância proxémica entre os interlocutores
ou interactantes. Neste sentido, quanto mais elevadas são, na escala da cortesia, as FT’s
utilizadas mutuamente pelos interlocutores, numa situação simétrica de lugares reco-
nhecidos ou aceites, mais eles se afastam proxemicamente.
É de observar que os eixos taxémico, proxémico e da cortesia não são fixos,
apontando apenas orientações. Cada um deles pode, por isso, ser deslocado, na leitura
deste como na dos quadros seguintes, para cima ou para baixo (eixo proxémico), e para
a esquerda ou para a direita (eixos taxémico e de cortesia). Por outro lado, a pirâmide
invertida para que aponta o quadro deve ter uma leitura inversa, em termos quantitati-
vos, ao que pode sugerir. O número de pessoas que usam FT’s de cortesia menos eleva-
da é muito superior ao número daquelas que usam FT’s (mais) elevadas. Isto em termos
gerais, obviamente.
Cabe observar, por último, que as FT’s que situámos no paradigma de V (de
você(s) a v. sr.ias / ex.as ), podem coocorrer ao longo duma interacção verbal, dirigidas
ao(s) mesmo(s) alocutário(s). Basta reparar, por exemplo, nos debates parlamentares,
onde os deputados utilizam, mutuamente, tanto v. ex.as, como o(s) senhor(es) deputa-
do(s), como inclusive você(s). Ou o caso do narrador autodiegético d’O Malhadinhas
381

que trata os seus ouvintes (auditório) de vós («vos») e «m’amigos» (meus amigos), até
«vossorias» e «(meus) fidalgos».1 Por último, é de referir e insistir que o uso simétrico
de FT’s depende muito do co(n)texto em que ocorrem. Em público, os interlocutores
utilizam, regra geral, FT’s formalmente mais corteses e de menos afectividade do que
em privado. Todavia, os interlocutores esquecem-se, por vezes, no decurso duma inte-
racção verbal, das exigências formais do co(n)texto, e passam a usar formas de cortesia
menos elevadas, o que não quer dizer que tenham deixado de ser menos corteses por
isso. A propósito, é de referir que -CORTESIA não significa ausência ou negação de
cortesia, mas apenas FT’s cujos valores semântico-pragmáticos habituais são considera-
dos de cortesia menos elevada.
As relações assimétricas ou não recíprocas entre os interlocutores podem ser,
como vimos, de dois tipos: o locutor situa-se (i) em lugar inferior, ou (ii) em lugar supe-
rior. É sobretudo em torno do eixo taxémico, por isso, embora articulado geralmente
com o eixo proxémico, que essas relações se estabelecem e que são reflectidas pelas
FT’s. Representamos, na FIG. 2, as relações de tipo (i).

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª
V. Sr.ia

Eixo Sr./ Srª

Você
Proxémico
Tu

- CORTESIA

FIG. 2 – Relações assimétricas, a partir de Tu.

Este quadro representa o locutor sempre (auto)situado num lugar inferior ao(s)
do(s) interlocutor(es), em posições assimétricas. O primeiro dirige ao(s) segundo(s) uti-
lizando FT’s de maior ou menor cortesia (linhas curvas setadas contínuas), enquanto

1
Para outros exemplos de mudança estratégica de tratamentos, pelas mais variadas razões, ver caps.
seguintes.
382

o(s) segundo(s) lhe corresponde(m) sempre com formas de T (linhas curvas setadas des-
contínuas).2
Tomando-se agora em consideração a hipótese dum locutor, situado na posição
de receber tratamento de você, este tratará o(s) seu(s) interlocutor(es) por FT’s de T, por
um lado, e por sr. / srª (seguido ou não de nome ou título), ou v. sr.ia / exª, por outro.
Situar-se-á, no primeiro caso, numa posição superior e, nos segundos, em posição infe-
rior. Teremos, assim, o quadro seguinte (FIG. 3):

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª
V. Sr.ia

Eixo Sr./ Srª

Proxémico Você
Tu

- CORTESIA

FIG. 3 – Relações assimétricas, a partir de Você.

É de observar que os tratamentos representados na FIG. 3 não são fáceis de man-


ter. Dificilmente aqueles que são tratados por sr. / srª (seguidos ou não de nome ou títu-
lo) ou por v. sr.ia / exª, tratarão, durante muito tempo, o seu interlocutor apenas por for-
mas de você (ou outras formas de 3.ª pessoa).
Representamos, no quadro seguinte (FIG. 4), outro tipo de relação assimétrica,
efeito ou causa do uso de FT’s distanciadoras. Agora, um locutor, colocado na posição
de receber tratamento de sr. / srª, dirige-se a interlocutor(es) de estatuto(s) superior(es),
tratando-o(s) por v. sr.ia / exª, e a interlocutor(es) com estatuto(s) inferior(es), por você
ou por tu.

2
Nesta, como nas figuras seguintes, as linhas curvas setadas procuram representar os movimentos ascen-
dentes e descendentes que, respectivamente, os interlocutores assumem, consoante as FT’s que dirigem e
os lugares que ocupam.
383

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª
V. Sr.ia

Eixo Sr. /Srª


Você
Proxémico
Tu

- CORTESIA

FIG. 4 – Relações assimétricas, a partir de Sr. / Srª.

Também em relação aos usos assimétricos representados neste quadro se deve


observar que, por um lado, aquele que recebe dum inferior (talvez não tanto quanto isso)
tratamento de v. sr.ia e/ou v. exª, acaba sempre por receber outros tratamentos de V. Por
outro lado, aquele que se encontra na posição de receber tratamento de sr. / srª (seguido
ou não de nome e/ou título) receberá, tanto do superior como de inferiores, também o
tratamento de sr. / sr.ª (minha sr.ª).
Temos, por último (FIG. 5, página seguinte), as situações assimétricas em que
um interlocutor se situa na posição mais alta e recebe, por isso, FT’s da mais elevada
cortesia (v. sr.ia / exª), dirigindo, por seu turno, FT’s que expressam ou atribuem posi-
ções inferiores à sua (sr. / srª, seguido ou não de nome e/ou título, você, pronome e/ou
desinência verbal, e tu, pronome e/ou desinência verbal).
A eventualidade dum interlocutor que recebe tão elevadas FT’s tratar o(s) seu(s)
alocutário(s) por tu, será, como se observou em relação a casos anteriores, muito redu-
zida, a não ser que se dirija a criança(s). Mas será que, nesses casos, uma criança trata o
interlocutor por v. sr.ia ou v. exª ?...
As figuras representam as diferentes relações que, no uso das FT’s descritas no
capítulo anterior, os interlocutores estabelecem entre si, bem como os lugares que, atra-
vés delas, atribuem ao(s) alocutário(s).
384

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª
V. Sr.ia

Eixo Sr. / Srª

Você
Proxémico
Tu

- CORTESIA

FIG. 5 – Relações assimétricas, a partir de V. Sr.ia / Exª.

Com já referimos, no uso dos tratamentos, como doutros relacionemas, verticais


ou horizontais, verifica-se o que chamamos efeito de boomerang: qualquer FT alocutiva
(e mesmo elocutiva ou delocutiva) atinge, directamente, o interlocutor e, indirectamen-
te, o próprio locutor. Observe-se a FIG. 6.

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

V. Ex.ª
V. Sr.ia
Sr./ Srª

Você
Eixo
A
Proxémico
B

- CORTESIA

FIG. 6 – Relações assimétricas: elevação do alocutário com rebaixamento do locutor.


385

Explicitando a FIG. 6, dizemos que o locutor, situado em posição baixa, quando


dirige FT’s de cortesia (mais ou menos) elevada ao(s) seu(s) alocutário(s) (linhas curvas
setadas contínuas), vai descendo (linhas curvas setadas ponteadas), simultaneamente, de
posição, em termos simbólicos. Ou seja, distanciando o(s) seu(s) alocutário(s), o locutor
distancia-se a si próprio dele(s). Muda de A para B, usando você; de B para C, com sr. /
sr.ª; de C para D, empregando v. sr.ia / exª. Em sentido inverso, o locutor colocado em
posição alta, ao utilizar tratamentos descendentes (na escala da cortesia) dirigidos ao(s)
seu(s) alocutário(s), vai rebaixando esse(s) mesmo(s) alocutário(s) e subindo ou refor-
çando, gradualmente, o seu próprio lugar, aumentando um distanciamento progressiva-
mente maior em relação ao(s) alocutário(s), a nível sobretudo taxémico. A FIG. 5,
supra, mostra já, em parte, os efeitos desse distanciamento, para cuja (re)leitura, sobre
este aspecto, remetemos.

Resumindo este ponto, diremos que quando o locutor, ocupando posição elevada
reconhecida, se dirige directamente ao seu alocutário utilizando sr. / srª, você e tu, além
de afastar o(s) seu(s) interlocutor(es), afasta-se também ele próprio desse(s) mesmo(s)
interlocutor(es), mesmo que só aparentemente, simbolicamente, retoricamente, polifoni-
camente, mude de lugar, isto é, de posição, de estatuto, de identidade, em termos discur-
sivo-textuais, pelo menos.

2. Tratamentos elocutivos e delocutivos

Além dos tratamentos alocutivos, os interlocutores também usam FT’s dirigidas


a si próprios e a terceiros, presentes ou ausentes. No primeiro caso (tratamentos elocuti-
vos), o locutor utiliza, regra geral, formas de modéstia ou mesmo de auto-humilhação,
por uma questão de cortesia real ou fingida, com objectivos mais ou menos confessados
ou inconfessados. Os autotratamentos elogiosos são, todavia, proscritos no diassistema
cultural português, pois que, ao engrandecer-se, o locutor está, ao mesmo tempo, a
diminuir o(s) seu(s) interlocutor(es), a atacar-lhe(s) a(s) face(s) sobretudo positiva(s).
Ao rebaixar-se, porém, não o deve fazer em excesso, para não correr o risco de provocar
o efeito contrário, isto é, ultrapassando os limites do aceitável, entrar nos domínios da
386

descortesia, por falsa modéstia, a qual poderá ser interpretada, além disso, como estraté-
gia para alcançar fins inconfessados.3
No que toca a terceiros, presentes ou ausentes, a utilização delocutiva de trata-
mentos é mais complexa. Regra geral, as FT’s por que são nomeados ou referidos
situam-se a níveis de cortesia menos elevados, do que em co(n)textos de face-a-face, ou
quando em situação de terceiros presentes, isto é, assistindo à interlocução, sem contudo
nela intervirem de facto. Acresce ainda, para maior complexidade, que, muito frequen-
temente, os tratamentos dirigidos a terceiros podem atingir, favorável ou desfavoravel-
mente, a(s) face(s) do locutor como do alocutário, integrando-se assim também nos pro-
cessos de auto e heterocortesia e do trabalho de faces (figuração ou desfiguração).
Ao referir-se, positiva ou negativamente, a terceiro que pertence ao seu círculo
de afectos, o locutor pode estar, por um lado, a valorizar ou a desvalorizar, de forma
objectiva ou não, a(s) face(s) desse terceiro, mas também a(s) sua(s) própria(s) e a(s)
do(s) seu(s) interlcoutor(es). Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer dos tratamentos
utilizados para se referir terceiro que pertença ao círculo de afectos do interlocutor.
São, portanto, quatro os tipos de relação que o terceiro (T), singular ou plural,
pode ter com o locutor (L) e o alocutário (A), no decurso duma interacção verbal e que
através dos respectivos discursos se manifestam:

a) T pertence ao círculo de afectos de L;


b) T pertence ao círculo de afectos de A;
c) T pertence ao círculo de afectos comum a L e A;
d) T não pertence ao círculo de afectos nem de L nem de A.

Além disso, em todos os tipos anteriores, as relações de T com L e/ou A podem


ser, tal como as destes, simétricas ou assimétricas em relação a ambos, ou simétrica em
relação a um e assimétrica em relação a outro. Procuramos representar na FIG. 7 a des-
crição que acabámos de fazer:

3
Recorde-se os princípios L-orientados que o modelo de cortesia linguística, proposto por Kerbrat-Orec-
chioni, reconhece e recomenda. Cf., supra, cap. III, 1.
387

≠+ ≠+

= T =
L A
≠- ≠-

FIG. 7 – Relações dos interlocutores com terceiros.

Explicitando-se a leitura da FIG. 7, temos, por exemplo, que L[ocutor], em inte-


racção verbal com A[locutário], refere-se a T[erceiro], em relação ao qual e a A, e cada
um destes em relação a L, pode haver posições simétricas (=), ou assimétricas de supe-
rioridade (≠ +) ou de inferioridade (≠ -), quer T pertença apenas ao círculo de afectos de
L (oval interior que cinge L e T), ao círculo de afectos de A (oval interior que cinge T e
A), ao círculo de ambos (oval maior), ou a nenhum destes círculos (T fora da grande
oval, mas que pertence, é tema ou referência do discurso e do mundo dos interlocutores
– semioval tracejada). Pode-se dizer que, neste caso, L e A têm em relação a T uma
relação de indiferença ou neutra. Ao mesmo tempo, cada interlocutor, ao referir-se a T,
seja qual for o círculo de afectos a que pertença ou não, é sempre referido por FT’s
delocutivas, corteses ou descorteses, que atingem, favorável ou desfavoravelmente e em
graus diferentes, não só a(s) face(s) de T, como a(s) face(s) de L e a(s) de A [linha curva
setada que envolve T, cujas extremidades começam ou terminam em L e A. A propósi-
to, refira-se que L, A e T não representam indivíduos, mas posições que indivíduos,
enquanto interlocutores (L e A) ou objecto da interlocução (T) ocupam].
Os factores de natureza proxémica e/ou taxémica entre, por um lado, L e A e,
por outro, de cada um deles em relação a T, bem como a intencionalidade discursivo-
textual, confessada ou não, que L e A têm, condicionam, inevitavelmente, a escolha das
FT’s delocutivas, mais ou menos corteses e descorteses, a utilizar por cada um deles em
relação a T.
L que, numa interacção não conflituosa, queira referir-se a T, presente ou ausen-
te, e que pertença ao círculo de afectos de A (um amigo, por exemplo), não se refere,
388

por regra, a T menos respeitosamente, para não ferir a(s) face(s) de T, nem a(s) de A,
nem mesmo a(s) sua(s) própria(s). Quem meus filhos beija minha boca adoça é provér-
bio que também a este propósito poderá ser recordado. Se, pelo contrário, L valoriza
ostensivamente as faces de T, sabendo que é inimigo de A, tal acto é entendido como
descortesia, uma vez que tal valorização ataca a(s) face(s) de A e, por isso, também as
de L, ainda que esteja a ser cortês (e verdadeiro) em relação a T. A sentença Quem não
é por mim é contra mim, apesar do seu evidente maniqueísmo, poderá pôr em causa a
continuação duma interacção verbal que se deseje mais ou menos harmoniosa, no res-
peito pelas regras da cortesia linguística, isto é, sem ferir a autoestima e o território do
interlocutor.
Vejamos um exemplo, retirado d’O Malhadinhas. O jovem almocreve, apaixo-
nado por Brízida, sua prima direita, receoso de que o abade de Britiande lha conquistas-
se, face às aceitações que ela e o pai concediam ao coroado, decidiu interpelá-la, com
estas queixas assolapadas:

«– Olha, Brízida – disse eu – albardado seja quem se ilude. Até há pouco o pai era
por feiras e adjuntos tu cá tu lá com o Tenente da Cruz. Já lhes chamavam os dois da
vigairada. Agora é com o abade de Britiande. Mas deixa, eu dê ainda hoje um estoiro no
inferno se o padreca não for corrido daqui a toque de caixa...
– Que mal te fez o senhor abade, primo? Então já não é senhor de estar onde lhe
apeteça?
– É; mas eu também sou senhor de lhe fazer a barba à coroa, cá a meu modo, para
lhe lembrar que é casado com a Igreja.
– Credo!
– Credo, digo eu. O padre é o vosso santantoninho por quem sois. Cuidas que sou
cego? Mais de uma vez te apanhei a espenujares-te diante dele, que nem parecias don-
zela de assento.
– Anjo custódio! Outra venha que rabo tenha... Rio-me para ele; que mal tem?
– Tem muito. Alguém acredita que o coroado vem para aqui caçar por caçar?
Lebres e perdizes tem-nas a dois passos, a dar com um pau, na serra de Tarouca.»4

Nesta interacção verbal, fragmento duma sequência dialogal de ficção literária,


dois interlocutores M[alhadinhas] e B[rízida] referem-se um terceiro ausente, A[bade

4
RIBEIRO, 1989: 19-20. Para recordar a interacção verbal completa, cf. id.: 19-21.
389

de] B[ritiande], que pertence ao círculo de afectos de ambos, embora despertando sen-
timentos opostos em cada um deles. Entre B e AB prevaleciam os afectos mutuamente
favoráveis, enquanto que entre M e AB predominavam os afectos mutuamente desfavo-
ráveis. Além disso, as relações entre B e AB eram vistas e sentidas por M como lesivas
das suas faces, positiva e negativa (M e B eram namorados assumidos, mas AB era um
concorrente que gozava das simpatias de B e era elogiado pelo pai de B). Por outro lado,
a animosidade de M em relação a AB lesavam as faces de B, ao não crer na sua fideli-
dade. As FT’s delocutivas que M e B utilizam, respectivamente, ao referirem-se a AB
reflectem a oposição de afectos. Com se resume na FIG. 8:

o abade de Britiande o senhor abade


o padreca [senhor de estar
lhe onde lhe apeteça]
casado com a Igreja ele
M (≠ +) o padre (≠ -) AB (≠ +) (≠ -) B
[vosso santantoninho
por quem sois]
ele
o coroado

FIG. 8 – FT’s delocutivas e relações assimétricas, entre M, AB e B, n’O Malhadinhas

As FT’s que M utiliza para referir-se a AB situam-se em níveis de baixa cortesia


e da descortesia. Consequentemente, M coloca-se numa posição assimétrica superior
(≠+) em relação a AB, que coloca, por isso, numa posição inferior (≠ -). Por seu turno,
B, através das FT’s de mais cortesia que utiliza, coloca AB num lugar superior (≠ +) ao
seu (≠ -). Os valores semântico-pragmáticos contrários das FT’s utilizadas revelam tam-
bém, por um lado, que AB pertence ao círculo de afectos desfavoráveis de M e, por
outro, ao círculo de afectos favoráveis de B.
As FT’s de M e B constituem, respectivamente, ataques e valorizações das faces
positiva e negativa de AB e, ao mesmo tempo, ataques de M às faces positiva e negativa
390

de B e, por outro lado, ataques de B às faces positiva e negativa de M.5 Os ataques de M


à face positiva de B são, contudo, mais fortes que os de B a M, na medida em que, além
do mais,6 M inclui, numa FT dirigida a AB (vosso santantoninho por quem sois), B e o
pai. Simultaneamente M valoriza, perante B,7 a sua figura de destemido, de alguém que
tem poder (isto é, não receia) para se referir como refere a AB. Por seu turno, B não
inclui M nas FT’s com que se refere a AB. Ao referir-se, porém, com tratamentos delo-
cutivos de elevada cortesia a AB, no co(n)texto daquela interacção enamorada, B estava
a lesar as faces de M e ao mesmo tempo a valorizar as suas próprias. Valorização esta
que M interpretava, como vimos, sobretudo como desvalorização.
Entre M e B estava instalado, portanto, o desacordo, porque relações antagónicas
(man)tinham relativamente a AB e entre si. Desacordo que as FT’s delocutivas utiliza-
das, com evidentes valores semântico-pragmáticos opostos, ajudaram a concretizar.

Muitas e diversas são as interacções verbais em que os interlocutores se servem


para, referindo-se delocutivamente a terceiros (ou como tal os considerando), estabele-
cer e/ou desenvolver relações de aproximação ou distanciamento, não só em relação a
esses terceiros, mas também, através dessas referências e tratamentos, valorizar ou des-
valorizar, atacar ou proteger o(s) seu(s) interlcoutor(es) e/ou a si próprios.
Cremos que a descrição teórica feita, a par do fragmento dialogal analisado, nos
dispensa da apresentação doutros exemplos que mostrem a complexidade e a multiplici-
dade das relações humanas que as FT’s delocutivas também estabelecem ou ajudam a
estabelecer.

A complexidade das relações humanas, consoante os contextos e os objectivos


das diferentes interacções verbais, não cabem nunca em esquemas, por mais completos
que eles sejam. As diferentes formas verbais corteses e descorteses que podem ser usa-
das para estabelecer e expressar essas relações e essa complexidade são sempre insufi-
cientes e incompletas. Trata-se sempre de tentativas, de aproximações, de representa-

5
As FT’s que atacam ou valorizam a autoestima inscrevem-se no âmbito da noção de face positiva,
enquanto as FT’s que atacam ou valorizam os «territórios do eu» inscrevem-se no âmbito da noção de
face negativa.
6
Além do mais, isto é, ao facto de M acusar B de proteger (é senhor de estar onde lhe apeteça) e de se
deixar seduzir (espenujares-te diante dele; rio-me para ele) por AB.
7
Recorde-se que o velho Malhadinhas conta a crónica da sua vida adulta aos escrivães e mantas de Vila
Nova de Paiva, antiga Barrelas. Por isso, as FT’s que utiliza inscrevem-se tanto no processo de figuração
daqueles que conheceu e/ou com quem conviveu, como nos processos da sua própria refiguração. Veja-
se, a propósito, infra, cap. XIV.
391

ções. As relações representadas nas figuras anteriores são isso mesmo, por isso, isto é,
tentativas teóricas, na medida em que têm em consideração sobretudo relações interpes-
soais mais ou menos formais e fixas, construídas a partir do conhecimento que se tem
dos comportamentos habituais das pessoas que vivem em comunidades (preconstruídos
culturais).
As relações humanas, contudo, nem sempre são constantes, ao longo duma inte-
racção verbal. As FT’s seguem, por isso, essas mesmas variações. É natural que, no
decurso duma interacção verbal equilibrada, uma vez estabelecido um determinado tipo
de relacionamento, os tratamentos se mantenham num dos dois paradigmas acima refe-
ridos. Pode acontecer, porém, que esse relacionamento se tenha alterado, antes duma
nova interacção, ou venha a alterar-se, por mútuo acordo (através de negociação mais
ou menos explícita) ou em consequência de conflito, no decurso (e no discurso) duma
interacção. Em caso de mudança por mútuo acordo, é habitual que os interlocutores
passem de usos simétricos V⇔ V ou assimétricos T ⇔ V, para formas simétricas de T⇔
T. Habitualmente, um interlocutor propõe «E se nos tratássemos por tu?» e nunca «*E
se nos tratássemos por você?» Ao apresentar esta última proposta, o locutor (em Portu-
guês de Portugal, evidentemente) desejaria que, entre ele e o interlocutor, passassem a
existir relações de distanciamento, evidentemente proxémico, mas também taxémico.
Tal proposta seria, ao nível das relações interpessoais, de pouco ou nula cortesia, apesar
de propor o uso de tratamentos formalmente mais corteses. É por isso que consideramos
tal proposta um enunciado agramatical, ao nível da competência e desempenho da cor-
tesia linguística.
É de observar, por outro lado, que quem propõe «- E se nos tratássemos por
tu?» possui, regra geral, um estatuto superior (ou pelo menos idêntico) ao do interlocu-
tor. Pode haver entre ambos ou um tratamento simétrico, situado no âmbito de V (V ⇔
V) ou de V ⇔ T (dirigir tuteamentos e receber voceamentos). No caso de V ⇔ T, é
quem tuteia (isto é, quem ocupa um lugar mais elevado) que propõe formas de T. Por
uma questão de cortesia positiva, o proponente valoriza a face positiva do interlocutor,
elevando-o a uma igualdade de lugares, ao mesmo tempo que lesa a sua própria face, ao
integrar o outro no círculo dos seus afectos favoráveis. (Pense-se na expressão ter ou
manter relações tu cá tu lá com alguém.) Proceder ao contrário é, por isso, descortesia:
o tuteado não tem poder (nem direito) para propor tratamentos de T àquele que trata por
V. Seria atacar a face positiva do interlocutor, desejar que ele passasse a ocupar um
392

lugar igual ao seu, isto é, que baixasse de posição, de menor prestígio, de maior proxi-
midade. Convém observar ainda, por um lado, que tais propostas de aproximação se dão
entre interlocutores cujas relações proxémicas e taxémicas não são muito distantes e,
por outro, que exigem, regra geral, algum tempo de convívio prévio à proposta de nego-
ciação, que poderá ser mais ou menos demorada, mais ou menos bem sucedida. Se é
certo que, por livre iniciativa e por uma questão de cortesia (sincera ou fingida), os
interlocutores recorrem a processos discursivos de autodegradação, dificilmente aceitam
que tais processos lhe sejam impostos ou mesmo sugeridos por quem é (de facto ou pre-
sumidamente) inferior. Pensará, por exemplo, em enunciados de comentário como
«- Mas que atrevimento! / Olha o atrevido!», como hipotética resposta a «*- E se nos
tratássemos por tu?». Dizemos pensará, porque se proferisse «- Mas que atrevimento! /
Olha o atrevido!», o locutor estaria a ser mais ou menos descortês, consoante o contex-
to.

Os humanos desejam ter uma face pública respeitada («face want»), ao mesmo
tempo que trabalham por que seja preservada e mesmo enriquecida («face work»). As
FT’s desempenham um papel fundamental no estabelecimento de relações de cortesia
ou de descortesia, as quais têm muito a ver, também, com processos de figuração. Atra-
vés dos tratamentos corteses e descorteses que se dirigem e recebem, cada interlocutor
constrói ou resconstrói, ajuda a construir ou a reconstruir, repara ou ajuda a reparar, a
figura daquele com quem fala, daquele de quem fala e de si próprio. Mesmo que seja
necessário recorrer também a processos de desfiguração. Porque se ninguém quer per-
der a face, todos querem fazer boa figura, mesmo que para isso tenham de ser (ou pare-
cer) uns figurões, socorrendo-se dos seus próprios méritos ou de terceiro(s).
QUARTA PARTE

CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA


UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL
Práticas e Análises

Figuramos, desfiguramos e transfiguramos o mundo


– com a linguagem trabalhamos a nossa identidade e
a identidade das coisas.
Maria Lucília Marcos1

1
MARCOS, Maria Lucília, 2001: Sujeito e Comunicação. Perspectiva tensional da alteridade. Porto:
Campo das Letras; p. 13.
Capítulo XIII

INTRODUÇÃO

Ao longo dos capítulos anteriores, a propósito da exposição crítica das principais


teorias de cortesia / descortesia linguística e dos principais estudos sobre comportamen-
tos verbais corteses e descorteses em Português europeu, fomos procedendo também a
descrições dos valores semântico-pragmáticos que diferentes fórmulas e formas (ou
respectivas categorias) os expressam ou já expressaram, bem como dos mecanismos
sobretudo linguísticos que lhes estão subjacentes. Tais descrições incidiram em exem-
plos fornecidos por gramáticos, estilistas e linguistas, por um lado, e sobre opiniões
acerca de práticas corteses ou descorteses da vida quotidiana (relatadas em textos jorna-
lísticos e literários), por outro. Além disso, recorremos a registos de ocorrências pes-
soalmente observadas. As análises efectuadas ocuparam-se, todavia, de fórmulas, for-
mas, construções, frases e segmentos geralmente curtos e desco(n)textualizados. Os
valores corteses ou descorteses aí expressos apresentam-se, por isso, mais como realizá-
veis do que realizados, isto é, situam-se mais ao nível da língua e da frase que dos seus
usos e construções em práticas discursivo-textuais concretas, prototipicamente comple-
tas ou incompletas e mais ou menos simples ou complexas.
Nesta última parte, vamos (continuar a) analisar construções explícitas e implíci-
tas de cortesia e de descortesia, na sua função de relacionemas (horizontais e/ou verti-
cais), indic(i)adores e gestores de relações interpessoais existentes, por um lado, ou de
construtores e gestores de relações presumidas e desejadas, por outro. Ao mesmo tem-
po, procurar-se-á descrever como um e outro tipo dessas relações influenciam na selec-
ção e construção desses relacionemas e na configuração das diferentes práticas discursi-
vo-textuais, e como o género ou tipo de discurso-texto a coproduzir ou em coprodução
influi também naquela selecção.

Seleccionámos para análises mais desenvolvidas destes aspectos de natureza


fundamentalmente discursivo-textuais, sem deixarmos de integrar também aqueles valo-
res corteses e descorteses já construídos em língua, sequências narrativas literárias de
obras aquilinianas. Trata-se, fundamentalmente, de dois tipos de sequências. Uma pri-
396

meira, monogal, é constituída pelo texto-discurso que enquadra (introduz e conclui) a


novela O Malhadinhas, e servirá para analisarmos, no capítulo XIV, processos linguís-
ticos e discursivo-textuais de construção e expressão de intenções explícitas e implícitas
de cortesia ou de descortesia, a nível alocutivo, elocutivo e delocutivo. Constitui este
discurso-texto uma interacção verbal em sentido lato. As duas sequências dialogais a
analisar com mais pormenor, no capítulo XV, encontram-se representadas no Romance
da Raposa. São constituídas por práticas discursivo-textuais coconstruídas por duas
personagens, uma das quais é a conhecida Salta-Pocinhas, que interage directamente
com o teixugo Salamurdo, num caso, e com a ave de rapina Bufo, noutro. O capítulo
XV inclui, no final, retoma de reflexões sobre a problemática da enunciação polifónica,
dimensão discursivo-textual intimamente relacionada com a construção de valores cor-
teses e descorteses, em geral, e o uso de tratamentos (corteses e descorteses também
eles), em particular. Teremos em consideração, neste caso, uma sequência dialogal
representada n’A Via Sinuosa, em que duas personagens - Estefânia e Libório – intera-
gem directamente, que analisaremos apenas sob a vertente polifónica. Estas três sequên-
cias dialogais constituem interacções verbais em sentido estrito. Na análise de todas
estas sequências serão tidas sempre em consideração a complexidade e a dinâmica dos
respectivos co(n)textos, com especial destaque para as relações interpessoais e sociocul-
turais existentes, presumidas e desejadas (ou mesmo indesejadas) entre os interactantes,
interlocutores efectivos ou não.

Além das razões gerais apresentadas na introdução deste estudo, sobre a nossa
preferências pela obra de Aquilino Ribeiro, por um lado, e a validade de análises lin-
guísticas de discursos-textos literários, por outro,1 acrescentamos mais as seguintes jus-
tificações, directamente relacionadas com o corpus ora referido.
A cortesia / descortesia linguística é, como defendemos, uma competência dis-
cursivo-textual que se realiza nas diferentes práticas da actividade da linguagem co(n)-
textualizada, nelas deixando inscritas, por isso, marcas explícitas e/ou implícitas da sua
construção e expressão. Por outras palavras, o exercício da actividade da linguagem
verbal, em virtude da sua natureza intrinsecamente interaccional,2 implica que as dife-
rentes práticas discursivo-textuais coconstroem sempre diferentes, diversas e mais ou
menos complexas formas corteses e/ou descorteses. Numa palavra, todas as interacções

1
Ver, supra, «Introdução Geral», 2.
2
Ver, supra, cap. I.
397

verbais co(n)textualizadas, estritas ou latas, são mais ou menos afectadas por constru-
ções explícitas e/ou implícitas de cortesia ou de descortesia.
Por outro lado, além de estratégias de construção, recuperação e/ou manutenção
de relações interpessoais de concórdia ou de discórdia, as formas explícitas ou implíci-
tas de cortesia e de descortesia funcionam também como estratégias de outros fins, con-
fessados, inconfessados e mesmo inconfessáveis. Em tais casos, as cortesias e descorte-
sias verbais assumem objectivos de natureza retórico-argumentativa (sedução e persua-
são), que se inscrevem, regra geral, nos trabalhos de auto e heterofiguração (favorável
e/ou desfovorável). Estes processos implicam, além disso, a utilização de diferentes
fórmulas e construções, numa mesma interacção e com os mesmos interactantes, ora de
autodesvalorização e de heterovalorização (em casos sobretudo de relações de cortesia),
ora de autovalorização e heterodesvalorização (em casos sobretudo de descortesia),
segundo a teoria das faces descrita e integrada no sistema de cortesia linguística segui-
do.3
Dirigir diferentes formas de cortesia e de descortesia, em particular tratamentos
corteses e descorteses, a uma mesma entidade, interactante directa (alocução), indirecta
(delocução), ou a si próprio (elocução), no decurso duma mesma interacção, ou em inte-
racções diferentes, resulta do facto de um ou todos os interactantes, directa e/ou indirec-
tamente envolvidos em cada uma delas, terem mudado, real ou simbolicamente,
momentânea ou definitivamente, de identidade, ou desejar-se, ou mesmo exigir-se que
tal mudança se concretize. Tais mudanças vão implicar, por isso, mudanças aos outros
níveis da construção das práticas discursivo-textuais que constituem cada uma das inte-
racções verbais em que esses interactantes intervenham, directa ou indirectamente. É a
dimensão dialógica e sobretudo polifónica da linguagem, que permite e explica uma
gestão mais ou menos pacífica ou conflituosa de identidades e das suas representações
linguísticas e sobretudo discursivo-textuais corteses ou descorteses.

Consideramos que se encontram realizados, nos discurso-textos aquilinianos


acima referidos, os principais aspectos que acabámos de sumariamente apresentar e que
serão desenvolvidos ao longo das análises que nos próximos capítulos faremos. Aconte-
ce, porém, que as construções corteses e descorteses, e os valores retórico-argumen-
tativos, dialógicos e polifónicos, implícita ou explicitamente construídos nessas interac-
ções verbais, fazem parte de práticas discursivo-textuais situadas no âmbito da literatura

3
Ver, supra, caps. II, 1.3. e III.
398

e, em particular, da narração escrita. Julgamos conveniente, por isso, recordar, ainda que
brevemente, a complexidade do fenómeno sui generis que é a comunicação narrativa.

Afirma Umberto Eco, referindo-se sobretudo à narrativa literária, que «um texto
postula o próprio destinatário como condição indispensável não só da sua própria capa-
cidade comunicativa concreta, como também da própria potencialidade significativa».
Daí que o autor deva «prever um Leitor-Modelo capaz de cooperar na actualização tex-
tual como ele, o autor, pensava, e de se mover interpretativamente tal como ele se
moveu generativamente.»4 Esse leitor-modelo, consoante as competências de leitura
que o autor nele prevê, admite ou mesmo deseja, pode ser desdobrado num leitor-
modelo ingénuo e num leitor-modelo crítico. O primeiro fará uma interpretação semân-
tica ou semiósica do texto, utopicamente «única», procurando «um segredo individual
ainda desconhecido». O segundo entregar-se-á a uma interpretação crítica ou semiótica,
«não necessariamente única», buscando a «explicação do motivo por que um texto per-
mite ou encoraja interpretações semânticas.»5
Abeiramo-nos, assim, da complexidade da comunicação narrativa literária,6
cujos aspectos principais, como interacção verbal em sentido lato, que encerra, por seu
turno, regra geral, interacções verbais em sentido estrito, iremos brevemente descrever,
partindo do esquema representado na figura seguinte (FIG. 1).

AUTOR REAL

AUTOR LEITOR
NARRADOR PERSONAGEM PERSONAGEM NARRATÁRIO
IMPLÍC. IMPLÍC.

LEITOR REAL

FIG. 1 – Esquema da comunicação narrativa

4
ECO, 1983: 56 e 58. Já Jean-Paul Sartre escrevia que «Tous les ouvrages de l’esprit contiennent en eux
l’image du lecteur auquel ils sont destinés.» [SARTRE, 1942: 92]
5
ECO, 1992: 34 e 35.
6
Sobre a problemática da comunicação literária, face à comunicação linguístico-pragmática, ver ADAM,
1991; MAYORAL (org,), 1987; REYES, 1994; SILVA, 19824: 173-200; VIDAL, 1993: 235-247. Para
análises da narrativa, segundo a linguística discursivo-textual, cf. ADAM, 1985 e 1992: cap. II e ADAM
& LORDA, 1999.
399

Conforme se procura esquematizar na FIG. 1, o autor real e o leitor real, enti-


dades exteriores ao texto em graus diferentes, interagem entre si através desse mesmo
discurso-texto, mas sempre de forma diferida, no tempo e no espaço, não comunicando,
por isso, directamente, tanto no momento da produção como no momento da recepção.
Todavia, no acto de ler, o leitor real estabelece uma especial comunicação com esse
objecto empírico que é o discurso-texto, a totalidade desse objecto e a sua transtextuali-
dade, interagindo (i) directamente (sentido da seta em linha contínua que parte de leitor
real) com o mundo possível desse discurso-texto e (ii) indirectamente (sentido da seta
em linha ponteada), com o mundo-instituição (essencialmente literário e cultural) do
autor real, mundo este de que esse objecto em leitura também faz parte (geralmente
impresso e editado em livro, complexificando assim ainda mais o contexto dessa espe-
cial interacção). Trata-se, por isso, duma interacção em graus diferentes de compreen-
são, consoante as competências de leitura que o leitor real possua – linguísticas, literá-
rias, estéticas, culturais e outras. Daí a representação, no esquema, por linhas descontí-
nuas diferentes, do tipo de diálogo que o leitor real estabelece com o discurso-texto e
com o autor real.
Neste tipo de comunicação, estabelecem-se outras relações e interacções directas
e indirectas entre as diferentes entidades narrativas. O leitor não interage, directamente,
com o autor real, mas com a representação que dele faz, através da imagem que o pri-
meiro de si próprio dá a ver (autor implícito), nesse e, eventualmente, noutros discur-
sos-textos. É esta entidade que, através do seu porta-voz, a entidade narrativa o narra-
dor, interage com os destinatários, explícitos [narratário(s) intradiegético(s) identifi-
cado(s)] ou implícitos [narratário(s) extradiegético(s) anónimo narrativamente reco-
nhecido ou reconhecível como leitor implícito, modelo ou ideal].7 A descrição poderia
ser feita em sentido inverso, isto é, partindo do leitor real e das entidades narrativas
situadas à direita do esquema.
É na complexidade destas relações que se situam as interacções verbais em sen-
tido estrito, coproduzidas pelas entidades narrativas personagens. São elas, duas ou
mais, que trocam intervenções entre si, segundo os turnos de fala que lhes cabem, reali-
zando uma ou mais sequência dialogais propriamente ditas. Convém não deixar de ter
presente, todavia, que a representação dum diálogo, numa narrativa não é nunca a fiel
transcrição duma interacção verbal estrita. O narrador e, em última instância, o autor

7
Para breves descrições de cada uma destas entidades, nomeadamente as destacadas a negrito, cf. REIS &
LOPES, 19902.
400

real (uma vez que o narrador foi por ele constituído seu porta-voz,8 naquele acto de
comunicação ficcional, mesmo quando de terceira pessoa), é quem, no fundo, organiza e
modeliza o discurso-texto individual e o discurso-texto colectivo que as personagens
coconstroem. Por outro lado, convém ter presente que tais sequências dialogais, inde-
pendentemente da sua extensão e composição, fazem parte duma interacção verbal mais
vasta, a narrativa, de cuja estruturação dependem e para a qual concorrem. A autonomia
das personagens é sempre relativa, pois, como observam Reis & Lopes: «o discurso das
personagens aparece sempre inserido no discurso do narrador, entidade responsável
pela organização e modelização do universo diegético.»9 E Graciela Reyes, no seu exce-
lente estudo sobre a polifonia textual em narrativas literárias, observa:

«El narrador, solidarizándose con el personaje, toma a su cargo su discurso y lo re-


modela, lo reformula, aparece diciendo lo que dijo el personaje, o lo que quiso decir, o
lo que pensó, sintió y percibió el personaje, todo en sus propias palabras, no en las del
personaje. El discurso está controlado por el narrador, un narrador sapiente y autoritario,
que manipula y analiza el discurso ajeno, pero que, sin embargo, respeta sus percepcio-
nes y creencias, su sistema conceptual.»10

A representação discursivo-textual duma sequência dialogal, numa ficção literá-


ria, encontra-se, geralmente, reduzida às trocas verbais essenciais entre as personagens,
dispensando-se, frequentemente, as sequências fáticas de abertura e/ou de fechamento.
Além disso, muito frequentemente, o narrador deixa implícitas trocas verbais ou inter-
venções dos interlocutores, narrativiza outras, ou relata-as em discurso indirecto ou em
discurso indirecto livre. Adensa e complexifica, deste modo, ainda mais a polifonia
construída na narrativa e que o leitor real deve saber interpretar, de acordo com a pro-
posta de esquematização narrativa, também ela discursivo-textual, que lhe é apresenta-
da.

«Um texto é um artifício destinado a produzir o seu próprio leitor-modelo. O leitor


empírico é o que faz uma conjectura sobre o leitor-modelo postulado pelo texto. O que
significa que o leitor empírico é o que tenta conjecturas não sobre as intenções do autor

8
Reyes utiliza a sugestiva metáfora do ventríloquo, para explicar o fenómeno. [Cf. REYES, 1984: 127]
9
REIS & LOPES, 19902: 310.
10
REYES, 1984: 201.
401

empírico, mas sim sobre as do autor-modelo. Este é o que, como estratégia textual, tem
tendência para produzir um certo leitor-modelo.»11

Resumindo, podemos dizer que uma narrativa é, na sua configuração discursivo-


-textual de comunicação diferida, uma interacção verbal complexa. O narrador / locutor,
por delegação do autor real, prevê e em parte constrói ou representa a figura dum desti-
natário / alocutário, intra ou extradiegético, identificado ou anónimo, a quem influencia,
explícita ou implicitamente, finalidade esta que, em contrapartida, faz com que seja por
ele indirectamente também influenciado. É através das imagens que das suas criaturas
[narrador(es), narratário(s), personagens] mostra, nas formações discursivo-textuais que
coproduz, que o autor real acaba por agir sobre o leitor real e, correlativamente, em vir-
tude das representações que deste faz, dele sofrer também influências.12

A coconstrução das interacções verbais em sentido estrito e em sentido lato, a


analisar nos capítulos seguintes, são afectadas e condicionadas pelas intenções e efeitos
de cortesia e de descortesia, explícita ou implícita, que os respectivos interactantes,
interlocutores efectivos ou não, visam com e pelas suas práticas discursivo-textuais.

Analisar, ao nível discursivo-textual, a complexidade da comunicação / interac-


ção verbal, na sua dimensão polifónica, a qual articula e conjuga diferentes vozes que
correspondem a outras tantas (id)entidades, pessoais ou alheias, ajudará a compreender
como são pouco pertinentes as reservas de hipocrisia ou falsidade que se fazem, por
vezes, à utilização de construções corteses e descorteses, no decurso das diferentes inte-
racções verbais. Porque não é, no fundo, dum problema de verdade ou de ética, puras e
duras, que se trata, mas, fundamentalmente, duma estratégia retórico-argumentativa de
sedução, persuasão e adesão, por um lado, ou de afastamento, recusa e exclusão, por
outro. Ou, numa palavra, duma competência discursivo-textual, que se realiza em
desempenhos que visam objectivos de comunhão ou de excomunhão, que até podem ser
de comunhão para atingir a excomunhão e vice-versa. Como nos próximos capítulos se
mostrará, a propósito sobretudo das práticas daquela senhora de muita treta aquiliniana.

11
ECO, 1992: 38.
12
Para uma relativa aproximação desta descrição a uma descrição no âmbito da linguística discursivo-tex-
tual, ver, supra, cap. I, nomeadamente subsecção 2.5.
Capítulo XIV

CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS


EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO

Narra tudo quanto chama a atenção para o teu próprio valor.


Aristóteles1

Vamos analisar, neste capítulo, processos linguísticos que realizam, explícita e


implicitamente, expressões corteses e descorteses numa interacção verbal em sentido
lato, isto é, numa prática discursivo-textual monologal, segundo uma perspectiva fun-
damentalmente de figuração (na dupla dimensão de «face want» e «face work»).2
Seleccionámos, para o efeito, o discurso-texto que enquadra (introduz e conclui)
a narração memorial e autobiográfica da novela O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro,
que transcrevemos a seguir, assinalando, com reticências colocadas entre parênteses
rectos, o espaço ocupado pelo discurso-texto da narrativa autodiegética.

«Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz
tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um
nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão. Desciam-lhe umas farripas ralas, em
guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; traja-
va jaleca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa preta de seis voltas a
aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata – e, Aveiro vai, Aveiro vem, no
ofício de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malícia, apenas as mandíbulas de
dogue a atraiçoar o bom-serás, as suas façanhas deixaram eco por toda aquela corda
de povos que anos e anos recorreu. Na velhice, o negócio tilintado através de gerações,
as andanças de recoveiro, o ver e aturar mundo, tinham-no provido de lábia muito
pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso. Nas tardes de feira,
sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tives-
sem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crónica

1
ARISTÓTELES, 1998: 216.
2
Ver, supra, caps. II, 1.3. e III.
404

perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e


forte dum Portugal que morreu.3
[ ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ]
Provecto dos anos, uma tarde, ergueu-se do borralho e saiu a porta para fora, ampa-
rado ao porretinho de marmeleiro. Andava há dias a chocar a morte e deixaram-no ir,
que era relapso a prevenções e cuidados. Sentou-se no poial de pedra, que servia de
amassadoiro do linho. Com mão incerta aconchegou as abas da capucha contra os joe-
lhos regélidos. Nevara, codejara, e as árvores, com o sincelo, estalavam ao peso das
candeias. António Malhadinhas fechou os olhos à semelhança do romeiro que torna de
Santiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e vaus, enxotar cães que
arremetem ameaçadores de currais e quintãs, e adormece a sonhar com o céu num
recosto do caminho. Vergou brandamente a cabeça para o peito, ao tempo que os
dedos lhe pendiam para o chão como vagens maduras. E – o Justo Juiz lhe perdoe as
facadas que as não deu em nenhum santo – nem se sentiu a atravessar as alpoldras
duma margem para a outra do negro rio.»4

1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas

Esta narrativa aquiliniana é, ao nível da enunciação, composição e organização


discursivo-textual, uma novela com moldura. Segundo Cristina Cordeiro, este subgéne-
ro narrativo apresenta-se como a «encenação da palavra de um narrador, que se dirige
directamente a um auditor, e cuja enunciação ocorre no interior de uma situação diegéti-
ca que se apresenta como “moldura”, forma de enquadramento concertada por uma
estratégia inicial e conclusiva.»5 Franck Evrard, por seu turno, define-a segundo as ins-
tâncias da narração e a relação sequencial entre as narrativas encaixante e encaixada que
a constituem, distinguindo dois narradores:

«le narrateur premier (N 1) dispose le cadre du récit avant de déléguer sa parole à


un narrateur second (N 2) qui assume la responsabilité de raconter l’histoire.»6

3
RIBEIRO, 1989: 11
4
RIBEIRO, 1989: 161.
5
CORDEIRO, 2001: 128.
6
EVRARD, 1997: 42.
405

Um dos aspectos que os narratólogos destacam, como característica importante


destas novelas, é o da oralidade: «a novela põe em cena a voz de um “contador de histó-
rias”, privilegiando a personalidade e a “disposição” de quem conta.»7 Com esta estra-
tégia narrativa, N1 visa conferir verdade e sinceridade, verosimilhança, quer à sua nar-
rativa quer à de N2, encenando, para o efeito, diferentes situações de enunciação.
Idêntica situação enunciativa se encontra n’O Malhadinhas. Esta novela é cons-
tituída por dois discursos-textos narrativos distintos, atribuídos as duas entidades enun-
ciadoras (narradores) distintas. O primeiro (enquadrador, objecto desta análise) é produ-
8
zido por um narrador (heterodiegético), a que os narratólogos chamam editor, e o
segundo por um narrador (autodiegético, neste caso) que é também protagonista da nar-
rativa. Trata-se de entidades ficcionais, cujas designações narratológicas vamos manter,
mas que entendemos como vozes de locutores enquanto tais a que o autor real (escritor)
dá um corpo (polifonicamente), na (co)construção verosímil da narrativa.9 Ou seja, o
autor-escritor, para contar a crónica do almocreve de Barrelas, assume-se como um
narrador que exerce, por um lado, a função de narrador-editor e, por outro, a função de
narrador autodiegético.
Temos, assim, que a novela O Malhadinhas é um objecto discursivo-textual
complexo constituído pelo discurso-texto do narrador-editor (D-TE) e pelo discurso-tex-
to do narrador autodiegético (D-TNA), complexidade que, ao nível da sua composição e
organização, representamos como segue (FIG. 1):

O Malhadinhas

D-TE1 D-TNA D-TE2

N1 N2 N1

FIG. 1 – Composição discursivo-textual d’O Malhadinhas

7
CORDEIRO, 2001: 127.
8
Não se confunde com a entidade homónima, «responsável pela produção e difusão da obra literária». A
narratologia chama «editor de uma narrativa à entidade que esporadicamente aparece no seu preâmbulo,
facultando uma qualquer explicação para o aparecimento do relato que depois se insere e de certo modo
responsabilizando-se pela sua divulgação; trata-se, pois, de um intermediário entre o autor e o narrador,
intermediário que mantém com qualquer dos dois relações muito estreitas.» [REIS & LOPES, 19902: 111]
Cf. também REIS, 1985 e TACCA, 1983: 38-60.
9
Cf., supra, cap. I, 2.7.
406

A complexidade narrativa e enunciativa d’O Malhadinhas aumenta considera-


velmente quando se tem em consideração que o D-TNA inclui, na sua composição e
configuração, diferentes sequências dialogais (a maior parte interacções verbais em sen-
tido estrito, outras narrativizadas), travadas entre as personagens que interagem naquele
mundo possível. Tendo em consideração a estrutura desta especial esquematização dis-
cursivo-textual, isto é, os discurso-textos que a constituem e as entidades externas e
internas, reais e imaginárias (ficcionais), por ela e por eles narrativamente responsáveis,
elaborámos o quadro seguinte (FIG. 2), no qual procuramos mostrar as principais rela-
ções / interacções que, directa e indirectamente, tais entidades estabelecem entre si.
Entendemos, portanto, esta narrativa como um acto (macroacto) de comunicação verbal
complexo, fortemente condicionado pelas tais relações / interacções existentes, presu-
midas ou desejadas entre os diferentes interactantes (interlocutores ou não).

AUTOR REAL

O Malhadinhas
Autor modelo

NARRADOR NARRATÁRIO

Heterodiegético Extradiegético
(Editor) Implícito
(Leitor modelo)
Autodiegético Extradiegético Explícito
(Velho Malhadinhas) (Auditório)

Personagem Personagem

Leitor-modelo

LEITOR REAL

FIG. 2 – Relações / interacções n’O Malhadinhas


407

Explicitando-se a FIG. 2, diremos que, partindo-se da base, o leitor real interage,


directa, mas assimetricamente, com o livro-objecto O Malhadinhas (a sua edição), pas-
sando depois a interagir, directa e ainda assimetricamente, com a novela. E é sempre
através desta que o leitor real interage, por outro lado, com as entidades narrativas que
nela se encontram configuradas, explícita ou implicitamente, desde as personagens ao
leitor e autor modelos. Destas entidades o leitor real constrói uma representação,
baseando-se, fundamentalmente, nos discursos-textos por elas produzidos, bem como
no D- -TE e no D-TNA.
É tendo em conta este universo de ficção literária que o leitor real interage, indi-
recta e, mais uma vez, assimetricamente, com o autor real, entendido como autor-escri-
tor, do qual aliás pode possuir já uma representação mais ou menos incompleta, mais ou
menos próxima ou coincidente com a representação do autor modelo. Esta interacção
será tanto mais aprofundada e intensa quanto maior for o conhecimento que o leitor real
tiver do autor real (escritor), da sua biografia e bibliografia (activa e passiva). O leitor
real deverá possuir, por isso, uma competência não só linguística, mas também cultural,
literária e narrativa (competência enciclopédica, numa palavra) que, consoante o grau de
desenvolvimento, lhe permitirá interagir mais ou menos criticamente (semioticamente)
com o todo discursivo-textual que é a novela.10 A linha descontínua (ponteada e traceja-
da) que une o leitor real ao autor real (escritor) procura representar a complexidade das
redes que um leitor terá de atravessar para interagir, comunicar com O Malhadinhas.
Tal, porém, como o leitor real constrói uma imagem do autor-escritor, também
este constrói e dá a ver a imagem dum leitor modelo, isto é, daquele leitor a quem,
explícita ou implicitamente, se dirige. A este propósito, convém referir que, no caso da
edição d’O Malhadinhas consultada, são configuradas três imagens de leitores modelos:

(i) a que é proposta pelo autor-escritor, na «Nota Preliminar» que antecede a novela;
(ii) a que é proposta pelo narrador-editor, no D-TE;
(iii) a que é proposta pelo narrador autodiegético, no D-TNA.

10
O mundo criado pelo narrador «es producido por la escritura pero sobre todo recreado por el lector
interpretante a partir de sus propios conocimientos, de sus recuerdos y su imaginación. El descriptor [os
autores referem-se sobretudo aos processos de descrição também presentes na narrativa] se apoya conti-
nuamente en ese bagaje del oyente/lector, ya que en la difícil tarea de recrear mediante la linearidad de las
palabras el mundo real en tres dimensiones se recurre constantemente a la experiencia del narratario.»
[ADAM & LORDA, 1999: 141]
408

O leitor modelo proposto ou sugerido pelo discurso-texto do autor real é extra-


diegético, mas o facto não significa que o autor-escritor não preveja aí já a imagem dum
leitor não só para as duas novelas (O Malhadinhas e Mina de Diamantes), como para
toda a sua obra.11 O discurso-texto do editor (D-TE) sugere também um leitor modelo,
que pode ser identificado com a noção de narratário extradiegético e implícito. O leitor
modelo de D-TNA não corresponde, exactamente, ao narratário extradiegético explícito
do relato do velho Malhadinhas. Este, ao narrar as façanhas da sua vida adulta, tinha um
auditório que não se confunde, evidentemente, com o leitor modelo.12
Temos que a novela O Malhadinhas se desenvolve numa rede polifónica e dia-
lógica, de sucessivas assunções e delegações discursivas: o autor real delega num narra-
dor heterodiegético a sua competência de produção narrativa, o qual delega, por seu
turno, tal competência num editor que, por seu turno, a delega no narrador autodiegético
que encarna o velho contador, o qual é capaz, também, de reproduzir as intervenções
que as personagens produzem. Intervenções que tais personagens organizam em trocas e
sequências dialogais, por delegação e sob controle, em primeira instância, desse narra-
dor autodiegético e, em última instância, do autor real. Uma rede dialógica e polifónica,
pois como observam Adam & Lorda, «quien relata va desempeñando los distintos pape-
les de aquellos cuyo diálogo cita [...] directamente.»13
Temos assim que, partindo agora do interior da FIG. 2, as personagens intera-
gem, directa e indirectamente (seta quebrada contínua bidireccionada), no seio duma
interacção indirecta mais ampla, aquela em que o narrador autodiegético (velho Malha-
dinhas) interage, directa mas assimetricamente, com um narratário extradiegético explí-
cito (setas quebradas unidireccionais, constituídas, uma, por uma linha contínua e,
outra, por uma linha descontínua), indirecta e ainda mais assimetricamente, com o leitor
modelo e o leitor real. Esta última interacção, por seu turno, ocorre no seio duma outra
interacção ainda mais ampla, aquela que se verifica entre o narrador-editor e o narratário
extradiegético implícito, que identificamos como leitor modelo. Toda esta cadeia (ou
circuito) de relações se integra, enquadra, desenvolve e organiza, por último, na interac-

11
Cf. RIBEIRO, 1989: 7 e 9. Em RIBEIRO, 1989, encontra-se também a novela Mina de Diamantes.
12
Identificado tal auditório, pelo narrador-editor, como constituído, sobretudo, pelos «escrivães da vila e
manatas» de Barrelas, entretanto elevada à categoria de Vila Nova de Paiva (1883), o narrador autodiegé-
tico, isto é, o velho Malhadinhas, vai dirigir-se-lhes, todavia, utilizando diferentes tratamentos que
expressam diferentes níveis de relação cortês: Vossorias, fidalgos, senhores, amigos e até vos (vós). Os
tratamentos nominais são acompanhados, por vezes, de determinantes possessivos e/ou definidos.
13
ADAM & LORDA, 1999: 124.
409

ção ainda mais ampla que o leitor real tem e mantém com a obra O Malhadinhas, o seu
autor-escritor e o respectivo universo literário.
Tratando-se dum discurso-texto monogal, que não deixa, por isso, de constituir
uma interacção verbal, poderíamos considerar a novela O Malhadinhas (D-TE +
D-TNA) como um demorado turno de fala que numa longa e muito complexa interven-
ção se concretiza – o próprio autor-escritor chama-lhe «longo monólogo»14 – configu-
rada por um autor real que finge de narrador / editor, para a introduzir e concluir, depois
de fingir que é o locutor / narrador tio Malhadinhas que conta, de facto, a sua própria
crónica a um determinado auditório, com o qual interage face-a-face, ainda que unidi-
reccionalmente.15 O autor real desdobra-se, assim, sucessivamente, em diferentes perso-
nalidades que cria e controla, atribuindo-lhe diferentes vozes narrativas, fingindo ser
como elas, para contar a história com verosimilhança. Autor real que, em contrapartida,
através de cada e para cada um dos seus fingimentos, cria, consciente ou inconsciente-
mente, outras tantas fingidas personalidades de recepção, nomeadas ou anónimas, para
com elas poder interagir, dialogar, comunicar.

2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas

Dado que O Malhadinhas é uma novela com moldura, o D-TE pode ser conside-
rado a narrativa encaixante16 da narrativa encaixada D-TNA. D-TE apresenta-se, por
isso, segmentado em duas partes distintas: uma primeira (ocupando uma página) que
antecede e constitui o proémio do D-TNA, parte que anotámos D-TE1, e uma segunda
(pouco mais de meia página) que segue e constitui o epílogo de D-TNA, notada D-TE2.
Em D-TE1, o editor apresenta e caracteriza, psicológica e fisicamente, em traços gerais,
«aquele Malhadinhas de Barrelas», no seu duplo estatuto de protagonista (e tema) da
narrativa e de contador das suas próprias façanhas e aventuras (narrador autodiegético e
protagonista da narração), bem como outros dados co(n)textuais relativos à primitiva

14
RIBEIRO, 1989: 8. Cf. Também MENDES, 19772: 89-90.
15
Cabe observar que, frequentemente, o narrador autodiegético realiza actos verbais de natureza fática
que constituem réplicas a possíveis reacções verbais ou não verbais do auditório. Como exemplo, veja-se
esta passagem: «Já os olhos de Rita se alegravam e me pareciam estorninhos a saltaricar num jardim. Sim,
senhores, não façam troça que, tê-la ali a ver-me como me via, se me não trouxe ânimo [...] trouxe-me
samgue-frio e vontade para levar a bom termo a desafronta que estivera magicadndo.» [RIBEIRO, 1989:
37. Itálicos da nossa responsabilidade.]
16
A narrativa D-TE pode ser entendida, também, como resumo da narrativa D-TNA.
410

narração oral (tempo, espaço e narratários). Em D-TE2, o editor narra a morte do velho
almocreve, já que este não o podia fazer, por se tratar dum relato autobiográfico.
Como representámos na FIG. 2, o editor interage, ainda que assimetricamente,
com o leitor modelo do seu próprio texto (mais directamente) e do texto do narrador
autodiegético (menos directamente), além de interagir com o leitor real (indirectamen-
te). Os dados pessoais que o editor fornece explicitamente a seu respeito e dos seus
hipotéticos interactantes são muito reduzidos, bem como a respeito do quadro espá-
cio--temporal de realização do seu discurso-texto.17 Presta mais informações acerca do
tema e finalidades (internas e externas) desta sua actividade discursivo-textual.
É no final de D-TE1, imediatamente antes de ceder a palavra, a voz e o turno de
fala ao narrador autodiegético, que o editor se refere a si próprio:

(1) «Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais
de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, [o Malhadi-
nhas de Barrelas] desbocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e
manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que
já morreu.»18

Não é, todavia, para apenas informar que foi dos que ouviram o tio Malhadinhas
contar as suas façanhas, nem mesmo para informar que é a instância enunciadora de D-
TE, que o editor utiliza o deíctico de primeira pessoa («eu»). O que ele pretende sobre-
tudo afirmar é que foi um ouvinte diferente, uma testemunha especial desse relato origi-
nal, com interesses especiais e, por isso, com uma postura intelectual também diferente
dos restantes ouvintes. Apresenta-se, assim, como um sujeito locutor credenciado e por
isso credível, conforme recomenda o ethos retórico.19 Sugere, deste modo, para si pró-
prio um lugar à parte, distante e superior, não só em relação à crónica do almocreve (e
ao próprio almocreve), mas também e principalmente em relação aos narratários deste
último e em relação ao leitor comum, quanto à interpretação que dessa crónica deverá
ser feita.
Representamos, na FIG. 3 (página seguinte), estas oposições.

17
No final da novela encontra-se apenas a seguinte indicação: «Lisboa, 1922.» [RIBEIRO, 1989: 161]
18
Id.: 11. O destaque a negrito é da nossa responsabilidade.
19
Cf., supra, cap. I, 2.6.
411

Editor

Escrivães Leitor
e manatas modelo e real

FIG. 3 – O editor vs. seus interactantes.

A oposição mais vincada do editor é em relação aos escrivães e manatas, ou


melhor, à interpretação que eles fariam do relato dessas façanhas. Enquanto eles ouvi-
riam e veriam nelas apenas uma divertida crónica autobiográfica, seduzidos pela «lábia
muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso» do experien-
te conversador e contador, ele, por seu turno, ouvia e via nelas, mais que isso, «a gesta
bárbara e forte dum Portugal que morreu.» E esta é também a interpretação que ele
quer, implicitamente, que o leitor (modelo e real) faça. O editor exclui-se, assim, do
grupo dos escrivães e manatas, por um lado, mas eleva e aproxima(-se de) o leitor
(modelo e real), por outro. O triângulo anterior terá, portanto, uma representação par-
cialmente invertida (FIG. 3’), uma vez que o editor deseja que o leitor (modelo e real)
seja dotado duma competência idêntica à sua.

Editor Leitor
modelo e real

Escrivães e manatas

FIG. 3’ – O editor vs. seus interactantes.

Ao nível da relação de poder (taxémica), editor e leitor encontrar-se-ão, então, a


um mesmo nível. As diferenças situar-se-ão, apenas, ao nível da relação de proximidade
(proxémica). Explícita ou implicitamente, cada autor (ou seus delegados) quer sempre
um leitor à sua altura, isto é, dotado duma competência correlativa, para que a interac-
412

ção que com ele estabelece seja, de facto, um pôr em comum, uma partilha, comunica-
ção. Nesta ordem de ideias, o leitor, mais que um oponente, é um colaborador, um coo-
perante, um interlocutor desejado, imprescindível. O autor (ou seus delegados) valoriza,
assim, ainda que implicitamente, as qualidades do leitor, atingindo-o favoravelmente na
sua autoestima, na sua face positiva, segundo a retórica do pathos. O autor (ou seus
delegados) é assim implicitamente cortês com o(s) seu(s) leitor(es), através do discur-
so- -texto (logos) que constrói (coconstrói). Tais processos inscrevem-se assi, no quadro
dos actos valorizadores de faces (FFA).20
A oposição escrivães / manatas vs. leitor (modelo e real) é, todavia, aparente,
isto é, mais desejada (ou receada) que efectiva. (Daí a linha tracejada.) O receio de que
o leitor se fique (fixe) apenas nos aspectos pitorescos (superficiais) da narrativa, tal
como os escrivães e manatas o teriam feito (linha da base, na FIG. 3), é que leva, por
outro lado, o editor a fazer aquela sugestão interpretativa, obviamente de natureza ideo-
lógica e cultural. Ao contrário da oposição editor vs. escrivães / manatas, que entende-
mos como bidireccionada (↔),21 a oposição editor vs. leitor é unidireccionada (→), uma
vez que a entendemos como uma implícita instrução ou orientação de leitura, por um
lado, e como manifestação da intencionalidade última da narrativa, por outro. Neste
sentido, «a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu» pode ser a macroproposi-
ção que resume a macroestrutura semântica d’O Malhadinhas.

2.1. Construções corteses e descorteses

Explicitemos as construções implícitas de cortesia / descortesia que, com uma


quádrupla orientação, encontramos em D-TE, a saber:

20
Ver, supra, caps. II e III, passim.
21
É possível encontrar nos tratamentos delocutivos escrivães da vila e manatas sinais de que o editor não
estimaria muito tais personalidades, ou quem elas representavam, do mesmo modo que elas também não o
estimariam a ele, ou quem ele representava. [Cf. RIBEIRO, 1989: 9]. Por outro lado, o velho Malhadi-
nhas declara, a dado momento do relato, que se fosse rei, «mondava Portugal», mandando queimar num
outeiro ministros, juízes, escrivães e doutores de má morte, todos uma «choldra de ladrões!» [RIBEIRO,
1989: 153]. Henrique Almeida, procurando explicitar quem seriam tais «escrivães da vila e manatas»,
anota: «pessoas socialmente importantes, talvez alguns mais letrados, mas sem aquela experiência de
vida, que ensina o que a vida é...» Tratar-se-ia de «um ou outro magnata, indivíduos grados de haveres e
de posição, ou mais influentes no meio», a par de «janotas, os bon vivant, ou seja, os que viviam ociosa-
mente com as preocupações que não chegavam a ter. Formalmente, são pois pessoas que gozam de um
estatuto de superioridade em relação ao narrador [velho Malhadinhas], independentemente dos factores
dessa relevância social.» [ALMEIDA, 1992: 53]
413

(i) para a face do leitor;


(ii) para a face dos escrivães e manatas;
(iii) para a face do próprio editor;
(iv) para a face do narrador autodiegético.22

Quanto a (i), em vez de recomendar, explicitamente, através dum acto directivo,


parafraseável por

(2) “O leitor deve ler / ouvir o relato do velho Malhadinhas de Barrelas como a gesta
bárbara e forte dum Portugal que morreu”,

o editor manifesta / propõe a sua interpretação da crónica, atenuando, desse modo, o


efeito directivo e depreciativo que tal acto causaria nas faces, positiva e negativa, do
leitor. Dizer ou indicar explicitamente a um leitor que ele leia / interprete de determina-
da maneira é, por um lado, invadir-lhe o território (face negativa) e, por outro, pressupor
que ele possui, no mínimo, uma competência de leitura / interpretação deficiente, o que
é um ataque ao seu “narcisismo”, à sua autoestima (face positiva). Por outro lado, o edi-
tor atenua a possível ameaça da sua instrução de leitura («ouvir a gesta bárbara e forte
dum Portugal que morreu»), precedendo-a de um preacto modalizador de natureza epis-
témica («eu tinha a impressão de»). Dizer que se tinha a impressão de é uma estratégia
(um aspecto da competência) discursivo-textual de cortesia, através da qual o locutor
simultaneamente prepara e atenua o objectivo ilocutório do acto verbal seguinte, dei-
xando ao interactante a liberdade de aceitar ou não tal impressão, isto é, sugestão implí-
cita. Os modalizadores, «lorsqu’ils accompagnent une assertion, instaurent une certaine
distance entre le sujet d’énonciation et le contenu de l’énoncé, et par la même lui don-
nent des allures moins péremptoires, donc plus polies».23
Os escrivães e manatas [orientação (ii)], por seu turno, têm também a sua face
salvaguardada, na medida em que o editor não diz, explicitamente, que eles se ficam
(fixam) pelos aspectos pitorescos (superficiais) da narração, apenas é insinuada tal
(in)competência, ao afastar-se deles na interpretação que faz e implicitamente propõe
da crónica.

22
Este ponto será analisado, infra, em 2.2. Processos de figuração.
23
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57-58.
414

Orientando, por um lado, e criticando, por outro, indirecta e indirectivamente,


um e outros, também o editor protege [orientação (iii)] a sua própria face, uma vez que
ele nunca diz, explicitamente, que o leitor deve interpretar o relato do velho Malhadi-
nhas segundo a sua impressão (sugestão), nem que os escrivães e manatas o interpreta-
vam desta ou daquela maneira. Deve-se referir, a propósito, que o preacto modalizador
acima referido reverte também a favor da valorização da face positiva do editor, na
medida em que atenua, quer a asserção explícita, quer o seu valor injuntivo implícito.
Marcador discursivo desta oposição implícita, a nível de capacidade interpretati-
va e/ou da intencionalidade d’O Malhadinhas, encontra-se no valor polifónico e con-
trastivo do morfema e que conecta os segmentos (p) e (q), como se pode verificar na
paráfrase do respectivo fragmento:

(3) (p) “Os escrivães da vila e os manatas (ou)viam, sobretudo, no relato do velho
Malhadinhas, a narração pitoresca duma crónica autobiográfica,
mas
(q) eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que mor-
reu.”

O marcador e, i. e., mas, é um operador que altera a orientação argumentativa de


p para uma determinada conclusão implícita r (parafraseável por “o leitor deve interpre-
tar a crónica do velho Malhadinhas como a interpretavam os escrivães e manatas”),
oposta à conclusão explícita q (não r), «eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e
forte dum Portugal que morreu». Ou seja, o editor, servindo-se da autoridade / credibi-
lidade (ethos) que a circunstância especial de ter sido testemunha privilegiada da narra-
ção primitiva lhe confere, orienta o leitor no sentido da interpretação desejada (pathos),
através do discurso-texto (logos) que produz.
Temos, assim, duas posições distintas, face à narração do velho Malhadinhas: a
dos escrivães e manatas, por um lado, e a do narrador-editor («eu»), por outro. Tais
posições, em virtude dos respectivos estatutos, levam a interpretações também distintas,
ao nível do género e valor estético (crónica, aspecto realista, menos literário, mais pito-
resco vs. gesta, aspecto simbólico, mais literário, com pretensões épicas), e ao nível
ideológico e cultural (Portugal que ainda vive vs. Portugal que morreu).24 Trata-se de

24
Recorde-se que a novela foi publicada em 1922, mas o tempo da narração situa-se nos fins da monar-
quia. Lembre-se também que Aquilino Ribeiro foi sempre um republicano defensor da liberdade.
415

interpretações que resultam de competências de leitura também distintas, ingénua ou


semiósica vs. crítica ou semiótica, recordando-se as noções de Eco.25 O editor deseja,
obviamente, que o leitor real faça sobretudo uma leitura semiótica, já que essa é uma
exigência do seu leitor modelo. Esquematiza-se, na FIG. 4, a breve descrição feita.

O Malhadinhas

Auditório

escrivães e manatas e eu
(mas)

crónica autobiográfica pitoresca gesta bárbara e forte

(Portugal ainda vivo) Portugal que morreu

(Leitura ingénua ou semiósica) (Leitura crítica ou semiótica)

(Leitor comum) (Leitor modelo)

Leitor

FIG. 4 – Leitura e interpretações d’O Malhadinhas, segundo o editor.

Cabe observar que a leitura da FIG. 4 tanto pode ser feita no sentido descenden-
te, como ascendente. Seguir pela via da esquerda ou pela via da direita depende, funda-
mentalmente, da competência de leitura de cada um, ou da leitura que queira fazer cada
um. Uma coisa, porém, é certa: o editor segue e recomenda a via da leitura semiótica.
Convirá referir, a propósito, que o editor, ao propor e desejar uma leitura semiótica para

25
Cf., supra, cap. XIII.
416

a narração do velho Malhadinhas, que ele próprio configurou em narrativa escrita literá-
ria, como se verá a seguir, é exigir, ainda que implicitamente, o reconhecimento, por um
lado, de tal trabalho e, por outro, o valor estético do texto produzido. Em termos de cor-
tesia, podemos dizer que, neste caso, o editor (e pela sua voz o autor real), procede(m) a
um trabalho também de preservação da(s) sua(s) face(s) pública(s), de figuração.26
Permite-nos a descrição desta oposição implícita aos escrivães e manatas reto-
mar a definição da entidade ficcional editor. Como já tivemos oportunidade de referir, o
fragmento textual (1), depois parcialmente parafraseado em (3), fecha D-TE1, imedia-
tamente antes de ceder a palavra (a voz) ao narrador autodiegético. Termina esta parte
com o segmento q, que consideramos manifestar a orientação da leitura / interpretação
desejada e a intencionalidade da narrativa (a sua mira ilocutória).
Consideramos estratégica a posição que este fragmento e particularmente o seg-
mento q ocupam em D-TE1. Tal posição, tendo em conta as considerações acima feitas,
pretende sugerir que o texto narrativo literário escrito, imediatamente situado a seguir e
a ler (a narrativa memorial e autobiográfica encaixada), não é da responsabilidade narra-
tiva do reformado almocreve, mas sim dele próprio, narrador-editor. Com efeito, é este
(ficção polifónica do autor-escritor), testemunha pessoal da narração primitiva oral («eu
tinha a impressão de ouvir»), informal («desbocava-se»), desconexa («desfiar»), repe-
tida («nas tardes de feira»), feita por um ébrio («alegre do verdeal»), que nos permite
dispor, como observa Carlos Reis, de «uma narrativa razoavelmente estruturada, supe-
rando a rudeza e a precaridade cultural que não é difícil reconhecer no narrador». Rele-
vando esta «função», o narratólogo considera, por isso, que o editor é «co-responsável
pela estratégia narrativa instaurada n’O Malhadinhas». A ele coube a corresponsabili-
dade da «configuração final da narrativa, entendida como processo de harmonização e
organização de elementos diversos (acções, reflexões, componentes espaciais, vivências
temporais)», fazendo da narração do velho, ébrio, inculto e insipiente narrador, apesar
da lábia, uma narrativa, ou seja, de «um conjunto disperso de recordações» uma «tota-
lidade inteligível».27 Corresponsabilidade do editor, por delegação, repita-se, do autor
real. Na «Nota Preliminar», recorrendo a um processo cortês de apagamento (impessoa-

26
Este trabalho de figuração do narrador-editor pode ser aproximado de idêntico esforço da parte do
autor-escritor. Com efeito, encontramos na «Nota preliminar» vários segmentos discursivo-textuais que
mostram claramente quanto o autor prezava a sua imagem de escritor e de cidadão, ou melhor, de cida-
dão-escritor ou escritor-cidadão. Cf. RIBEIRO, 1989: 7-8.
27
REIS, 1985: 46 e 48.
417

lização), o autor-escritor adverte que, na escrita d’O Malhadinhas, «se desdenhou da


corruptela prosódica, fonte abundante e fácil de pitoresco», para acrescentar:

«Reproduzir a linguagem dum rústico, já não digo com fidelidade mas artifício, redun-
daria num árduo e incompensável lavor literário. O que se cometeu foi filtrá-la, mais na
substância do que na forma, com o cuidado, por conseguinte, de poupar ao oiro verbal
as suas pepitas preciosas.»28

Como é evidente, o verdadeiro responsável pela novela O Malhadinhas é o seu


autor-escritor, ainda que ele finja ser outras entidades que, num desdobramento de per-
sonalidade, exigem logicamente outras vozes narrativas, para assim tornar mais realista,
objectiva e verosímil a história que conta.

2.2. Processos de figuração

Em D-TE1, o narrador-editor faz também a caracterização física e psicológica do


Malhadinhas de Barrelas, na sua dupla condição de protagonista da narração (contador)
e protagonista da narrativa (personagem). Aliás, é por esta caracterização que começa,
precisamente:

(4) «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura,
voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de,
por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão.»29

Obedece este processo de caracterização pejorativa a uma estratégia discursivo-


-textual de figuração externa (isto é, independente da vontade do próprio), através do
qual o editor retrata a face pública do almocreve que, como marca indelével, o identifi-
ca. É por isso que o primeiro acto discursivo-textual (41) domina e condiciona toda a
novela, desde o D-TE ao D-TNA.

(41) «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas [!]»

28
RIBEIRO, 1989: 8.
29
Id.: 11.
418

O narrador-editor resume em (41) os principais dados acerca da personagem


protagonista: nome-apelido intimamente associado ao topónimo de nascimento e resi-
dência («Malhadinhas de Barrelas»), precedido dum deíctico de distanciamento
(«aquele») e dum qualificativo depreciativo («danado»). A estrutura de (41), porém,
apresenta uma ordenação sintagmática inversa à enumeração acabada de fazer. A sua
construção predicativa inversa (a “Aquele Malhadinhas de Barrelas [é] danado”) e
truncada (ausência da forma verbal) resulta da sua realização exclamativa (apesar da
falta do respectivo sinal de pontuação). Tal ordenação desloca para o lugar de sujeito ou
tópico o predicado obrigatório (nome predicativo do sujeito) ou comentário. O termo
danado, recebe, assim, o valor de informação conhecida, e, além disso, um acento de
intensidade que o aproxima dos valores pragmáticos da interjeição. O editor expressa,
assim, o seu estado de espírito de surpresa, relativamente à maneira de ser e actuar do
Malhadinhas. É formulado, deste modo, como dado indiscutível, um juízo de valor
sobre o almocreve, cuja verdade é apresentada como reconhecida e aceite também pelo
leitor, na medida em que, como interjeição, danado tem também um valor fático30 que
reclama um interlocutor e a sua atenção. Por outro lado, o editor serve-se duma estraté-
gia discursivo-textual polifónica de relativo apagamento enunciativo, sugerindo tratar-se
mais duma citação anónima e reconhecida por uma comunidade, sobre um estado de
coisas, do que duma asserção da sua inteira responsabilidade.31
Ao enunciar (41), o editor realiza, pois, um acto ilocutoriamente complexo, uma
hiperasserção.32 Além do estado de coisas asserido e do estado de espírito expresso,
encerra também valores de performatividade, ou seja, de verdade irrefutável que não
admite discussão ou contestação. Não sendo, porém, um acto declarativo puro, a sua
realização aproxima-se, por isso, mais de tese que exige a apresentação das razões que a
validem. Todo o acto (41) e particularmente o seu primeiro termo - danado - passam a

30
«Les interjections sont essentiellement des morphèmes phatiques dont le sens se rapporte à l’action. A
la différence des phatiques décrits plus haut et dont le sens se rapporte essentiellement au dialogue lui-
même [«l’entrée en dialogue», «la continuation du dialogue», «la sortie du dialogue» e de «l’assentiment
et la contradiction»], les interjections renvoient plus nettement à la situation d’actance pragmatique pour
l’intégrer à la situation de dialogue par un énoncé phatique plus ou moins spontané. Dans les cas-limites il
peut même s’agir d’un état de choses abstrait ou d’un événement (naturel) qui n’est pas en soi une situa-
tion d’actance mais qui appelle des actions en réponse.» [WEINRICH, 1989 : 501.]
31
Perelman observa que, quando um orador quer «agir eficazmente pelo seu discurso» sobre o seu auditó-
rio, deve adaptar-se a ele, consistindo essa adaptação, «essencialmente», «em o orador só poder escolher,
como ponto de partida do seu raciocínio teses, admitidas por aqueles a quem se dirige.» [PERELMAN,
1993: 41]
32
O termo «hiper-asserção» é utilizado por Sylvie Durrer para definir os valores que, de um ponto de
vista pragmático, encontra nas exclamações, uma vez que «sont énoncés présentés comme ayant une
valeur de vérité irréfutable, qui ne sont pas soumises à la discussion». [DURRER, 1994 : 118]
419

funcionar, nestas condições co(n)textuais, como um operador discursivo-argumentativo,


dado que, uma vez proferido, cria no leitor um horizonte de expectativas a que o enun-
ciador não pode deixar de corresponder, passando a sentir-se como que obrigado a justi-
ficar por que razão ou razões assim refere e trata o almocreve protagonista, se não qui-
ser ser descortês.
Ao formular este enunciado exclamativo, o mesmo editor está, por outro lado, a
produzir um enunciado referencialmente ambíguo, pois que pode funcionar, simulta-
neamente, como anáfora de conhecimento (deíctico exofórico), ou catáfora discursiva
(deíctico endofórico). Enquanto processo de relação anafórica, remete para o conheci-
mento que se tem dum estado de coisas anterior à situação de enunciação e, por isso,
ainda não discursivamente realizado. Estado de coisas que é também (re)conhecido,
pelo menos em parte («aquele Malhadinhas de Barrelas» e os seus comportamentos),
pelo seu hipotético leitor interactante. Enquanto processo de referência catafórica, (41)
remete para termos ou estados de coisas localizáveis no discurso-texto em curso. Uma
representação esquemática deste duplo processo de referência (movimento) anafórica e
catafórica, pode ser a seguinte:

Anáfora
de conhecimento

«Danado aquele Malhadinhas de Barrelas [!]»

Catáfora
discursivo-textual

FIG. 5 – Anáfora de conhecimento e catáfora discursivo-textual.

A propósito da função das exclamações, observa Weinrich que quando um esta-


do de coisas se nos apresenta muito diferente do que eram as nossas expectativas, rea-
gimos com uma exclamação, através da qual manifestamos a nossa surpresa. E acres-
centa:

«Un grand nombre d’exclamations peuvent se décrire dans leur structure grammaticale
comme des réponses ayant la forme de questions. Cette structure duale exprime bien la
420

fonction des exclamations dans le dialogue: ce sont des réponses pour autant qu’elles
expriment une réaction à des situations ou à des faits surprenants, et ce sont des ques-
tions dans la mesure où elles manifestent un besoin de clarté supplémentaire sur des
faits ressentis comme étonnants.»33

É esta necessidade de clareza suplementar (movimento catafórico) que obriga o


editor a justificar por que refere e trata o Malhadinhas por «danado». Danado, porquê?
E quem é esse tal Malhadinhas de Barrelas? Perguntar-se-á o hipotético alocutário, o
leitor (modelo e real). Danado, porque tal indivíduo (justifica o narrador-editor), ao
contrário do que o seu aspecto físico sugeria, i. e., apesar de se tratar dum

(42) «homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez»,

não era o bom-serás34 que parecia, a ponto de

(43) «que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o
abdómen dum cristão.»

O Malhadinhas é, pois, danado (41), porque, apesar das aparências (42), é um


facínora (43). Convém referir, todavia, que (43) não é a razão ou a causa do conteúdo
proposicional de (41), do enunciado, mas da enunciação, do dizer. Parafraseando-se o
que, a propósito de construções que encerram uma dimensão de causalidade, servindo-
-se da distinção entre «causais de re/do enunciado e causais de dicto/da enunciação»,
observa Fonseca que «o estado de coisas contido em q [(43), no nosso caso] é visto, e
invocado, como razão suficiente da enunciação de p [(41), no nosso caso]».35 Apesar, ou
além de (42).
É, contudo, o contraste entre o parecer (42) e o ser (43), entre a aparência e a
realidade, que gera a surpresa e leva à exclamação (41). Repare-se que o editor, para
justificar (41), recorre a uma construção consecutiva, de que (42) constitui a chamada
oração principal e (43) a subordinada. O editor deixa, deste modo, para o fim do período
a apresentação da razão por que Malhadinhas é danado e por que o faz com uma excla-

33
WEINRICH, 1989 : 559.
34
«Bom-serás» é o termo que o editor utiliza para sintetizar as características que as aparências físicas do
almocreve davam a entender. Cf., infra.
35
FONSECA (J.), 1994: 138 e 139.
421

mativa. Tal como Adam observa, a propósito da organização sintagmática canónica das
proposições que constituem os insultos rituais, também a justificação de (41), através de
(42) e (43), «n’est pas aléatoire, mais déterminé par la recherche d’un effet de sens, d’un
effet rhétorico-stylistique de “pointe” qui consiste à placer en position finale l’élément
le plus inattendu».36 A surpresa que o editor sente e quer partilhar com o leitor não é,
assim, só pelo facto do almocreve ser um facínora, mas também por as suas aparências
funcionarem como argumentos que orientam para uma conclusão oposta, isto é, não
facínora, ou seja, bom-serás. A forma negativa por que começa a consecutiva corrige a
orientação / conclusão de leitura / interpretação implicada por (42), mas não formulada,
para reforçar a orientação / conclusão oposta realizada em (43).37
Aquele Malhadinhas de Barrelas é apresentado, desta forma, como triplamente
danado, isto é, condenado. Danado pelos danos que, com a naifa, fez e era capaz de
fazer, danado por uma inclinação natural38 (como que de ordem genética) ter para o uso
de tal arma, danado por hábil e competente ser no seu uso.
Sabido por que razão era danado (condenado), faltava responder, a quem não
soubesse, quem era aquele Malhadinhas de Barrelas, protagonista da narrativa. Depois
de o descrever pelas características do rosto, calçado, vestuário e adornos, as quais, à
excepção das «mandíbulas de dogue», também levavam a vê-lo como um bom-serás, o
editor informa que se trata dum almocreve, com território demarcado, ao longo de mui-
tos anos, em viagens e trocas realizadas entre Barrelas e Aveiro.
Sendo, como propomos, a condição de danado a dominar a construção de D-TE
(como a de D-TNA), danado era também o Malhadinhas para e nas artes de almocreve,
como o eco (ou fama) de suas façanhas (não só com faca) deixado naqueles povos ates-
ta.39 Mas o editor diz-nos também, ainda em D-TE1, que o Malhadinhas era também
danado por, para e no uso da língua, competência adquirida e desenvolvida nas artima-
nhas da vida e nos negócios de terra-em-terra praticados. Foi assim que ficou dotado
«de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso»,
competência discursivo-textual que, na velhice, lhe serviu para, através do relato dos
principais acontecimentos vividos e reflexões afins, mostrar que não fora danado, nem
como tal deve continuar a ser visto (condenado).

36
ADAM, 1999: 167.
37
Sobre os valores sintáctico-semânticos e pragmáticos das consecutivas em Português, cfr. FONSECA
(J.), 1994: 133-195.
38
Danado, neste sentido, encontra-se, também, nesta intervenção de Claudina Bisagra: «[...] Hábeis e
danados para a vida não há como filhos de padre...» [RIBEIRO, 1989: 50.]
39
RIBEIRO, 1989: 11.
422

2.3. Da figuração descortês à figuração cortês.

O segmento (41) − «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas» − é também uma


forma de tratamento (FT), cuja composição e funções vamos agora analisar, no quadro
do sistema de cortesia / descortesia linguística. Além duma referência obviamente delo-
cutiva, é uma forma de tratamento complexa que reúne dados de natureza diversa, rela-
tivamente ao indivíduo delocutado:

- [a] - «Danado» - avaliação negativa;


- [b] - «aquele» - distanciamento social (também temporal e espacial);
- [c] - «Malhadinhas» - identificação pelo nome-apelido;
- [d] - «de Barrelas» - identificação pelo topónimo.

Considerado na sua globalidade, (41) constitui uma forma de tratamento situável


no âmbito dos insultos, através do termo [a], chamado a tópico do acto hiperasserido, o
qual sintetiza um juízo de valor que é uma sentença de condenação (a que andam asso-
ciados também valores de reprovação, crítica, censura), por actos reprováveis cometi-
dos. Estamos, por isso, perante um FTA (uma descortesia), orientado para a face positi-
va do Malhadinhas. Sendo delocutivo, atinge apenas indirectamente o visado e, por isso,
menos lesivo é o ataque verbal proferido.
O editor assume, deste modo, uma posição duplamente distanciada relativamente
ao almocreve: proxémica, ao sugerir ausência de solidariedade e familiaridade; taxémi-
ca, ao colocar-se num lugar superior em relação a ele. Distanciamento que o determi-
nante demonstrativo [b], dando seguimento à dimensão catafórica iniciada por [a], tor-
na mais evidente. Aquele, em (41), remete para alguém que, não só em termos de deixis
de lugar e tempo de narração / enunciação, se encontra afastado, mas também e sobretu-
do em termos de deixis social, estabelecendo uma relação ou movimento de relativo
afastamento. Dizemos relativo afastamento, na medida em que [b] é constituinte dum
SN complexo, constituído também pelo N [c], Malhadinhas, e pelo SP [d], de Barrelas.
Ora acontece que [c] é um diminutivo (o nome próprio do protagonista era António
Malhadas). Como tivemos já oportunidade de verificar, os diminutivos portugueses
em -inho, além de expressarem a ideia de pequeno, servem também para expressar
423

familiaridade, informalidade, carinho, ternura e cortesia.40 Que o almocreve Malhadi-


nhas não era de estatura avantajada, diz-nos o editor {de novo a dimensão catafórica de
(41)}, ao retratá-lo como «homem sobre o meanho» e «reles de figura». Pensamos,
todavia, como já tivemos oportunidade de referir, que o editor, ao referir / tratar o almo-
creve por Malhadinhas, está também a sugerir e a expressar uma relativa familiaridade e
afecto em relação ao delocutado. Aliás, vem a propósito recordar que o almocreve era
também tratado, pelos seus conterrâneos e conhecidos, pela forma diminutiva, precedi-
da, por vezes, pelo tratamento respeitoso de tio.
Nesta ordem de ideias, a referência / tratamento pelo diminutivo pode ser enten-
dida / o como uma atenuação da ofensa contida em [a] e do afastamento em [b], deste
modo deixando entrever, desde o início da novela, a ideia de que o almocreve não teria
sido assim tão danado (condenado) como se dizia.41
Em D-TE2, aquela parte do discurso-texto do narrador-editor que enquadra e
conclui a novela, já não é tanto a imagem dum indivíduo associal que se oferece do
almocreve. Outra é, agora, a sua face pública. Se não completamente nova, pelo menos
favoravelmente restaurada, refigurada:

(5) «António Malhadinhas fechou os olhos à semelhança do romeiro que torna de San-
tiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e vaus, enxotar cães que
arremetem ameaçadores de currais e quintãs, e adormece a sonhar com o céu num
recosto do caminho. Vergou brandamente a cabeça para o peito, ao tempo que os
dedos lhe pendiam para o chão como vagens maduras. E – o Justo Juiz lhe perdoe
as facadas que as não deu em nenhum santo – nem se sentiu a atravessar as alpol-
dras duma margem para a outra do negro rio.»42

Recordando-se a imagem ou face pública exposta em D-TE1 e comparando-a


com a imagem ou face pública (re)figurada em (5), verifica-se que o almocreve passou
de facínora a romeiro, de danado a perdoado. Tornou-se outro, como tendo outra per-
sonalidade. Outro é, por isso, o tratamento por que passa a ser identificado e reconheci-

40
Ver, supra, cap. III, 2.2.
41
Aliás, uma das preocupações do velho Malhadinhas é justificar os actos por que o acusavam de danado.
A propósito do uso da faca, comenta: «A faca é feia e cruel, está certo; mas se em vez de naifa eu trou-
xesse um punhal com cabo de prata; se em vez de almocreve fosse um desses senhores D. Gaifeiros de
que rezam os rimances, eu queria ver se alguém erguia a voz a acoimar-me de desalmado». [RIBEIRO,
1989: 104. Itálico da nossa responsabilidade]
42
RIBEIRO, 1989: 161.
424

do: o descortês aquele Malhadinhas de Barrelas é substituído pelo cortês António


Malhadinhas. Observe-se que o editor mantém o diminutivo do apelido, assim sugerin-
do que deva ser votado a esquecimento definitivo o apelido Malhadas, forma cuja cono-
tação semântica estaria mais de acordo com a sua primeira imagem ou face pública de
reconhecido insociável.43
Repetimos que o tratamento danado (condenado) domina toda a construção d’O
Malhadinhas. O narrador-editor justifica, em D-TE1, logo no incipit, que o protagonista
era danado, porque era «capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cris-
tão.» Em D-TE2, o mesmo narrador-editor propõe, no desfecho da narrativa, que o
mesmo protagonista seja perdoado, porque as «facadas [...] as não deu em nenhum san-
to». Dum círculo de afectos desfavorável (sobretudo para escrivães, manatas e leitores
comuns), o velho almocreve é admitido num círculo de afectos favorável (sobretudo
para o narrador-editor, bem como para o leitor modelo e quantos, como estes, idênticas
competências de leitura e interpretação possuam).
O narrador-editor sugere, no final D-TE1, que o processo de refiguração do
almocreve se fica a dever à narração que o próprio fez das suas próprias aventuras. Não
vamos analisar o D-TNA que constitui a narrativa encaixada e, no fundo, a novela O
Malhadinhas propriamente dita. Gostaríamos, todavia, de observar que o facto do nar-
rador-editor, por delegação do autor-escritor, ter cedido a palavra ao tio Malhadinhas,
para que seja ele próprio (como se fosse ele próprio) a contar a crónica da sua vida
adulta, se inscreve também no mesmo processo de figuração, que encerra também um
gesto de cortesia da parte de quem lhe dá a vez e a voz, para que conte a sua versão dos
acontecimentos.
Os comportamentos negativos (mesmo criminosos) de natureza afectiva, profis-
sional e social que o almocreve realizara, deram-lhe uma imagem ou face pública for-
temente desfavorável. Pressente-se que essa figuração, lendo-se a sua crónica, foi favo-
recida pelo próprio, enquanto útil lhe foi, nos diferentes negócios da vida e pela vida se
meteu. Chegado, porém, à velhice, com «quase dois carros de anos» (cerca de 80

43
Malhar, regista o DLPCACL, significa «bater repetidamente com malho ou martelo» e malhadas a
acção correspondente. Além disso, malhada, também significa, curiosamente, «Série de acções emara-
nhadas que constituem uma história enredada, em que há intriga.» [DLPCACL (vol. 2), 2001: 2346] O
apelido Malhadas pode ser, por isso, uma metáfora tanto dos actos físicos e verbais com que o almocreve
atacou quem não pertencia ao seu círculo de afectos favorável, fazendo justiça por sua conta e risco,
como, por isso mesmo, da sua própria existência.
425

anos)44 intensamente vividos, arrumado o rebanho de dezanove filhos, seguro de bens e


dinheiro cabonde, cansado de correr terras e enfrentar perigos, põe-se a deitar contas à
vida e vê-se socialmente mais difamado que afamado, ou melhor, afamado mas por
difamação. A sua imagem ou face pública fora desfigurada, porque todos os seus com-
portamentos haviam sido mal interpretados, não compreendidos. Inicia, portanto, um
processo de reabilitação, corrigindo e recompondo o retrato social desfigurado e desfi-
gurante que dele haviam pintado.45 Põe-se então a (re)contar a sua vida adulta, ocasião
para rebater acusações, apresentar razões e explicações, argumentando e contra-ar-
gumentando, na plena convicção de que tudo o que fez, com as armas que melhor sabia
utilizar – o pau, a faca, a língua – foi sempre em defesa da honra e dignidade próprias,
da família e dos amigos, dos fracos e de Deus.46 A narração memorial e autobiográfica
do Malhadinhas é, neste co(n)texto, também um processo de ressocialização. A propósi-
to, registe-se a seguinte observação de Adam & Lorda:

«relatar, sea cual sea la situación narrativa, y ya se trate de experiencias vividas, soña-
das o imaginadas, constituye uno de los medios más eficaces de relacionarse con otras
personas, por lo que es una actividad fundamental para la sociabilidad.»47

A má fama de que gozava não passaria, por isso, duma ingrata difamação. E se
perdurava era porque alguns dos seus contemporâneos, cuja conduta de vida indigna

44
Cf. RIBEIRO, 1989: 13. Esclarece o Dicionário de Morais que um «carro de anos» significa uma «por-
ção de 40 anos contados.» [SILVA, 195010 (vol. II): 967]
45
Repare-se na seguinte reflexão: «Afinal maluquei para comigo: “António, o teu pior inimigo é a fama
que em má hora granjeaste de bulhão e de matador. É em nome dessa fama que o ladrão [Fontinhas] que
derrubaste a teus pés em boa e legítima defesa se tornou em pobre de Cristo, destes viandantes dos cami-
nhos que vão de terra em terra sem fazer sombra, e tu não passas dum facínora que anda às soltas. Quem
não quer ser lobo não lhe veste a pele, e tu vestiste a pele do lobo!.”» [RIBEIRO, 1989: 69-70]
46
«Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta – murmuravam as bocas do mundo mal
consideradas. Cantigas, ó Rosa! A faquinha, assim Deus me salve, tinha uma função e não mais, cortar a
côdea, o queijo, a febra do presunto, quando andava de jornada. / Algumas vezes, também, arremediava-
-me a consertar os atafais do macho se o Demo queria que estoirassem. Quando, por grande acaso, se
apartava desta pacífica missão, é que a minha vida corria perigo e trazer eu a peito defendê-la, pois se
Deus ma deu – tantas vezes o tenho dito – a Deus tenho obrigação de a restituir, mas só quando ele for
servido e mais ninguém. / Quanto à língua, cortaram-me a trave ao nascer; mas nunca levantei falsos
testemunhos, nem acoimei de curta mulher honrada, nem de cornel sujeito que não tivesse testa para mar-
rar. Guar-te de homem que não fala e de cão que não ladra, por isso eu sempre falei, falo e falarei franco
até morrer, pois se nós o temos no pensamento, acautelá-lo da boca só por ronha ou cobardia. / Mas onde
eu punha epitáfio, caía mais certo que os nabos no advento. Onde cortava nos “podres” é que os podres
buliam com Deus e com os homens.» [Id., 1989: 92-93]
47
ADAM & LORDA, 1999: 13.
426

atacara, sempre na boa intenção de os corrigir,48 continuavam a difamá-lo, isto é, a


denegrir-lhe a face ou imagem.

Concluindo, podemos registar que, analisando-se a configuração d’O Malhadi-


nhas segundo a perspectiva da figuração, na sua dupla dimensão de face want e face
work, temos que D-TE1 se pode entender como a desfiguração do almocreve, o D-TNA
como a sua refiguração (autorrefiguração, que passa também pela heterodesfiguração
de adversários e inimigos) e D-TE2 como a transfiguração que valida todo este proces-
so, quando o narrador-editor pede ao Justo Juiz que lhe conceda o perdão que a injusti-
ça dos homens sempre lhe negou. Mas só depois de ter reorganizado (reconfigurado) a
sua vida em narrativa, através da qual recompôs, pessoal e socialmente, a memória da
sua existência fortemente malhada.
Vem a propósito recordar a seguinte reflexão do psicólogo Jerome Bruner:

«Quando se vê alguém acreditar, desejar ou agir de uma forma que não tem em conta o
estado do mundo, fazer um acto verdadeiramente gratuito, é olhado, do ponto de vista
da psicologia comum, como tolo, a não ser que enquanto agente consiga ser narrativa-
mente reconstruído como enredado numa situação difícil mitigadora ou em circunstân-
cias esmagadoras. Realizar semelhante reconstrução pode revestir a forma inquiridora
de processo judicial na vida real ou de uma novela na ficção».49

Quem fala ou escreve não é cortês ou descortês apenas em contextos de interlo-


cução / interacção face-a-face, nem quando emprega formas verbais explícitas de corte-
sia ou descortesia. A actividade da linguagem humana, sendo interaccional por natureza,
implica que, também em co(n)textos de comunicação diferida, se é sempre mais ou
menos cortês ou descortês, em relação àqueles a quem ou de quem indirectamente se
fala ou escreve, incluindo quem fala ou escreve. Mesmo quando um locutor, escrevente

48
Exemplos de actos que se destinavam a «endireitar o mundo que andasse torto» são, entre outros, a
cena em que o Malhadinhas fez com que Manuel Bisagra, que «era senhor duma destas galhaduras, mais
formosas, compridas e retorcidas como não há memória que andasse armada a testa dum serrano», desco-
brisse que a mulher lhe era infiel. Provocado a que mostrasse ser homem, dirigiu-se a casa onde «fora
encontrar a mulher com o Padre Antunes da Lousada». Despertados pelo «banzé», os amigos do Bisagra
acudiram e verificaram que ele «zupava nos dois como em amassadoiro de linho»; ou, então, a cena na
adega do Duarte, onde, depois de ter amansado a mulher mandona, com falsos elogios e de convite à
participação no comes e bebes do grupo, fez com que o marido lhe desse o ensinamento devido, aplican-
do-lhe à noite «uma sova de criar bicho». [Cf. RIBEIRO, 1989: 93-96, 99-102]
49
BRUNER, 1997: 49.
427

ou escritor, tenta esconder-se em subtis construções discursivo-textuais, aparentemente


neutras, cuja análise põe a descoberto intenções conscientes ou não de cortesia ou de
descortesia linguística. O que, tanto nos casos de produção como de recepção, pressu-
põe e exige, sempre, uma competência discursivo-textual também a esse nível.

«Le foisonnement des interactions verbales quant à leurs contenus et à leurs fonctions
mais aussi quant aux moyens linguistiques mis en œuvre par les interlocuteurs, nous
laissent perplexes lorsque l’on cherche à rendre compte avec une certaine rigueur de
cette complexité.» 50

50
CARREIRA, 2001: 45.
Capítulo XV

CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS


EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO
AS FORMAS DE TRATAMENTO
(Aspectos retórico-argumentativos e polifónicos)

Se não tens dinheiro na bolsa, tem mel na boca.


Provérbio

Uma das personagens aquilinianas que melhor sabe utilizar e explorar, discursi-
vo-textualmente, os diferentes valores retórico-argumentativos das FT’s, corteses e des-
corteses, nas relações que estabelece, tendo em vista os objectivos que pretende alcan-
çar, em cada momento do co(n)texto da interacção verbal, com os interactantes que
encontra e defronta, é a Salta-Pocinhas, a famosa protagonista do Romance da Raposa
de Aquilino Ribeiro. Foi certamente por isso que o narrador decidiu acrescentar-lhe, ao
nome próprio (NPp), o aposto de senhora de muita treta,1 como propriedade inalienável
que passou a constituir, por isso, outra FT por que ficou também conhecida.
É esta criatura dotada de «palavreado» com que facilmente «ilude» e «engana»,
«ataca» e «derriba» quem se lhe opõe, física ou verbalmente.2 Para iludir e enganar,
realiza, estrategicamente, uma série de actos discursivo-textuais, segundo uma dupla
orientação cortês: valorização directa e indirecta das faces do alocutário, por um lado, e
desvalorização das suas próprias faces, por outro. Ao invés, para atacar e derribar, reali-
za também uma série de outros actos discursivo-textuais que, por lesarem, com maior

1
Cf. RIBEIRO, 1961: 7 e passim. Os itálicos correspondem a citações parciais ou adaptadas do Romance
da Raposa.
2
Os termos entre parênteses foram colhidos nas entradas «treta» e «tretas» do Dicionário Morais [cf.
SILVA, 194910 (vol. XI): 216]. Recorde-se que, segundo os dicionários, se usa, em registo mais ou menos
familiar, a FT «treteiro / a» dirigida a pessoa que fala muito, com capacidade discursiva fácil e que não
olha a meios verbais para convencer, tentando ludibriar. O item treta pode ser entendido, assim, como um
disfemismo de retórica.
430

ou menor gravidade, as faces do alocutário, se situam no âmbito da descortesia e, em


particular, do insulto.
A senhora de muita treta, para ver satisfeitos os seus desígnios, procura seduzir
o interlocutor, por aproximação e deferência, recorrendo a FT’s que expressam diferen-
tes níveis de cortesia, elevando-o, se necessário, aos píncaros do tratamento honorífico.
Inversamente, mas com o mesmo objectivo, dirige a si própria tratamentos de humilha-
ção, desvalorizando-se e colocando-se deste modo nos lugares mais baixos e afastados
da relação. Por outro lado, em caso de infortúnio (e mesmo de sucesso), com a mesma
ou maior facilidade, destrona o interlocutor do pedestal onde antes o colocara, remeten-
do-o, através duma enfiada de insultos e outras descortesias, aos lugares mais ínfimos,
ao mesmo tempo que se guinda a si própria a lugares superiores, invertendo por comple-
to a relação interpessoal que anteriormente havia construído. Dessas cortesias e descor-
tesias verbais faz outras tantas estratégias que, discursivamente manipuladas, a nível
relacional e transaccional,3 lhe permitiram vencer as constantes lutas de subsistência e
sobrevivência que enfrentou. Neste sentido, conseguir os objectivos pretendidos passa
também por um processo de negociação das distâncias, através das FT’s utilizadas. Um
uso retórico, pois, dos tratamentos corteses e descorteses, os quais podem ser considera-
dos, por isso, argumentos ad hominem.

«On minimise les différences, on les accroît, on s’appesantit sur les identités ou au
lieu de les souligner, on les atténue, selon que l’on pense qu’il existe une identité ou une
différence entre l’auditoire et le locuteur, entre autrui et soi. // […] // Dans la distance
qu’il faut négocier, on peut se dévaloriser pour atténuer (cela s’appelle un chleuasme),
ou alors attaquer l’adversaire par la disqualification et le mettre en cause directement
(ad hominem).»4

Analisaremos, neste capítulo, as representações linguísticas de cortesia e descor-


5
tesia a que a Salta-Pocinhas recorreu, utilizando, retórica e polifonicamente, o sistema

3
Recorde-se que o nível relacional diz respeito ao tipo de relação que os interlocutores ou interactantes
duma dada interlocução estabelecem, mantêm ou alteram entre si, num dado co(n)texto de interacção
verbal. O nível transaccional diz respeito, sobretudo, ao conteúdo informativo que, a propósito dum tema
ou estado de coisas, é trocado entre os interactantes. É evidente que, numa interacção verbal, estes níveis
estão sempre presentes e condicionam-se reciprocamente. Ver, supra, cap. I, 2.6. e 2.7.
4
MEYER, 1993: 121 e 123.
5
Desconhecemos a existência de teoria que, à semelhança do que acontece com a cortesia, descreva, na
sua globalidade, os fenómenos de descortesia. Cremos, contudo, que o modelo de Kerbrat-Orecchioni
serve também para explicar os fenómenos descorteses, particularmente os discursivos. Como observa
431

de FT’s e suas virtualidades discursivo-textuais. Consideraremos apenas algumas


sequências dialogais representadas no Romance da Romance, aquelas onde os tratamen-
tos corteses e descorteses são mais abundantes e, sobretudo, mais significativos, como
processos de sedução e persuasão, por um lado, e de figuração ou desfiguração, por
outro.6

1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta

1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo7

A interacção verbal travada entre a raposa Salta-Pocinhas (SP) e o teixugo D.


Salamurdo (DS) é constituída por duas sequências dialogais. A primeira é truncada: aos
sucessivos turnos de fala de SP, mais ou menos complexos, ao nível das intervenções
que os constituem, DS nunca responde, por se encontrar em sono profundo (facto que
SP desconhecia). O contacto, por isso, não foi estabelecido e a sequência transaccional,
apesar do tema ter sido formulado, não se concretizou a nível de trocas verbais explíci-
tas. A segunda sequência é um conflito verbal que termina em ruptura definitiva. DS,
despertado e ofendido pela invasão verbal de SP que, além disso, fedia à légua, passa
uma descompostura à atrevida e nega-se a satisfazer-lhe o pedido. Por isso, SP, ofendi-
da nas suas faces positiva e negativa, retoma, irreverente e irritada, as ofensas.
A interacção verbal só podia degenerar, por isso, em agressões verbais mútuas,
terminando em separação. DS foi queixar-se ao vizo-rei, o lobo D. Brutamontes, de
quem era leal servidor. SP, logo que pôde, invadiu o castelo de DS, assim o ofendendo,
causando-lhe danos (claras ofensas ao «território», ou face negativa).
Precisemos o co(n)texto desta interacção. Perdida de fome e sem que ninguém a
pudesse ou quisesse socorrer, SP foi informada pelo irmão Pé-Leve de que DS havia
pilhado pata e de que ele era esmoler. SP procura então saber onde mora DS, interro-
gando quantos foi encontrando pelo caminho.

Camille Pernot, os principais traços da cortesia desenham a contrario, «dans ses grandes lignes, la figure
immuable de l’impolitesse, celle que les différents codes ont invariablement bannie et qu’aucun d’eux ne
pourra jamais admettre.» [PERNOT, 1996: 357]
6
Aos processos discursivos de «figuração como meio de agressão», de que fala Goffman, chamamos
desfiguração, estejam eles orientados, directa ou indirectamente, para as faces do locutor (autodes-
figuração) ou do alocutário (figuração). Os processos indirectamente orientados dizem respeito a terceiros
que todavia pertençam ao círculo de afectos de cada um dos interactantes.
7
Cf. reprodução co(n)textualizada completa desta interacção verbal, no fim deste capítulo.
432

SP e DS têm conhecimentos e representações8 diferentes um do outro. SP sabe,


pelas informações que foi colhendo, que DS tem mantimentos, mora num castelo e ocu-
pa um lugar superior, na hierarquia dos bichos que povoam aquele mundo de selvas e
penedias. DS, por seu turno, sabe apenas que SP, sendo raposa, só pode ter as caracte-
rísticas próprias da espécie.
Estes dados co(n)textuais prefiguram a existência, entre DS e SP, duma relação
distanciada, tanto proxémica como taxemicamente, o que podemos ilustrar na figura
seguinte (FIG. 1):

Eixo Taxémico
DS
+ CORTESIA

Eixo

Proxémico

- CORTESIA
SP

FIG. 1 – Posições taxémicas e proxémicas de DS e SP, antes da interacção.

Ao nível das relações co(n)textualmente construídas,9 DS e SP situam-se, simul-


taneamente, em posições opostas e afastadas, instituindo um tipo de relação de cortesia

8
Representações, no sentido que dá Grize ao termo, de “formações imaginárias” que os interlocutores
têm de si próprios e um do outro, dessa mesma relação, do contexto de comunicação, do tema da conver-
sa, etc. [Ver, supra, cap. I, 2.3.4., ou GRIZE, 1990: 33-34 e 1996: 63-65]
9
A imagem de Salta-Pocinhas que o narrador constrói e o leitor reconstrói tem muito a ver, também, com
o preconstruído cultural que o fabulário popular foi esquematizando acerca da raposa. Seguimos, neste
comentário, a noção grizeana de comunicação como esquematização, conforme descrição feita, supra, no
cap. I, 2.3. [Cf. GRIZE, 1990: cap. IV e 1996: cap. III]
433

que o diassistema cultural português recomenda em tais situações, a saber, de respeito


do inferior pelo superior, dado gozarem de estatutos sociais assimétricos.
Foi, porém, esta a relação que a SP começou por assumir e respeitar?
A visita de SP tinha por único objectivo obter de DS alimento com que matasse
a fome. Para o conseguir (excluído o furto), SP teria de, em primeiro lugar, estabelecer
contacto e, depois, rogar alimento, isto é, fazer um pedido. Ora, contacto e pedido são,
embora a níveis diferentes, actos directivos que invadem o território do alocutário e são,
por isso, FTA’s. O locutor coloca-se, nestes casos, em posição relativamente alta e afas-
tada face ao outro. Ou seja, tais actos, na impossibilidade de serem evitados, deveriam
ter sido atenuados. (Se SP tivesse querido ser cortês, evidentemente.)10
E como procedeu ela?

«A Salta-Pocinhas, como o olfacto lhe certificasse que estava diante do solar do


teixugo, chamou à porta:
[SP1] – [1] Ó da casa! Ó da casa!»11

Deixando de parte o acto de cortesia não verbal (deter-se à porta12), fixamo-nos


na FT de chamamento utilizada por SP.
Em [SP1], temos a duplicação da FT nominal de chamamento Ó da casa! Trata-
-se duma construção elíptica, utilizada nos meios rurais, como fórmula mais ou menos
informal de contacto. Com ela, o locutor anuncia a sua presença e intenta dar início a

10
É a conhecida questão dos princípios de preservação e figuração das faces («face want» e «face work»)
que o sistema de cortesia preconiza. Recorde-se que, como vimos, supra, cap. II, as noções de face want e
de face work são complementares e estão, como é evidente, intimamente relacionadas, por um lado, com
a noção geral de face e, por outro, com as noções de FTA e de FFA. Ou seja, por um lado, todos os inte-
ractantes desejam ver cuidada a sua face, tanto negativa como positiva, mas, por outro, qualquer acto de
comunicação é potencialmente ameaçador dessa mesma face. Assim, a contradição aparente entre a
impossibilidade de não comunicar e o desejo de preservação da face resolve-se através de processos de
figuração permanente, o que passa pela realização de diferentes estratégias de cortesia. Por isso, a corte-
sia também se define como «un moyen de concilier le désir mutuel de préservation des faces, avec le fait
que le plupart des actes de langage sont potentiellement menaçants pour telle ou telle de ces mêmes
faces.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 53].
11
RIBEIRO, 1961: 28. Conforme a prática seguida em estudos de análise conversacional, cada interactan-
te é aqui indicado pela inicial – SP, de Salta-Pocinhas, e DS, D. Salamurdo – imediatamente seguida do
número de turno de fala – [SP1], neste caso. Quando entrar em cena D. Salamurdo, será [DS1]. Os núme-
ros entre parênteses rectos indicam a numeração sucessiva das FT’s utilizadas, independentemente de
serem realizadas por [SP] ou [DS].
12
Uma invasão do espaço físico do outro é sempre um FTA não verbal e, por isso, um ataque ao seu terri-
tório, à sua face negativa. É, todavia, por receio e não por cortesia que a raposa não o comete. Conta o
narrador: «Passaram-se minutos, e a raposinha tentada, vai não vai, a arremeter por ali dentro, à ventura,
fosse o que Deus quisesse. D. Salamurdo, porém, tinha garras de aço que apertavam como turqueses,
dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais, e acobardou-se.» [Id.: 29]
434

uma interacção verbal que, realizada com sucesso a sequência fática de abertura, evolui-
rá para a(s) sequência(s) transaccional(is). Em tais co(n)textos, tanto o locutor como o
alocutário são, em princípio, mutuamente estranhos e anónimos.13 Trata-se, por isso,
dum FTA que lesa directamente a face negativa (território) de DS e, indirectamente,
mas com sentido positivo, a face positiva de SP, uma vez que tem ou pretende ter poder
sobre o outro, para o poder chamar e perturbar. Com a FT de chamamento Ó da casa,
SP constrói e estabelece, por isso, uma relação de distanciamento simultaneamente pro-
xémica e taxémica, como na FIG. 2 se procura ilustrar:

Eixo Taxémico
SP
+ CORTESIA

Eixo

Proxémico

- CORTESIA
DS

FIG. 2 – Posições de DS e SP, no início da interacção

SP, com [SP1], inverte a relação de lugares e de distanciamento que os dados


co(n)textuais, anteriores ao início da interacção, haviam prefigurado. A realização des-
te FTA deveria ter sido, por isso, atenuada. Desse modo, SP teria suavizado o ataque
que, com o chamamento, atingiu a face de DS e, correlativamente, teria protegido tam-

13
Há casos, porém, em que tal fórmula é denotadora de familiridade e/ou boa vizinhança. Sabemos, por
experiência própria, que em meios rurais do concelho de Ponte de Lima, parentes próximos e vizinhos
anunciam ludicamente as suas chegadas com Ó da casa! As características sonoras da fala identificam o
locutor, fazendo com que a fórmula expresse uma certa afectividade entre os interactantes.
435

bém a sua própria face. Deveria tê-lo feito, desde logo, ao nível dos termos utilizados na
construção da FT,14 pedindo, depois, desculpa pela invasão e justificando-se.
SP não chega a formular, explicitamente, ao longo da interacção, qualquer acto
reparador de desculpa, embora venha a apresentar algumas justificações, as quais, como
as FT’s corteses utilizadas, podem ser interpretadas como realizações implícitas de des-
culpa.15 Não pedir desculpa, como forma de minimizar FTA’s, voluntária ou involunta-
riamente cometidos, é indicador, por outro lado, de superioridade, ainda que revelador
de falta de cortesia. É por isso que, empregar Ó DA CASA, entre estranhos ou entre
interlocutores com estatutos assimétricos (inferior → superior), é tido como descortesia,
por excesso de familiaridade. A não ser em co(n)textos lúdicos.
Mas será que, de acordo com o princípio de figuração das faces, não se encon-
tra, mesmo assim, na realização deste FTA, nenhum traço de atenuação, de valorização
de faces de DS?
Recordemos o esquema através do qual procurámos representar os efeitos que a
realização dum FTA ou dum FFA pode ter nas faces do locutor e do alocutário.16

INTERACÇÃO VERBAL

Face positiva Face positiva

Locutor FTA Alocutário


FFA
Face negativa Face negativa

FIG. 3 – Orientação e efeito de «boomerang» na realização dum FTA e/ou dum FFA

Numa interacção diádica, em que estão em presença, pelo menos, quatro faces,
um FTA não fere todas elas de igual modo, nem com o mesmo grau de gravidade. Além

14
O discurso atributivo do narrador não nos fornece elementos paraverbais que a SP tenha utilizado tam-
bém na realização de [SP1]. Actos não verbais e paraverbais podem acompanhar e atenuar também a
realização verbal dum FTA.
15
Análises desenvolvidas de trocas verbais rituais (uma reparadora - pedido de desculpa - e outra de
cumprimento - agradecimento) encontram-se em KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 149-301. Versões
resumidas, em 1996: 83-88. Cf. também EGNER, 1988; GOFFMAN, 1973: 101-180.
16
Para a descrição da FIG. 3, ver, supra, cap. III, 1.
436

disso, em princípio, ao ataque a uma das faces do alocutário corresponde, assimetrica-


mente, uma valorização da face oposta do locutor e vice-versa.
Encontram-se, de facto, na realização do acto [1], proferido por SP, aspectos que
podem ser interpretados como atenuadores. Quem chama Ó da casa, reconhece, indirec-
ta mas positivamente, que se dirige a alguém que possui ou goza de habitação (e, logo,
de privacidade), identificando-o e confundindo-o mesmo com essa habitação, o que
equivale a uma manifestação de respeito pelo território e estatuto do DS. Neste sentido,
trata-se, por isso, duma valorização implícita das faces negativa e positiva do alocutário.
Em contrapartida, [1] é lesivo, de forma indirecta mas negativamente, da face negativa
de SP, pois reconhece que está junto de propriedade alheia, além de que, pragmatica-
mente, se chama é porque precisa de alguma coisa.17
A análise da FT Ó da casa, de ocorrência reiterada, leva a concluir que SP não
cumpriu, no início da interacção, as regras elementares da cortesia verbal, tradicional-
mente estabelecidas pelas sociedades.18 Observam Perelman & Olbrechts-Tyteca:

«Em nosso mundo hierarquizado, ordenado, existem geralmente regras que estabelecem
como a conversa pode iniciar-se, um acordo prévio resultante das próprias normas da
vida social.»19

Comparando-se [1] com as realizações não elípticas (1’), (1’’), (1’’’) e sobretudo
(1’’’’), progressivamente mais corteses, para as faces de DS, verifica-se como SP não
utilizou a FT mais apropriada, naquele co(n)texto.

[1] Ó da casa! (1’) Ó gente da casa!


(1’’) Ó patrão da casa!
(1’’’) Ó dono da casa!
(1’’’’) Ó senhor da casa!

17
A intervenção reactiva frequente a chamamentos deste tipo é a interrogativa Que quer?
18
Tanto mais quanto D. Salamurdo se situava a si próprio numa posição superior, metaforicamente
dizendo viver em casas com portas de certa teoria. [RIBEIRO, id.: 30]
19
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996: 17.
437

Mas porque ela já sabia a quem se dirigia, também poderia ter chamado, utili-
zando tratamentos ainda mais corteses, como Ó senhor Salamurdo!, Ó senhor D. Sala-
murdo!, ou mesmo ó D. Salamurdo!
É certo que SP ignorava que DS estava a dormir, mas, mesmo que estivesse
acordado, com aquele chamamento, ela não seria certamente bem sucedida, sobretudo
quanto ao pedido. Convencida, porém, de que DS se encontrava efectivamente em casa
e desperto, SP repete o chamamento, mas, perante a infelicidade perlocutória do acto,
muda rapidamente de estratégia.

[SP2] – [2] Ó da casa!... Sou eu, [3] a comadrinha raposa, [4] meu rico senhor D. Sala-
murdo! Sou eu!20

Com esta nova intervenção fática, SP introduz, por um lado, uma FT nominal
elocutiva – [3] a comadrinha raposa – e uma FT nominal alocutiva – [4] meu rico
senhor D. Salamurdo. Num instante, abandona o anonimato, seu e do alocutário: apre-
senta-se e reconhece a identidade e a categoria social do destinatário.

O objectivo ilocutório destes actos de chamamento e de autoidentificação (que


são também tratamentos) continua a ser o estabelecimento de contacto que permita a
conversa que há-de levar à formulação do pedido. O discurso-texto de SP é, desta feita,
mais cortês, manifestando certa afectividade, no tratamento elocutivo complexo por que
se identifica. Em relação a DS, porém, utiliza uma expressão ainda mais complexa de
tratamentos, num misto de formalidade e informalidade. Trata-se de estratégia sedutora
de aproximação proxémica e taxémica que visa atenuar, por compensação, o FTA de
contacto (agravado pela reiteração), procurando criar uma plataforma favorável à inter-
locução e aceitação interpessoal.21 Tal estratégia valoriza e/ou desvaloriza, em graus e
orientações diferentes, ora a dupla face (positiva e negativa) de DS, ora a dupla face
(positiva e negativa) de SP. O recurso a estes processos atenuadores faz com que a
directividade do FTA de contacto seja suavizada e que o FTA de pedido possa vir a ser
formulado num co(n)texto interpessoal mais favorável. SP preocupa-se, assim, através
duma negociação implícita e unilateral, com a redefinição e regulação dos lugares, seu e
de DS.
Dada a complexidade de cada um dos tratamentos que em [SP2] se encontram
em presença, analisaremos um de cada vez.
20
RIBEIRO, 1961: 28.
21
«Los actos de presentación permiten el reconocimiento de los sujetos y su identificación permiten el
reconocimiento de los sujetos y su identificación grupal, con lo que se aminora la distancia social que los
separa y se combate la exclusión y la alienación.» [LABORDA, 1996: 11]
438

Com [3] – [Sou eu,] a comadrinha raposa – SP baixa de lugar (eixo taxémi-
co) e aproxima-se (eixo proxémico) do lugar de DS, num processo de relativa desvalori-
zação directa da sua face negativa - ao identificar-se, expõe-se e diminui22 o seu territó-
rio individual - e de valorização indirecta da face positiva de DS - apresentar-se é tam-
bém expor-se, reconhecer ao outro um estatuto superior23 e, além disso, correr o risco de
ser recusado ou ignorado. Mas [3] é também uma desvalorização indirecta da face posi-
tiva de SP - o anonimato e a estranheza deixam de a proteger – e, correlativamente, é
também uma valorização indirecta da face negativa de DS - ao apresentar-se, SP alarga,
“enriquece” o leque de relações sociais do interlocutor.
Além disso, este acto é ainda lesivo da face positiva de SP por dois motivos. Em
primeiro lugar, apresenta-se a um estranho (apesar de saber quem ele é), com quem,
ainda por cima, não se encontra face-a-face. Em segundo lugar, se DS não se encontras-
se em casa, estaria a expor-se ao ridículo.
Mas, em virtude do princípio de figuração, encontram-se também, implicitamen-
te, valores atenuadores da desvalorização das faces de SP e, simultaneamente, de miti-
gação da valorização das faces de DS. Com efeito, ao construir [Sou eu,] a comadrinha
raposa, enunciado metacomunicativo de deixis pessoal e de asserção com valor perfor-
mativo, SP afirma as suas faces positiva e negativa. Começa por afirmar a sua existência
e individualidade – Sou eu – e só depois a sua incompleta identificação – a comadrinha
raposa – numa reformulação de explicitação pelo tratamento social (afectivo) e de espé-
cie, para terminar com a reafirmação da existência – Sou eu!
Repare-se, ainda, que SP se identifica como a comadrinha raposa. Pretende
indicar, assim, que é uma personalidade socialmente conhecida e íntima, e ao mesmo
tempo fazer passar a ideia de que é querida (repare-se no diminutivo comadrinha) e
como tal tratada e considerada na comunidade. Logo (tentativa de persuasão implícita),
também DS não pode ignorá-la nem deixar de a atender. A autorreferência pelo diminu-
tivo, seja ele entendido como NPt ou NAf,24 tentativa de aproximação pelo lado da afec-
tividade,25 e a identificação pelo nome da espécie são estratégias de cortesia negativa

22
O morfema {INHO} inclui, também, o sentido de [diminuição].
23
«A regra fundamental das apresentações é a seguinte: a pessoa que se considera de categoria inferior é a
que deve ser apresentada à de condição superior». [GIÃO, 1988: 136]
24
Para se recordar o tipo de tratamento nominal correspondente a cada uma destas e seguintes siglas, ver,
supra, cap. IX.
25
«As formas em –inho e –ito [...] não são, em geral, termos fixos , mas variáveis de sentido e têm que
ser sempre considerados em relação com o contexto. Embora, na maioria dos casos, o sufixo diminutivo
não altere o significado do radical da palavra sufixada, traduz, no entanto, com maior intensidade os sen-
timentos, os afectos, ou as intenções cambiantes das pessoas que o empregam tornando assim certas
439

com que SP, naquela situação de interacção, protege a sua face positiva.26 Protecção
necessária, uma vez que, ao apresentar-se por livre iniciativa, está também a lesar a face
negativa de DS (ao apresentar-se, chamando, invade o território do outro27).
Uma última observação: SP não se apresenta e identifica, explicitamente, como
comadrinha de DS – ela não usa o possessivo de propriedade ou intimidade. Fazê-lo,
implicaria que ela tratasse também o alocutário por meu compadrinho ou, no mínimo,
por meu compadre, ou, mais simplesmente, por compadre. Estaria, neste caso, a propor
que as distâncias proxémica e taxémica diminuíssem ainda mais, o que implicaria uma
lesão maior da face positiva de DS e uma valorização atrevida de si própria, das suas
faces, negativa e positiva.
Na mesma estratégia de contacto e aproximação taxémica e proxémica, com
sedutora afectividade, se situa o tratamento realizado pelo exortativo [4] meu rico
senhor D. Salamurdo. Com esta FT complexa, SP procura, agora, num movimento
inverso complementar, elevar e aproximar o lugar de DS do seu, tentando instaurar uma
relação interpessoal simultaneamente mais familiar e igualitária (aliás, já preparada com
[3]). Recorre, para o efeito, a uma FT que é, ao mesmo tempo, uma valorização directa
das faces positiva e negativa de DS: da face positiva, porque o trata, cumulativamente,
pelo NPp, pelo TNb e por um THf; da face negativa, porque o trata, também cumulati-
vamente, por meu rico, um NAf, de sedutora proximidade e afectividade, que o determi-
nante possessivo e o adjectivo acentuam.
De facto, meu rico senhor D. Salamurdo é a acumulação de FT’s, através das
quais SP joga o formal com o informal, o honorífico com o afectivo, o nobiliárquico
com o comum. Por isso, se, por um lado, procura, com os tratamentos formais, consoli-
dar o movimento de ascensão de DS (desejado e construído por ela), por outro, com o
tratamento informal meu rico, ela inverte ou, pelo menos, reduz a orientação daquele
movimento. Utilizando uma estratégia como a de Penélope, SP faz e desfaz, dá e tira,
eleva e igualiza, seduz e afasta. Esta senhora de muita treta não pratica, de facto, a cor-
tesia por obrigação social, mas tão só por dedicação a si própria. Não admira, por isso,
que tão facilmente oscile entre as mais elevadas cortesias e as mais rudes descortesias.

expressões mais sugestivas, penetrantes ou delicadas. Por vezes parecem até usá-lo para influenciar o
interlocutor, para o distrair ou para despertar nele maior atenção para algo.» [SKORGE, 1956: 223-224].
26
Cf., supra, cap. III, 2., quadro do sistema de cortesia, princípios L-orientados, A-(1).
27
Os actos preliminares que antecedem, em situações sobretudo formais, as autoapresentações ou as apre-
sentações denotam esta faceta FTA como invasão do território do alocutário: «Dá-me licença que lhe
apresente fulano?», ou «Posso apresentar-lhe fulano?»; e «Posso apresentar-me?», ou «Permita / deixe
que me apresente.»
440

Com estes tratamentos elocutivos e alocutivos, se bem sucedidos, as distâncias


taxémica e proxémica teriam ficado equilibradas. As posições e os estatutos de cada um
estariam regulados e definidos. Uma plataforma de equilíbrio e harmonia interpessoal
ter-se-ia estabelecida. SP teria incluído (ousou incluir) DS no círculo dos seus afectos
favoráveis, ou ter-se-ia incluído no círculo dos afectos favoráveis de DS. Mas este só
lhe responde com o mesmo silêncio.
SP, apesar de tudo, não desiste. Aliás, ela nunca desiste. Terá pensado, então,
que este seria o momento adequado para formular o pedido, razão principal por que
insistia em bater à porta daquele senhor. Um pedido (acto directivo) é, em princípio,
tanto mais fácil de formular, quanto mais próximas forem as relações entre quem pede e
aquele que o pode satisfazer. Diz-se até que, entre amigos próximos e íntimos, alguém
não solicitar ajuda, em caso de necessidade, é sinal de orgulhosa descortesia. SP avança,
pois, com o pedido:

[SP3] – Ando negra de fome... Por alma das suas obrigações, dê alguma coisinha!28

Em [SP3], SP não recorre a qualquer tratamento nominal, sendo no domínio de


V (voceamento) que ela continua a dirigir-se a DS, que as desinências verbais e o pro-
nominal (suas) marcam. Não é objectivo, de momento, analisar todas as estratégias dis-
cursivo-textuais de cortesia, uma vez que nos fixamos apenas nos valores corteses e
descorteses das FT’s. São de referir, todavia, os cuidados discursivo-textuais com que
SP acompanha a formulação do pedido, explicitamente formulado com - dê alguma
coisinha! Constituem tais cuidados processos atenuadores (por compensação) deste
FTA directamente formulado, e da sua teimosa insistência no contacto (ainda que não
explicitamente assumida). Em primeiro lugar, apresentando a causa, isto é, justifican-
do(-se), com o acto preliminar ando negra de fome, que é ao mesmo tempo uma forma
de autodegradação (autodesfiguração), assim ferindo (continuando a ferir), directamen-
te, as próprias faces negativa e positiva. Em seguida, desarmando uma hipotética res-
posta negativa de DS, à imagem e semelhança dos pedintes, recordando-lhe ou atribuin-
do-lhe, com o acto também preliminar por alma das suas obrigações, os deveres de
caridade dos ricos (sem fome) para com os pobres (famintos). Por fim, formulando
explícita e directivamente o pedido, atenuando-o, todavia, pela indeterminação e mini-

28
RIBEIRO, 1961: 28.
441

mização do objecto do pedido - alguma coisinha - desvalorizando, assim, o custo da sua


satisfação. Um pedido é um FTA e a sua realização ilocutória deve ser, por isso, atenua-
da, para ser cortês e mesmo perlocutoriamente bem sucedido.
Apesar de tudo, naquele castelo de alta fidalguia, não buliu vivalma. Mas a
senhora de muita treta nunca desiste. Volta, por isso, a chamar, carpindo-se:

[SP4] – Ouvi dizer que [5] Vossa Senhoria pilhou pata... Sou [6] a Salta-Pocinhas, sua
amiga leal, verdadeira!29

Em [SP4], SP dirige-se, formal e deferencialmente, a DS, utilizando uma FT THf


– [5] Vossa Senhoria - enquanto volta a identificar-se. Desta feita, pelo NPp – [6] Salta-
-Pocinhas – declarando-se e autorreferindo-se, ao mesmo tempo, como sua amiga leal,
verdadeira. Esperaria SP, assim, num último esforço de contacto e justificação da sua
insistência, reconhecido explicitamente o estatuto social do alocutário e, em contraparti-
da, confessada e aceite a sua baixa e humilde condição (posição), que DS, por fim, a
ouvisse e atendesse. Cria (criaria), deste modo, um significativo distanciamento taxémi-
co e proxémico, de elevada cortesia, em relação a DS.
Vossa Senhoria é tratamento de alta cortesia que SP utiliza, como estratégia dis-
cursivo-textual, na progressiva e ascendente valorização da face (sobretudo) positiva de
DS.30 Valorização com orientações taxémica e proxémica que a fórmula, não acompa-
nhada do nome próprio, ainda mais acentua, e a sintaxe e a semântica da sua construção
confirmam. Trata-se de FT que, embora dirigida a um alocutário (logo segunda pessoa),
exige concordância de terceira pessoa. Uma espécie de alocução delocutiva: o locutor
dirige-se a um vós singular (de elevada cortesia, por isso) que é, todavia, um tu, como se
fosse um ele. Uma construção polifónica, portanto.
Na mesma estratégia de alta cortesia, mas de sentido inverso, se situa a forma de
autoidentificação [6] [Sou] a Salta-Pocinhas, sua amiga leal verdadeira. Resta acres-
centar, ao que acima já foi dito, incluindo a propósito de [3], que com esta FT elocutiva,
SP acentua ainda mais a autodesvalorização das próprias faces. Já não se identifica ape-
nas pelo tratamento social e de espécie, mas pelo NPp. Ou seja, já não pode ser confun-
dida com nenhuma outra comadrinha raposa (nem assim ser tratada), mas por ela

29
RIBEIRO, 1961: 28.
30
Sobre os valores semântico-pragmáticos da FT vossa senhoria e sua forma degradada vossoria, ver,
supra, cap. XI, 4.
442

própria, como ser individual e único.31 Receando, todavia, que tudo isto não bastasse,
SP promete vassalagem a DS, numa derradeira estratégia de sedução e persuasão, com
submissão afectiva.
O tratamento de Vossa Senhoria, sua amiga leal e verdadeira lembra o contrato
feudal de vassalagem, através do qual, o senhor «devia ao vassalo protecção e manti-
mento», enquanto este «devia ao senhor obediência, respeito, ajuda, conselho e tudo o
que pertencesse a acrescentamento de sua honra e estado.»32 Como feudal era, segundo
quer o narrador, o regime que reinava naquelas selvas e penedias, antes dos bichos
terem decidido proclamar a república.33

A descrição e análise feitas mostram as estratégias discursivo-textuais de que a


senhora de muita treta se serviu, também ao nível dos tratamentos, para atingir os seus
objectivos. Num duplo processo de heterofiguração e de autodesfiguração, elevando o
alocutário e rebaixando-se a si própria, honorificando o alocutário e humilhando-se a si
própria, progressivamente invertendo os respectivos lugares, SP tentou, com a treta e a
persistência sabidas,34 atenuar os FTA’s de contacto e pedido.
Ao longo desta interacção, como noutras, SP foi-se referindo a si própria e a DS
utilizando diferentes FT’s, procedendo, também assim, a uma espécie de «reidentifica-
ção de um objecto (ou de uma rede de objectos) através de um nome diferente.»35 Neste
sentido, um locutor tratar-se a si próprio e a um mesmo alocutário, durante uma mesma
interacção verbal, por FT’s diferentes, também pode ser considerado um processo dis-
cursivo-textual de reformulação, cujos objectivos, além de relacionais, são também de
(re)conhecimento. Mudar a FT elocutiva, alocutiva ou delocutiva não é, por isso, mudar
simplesmente de tratamento, porque, como observa Coutinho (ainda que não se referin-
do explicitamente aos tratamentos), «o que fica em causa é muito mais do que o nome
[...]: mudar o nome equivale, em última análise, a mudar de ponto de vista sobre o
objecto.»36 Neste sentido, poder-se-á dizer que um mesmo indivíduo, ao receber dife-

31
O nome próprio é «alguma coisa de intimamente ligado à personalidade de cada um». [CINTRA,
19862: 13]
32
A. H. de O. M., «Vassalagem», in SERRÃO (dir.), 1971 (vol. 4): 259.
33
RIBEIRO, 1961: 74.
34
Apesar de recorrer a procedimentos verbais progressivamente corteses, o facto de insistir no contacto
sem obter resposta é também um FTA, uma descortesia. As estratégias cada vez mais corteses também
podem ser explicadas tendo em consideração este comportamento. Por outro lado, se DS, estando em casa
e acordado, não correspondesse ao chamamento, teria tido ele um comportamento descortês.
35
COUTINHO, 1999: 228.
36
Id.: ibid..
443

rentes FT’s, como que recebe também diferentes identidades (ou como as podendo ter),
consoante é visto, tratado, sincera ou fingidamente, pelo locutor. Uma questão de poli-
fonia, mais uma vez, pois corresponde a cada uma dessas identidades uma mudança de
voz.

Representamos na figura seguinte as posições taxémicas e proxémicas que SP,


com recurso às FT’s autorreferenciais (elocutivas) e heterorreferenciais (alocutivas), foi
construindo para si própria e para DS.

Eixo Taxémico

SP + CORTESIA

Vossa Senhoria
(Anónima)

Eixo Sou eu, D. Salamurdo


a comadri- senhor
nha raposa meu rico
Proxémico

Sou a Salta-Pocinhas,
sua amiga leal, verdadeira Ó da casa!
(Anónimo)
- CORTESIA DS

FIG. 4 - Posições de SP e DS ao longo da 1.ª sequência, consoante as FT’s utilizadas


NB - O movimento descendente de autodesfiguração é representado pela seta de cauda tracejada e o
movimento ascendente de heterofiguração de DS, pela seta de cauda contínua. As FT’s elocutivas encon-
tra- -se a itálico, as alocutivas a negrito, cuja leitura deverá ser feita segu(i)ndo a orientação indicada
pelas referidas setas.

No co(n)texto conhecido e construído ao longo dos turnos de fala desta sequên-


cia, a senhora de muita treta, utilizando as FT’s, geriu as relações interpessoais até aos
limites máximos da cortesia. Por isso, quando verificou que, depois de tudo, mais uma
444

vez a sua súplica se perdera no silêncio da terra, provocante e furiosa, gritou,37 à


entrada do corredor que dava acesso ao solar de DS:
[SP5] – [7] Pai teixugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a
pata!... a pata!38

SP salta, assim, para o campo aberto da descortesia, de que os insultos39 são uma
das manifestações mais evidentes, tanto como reacção e provocação, como de agressi-
vidade, de poder, de afirmação e defesa da personalidade.40 Não é só com insultos que
SP ofende DS. Em [SP5], comete várias ofensas verbais, três espécies de FTA’s:

(i) actos directivos (o chamamento [7] e a pseudo-ordem – larga a pata);

(ii) o chamamento utilizado é uma enfiada de insultos pessoais41 que, como tais,

são considerados também actos directivos, pois exigem uma resposta;42

37
Com este verbo de enunciação, o narrador fornece informações paraverbais, as quais podem ser tam-
bém corteses ou descorteses. Ao gritar, a raposa está não só a procurar fazer-se ouvir, mas também a ser
descortês. Gritar é comportamento prosódico que acompanha, regra geral, o insulto. «El insulto es la
traducción verbal de la violencia, y esto se manifiesta naturalmente en una distorsión de los elementos
prosódicos y entonativos: el acento es más intenso, el tono más agudo, aunque también puede hacerse
más grave, y no es raro que la articulación sea más tensa y el silabeo más pronunciado. En estos casos, a
la intención ofensiva se le suma amenaza, aun cuando ésta no se exprese mediante un lexema concreto.»
[BELCHÍ, 1996:134]
38
RIBEIRO, 1961: 29.
39
O narrador chama-lhes injúrias. Insulto e injúria, na linguagem corrente, como nos dicionários, são
tidos como sinónimos. Há, porém, quem os distinga. Segundo informa Largueche, os psicólogos Chas-
taing e Abdi concluíram que o insulto «se distinguerait de l’injure en tant qu’elle pourrait être sinon véri-
fiée, du moins vérifiable ou justifiable», enquanto que a injúria «en revanche, serait du domaine de
l’invérifiable, et de l’injustifiable». [LARGUECHE, 1983: 6. A autora cita artigo de Maxime Chastaing &
Hervé Abdi, publicado em Journal de Psychologie normale et pathologie, n.º 1, 1980; pp. 31-62]. Opto
aqui pelo termo insulto. «El insulto es el resultado de un conflito interpersonal, manifiesta un juicio de
valor negativo y supone la atribución de una cualidad negativa o la negación de una cualidade positiva del
ofendido.» [BELCHÍ, 1996: 152] Trata-se, por isso, de uma agressão pessoal.
40
«Que les interdits s’estompent et le gros mot, juron ou injure, est vidé de tout pouvoir: pouvoir de libé-
rer des tensions, de l’agressivité, pouvoir de permettre l’afirmation de soi face à autrui.» [ROUAYRENG,
19983: 124]
41
Recordamos a distinção, estabelecida por Labov, entre insultos pessoais e insultos rituais. Estes, prati-
cados como elemento de coesão grupal, são «véritables joutes verbales où, à l’aide de formules faites à
partir de quelques canevas syntaxiques déterminés, le locuteur doit non seulement s’assurer la supériorité
sur l’adversaire par son sens de la repartie, mais encore s’attirer l’admiration des spectateurs en provo-
quant leur rire.» Trata-se, portanto, do insulto lúdico, simbólico, o qual, por convenção social, não ofende
verdadeiramente ninguém: «tous les participants savent que le contenu exprimé est absolument invrai-
semblable». O insulto pessoal, pelo contrário, é uma agressão e, ao ser percebido como tal, «appelle une
dénégation et peut dégénérer en conflit». [ROUAYRENG, 19983: 107 e 120] Cf. também LABOV, 1978:
223-288, onde o autor estuda «les insultes rituelles» entre grupos de jovens negros dos EUA. Cf. também
ADAM, 1999: 157-173, onde os insultos rituais são analisados, como género discursivo-textual.
42
«L’injure implique un destinataire (qui peut évidemment être parfois le destinateur), que l’on veut pro-
voquer ou surprendre, qui est contraint par là à réagir et dont la réaction peut être très variable.»
[ROUAYRENC, id.: 110.]
445

(iii) passagem ao tuteamento que, tendo em conta os dados co(n)textuais, é tam-

bém um insulto.43

Os insultos apresentam diferente estrutura morfossintáctica e semântico-lexi-


cal.44 Aqui, fixar-nos-emos apenas naqueles que apresentam uma estrutura sintagmática
própria do vocativo axiológico, nominal ou adjectival, idêntica, aliás, à das FT’s nomi-
nais. Os insultos, assim considerados, constituem FT’s, só que descorteses por natureza.
Em [SP5], [7], temos uma série rimada de insultos, com valor de vocativo axio-
lógico. SP ataca directamente as faces negativa e positiva de DS. Nem todas as formas
utilizadas, porém, são em si mesmo insultos. Narigudo e barrigudo são aumentativos
depreciativos que ofendem, claramente, aspectos fisionómicos do alocutário, atingindo
assim a sua face negativa, o seu território corporal. Alma de besugo ofende também a
face negativa de DS, mas (digamos) a nível moral. Mas que insulto se encontra na
expressão Pai teixugo, expressão que em si mesmo nada tem de insultuoso? É a sua
inclusão no co(n)texto e a intenção com que é proferida que faz dela um insulto,45 diri-
gido também à face negativa de DS. Tem-se, assim, que narigudo, barrigudo e alma de
besugo são expressões insultuosas por natureza, enquanto Pai teixugo é uma expressão
de efeito insultuoso. Correlativamente, SP, ao insultar, está também a revalorizar a sua
face positiva. Até porque as descortesias e, em particular, os insultos têm este efeito
contraditório de afastamento e aproximação do ofendido, ao mesmo tempo.46

43
«Il est en tout cas certain que lorsque son usage est manifestement “marqué”, décalé, déviant, le tu-
toiement prend une tonalité variable, mais toujours négative: paternalisme, mépris, agressive – et c’est à
la limite ce tutoiement violemment agonal, souvent associé au langage de l’insulte». [KERBRAT-OREC-
CHIONI, 1992: 61]
44
Encontram-se análises do insulto, no âmbito dos estudos linguísticos, em BELCHÍ, 1996; LABOV,
1978: 223-288; LUQUE et al., 1997; MILNER, 1978; ROUAYRENG, 19983; RUWET, 1982: 239-314 e
WINDISCH, 1987. Ver também, para uma perspectiva psicanalítica, LARGUECHE, 1983 e para uma
visão dos insultos nas diferentes línguas europeias, BURGEN, 1996.
45
«Un même mot, un même geste ou un même acte peuvent, selon le contexte, avoir ou non un caractère
injurieux.» [LARGUECHE, id.: 2] Luque et al., por seu turno, observam: «Resulta interesante destacar
que palabras que no tienen un valor peyorativo o denigratorio para unos, sí lo tienen para otros. Así,
términos inocuos como individuo o persona suelen considerarse en algunos ambientes rurales como tre-
mendos insultos, tanto por el desconocimiento de su significado como por la pista engañosa de los con-
textos insultantes en los que aparecen con frecuencia: “Ese individuo no es de fiar; es una mala persona;
es una persona poco seria”, etc.» [LUQUE et al., 1997: 18] O conto «A palavra mágica» de Vergílio
Ferreira ilustra, muito bem, como «qualquer palavra, mesmo inofensiva [“inócuo”, no caso]», se pode
transformar num intolerável insulto, uma vez erguido em «pendão desfraldado no pau alto da vingança.
[...] Uma palavra informe, soprada de todos os furores seria então a melhor arma.» Cf. Vergílio Ferreira,
1976: Contos. Lisboa: Arcádia; pp. 59-67; a citação encontra-se na p. 66.
46
Observa Pernot, a propósito da descortesia em geral: «Sous sa première forme l’impolitesse creuse la
distance entre les êtres: à l’attitude d’accueil elle substitue l’indifférence. Plutôt que le contraire de la
politesse, c’en est l’absence. L’homme impoli de cette façon réduit ses relations avec les autres à des
rapports utilitaires: un commerce social désintéressé n’a pas de valeurs à ses yeux. Sous une autre forme,
de sens apparemment opposé à celui de la précédente mais qui, en réalité, se combine aisément avec ce
446

Com [SP5], SP inverte as posições que havia definido imediatamente antes, para
si e para o seu interlocutor. DS é derrubado do pedestal em que, hipócrita e interessei-
ramente, SP o havia colocado, passando ela a reocupar um lugar alto, mas ambos fora
do quadro da cortesia. Ou seja, SP regressa à sua posição inicial, agravada agora pela
série de FTA’s descorteses, insultuosas que produziu.

Termina aqui a primeira sequência da interacção verbal, ainda que unilateral e


por isso truncada, como dissemos. Sequência onde o locutor vê condicionada, influen-
ciada fortemente a sua actividade discursivo-textual pela representação que tem e faz do
interlocutor, mesmo sem este lhe ter reagido nunca verbalmente (nem doutra forma).
Sequência fortemente marcada, por isso, a nível retórico, pelos processos de heterofigu-
ração e de autodesfiguração discursivo-textual (logos), tanto pelas FT’s e outras corte-
sias e descortesias que o locutor dirige a si próprio (ethos), como ao seu alocutário
(pathos). Processos através dos quais o locutor procurou construir e dar a ver, de si pró-
prio e do alocutário, várias imagens, aquelas que a obtenção dos objectivos (contacto,
aproximação, afastamento...), consoante a dinâmica da própria interacção, lhe iam exi-
gindo.
Dar a ver várias imagens de si e do outro é desdobrar a personalidade de um e de
outro e, portanto, incorporar e dar corpo a diferentes vozes, assumindo comportamentos
verbais ora de cortesia, ora de descortesia, sempre na tentativa de co-agir, de con-vencer
o interlocutor. Interacção verbal ou actividade discursivo-textual de esquematização,
portanto, onde as dimensões de alteridade, dialogismo, polifonia, argumentação, retóri-
ca... são evidentes, particularmente através da utilização estratégica das diferentes FT’s
corteses e descorteses (co)construídas.

Continuando a narrativa, comenta e informa o narrador que nem injúrias, nem


lágrimas, nem rogos conseguiram despertar DS. Mas a senhora de muita treta, imperti-
nente e irreverente, não desiste, nunca desiste, como sabemos. Cautelosa, procurou cer-
tificar-se se DS estaria efectivamente em casa. Espreitou pela clarabóia47 e verificou
que ele estava de facto no solar, confortavelmente instalado. SP volta, por isso, às exor-
tações e ao pedido:

dernier, l’impolitesse consiste à minimiser les distances, voire à ne pas en tenir compte. Ce n’est plus la
simple absence de politesse mais son contraire exact: la grossièreté.» [PERNOT, 1996: 357]
47
Espreitar é um insulto não verbal que lesa a face negativa do outro, por se tratar duma invasão visual de
território.
447

[SP6] – [8] Ó meu rico senhor, tenha dó! Ando mirradinha de fome! Já nem me recorda
que engolisse um escaravelhinho...48
SP regressa ao terreno da cortesia. Retoma o tratamento deferencial e afectivo já
utilizado em [4], de [SP2], cujos traços principais foram descritos acima. Todavia, se
com [SP2] procurou definir uma relação de distanciamento próximo e igualitário, com
[SP6] o distanciamento proposto é ainda maior, taxémica e proxemicamente, apesar da
FT que dirige a DS não ser tão honorífica, por ausência de NPp antecedido do THf - D.
Salamurdo. Em relação a si própria, SP já não se apresenta, limita-se a autodegradar, de
novo, as próprias faces, positiva e negativa, pedindo compaixão (tenha dó) e confessan-
do o seu estado debilitado pela fome. Estes actos de súplica justificada podem ser
entendidos como uma reformulação do pedido feito acima (tenha dó é equivalente a dê
alguma coisinha). Além disso, são razões para que DS a atenda e explicações para a
presença, chamamento e insistência. Em [SP6], SP serve-se novamente do discurso
miserabilista típico dos pedintes, como estratégia de, através da degradação das próprias
faces (positiva e negativa), processo discursivo-textual (retórico e polifónico) de auto-
desfiguração, seduzir e persuadir o interlocutor.
Estabelece-se, enfim, o diálogo:

[SP7] – [9] Ó meu rico senhor!


[DS1] – Qual rico senhor, nem qual diabo! – regougou afinal D. Salamurdo – Não tenho
nada que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí
apodrecerem, não eram para [10] você que vem empestar-me a casa. Apre, quando
tiver de pedir esmola a portas de certa teoria, lave-se primeiro, trate de desencardir-
-se da catinga, que fede à légua!49

DS, apesar da cortesia da FT [9], não é cortês na sua intervenção reactiva. Com
[DS1], comete uma série de FTA’s, todos eles lesivos das faces negativa e positiva de
SP. Porém, nem todos os actos de [DS1], sendo embora descorteses, são insultos. Insul-
tos são os actos assertivos (vem empestar-me a casa e fede à légua) e os directivos
(lave-se primeiro e trate de desencardir-se da catinga) com que acusa SP de insuportá-
vel falta de higiene. Actos que podem ser resumidos numa FT insultuosa como sua

48
RIBEIRO, 1961: 29.
49
Id.: 30.
448

fedorenta. Nenhum destes insultos, porém, é vocativo, ou FT, e, por isso, não nos dete-
remos na sua análise. Repare-se, todavia, que DS começa a sua intervenção reactiva por
denegar a FT meu rico senhor, por que fora interpelado. Porquê? Em nosso entender,
por abusiva e inadequada à sua alta autoestimada posição, como a expressão portas de
certa teoria, referindo-se a si próprio, mostra. Posição que, por outro lado, era de cargo
e não de fortuna, porque ser rico e nada ter para dar é mais condição de quem é apenas
um senhor pobre, ou um pobre senhor, bem feitas as contas. Ao tratamento de natureza
afectiva proferido por SP (rico quasessinónimo de querido) dá DS uma interpretação
económica (rico quasessinónimo de afortunado). O tratamento afectivo era abusivo,
descortês, dadas as relações assimétricas existentes entre ambos. Daí que, por outro
lado, DS não tenha respondido imediatamente ao chamamento de [SP7], aitude que é
também uma descortesia.

Entre as FT’s mais corteses e a realidade que elas referenciam não existe uma
correspondência total. São sobretudo os valores pragmáticos, discursivos e relacionais
que elas marcam, como principais unidades no jogo taxémico e proxémico dos interac-
tantes, isto é, da figuração e/ou desfiguração das respectivas faces. Observa Goffman:

«L’individu a généralement une réponse émotionnelle immédiate à la face que lui fait
porter un contact avec les autres: il la soigne; il s’y “attache”. Si la rencontre confirme
une image de lui-même qu’il tient pour assurée, cela le laisse assez indifférent. Si les
événements lui font porter une face plus favorable qu’il ne l’espérait, il se “sent bien”.
Si ces vœux habituels ne sont pas comblés, on s’attend à ce qu’il se sente “mal” ou
“blessé”.»50

Ainda quanto a [DS1], observe-se que DS trata SP explicitamente por você


[além das formas verbais e pronominais (reflexos) correspondentes], a qual tem, naque-
le co(n)texto, não só um sentido de afastamento, mas também de depreciação.51
Contrariamente ao desejado por SP, estava instalado o conflito. SP, perante tão
cruel descompostura, ofendida na sua autoconsideração de mocinha airosa, briosa e
graciosa, (ofendida nas suas faces positiva e negativa, diríamos nós) não se conteve e

50
GOFFMAN, 1974: 10.
51
Ver, supra, cap. XI, 2., os valores de mais ou menos cortesia ou de descortesia que esta FT tem tido na
história dos tratamentos em Português de Portugal.
449

depressa saltou novamente para o campo aberto da descortesia, mais precisamente dos
insultos:

[SP8] – [11] Teixugo narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata!

Sobre estes insultos, ver, supra, o que foi dito a propósito dos tratamentos reali-
zados em [SP5]. Registe-se, apenas, que, desta vez, a gravidade dos insultos é maior,
pois que DS já se encontra acordado e SP sabia-o. É de observar, ainda, que responder a
insultos com insultos é também uma estratégia discursiva de protecção das próprias
faces, conforme o sistema de cortesia proposto por Kerbrat-Orecchioni, segundo o qual
não devemos permitir que nos cobram as faces de lama.52 Observa Belchí, por seu tur-
no:

«quien recibe un insulto se siente herido en algo más que en su sensibilidad: es toda su
persona la ofendida, ya que el insulto atenta directamente contra su imagen, ya sea ne-
gando la existencia de una cualidad positiva o afirmando la de una cualidad negativa,
independientemente de la verdad o falsedad de su contenudo».53

Não satisfeita com [SP8], SP insiste, dali em diante, na cantilena descortês, pelo
conteúdo e pela repetição, que é o acto directivo da pseudoordem (SP não gozava de
poder sobre DS para lhe dar ordens)

[SP9] – Larga a pata!

que vai repetir até ao fim da interacção, como fórmula irritante de zombaria. Observa
Arthur Schopenhauer, na sua Dialéctica Erística (redigida entre 1830-31), com o signi-
ficativo subtítulo de Arte de Ter a Razão em 38 Estratagemas:

«Irritar o adversário e provocar-lhe a cólera, pois, dominado por ela, não estará em con-
dições propícias a julgar com rectidão nem a aproveitar as suas vantagens. Encoleriza-

52
Cf., supra, cap. III, 2.
53
BELCHÍ, 1996: 131.
450

-se tratando-o injustamente sem respeito algum, incomodando-o e, de modo geral, com-
portando-nos insolentemente.»54

A interacção verbal entre SP e DS só podia degenerar, evidentemente, em «diá-


logo de surdos»:55
[DS2] – Que trabalhos os meus! – exclamou D. Salamurdo.– Larga a pata?!... A pele
hás-de [12] tu largar-me nos dentes, se algum dia te caço a jeito! [13] Descarada,
celerada, enjeitada de chacal!
[SP10] – Larga a pata!
[DS3] – Chegou-se a uma época, com seiscentos moscardos! em que [14] a gente já
nem segura está na sua casinha. Vem [15] o mariola e enxovalha-nos, vem [16] o
ladrão e rouba-nos. Não há ordem, não há nada!
[SP11] – Larga a pata!
[DS4] – Não calas a sanfona? Então deixa, [17] minha ladra, minha saca de mentiras,
que vais ter o pago. [18] O vizo-rei há-de sabê-lo ainda hoje. E [19] ele, que não é
para brincos, dá-te o catatau!56

Interessa referir, antes de mais, que DS passa a tratar SP por formas de T, cujos
valores, neste co(n)texto, ofensivos e distanciadores (ou de aproximação, consoante as
perspectivas), já foram referidos acima. Além disso, a par doutras ofensas verbais, DS
dirige a SP novas FT’s que constituem novos insultos: [13] Descarada, celerada, enjei-
tada de chacal e [17] minha ladra, minha saca de mentiras. Trata-se de ofensas que não
atingem os aspectos físicos de SP, mas sim o seu património (digamos) moral, a sua
dignidade pessoal.
Há, todavia, em [DS3], três FT’s, duas nominais – [15] o mariola e [16] o ladrão
- e uma pronominalizada – [14] a gente – indirectamente dirigidas, que merecem aten-
ção. [DS3] é uma espécie de monólogo dialógico, em que o locutor se dirige a si próprio
e a um alocutário (só aparentemente) ausente. Estratégia enunciativa polifónica. O locu-
tor faz do alocutário simples ouvinte, assim o desconsiderando. DS refere-se a SP como
se fosse um ELE, uma terceira pessoa, estratégia discursiva de delocução, procedimento
descortês para a face positiva do alocutário. Além disso, insultar indirectamente SP de

54
SCOPENHAUER, 2001: 60. A citação constitui o «estratagema» 8.
55
Gilbert Dispaux define assim este tipo de diálogo: «Désaccord sur un ensemble défini d’observations et
désaccord sur un ensemble défini de normes.» [DISPAUX, 1984: 57]
56
RIBEIRO, 1961: 31-32.
451

mariola e ladra, serve também para a excluir da categoria de gente em que DS a si pró-
prio se inclui. A indirecção discursiva e a impessoalização são, regra geral, estratégias
de cortesia. Neste caso e neste co(n)texto, são processos de descortesia.
Repare-se, por outro lado, que DS se refere e trata, delocutivamente, o lobo D.
Brutamontes, utilizando uma FT de tipo TPl, [18] O vizo-rei, e uma FT pronominal,
[19] ele. Estes tratamentos podem ser tomados como exemplos de como os tratamentos
delocutivos, mesmo quando dirigidos a alguém que ocupa o topo das diferentes pirâmi-
des sociais, recebem formas menos corteses do que quando produzidos face-a-face ou
na presença desse terceiro. Compare-se estas FT’s delocutivas com as alocutivas que
DS utilizou, no início da interacção verbal, quando foi queixar-se ao mesmo vizo-rei, o
lobo D. Brutamontes, da afronta de SP: «(Ó) meu senhor!», «Senhoria», «Vossa Mercê»
e «Vossa Senhoria». A si próprio identifica-se como «o teixugo», «o teixuguinho Sala-
murdo, vosso leal servidor». Por seu turno, D. Brutamontes tuteia DS (utilizando o pro-
nome e as formas verbais correspondentes), tratando-o ainda por «o meu leal servidor»
e «Salamurdo», sem nunca descer, contudo, a grandes proximidades, enquanto a si pró-
prio se trata por «Minha Grandeza».57
Ao usar, todavia, FT’s de cortesia menos elevada, como em [DS4], o locutor
pode querer mostrar, ou que mantém relações de proximidade e pouco distanciamento
com o delocutado, ou que não tem grande consideração pelo mesmo delocutdo. Num
caso como noutro, o locutor visa valorizar a sua face positiva perante o alocutário e, por
efeito boomerang, lesar as faces deste. Ainda que tal atitude de DS fizesse dele um
pobre lacaio denunciante, popularmente conhecido por «queixinhas», o que em nada
abona a favor da sua imagem pública, face positiva.
Os insultos que, por falta de higiene, DS dirigiu a SP, são FTA’s que atingem
directamente a sua face negativa (o território corporal) e indirectamente, mas de forma
ainda mais lesiva, a sua face positiva58 (desejo de ser apreciado pelos demais). Com os
insultos [13] e [17], DS atinge sobretudo a face positiva de SP.

57
Cf. id.: 33-38. O narrador informa que DS, por ser cortesão, também tomou os devidos cuidados aos
níveis da cortesia não verbal e paraverbal. Chegado à porta do vizo-rei, DS «limpou o focinho húmido à
manga da véstia, lambeu-se, cofiou os bigodes». Além disso, «depois de tossir baixinho», adiantou «dois
passos» e só depois é que chamou «em tom brando e adocicado.» Tudo estratégias de figuração da face
negativa do outro, por se tratar duma invasão do seu território, mas também de si próprio.
58
Os insultos são geralmente considerados actos ameaçadores da face positiva dos interactantes. O pró-
prio narrador, ou a Salta-Pocinhas pela sua boca, através do recurso ao discurso indirecto livre, considera
os insultos de falta de higiene como FTA’s dirigidos à face positiva da raposa: «Grandemente se sentiu a
raposinha com tão cruel descompostura. [...] Não era desonra pertencer à ralé, nem faltarem-lhe costados
de fidalguia. Mas cheirar mal, ser assim fedorenta, ofendia-a na ideia que concebera dos seus agrados,
mocinha airosa, briosa, graciosa que se julgava». [Id.: 30. Itálicos da nossa responsabilidade.]
452

O conflito entre SP e DS acentuara-se e a ruptura tornara-se inevitável. DS,


impossibilitado de fazer justiça pelas próprias mãos, recorreu ao poder instituído, indo
queixar-se ao vizo-rei, o lobo D. Brutamontes. É geralmente assim que acontece, quan-
do um inferior ofende um superior. Observa Belchí que «el superior puede insultar al
inferior sin que su acto tenga consecuencias; lo contrario no puede ocurrir, y si ocurre el
ofensor será sancionado, bien por el ofendido, bien, en determinadas circunstancias, por
una institución.»59 Todavia, «el insulto es la mejor arma que tiene la gente corriente
para defenderse contra los incesantes esfuerzos de todas las esferas del poder por impo-
nerle ideas preconcebidas y hábitos de conducta controlables.»60
Sendo como é, a senhora de muita treta não respeita, porém, hierarquias nem
poderes estabelecidos. Logo tratou, por isso, de se vingar de DS, ofendendo-o através de
comportamentos não verbais.61 Vingança que veio a terminar na anulação física do tei-
xugo, como se sabe. Ao espiar as queixas que DS fazia ao vizo-rei, ficou SP a saber que
D. Brutamontes padecia de horríveis dores de dentes. Então, untuosa e dengosa, recor-
rendo, em sua melhor prosa, a novas estratégias de cortesia e retórica discursiva, a
senhora de muita treta convenceu o desesperado D. Brutamontes de que cobrir a parte
dorida com pele de teixugo, ainda quente, acabadinha de esfolar, era remédio aben-
çoado na cura de tais maleitas.62 Também nesta interacção é importante o papel das
FT’s que SP utiliza, como estratégia de aproximação e persuasão de D. Brutamontes, a
quem trata, honorífica e deferencialmente, por Vossa Mercê e meu senhor, além de se
lhe referir ao pai como ilustríssimo.63 Mas esta é outra interacção verbal que não vamos
analisar agora.

1.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo64

59
BELCHÍ, 1996: 135.
60
LUQUE et al., 1997: 13.
61
«E delambida, atrevida mas precavida, fusgando à direita, fusgando à esquerda, não houvesse ali cilada,
entrou na cova do teixugo. Percorreu-a de ponta a ponta: comer, de grilo! Adiante: foi-se à cama do
maganão, de fofo musgo, deliciosa para dormir e sonhar, e sem vergonha, não só por acinte, mas também
com ronha, estirou-se, rolou-se, espojou-se. E isto feito e outras coisas mais, crente que o cheiro do seu
corpo afugentaria para todo o sempre o esquisito senhor, regougou de alegria.» [RIBEIRO, 1989: 32]
62
Observa Kerbrat-Orecchioni que a «guerra verbal» pode degenerar em confronto corporal que pode
levar à morte. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 147]
63
Cf. RIBEIRO, 1961: 39-41.
64
Cf. reprodução co(n)textualizada completa desta interacção verbal, no fim deste capítulo.
453

Em muitas outras ocasiões, servindo-se de idênticas estratégias discursivo-


textuais, corteses e descorteses, a senhora de muita treta conseguiu levar a água ao seu
moinho. Por exemplo, naquela conversa que manteve com o bufo, para que este lhe
fizesse um inestimável favor.65 Não podendo sair da toca (que fora de DS), em virtude
da terrível ratoeira que o bicho-homem lhe armara à entrada, SP inventa um estratage-
ma. Pede ao bufo que lhe vá chamar o escrivão (o gato montês), porque se encontra às portas da
morte e deseja fazer testamento a favor dum filho enjeitado da fortuna. Desta vez, porém, SP
não recorre aos insultos, mas as FT’s que expressam valores pragmáticos de cortesia
positiva e negativa mais ou menos elevada (A-orientadas e L-orientadas), algumas das
quais dotadas de afectividade e originalidade.
O macroacto desta interacção verbal é, pois, também a realização ilocutória e
perlocutória dum pedido, um FTA cujo efeito reverte em benefício do locutor e que, por
outro lado, põe ao alocutário o custo da sua realização. Para ser bem sucedido, a sua
formulação terá de obedecer, por isso, às regras de cortesia negativa, isto é, ser acompa-
nhada de formas que atenuem e/ou compensem essa directividade e esse custo. Passa
essa atenuação, entre outros meios (re)compensadores, pela utilização de FT’s que aju-
dem a preparar a formulação do pedido e gratifiquem, de certo modo, a sua satisfação.
Os dados co(n)textuais prefiguram, entre os dois interactantes, relações diferen-
tes daquelas que vimos, na interacção anterior, entre SP e DS. As relações entre SP e o
bufo (B), antes do início da interacção, seriam de relativo afastamento proxémico. Seria
uma relação entre vizinhos conhecidos, mas que sempre se olharam mutuamente com
desconfiança. As FT’s que se dirigiriam eram ao nível de Você e respectivas formas
verbais. Tinham, portanto, relações simétricas situadas sobretudo em torno do eixo pro-
xémico.
A armadilha colocara, porém, SP numa situação de inferioridade em relação a B:
ela encontrava-se prisioneira dentro da sua própria toca, não podia movimentar-se, per-
dera poder (também no sentido de capacidade); B, pelo contrário, é uma ave de rapina
em liberdade, gozando, por isso, de poder (também no sentido de capacidade). No início
da interacção verbal, os lugares que ambos ocupam são, portanto, assimétricos e situam-
-se, por isso, em torno do eixo taxémico. No decurso da interacção, as FT’s elocutivas e
alocutivas utilizadas por SP mostram, mais uma vez, como a senhora de muita treta
sabe jogar (manipular) nos dois eixos e assim conseguir, através de estratégias de sedu-

65
Cf. id.: 105-111.
454

ção, os efeitos desejados da persuasão e convencimento, isto é, que B lhe faça a vonta-
de, caindo nas armadilhas discursivo-textuais (retóricas e polifónicas) que ela lhe foi
preparando.
SP, a par de estratégias discursivo-textuais autodegradantes e humiliativas, isto
é, de autodesfiguração, vai dirigir a B uma série de FT’s simultaneamente formais e
informais, honoríficas e afectivas, taxémicas e proxémicas, que, mais que proteger as
faces de B, visam sobretudo valorizar-se e engrandecer-se a si própria. Estratégias que
manipula, consoante as reacções que vai obtendo são de indiferença, de recusa, de dúvi-
da, de acordo, de aceitação ou de adesão. Podemos encontrar, nestes diferentes movimentos,
mais ou menos oscilantes, os três momentos de que fala Grize, a propósito do papel do
interlocutor, sujeito à acção discursivo-textual (esquematização) do locutor: «recevoir,
accorder et adhérer», isto é:

«Recevoir, c’est être disposé à reconstruire la schématisation et être en état de le faire.


Accorder, c’est ne pas avoir d’objections à présenter et adhérer, c’est faire sienne la
schématisation. Accorder est un peu de l’ordre de la conviction (l’orateur est vain-
queur), adhérer de l’ordre de la persuasion, c’est être amené à faire entièrement sien ce
qui est proposé.»66

Subjaz a este observação de Grize uma noção alargada de argumentação, como


acção discursivo-textual sobre o interlocutor, como vimos acima.67

Para estabelecer o contacto e abrir a interacção (sequência fática de abertura),


acto que ameaça a face negativa de B, SP atenua a sua formulação utilizando uma FT
que se situa num nível de cortesia (digamos) média (sr.+ NPp), que repetiu, em virtude
de B não ter ouvido a primeira intervenção:

[SP1] – [1] Ó senhor bufo! – tornou ela mais forte.– Senhor bufo!...
[B1] – Quem chama? – proferiu então a voz desconsolada.
[SP2] – É [2] a Salta-Pocinhas, [3] meu príncipe, é [4] esta infeliz da sorte!68

66
GRIZE, 1990: 41. Cf. também 1996: 73-76.
67
Ver, supra, cap. I, 2.3.
68
RIBEIRO, 1961: 105-106.
455

A FT sr.+ NPp é, em condições normais, um tratamento de respeito e considera-


ção que o locutor, sendo de facto ou considerando-se inferior, dirige a um alocutário que
lhe é ou considera superior. Trata-se, por isso, duma FT alocutiva orientada para a valo-
rização da face positiva de B. Contra a intervenção simultaneamente reactiva e iniciati-
va de B, com [B1], SP avança com [SP2]: identifica-se utilizando a terceira pessoa (pro-
cesso cortês, por mitigador da afirmação do eu, referência delocutiva sendo elocutiva) e
o NPp – Salta-Pocinhas. Ao mesmo tempo, coloca B num lugar ainda mais alto, ao tra-
tá-lo por meu príncipe, que tanto pode ser entendido como um THf, como um TNb,
como um NAf, misturando sentimentos de afecto, submissão e de honorificação. Acres-
centa, ainda, uma forma de referência e tratamento auto-humiliativa (elocutivo-de-
locutiva) – esta infeliz da sorte.
Através das FT’s alocutivas, SP distancia-se cortesmente de B (proxémica e
taxemicamente), preservando e valorizando-lhe sobretudo a face positiva, num processo
de figuração crescente. Ao mesmo tempo, assimetricamente, através das FT’s elocutivo-
-delocutivas auto-humiliativas, distancia-se, também cortesmente, de B (proxémica e
taxemicamente), degradando progressivamente a sua face positiva (desfiguração). Repa-
re-se no cumprimento deste aspecto, como «manda» o princípio de cortesia: a cortesia
A-orientada é geralmente acompanhada de descortesia L-orientada. Valorização e des-
valorização que, independentemente de serem sinceras ou não, são de facto estratégias
retóricas e polifónicas, isto é, discursivo-textuais de convencimento.
Podemos encontrar, nesta sequência fática, um exemplo que ilustra os movimen-
tos assimétricos (simbolicamente ascendentes e descendentes) que as FT’s alocutivas e
elocutivas geram, ao mesmo tempo, a nível taxémico e proxémico. Retomando o dese-
nho da FIG. 6, apresentado no cap. XII, e que a seguir designamos por FIG. 5, teremos

Eixo Taxémico

+ CORTESIA

Meu
Príncipe
Sr. Bufo

[Você]
SP
Eixo
456

Proxémico Salta-
Pocinhas
Esta infeliz
da sorte

- CORTESIA

FIG. 5 – Movimento simbólico ascendente das FT’s alocutivas e descendente das FT’s elocutivo-de-
locutivas

Ao tratar B por senhor bufo e meu príncipe, ao mesmo tempo que se trata a si
própria por Salta-Pocinhas e esta infeliz da sorte, SP vai, por um lado, elevando o inter-
locutor e, por outro, rebaixando-se a si própria, num processo assimétrico e inverso de
cortesia estratégica. (Conforme as respectivas setas, o movimento das linhas curvas
ponteadas correlacionam-se com o movimento das linhas curvas contínuas, na represen-
tação da assimetria das respectivas FT’s. As marcações de SP e [Você] referem as posi-
ções simétricas que, a nível proxémico, ocupariam as personagens, antes de iniciarem a
interacção.) Assim engrandecido, directa e indirectamente, B atende SP e dá sinais de
alguma disponibilidade para cooperar:

[B2] – Então que é?


[SP3] – Que há-de ser, bateu a minha última hora.
[B3] – Hum, temos velhacaria!
[SP4] – Velhacaria quê, [5] ilustre ave nocturna! Mais hora, menos hora digo adeus ao
mundo.
[B4] – Mas onde está [6] a comadre, que a não vejo?
[SP5] – Estou aqui à boquinha da cova... mesmo à boquinha.
[B5] – Tropeçou, [7] comadre, tropeçou, e partiu os focinhos!? Dê graças que conserva
pulmões para buzinar que está com a morte nos gorgomilos! Ah! ah! ah!
[23] E o grande rapinante, dando estalos com o bico, voltou à cantilena macarena:
[B6] – Viram bois!... Viram bois!...69

Sabendo com quem fala, B não só desconfia, com [B3], da informação fornecida
por SP, mas também receia tratar-se de mais uma velhacaria de SP. B ofende, assim, a

69
Id.: 106.
457

face positiva do interlocutor, porque, ao mesmo tempo que interpreta [SP3] como dis-
farce de mais um acto ou procedimento malévolo, traiçoeiro, está a chamar-lhe, indirec-
tamente, velhaca, isto é, alguém que, por má índole, se serve duma astúcia para enga-
nar ou fazer mal.70
Mas SP nem assim desiste. A situação é de pura sobrevivência: ou fica prisionei-
ra e morre emparedada, ou arrisca a saída e cai na ratoeira. Só lhe resta, por isso, manter
o contacto, continuar a seduzir o interlocutor, até que o convença. Por isso, embora SP
denegue a intervenção de [B3], não responde ao insulto, preferindo antes dirigir-lhe
novo tratamento de exortação, [5] ilustre ave nocturna, FT que é um verdadeiro presen-
te verbal de valorização do narcisismo de B (da sua face positiva), dum FFA de cortesia
negativa (segundo a classificação que propomos dos FFA’s que acompanham a realiza-
ção de FTA’s), para, de seguida, reafirmar o seu estado de moribunda, um FTA orienta-
do para a sua face positiva. B volta, então, a manifestar algum interesse por SP, chegan-
do mesmo a tratá-la por [6] comadre, uma FT de aproximação taxémica e proxémica, ou
melhor, de aproximação proxémica que reduz a distância taxémica.
O co(n)texto e o turno de fala seguinte ([B5]) fazem com que este tratamento de
[6] comadre receba sobretudo um valor irónico e trocista, dados os actos ofensivos que
a acompanham, incluindo a gargalhada final. Com este acto paraverbal, B dá a entender
que não continua interessado na conversa. Daí que possa ser entendido como acto fático
de fechamento. O narrador informa, por isso, que o grande rapinante voltou à cantilena:

– Viram bois!... Viram bois!...71

Mas SP não tinha esgotado ainda as suas capacidades discursivo-textuais (retóri-


cas e polifónicas) de sedução e persuasão. Insiste, por isso, no restabelecimento do con-
tacto, dando início a uma nova sequência fática, seguida de quatro sequências transac-
cionais, uma delas encaixada na segunda.

[SP6] – [8] Senhor bufo, por quem é! – gemeu a raposa.– Deixe lá os bois e oiça...
[B7] – Viram bois!
[SP7] – Por alma de quem lá tem... Lembre-se que [9] minha avó e [10] seu ilustríssimo
avô estiveram juntinhos e foram amigos na arca de Noé.

70
Os itálicos marcam definições adaptadas de velhacaria e velhaco, colhidas em DLPCACL (II Vol.),
2001: 3716.
71
RIBEIRO, 1961: 106.
458

[B8] – Que quer [11] você, [12] sua desenvergonhada? – exclamou o bufo, em tom de
cólera.
[SP8] – Pouca cousa... pouca cousa. [13] Vossa Senhoria sabe que há viver e morrer?
Sabe, que é [14] senhor de muito entendimento. Pois já que sabe, antes de ir mais
longe, queria que me perdoasse as ofensas, se algumas lhe fiz...
[B9] – Ofensas suas não tenho, que [15] eu quero menos dares e tomares [16] consigo
que as moscas com o picanço.
[SP9] – Embora, deite-me o seu perdão. Também se peca por pensamentos...
[B10] – Está perdoada!
[SP10] – Bem haja, [17] meu rico senhor, bem haja.72
SP volta a utilizar a FT de chamamento - senhor bufo - mas a que B não corres-
ponde. SP recorda, então, eventuais laços de proximidade entre antepassados de ambos,
referindo e tratando, delocutivamente, o avô de B por [10] ilustríssimo, forma indirecta
de elogiar as faces positiva e negativa de B, enquanto se refere à sua parente simples-
mente por [9] minha avó. A estratégia argumentativa (retórica, centrada tanto no pathos
como no ethos) é clara e a conclusão não o é menos: se os avós foram íntimos e amigos,
também os netos devem ser. Esta rememoração, acompanhada de novos actos exortati-
vos, faz com que B ceda, ainda que contrafeito e ofendido. B corresponde colérico
(informa o narrador) ao chamamento, utilizando FT’s (FTA’s) de clara descortesia e por
isso de afastamento. A intervenção reactiva é composta por uma interrogativa cujo
sujeito é o pronominal [11] você, seguido dum insulto que é, também ao nível morfos-
sintáctico e semântico-pragmático, uma manifestação de enfado e de afastamento – [12]
sua desenvergonhada, onde sua é possessivo e não forma contraída de senhora.
Aos elogios (FFA’s) recebidos, B responde com ofensas (FTA’s), mas nem
assim SP desiste. Ela sabe que as relações entre ambos ainda não permitem a formula-
ção do pedido,73 cuja satisfação é vital para a sua sobrevivência. Assim, depois de
minimizar os custos do que deseja, volta a valorizar as faces positiva e negativa de B,
dirigindo-lhe uma FT de elevada cortesia – [13] Vossa Senhoria - e atribuindo-lhe sabe-
doria, sendo definido e tratado, por isso, também por [14] senhor de muito entendimen-
to, mais um evidente presente verbal, um FFA de cortesia negativa. Ao mesmo tempo,

72
Id.: 106-107.
73
Na linha de pensamento de Perelman & Olbretchs-Tyteca, observa Constantin Salavastru que qualquer
orador deseja influenciar o auditório a que se dirige, através do discurso que produz, discurso esse que é
também condicionado pelo conhecimento que esse orador tem desse mesmo auditório. Por isso, o sucesso
do acto discursivo «est dépendant de la qualité de la relation entre l’orateur et l’auditoire.» [SALAVAS-
TRU, 1998: 33]
459

SP volta a humilhar-se, a degradar a própria face, pedindo perdão, humilhação que


reforça, ao pedir perdão por ofensas nunca praticadas, ou apenas pensadas. Perdão que,
uma vez obtido, é agradecido e intensificado pelo acompanhamento duma FT de eleva-
da cortesia e deferência – [17] meu rico senhor – que é, ao mesmo tempo, uma expres-
são estratégica da submissão e de afecto, a cuja ambiguidade taxémica e proxémica já
nos referimos.
Estamos, de novo, perante o jogo discursivo dos processos de figuração e auto-
desfiguração, um e outro crescentes, embora com sentidos inversos, mas coorientados
para o mesmo fim. SP, devido à treta de que era senhora, consegue que as relações com
B tendam para o equilíbrio desejado, propício à continuação e desenvolvimento da inte-
racção. A plataforma de entendimento mútuo (acordo) está conseguida.74 SP avança, por
isso, para a formulação do pedido, macroacto que domina toda a interacção e sobretudo
a próxima sequência transaccional. Porém, esta é interrompida por uma sequência tran-
saccional encaixada, destinada a explicar, por um lado, a razão do pedido e, por outro, a
causa da agonia em que SP se diz encontrar. Repetimos, no fragmento seguinte, [SP10],
por neste turno de fala se encontrar, além da intervenção reactiva ao acto director (Está
perdoada!) de [B10], a intervenção iniciativa, constituída pelo acto subordinado expli-
cativo Para morrer em paz e pelo acto director só me resta que Vossoria me vá chamar
o escrivão, constituindo este último o pedido (o macroacto ilocutório).

[SP10] – Bem haja, [17] meu rico senhor, bem haja. Para morrer em paz, só me falta
que [18] Vossoria me vá chamar o escrivão...
[B11] – Essa é boa! O escrivão, para quê?
[SP11] – Para fazer o testamento. Tenho esta cova, queria deixá-la a um filho que é
mesmo um enjeitadinho da fortuna...75

SP formula o pedido acompanhando-o de [18] Vossoria, tratamento que, apesar


de morfologicamente amalgamado, expressa ainda elevada cortesia em relação a B, nes-
te co(n)texto. SP atenua, assim, a formulação do acto, para, ao mesmo tempo, o intensi-
ficar ao nível do objectivo ilocutório e sobretudo da felicidade perlocutória. Além disso,
este FTA é ainda atenuado pela justificação (argumento de valor universal, preconstruí-

74
«Tous les actes argumentatifs impliquent une précaution élémentaire qui renvoie à l’accord minimal
entre l’intervenant argumentatif et l’auditoire.» [SALAVASTRU, 1998: 34]
75
RIBEIRO, 1961: 107.
460

do cultural) do direito a morrer em paz. Continuando na mesma estratégia argumentati-


va, SP chega ao limite da autodegradação – a eminência da morte - estado de que se
serve para, num derradeiro gesto de amor pelo filho, também ele por ela degradado
(desfigurado) nas suas faces negativa e positiva, convencer B. (O testamento a favor do
filho desafortunado é uma valorização da sua face positiva, mas, ao mesmo tempo, con-
fessar que o estado do filho é uma desvalorização das faces negativas dele e dela.) SP
sabia muito bem que a um moribundo nada se recusa. Começa, portanto, a inverter a
orientação estratégica de autodesfiguração, passando ao processo de autorrefiguração,
de reconstrução da própria face, de limpar a sua própria imagem. B, apesar de reticente,
deixara já de ofender SP e mostra-se interessado em saber a causa da agonia da vizinha:

[B12] – Está a morrer... Mas que lhe aconteceu?


[SP12] – Que me havia de acontecer!... Quis o mal de meus pecados que ontem, a horas
de ceia, descobrisse um galinheiro com o buraco por tapar. Galinheiro de fidalgo,
pai da vida, onde cada bicho era um pote de enxúdias...
[B13] – E [19] você entrou lá e passou tudo a fio de espada?...
[SP13] – É como diz [20] o meu bufo. Entrei lá com tanta sorte que nem tossiu homem,
nem ladrou cão. Fiz bem? Fiz mal? No outro mundo me tomarão contas. Quer-me
parecer que prestei grande serviço à humanidade em libertá-la dum galaroz que
[21] nos acordava do sono com tão agudos cocoricós, duma galinha-da-índia, que
andava sempre de maus instintos, mata! mata! e até do peru, que, ao ver gente, se
encarniçava e pragueja que parecia Belzebu!
[B14] – Adiante...
[SP14] – Fiz a chacina e tratei de trazer tudo cá para a cova. Trouxe dois coelhos man-
sos...
[B15] – Dois coelhos mansos?! Dá-me um, [22] comadrinha, dá-me um?
[SP15] – Ouça a relação. Trouxe dois coelhos mansos, um peru, três galinhas, uma pata,
e vinha na quinta viagem com o galo nos dentes quando me saiu pela espádua o
bicho-homem e disparou o arcabuz. Alcançou-me um bago de chumbo no cora-
ção, estou às portas da morte...
[B16] – Não ouvi o tiro.
[SP16] – Foi longe, para o povo. E como havia de ouvir se [23] Vossa Senhoria está
sempre: Viram bois! Viram bois!76

76
Id.: 108-109. Esta sequência dialogal constitui a sequência encaixada a que nos referimos acima. O
tema do escrivão é suspenso para dar lugar ao motivo da agonia.
461

B está conquistado. Ele próprio dá o flanco, com [B12], à continuação e desen-


volvimento da interacção verbal. SP aproveita para contar a sua última grande aventura,
ocasião também para mostrar que, apesar do infortúnio, ficou bem abastecida de alimen-
tos, a cuja enumeração, como troféus de caça, se dedica, entre o prazer e o remorso, sem
se esquecer de referir os benefícios resultantes para o bem-estar dos vizinhos. SP proce-
de, assim, a uma revalorização das próprias faces positiva e negativa (recuperação de
prestígio e poder), iniciando um processo de autorrefiguração ascendente.
Neste momento, as FT’s trocadas estão reduzidas a você e às formas verbais cor-
respondentes. A conversa evolui tão harmoniosa e a relação, entre os dois interactantes,
torna-se de tal modo próxima que, a dada altura, SP já trata B por [20] o meu bufo,
aquele mesmo a quem tratara antes por senhor bufo, meu príncipe, ilustre ave nocturna,
Vossa Senhoria, senhor de muito entendimento, meu rico senhor e Vossoria. Aquela FT
expressa, desde logo na sua constituição sintáctica e nos valores semântico-pragmáticos
que denota, a existência duma relação (ou a vontade de que exista) de maior proximida-
de e afectividade. Repare-se, por outro lado, que SP emprega uma FT pronominal inclu-
siva, [21] nos, ainda que seja mais de valor majestático que de modéstia.77
Com B seduzido, restava avançar o argumento final, para que ficasse definitiva-
mente convencido: referir que, entre os bens pilhados, havia dois coelhos mansos. É

77
Observa Meyer, reflectindo sobre a retórica da sedução, que o sedutor utiliza a lógica da inclusão, que
«vise à diminuer la distance, et, procède comme si celle-ci était abolie ou n’avait plus d’importance.»
[MEYER, 1993: 126] A propósito dos valores que o pronome nós pode ter, quando utilizado num dado
contexto de comunicação / interacção verbal, observa Jeandillou: «Nous demeure un pur embrayeur
quand englobe je + tu, et quand il a une valeur de 1re personne atténuée (le nous du discours scientifique)
ou amplifiée (le nous dit de majesté = je + je + je…) : il permet alors au locuteur de parler en tant
qu’individu mais aussi comme sujet occupant une fonction ou une position sociale collectivement recon-
nue.» [JEANDILLOU, 1997: 56] Pode essa função ou posição não se encontrar (ainda) socialmente reco-
nhecida, acrescentamos nós, mas ser apenas desejada pelo locutor, como processo de autofiguração ou de
autorrefiguração, como é o caso de SP. Quanto ao uso, em Português, do nós majestático, observam
Cunha & Cintra que, de início, este tratamento «deveria ser uma fórmula de modéstia: o rei a confundir-se
com a nação, que falava por sua boca», enquanto «na Igreja seria, no princípio, uma forma de humildade:
os prelados a solidarizarem-se com os seus fiéis dentro de uma comunidade». E acrescentam: «Mas, per-
dido o valor originário, este plural com que superiores se dirigiam a inferiores veio a ser sentido como
uma enfática expressão de grandeza, de poder, de majestade do cargo.» [CUNHA & CINTRA, 1984:
286]. Os mesmos autores observam, quanto ao chamado plural de modéstia, que, a fim de evitar «o tom
impositivo ou muito pessoal de suas opiniões, costumam os escritores e os oradores tratar-se por nós em
lugar da forma normal eu», procurando, desta forma, «dar a impressão de que as ideias que expõem são
compartilhadas pelos seus leitores ou ouvintes, pois que se expressam como porta-vozes do pensamento
colectivo.» [Id.: 285] A designação «plural de modéstia» não nos parece a mais correcta, na medida em
que, a nível semântico, o emprego de nós (ou nos, ou nosso) pode não ter outro referente senão o próprio
locutor. Por outro lado, morfologicamente, nós nunca é o plural de eu (nem vós de tu). Como observa
Gouvard, a designação «plural» resulta duma analogia com a terceira pessoa do plural que, de facto,
semântica e morfologicamente, é um plural (ele/eles; ela/elas). O autor propõe, por isso, que se utilize a
designação de «referente colectivo», evitando-se, assim, «toute confusion avec les anaphoriques de troi-
sième personne, dont ni la morphologie ni le fonctionnement référentiel ne sauraient être comparés aux
pronoms de première et de deuxième personnes». [GOUVARD, 1998 : 51-52]
462

neste momento que SP e B invertem, definitivamente, os lugares que até então vinham
ocupando.78 B pede a SP um dos coelhos, pedido cuja formulação acompanha duma FT
que expressa, também ela, proximidade e afectividade – [22] comadrinha. SP não cor-
responde imediatamente ao pedido, adiando a resposta para o fim da relação dos troféus
e revelação da causa próxima do seu estado às portas da morte. A descortesia de SP
(adiar a resposta ao pedido) não terá agradado a B, voltando por isso a duvidar da vera-
cidade do relato. SP sabe, porém, com quem está a lidar e, sendo ela treteira como é,
imediatamente avança com uma explicação, acompanhada duma FT de elevada cortesia
– [23] Vossa Senhoria – assim voltando a seduzir B. De tal modo, que é o próprio B que
retoma a formulação do pedido, sinal de que está convencido e disposto a realizá-lo:

[B17] – [24] A comadre quer então o escrivão?


[SP17] – Quero, para fazer testamento.
[B18] – Não conheço tal número...
[SP18] – [25] Homem, não conhece o gato montês, calabrês, miador e furtador? Aquele
que fez o testamento do urso Mariana quando o pobrezinho esticou o pernil?
Mora aqui perto...
[B19] – Vou ver se o descubro. Tenho então um coelho?
[SP19] – Os dois, [26] meu senhor, os dois. Para que os quero eu!?79

Neste segmento, que retoma a sequência anterior à encaixada, os interactantes


retomam as posições taxémicas e proxémicas que vinham ocupando, a partir da relação
da pilhagem. B, além de se mostrar disponível para realizar o pedido, trata SP por [24]
comadre. Esta, por seu turno, depois de reafirmar o motivo da necessidade do escrivão,
trata B simplesmente por [25] homem. Uma e outra FT denotam proximidade, embora
SP comece a ocupar um lugar ligeiramente superior, como a FT utilizada denota e o
acto de discurso que introduz e acompanha confirma, ao censurar B por desconhecer
onde mora o escrivão, tão conhecido, por morar perto e ter sido ele quem escreveu o
testamento do urso Mariana.
Mas se SP queria o escrivão, B não se esquecia do coelho prometido. Por isso,
perante nova dúvida, SP não só reafirma o cumprimento da promessa, como a intensifi-
ca, aumentando-a de um para os dois coelhos. Além disso, volta a dirigir-lhe uma FT –

78
De sedutor, o locutor passa a predador, que utiliza a lógica da exclusão, explica Meyer, porque «con-
vaincre, c’est vaincre.» [MEYER, 1993: 126]
79
RIBEIRO, 1961: 109.
463

[26] meu senhor - que denota ao mesmo tempo cortesia e valorização da face positiva
do interlocutor, e submissão afectiva da sua parte. E a lógica explicação aí está, no acto
subordinado, constituído pela interrogativa retórica Para que os quero eu!? Pois, se
estava às portas da morte!...
Mas B volta a duvidar das boas intenções de SP. B duvidava de SP, mas SP
acreditava na força das FT’s corteses e honoríficas que dirigia a B, mesmo sabendo(-se)
que não estava a ser sincera. Só que a lógica da actividade discursivo-textual não é a
verdade, é a persuasão, através do verosímil. Não é a demonstração, é a argumentação:
«Argumenter, c’est avoir choisi le discours contre la force, même si c’est pour séduire
ou manœuvrer pour faire agir.»80

«O bufo calou-se um instante e, quando a raposa já o julgava a bater asas para largar,
ouviu que lhe dizia:
[B20] – Olhe lá, [27] comadre, não é intrujice?
[SP20] – Intrujice! Ora essa, como podia isso ser...
[B21] – Alguma esparrela ao gato bravo...
[SP21] – Qual! [28] Eu sempre tive mais medo dele que ele de mim... Não, é pura ver-
dade. Apanhei o tiro e para aqui me vim arrastando com tanto custo, tanto custo,
que nem a cama pude chegar.
[B22] – Mas fala tão espevitada...
[SP22] – Então o tiro não foi na língua...
[B23] – Bem, eu vou chamar o gato bravo. Um coelho está certo...?!
[SP23] – Dois, [29] meu coraçãozinho de oiro, dois.81

B duvida de que se trata de mais uma intrujice da [27] comadre. A promessa do


coelho manso, porém, foi superior, acabando con-vencido. Mas para que B, durante a
viagem, não voltasse a ter mais dúvidas, mesmo depois dele lhe ter chamado indirecta-
mente intrujona, SP reafirma-lhe a promessa dos dois coelhos, que acompanha de nova
FT (mais um FFA de cortesia negativa) – [29] meu coraçãozinho de oiro – através da
qual volta a aproximar e a aproximar-se afectivamente de B, reduzindo todas as distân-
cias taxémicas e proxémicas, situando a relação de cortesia ao nível da intimidade. SP
sabia que tinha conseguido, enfim, ludibriar o bufo e que com esse ludíbrio recuperaria
a liberdade e que jamais cumpriria o prometido. Meu coraçãozinho de oiro não passa,
80
MEYER, 1993: 8.
81
RIBEIRO, 1961: 109-110
464

por isso, dum pobre presente verbal envenenado, mas simbólico e, por isso, operativo ao
nível das relações interpessoais, até porque se trata duma metáfora.82
Tendo-se, porém, em consideração as FT’s de elevada cortesia que SP dirigiu a
B, durante as várias sequências, meu coraçãozinho de oiro é mais um tratamento irónico
e, por isso, de descortesia. Neste sentido, lesaria as faces do interlocutor, mas B já esta-
va convencido pela acção discursivo-textual de SP e deixara-se, por isso, co-agir, isto é,
passou à co-acção, satisfazendo o pedido.

A Salta-Pocinhas é a imagem de alguém que, dotado duma elevada competência


discursivo-textual, sabe utilizar (manipular) os recursos retórico-argumentativos como
estratégias de cortesia ou descortesia, consoante os co(n)textos das interacções em que
participa. Estratégias que incluem também o saber usar, sincera ou fingidamente, o sis-
tema das formas de tratamento e seus valores semântico-pragmáticos, corteses e descor-
teses, através dos quais estabelece, negoceia ou anula, relações de maior ou menor pro-
ximidade, de maior ou menor poder, com o objectivo de, seduzindo e convencendo,
atingir os seus próprios fins. Como sempre fez a protagonista do Romance da Raposa,
cuja estratégia narrativa do narrador passa, precisamente, por dar da Salta-Pocinhas a
imagem duma senhora de muita treta, ou seja, duma treteira que sabe utilizar («esque-
matizar») os recursos discursivo-textuais, nos seus diferentes valores retóricos, ainda
que ao nível da chamada «retórica negra»:83

«En fait, la rhétorique est la rencontre des hommes et du langage dans l’exposé de
leurs différences et de leurs identités. Ils s’y affirment pour se retrouver, pour se repous-
ser, pour trouver un moment de communion, ou au contraire, pour en évoquer
l’impossibilité et constater le mur qui les sépare. Chaque fois et toujours, le rapport rhé-
torique consacre une distance sociale, psychologique, intellectuelle, qui est contingente

82
A propósito do uso das figuras de estilo como argumentos retóricos, observa Michel Meyer, sintetizan-
do pensamento de Perelman & Olbrechts-Tyteca sobre a mesma questão, que «le but des figures est
d’évoquer une présence, de la renforcer ou de l’atténuer, de faire voir mieux ou autrement ce qui, sinon,
pourrait demeurer inaperçu comme inessentiel.» Segundo estes autores, continua Meyer, uma figura de
estilo «est ornemental [...] si, précisément, elle n’est plus destinée aux fins de l’argumentation, donc à
rappeler ou à susciter le sentiment communautaire, l’accord de cœurs et des esprits.» [MEYER, 1993: 98 ;
cf. também PERELMAN & OLBRECHTS TYTECA, 1996 : 194-203] Um dos estudos mais interessan-
tes a desenvolver, no âmbito da cortesia linguística, é sem dúvida a questão dos valores corteses e/ou
descorteses das chamadas figuras retóricas, nas diferentes práticas discursivo-textuais.
83
Sobre a oposição «retórica negra» vs. «retórica branca», cf. MEYER, 1993: 41-42.
465

et d’occasion, qui est structurelle en ce qu’elle se manifeste, entre autres, par des argu-
ments ou par séduction.»84

2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual


Breves observações

Intimamente relacionado com a problemática dos valores dos tratamentos está,


como fomos anotando, a dimensão polifónica (cuja origem é também de natureza retóri-
ca, como vimos85) de toda a actividade discursivo-textual. Trata-se de tema que desen-
volveremos oportunamente, dada a sua complexidade e não ter sido possível fazê-lo
durante o processo desta dissertação. Gostaríamos, não obstante, de referir, desde já,
que tal dimensão se encontra inscrita sempre nas práticas discursivo-textuais corteses e
descorteses, em geral, e dos tratamentos corteses ou descorteses, em particular.
O locutor, por estratégia de cortesia (que pode ser até para alcançar fins que
depois se verifica nada serem corteses), realiza actos elocutivos que desvalorizam ou
desfiguram a sua imagem / face aos olhos (interiores) do(s) seu(s) interlocutor(es), ou
mesmo de terceiros presentes, testemunhas ratificadas ou laterais, espias ou não. É des-
cortês para consigo, dirigindo-se auto-FTA’s, ou recusando FFA’s que lhe sejam dirigi-
dos. Diz, então, ser o que de facto não é, ou nega ter as qualidades favoráveis que o(s)
outro(s) lhe atribui(em). Recuperando noções de Bakhtine e de Ducrot, reinterpretadas
por Adam,86 diremos que o locutor ser do mundo passa a ser outro, um ser de ficção, um
ser imaginário, como outro(s) passa(m) a ser aquele(s) a quem se dirige, tratando-o(s)
cortês ou descortesmente. Mudanças de personalidade(s) e de identidade(s), que as dife-
rerentes vozes, dele e do(s) outro(s), corporizam, através das FT’s utilizadas.
Em nosso entender, é só tendo presente esta dimensão polifónica que se com-
preende e explica que um mesmo locutor, dirigindo-se a um mesmo alocutário, o trate,
ao longo duma mesma interacção verbal, de diferentes maneiras, utilizando diferentes
FT’s. Assim se compreende e explica, igualmente, que um mesmo locutor se dirija a si
próprio descortesias mais ou menos fortes e recuse receber tratamentos ou cortesias
valorizadores, enquanto dirige aos outros tratamentos corteses, por vezes de alta corte-
sia, e não seja considerado mentiroso, quando se sabe que nem um nem outros estão a

84
Id.: 22.
85
Ver, supra, cap. I, 2.6.
86
Ver, supra, cap. I, 2.3.
466

ser verdadeiros. Só assim se compreende também que certos insultos sejam considera-
dos, umas vezes, formas carinhosas de tratamento e, outras vezes, certos insultos (calú-
nias, difamações, ultrajes...) sejam vistos como uma questão de honra que exige pedidos
(públicos ou não) de desculpas, recurso a tribunais, quando não a vias de facto, porque
os duelos formais passaram de moda.
Mudança(s) de personalidade, de identidade e de relação momentânea ou dura-
doura, que polifonicamente se reflecte(m) nas práticas discursivo-textuais e particular-
mente no uso de diferentes FT’s, encontra(m)-se nas passagens do tuteamento ao
voceamento, ou vice-versa, bilateral ou não, uma ou mais vezes, no decurso duma mes-
ma interacção verbal. É em co(n)texto de conflito declarado, ou que para ele evolui,
que tais mudanças sobretudo se operam. Os interactantes consideram que já não são, ou
não querem ser, o que até dado momento eram (ou pareciam ser), passando a ser (ou
parecer) outros, que pode ser voltarem a ser o que já foram (ou pareciam ser). Mas pode
ser, ainda, que outros tantos sejam ou desejem ser quantos são ou parecem ser pelas
diferentes vozes a que dão voz, explícita ou implicitamente, nas práticas discursivo-
textuais que realizam, em co(n)textos de comunicação face-a-face ou diferida, literária
ou corrente.

A título de ilustração, apenas, veja-se a seguinte sequência dialogal, colhida n’A


Via Sinuosa de Aquilino Ribeiro. Trata-se duma interacção verbal de natureza afectiva,
onde duma relação de proximidade, intimidade (ao nível do eixo proxémico) se transita
para uma relação de afastamnento e de poder (nível do eixo taxémico), entretanto perdi-
do por uma das personagens e correlativamente ganho pela outra, no enredo de afectos
proibidos e clandestinos. Aliás, a interacção verbal é toda ela coconstruída no desenvol-
vimento dum subtil jogo amoroso87 de aproximação e afastamento, que as mudanças de
tratamento claramente expressam.
A sequência é longa, mas vale a pena transcrevê-la, tanto pela polifonia discur-
sivo-textual nela representada, como por todo um conjunto de cortesias e descortesias
verbais, paraverbais (risos e sorrisos) e não verbais (toques) que nela se encontram tam-
bém referidas, bem como pela interpretações de natureza metacomunicativa que a este
nível são produzidas. (Marcamos e numeramos os turnos de fala, através de [E] e [L],

87
Sylvie Weil, em Trésors de la Politesse Française, observa: «Entre un homme et une femme, le pas-
sage du vous au tu, du tu au vous, constitue un jeu amoureux un peu semblable à celui qui consisterait,
pour une femme, à se cacher et à se découvrir alternativement le visage avec une écharpe ou un éventail.»
[WEIL, 1983 : 69]
467

iniciais, respectivamente, de Estefânia e Libório, personagens da sequência dialogal


representada, e por [N] o discurso do narrador.)

[N1] «De madrugada, [...] bateram-me à porta. Não duvidei que fosse Estefânia, porque
era hábito seu, deixando o marido em soneira, cometer a adorável imprudência de
me visitar àquela hora. [...]. Entrou silenciosa e grave, sem aquele ar prazenteiro
que iluminava o quarto. Tomando-lhe as mãos, beijei-lhas e puxei-a para junto da
cama.
[E1] - Não me demoro – [N2] pronunciou ela, repelindo-me brandamente.
[L1] - Ainda estás amuada?
[E2] - Amuada? ah! ah! Faz de mim uma ideia muito baixa…
[L2] - Aí está...
[E3] - Não venho para discutir... o senhor, ontem, portou-se indignamente comigo. Tal
coisa não esperava... Largue... largue-me as mãos... tudo acabou entre nós. Pode
continuar ao serviço de meu marido, não lhe pego, mas eu deixei de ser a que era.
Ouviu bem? Digo-lhe isto para que à mesa não se ponha a fazer caretas, e meu
marido não cobre mais suspeitas. Não o viu já ontem? Olhe que é menos asno do
que parece...
[L3] - Perdoa, não quis melindrar-te! – [N3] balbuciei em voz tremida.
[E4] - Não o autorizo a tratar-me por tu; não lhe disse já que tudo acabou entre nós? O
senhor não me melindrou, ofendeu-me irreparavelmente.
[L4] - Porquê?
[E5] - Porquê? O inocente! Não sabe que há palavras soltas da boca que ferem como
pedras? Ah!...
[L5] - Mas em que a ofendi, santo Deus?
[E6] - Ofendeu-me. Quando ontem lhe perguntei quanto ou como me amava, deu-me
uma destas respostas de chichisbéu, que nenhuma mulher, que se preza, toleraria.
Falhou-lhe o espírito; pois largasse uma tolice, mas uma tolice limpa. Dissesse que
me amava como burro, e estava entendido...
[N4] Sorri, em despeito da tortura que me garrotava.
[E7] - Não ria! – {[N5] exclamou ela de lábios coléricos, batendo o pé.} – Com quem
julga que está a lidar?
[N6] Senti uma grande vontade de rir, de exagerar meu riso torpemente e mandá-la à
cozinha a quebrar dois pratos para refrigério dos nervos, mas reprimi-me, fincando
mandíbula sobre mandíbula. [...].
468

[E8] - Está a armar em homem superior – {[N7] prosseguiu em tom agressivo} – e pro-
fere baboseiras daquelas! Depois, chamado à ordem, fica tartamudo, sem saber des-
culpar-se, nem ao menos ter arte para mentir...
[ L6] - !
[E9] - Ria, que me diverte, ria! Não imagina como é engraçado! Oh! há-de comer ainda
muito sal para brincar com uma mulher como eu. Creia! O senhor não sabe nada do
mundo...
[L7] - Mas oh! semhora!...
[E 10] - Oh! senhora!... – {[N8] repetiu, dando à voz uma curva melíflua e irónica de
piedade. E, meneando a cabeça, tornou:} - A nenhuma mulher se deixa ver que se
amou outra. É uma imprudência. A mulher toma ainda mais ciúmes do passado que
do futuro. Não sabia? Pois fica sabendo. Nós somos egoístas do afecto que nos
votam e queremos ter a ilusão de que foi, é, e será o único. Percebeu? A verdade é
que a nossa alma é feita de nuvens, enquanto a dos senhores não passa de bolbo.
[...]
[N9] Estefânia acabara a fala no tom mavioso que lhe conhecia; seu ar era, porém, sisu-
do e magoado. O roupão abrira-se e eu via-lhe pojar o seio na camisa de rendas. E
ante aquelas carnes brancas que se me negavam, a minha luxúria aguçava-se do
apetite histérico de mordê-la... e como um favo a ir chupando e triturando.
[L8] - Se não amo outra!... – [N10] exclamei.
[E11] - Pois sim, mas deu-me a perceber que amara. Foi involuntariamente, emendasse.
Porque não negou? O senhor é dos tais que entendem profanar um sentimento men-
tindo. Olá, mentir! E vê, depois do disparate, a mentira era mais moral e mais
necessária que a verdade...
[L9] - Pois se eu nunca amei!
[E12] - Agora é tarde! – {[N11] replicou ela, sorrindo.} – Dissesse-mo ontem.
[L10] - Perdoe.
[E13] - Não perdoo. Adeus! durma, não pense mais em mim...
[N12] Ia a retirar, e saltei da cama como estava a prendê-la.
[E14] - Largue-me...
[L11] - Não, Estefânia, não!
[N13] Debatemo-nos, eu com desespero, ela com porfia.
[E15] - Larga-me, meu marido pode acordar...
[L12] - Deixá-lo! Que venha ele, que venha o Diabo, que me matem, pouco importa!
[N14] Presa pelas mãos, apercebendo-se da minha desatinada angústia, deteve-se.
[E16] - Que homem!
[L13] - Ouça, Estefânia...
469

[E17] - Que me queres?»88

Sob muitos e diversos aspectos se poderia analisar esta sequência dialogal, no


quadro do sistema de cortesia (e descortesia) linguística, em geral, e dos tratamentos
corteses e descorteses, em particular. Não é, porém, este o nosso objectivo de momento,
mas apenas exemplificar marcas de polifonia que as mudanças ou variação de tratamen-
tos também manifestam. As personagens E e L, no decurso do diálogo, operam mudan-
ças de tratamento com a seguinte evolução, em termos gerais: tuteamento → voceamen-
to → tuteamento. Resultam tais mudança, por seu turno, duma série de outras mudanças
(evidentemente simbólicas) em cadeia, que podemos esquematizar assim:
mudança de comportamento → mudança de atitude → mudança de personalidade → mudança
de identidade → mudança de relação → mudança de tratamento.

Explicitando, temos que, reagindo desfavoravelmente a comportamento anterior


de L, considerado ofensivo (cf. L1, E2, E5, E6, E10, E11), E muda de comportamento e
de atitude em relação a L e a si própria (cf. E1, E3, entre outras); esta mudança implica
uma mudança de personalidade (cf. E3: «eu deixei de ser a que era»); mudança esta que
implica mudança de identidade (cf. E7: «Com quem julga que está a falar?»), que, por
seu turno, exige mudança de relação entre ambos (cf. E3, sobretudo) e por isso, também
de tratamento (cf. E4: «Não o autorizo a tratar-me por tu», além das formas utilizadas
de 3.ª pessoa, tanto nominais, como pronominais, como sobretudo verbais, até ao tuteio,
cf. E15, E17). Observe-se que E tem perfeita consciência de tais mudanças, quer em
relação a si própria, quer em relação a L, como os seus comentários de natureza meta-
comunicativa o provam. Cabe referir que, uma vez discursivo-textualmente assumidas e
expressas por E, tais mudanças constituem, por outro lado, uma exigência a que L pro-
ceda simetricamente de igual modo. Ou seja, em termos de polifonia, as novas vozes
que E passa a ter exigem outras idênticas da parte de L. Porque duma interacção verbal
se trata, onde ambos têm de cooperar, mesmo que em situação de polémica.
Não é, porém, apenas ao nível dos tratamentos que a polifonia se inscreve e
manifesta nesta prática discursivo-textual. Mulher / casada / infiel / amante / apaixonada
/ ciumenta / sedutora / experiente ... de cada um destes estados ou propriedades faz E
ouvir a respectiva voz, a cada uma destas personalidades e identidades dá voz, ou de

88
RIBEIRO, 1983: 265-268.
470

cada uma delas recebe a voz. A título de exemplo, veja-se E10. Polifonia que inclui
vozes do marido (cf. E3) e de L (cf. E2, E6).
As mudanças de tratamento serviram a E para, polifonicamente, jogar no campo
dos afectos e assim despertar em L ainda maiores manifestações amorosas, num retorno
à paixão por ambos ardentemente desejada (cf. E14 e seguintes). Mas tais mudanças
podem funcionar também (como estrategicamente funcionaram entre E e L), para recri-
minar, censurar, castigar o outro. Sobretudo quando se passa, em interacções com os
mesmos interactantes, do uso de FT’s que expressam uma relação de proximidade, afec-
tividade e intimidade, para o uso de FT’s que expressam uma relação de afastamento e
separação, particularmente quando o destinatário passa a ser visto, referido, tratado
como um terceiro excluído.
Por exemplo, uma mãe revela, com a mudança do tratamento, a reprovação e o
desgosto sentido e a fazer sentir pelo mau comportamento do filho. Um dia, no colégio
onde estudava, Amadeu foi publicamente insultado por um colega dos grandes, enfian-
do-lhe um bacio na cabeça e dando-lhe uma grande sova. O pequeno defendeu-se (as
suas faces negativa e positiva) com navalha. Foi expulso. Recebido em casa, na ponta
das lanças, passou a ser outro, para a mãe e a mãe outra, para ele:

«Minha mãe ouviu o relato funesto com evidente assombro. A reserva, quase mutismo
de que se revestiu, significava a condenação formal da minha conduta. Nobre e hirta
como uma ressentida mas imperturbável magistratura. [...] De resto, alterou para comi-
go. Quando tinha que se dirigir a mim, e só em casos excepcionais, era na terceira
pessoa. Onde ia sua etiqueta terníssima, ela que não encontrava vozes bastantes, detur-
pando umas palavras e inventando outras, para me exprimir o seu amor?»89

Repare-se que o narrador d’Uma Luz ao Longe, na narrativização das interac-


ções verbais havidas entre mãe e filho, relaciona a mudança de tratamento com a corte-
sia («etiqueta terníssima») e a polifonia («vozes bastantes»). E como as FT’s servem
também para o locutor agir, favorável ou desfavoravelmente, sobre o alocutário. Todas
as interacções verbais condicionam e influenciam, e são condicionadas e influenciadas

89
RIBEIRO, 1983a: 175. Itálicos e negritos da nossa responsabilidade. Observa Weil: «Au XIXe siècle,
où le tu était de plus en plus habituel envers les enfants, les parents passaient volontiers au vous quand ils
avaient à faire une réprimande. Une vieille dame racontait que le pire des châtiments, pour elle, était que
sa mère lui dît : “Allez, Mademoiselle, je ne vous connais plus.” Elle sanglotait alors jusqu’à ce que sa
mère lui dît à nouveau tu, et ce tu était le signe qu’elle était pardonnée.» [WEIL, 1983 : 69] Lá como cá,
ou vice-versa.
471

por aqueles que nelas directamente intervêm e pelas relações que nelas e com elas se
estabelecem e desenvolvem.
Os exemplos apresentados servem, por último, para mostrar também que a pas-
sagem de FT’s de T a FT’s de V, tidas estas como formalmente mais corteses que aque-
las, nem sempre corresponde a que existam ou passem a existir relações mais corteses
(isto é, equilibradas e pacíficas) entre os interlocutores e interactantes. Tudo depende
dos co(n)textos e das intenções dos interactantes e da competência de cortesia / descor-
tesia que, na produção como na recepção, eles possuam e ponham em prática. A inten-
ção mais ou menos consciente do locutor em ser cortês ou descortês depende muito da
conjugação e articulação dos vários factores em presença, onde a interpretação do efeito
desejado pelo interlocutor constitui elemento essencial.
1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo

A Salta-Pocinhas, como o olfacto lhe certificasse que estava diante do solar do teixugo,
chamou à porta:
– Ó da casa! Ó da casa!
Esperou, tornou a esperar e ninguém lhe respondeu...
– Ó da casa!... Sou eu, a comadrinha raposa, meu rico senhor D. Salamurdo! Sou eu!
O mesmo silêncio, o mesmo céu baço e a chuva impertinente a rufar na folhagem a
igual, irreal cantiguinha.
– Ando negra de fome... Por alma das suas obrigações, dê alguma coisinha! – gemeu no
tom mais lamúrias que soube achar.
Não bulia, porém, vivalma naquele castelo de alta fidalguia... Tornou ela a carpir-se:
– Ouvi dizer que Vossa Senhoria pilhou pata... Sou a Salta-Pocinhas, sua amiga leal,
verdadeira!
E mais uma vez a súplica se perdeu no silêncio da terra e do solar adormecido. Em tom
provocante, furiosa, gritou, então, à entrada do corredor:
– Pai teixugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a pata!... a
pata!!!
Mas nem injúrias, nem lágrimas, nem rogos conseguiram despertar o morador. Passa-
ram-se minutos, e a raposinha tentada, vai e não vai, a arremeter por ali dentro, à ventura, fosse
o que Deus quisesse. D. Salamurdo, porém, tinha garras de aço que apertavam como turqueses,
dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais, e acobardou-se. Dando voltas ao
entendimento sobre o que havia a fazer e não fazer, lembrou-se de ir espreitar pela clarabóia.
Oh! lá estava o maganão no jaquetão cor de café, topete e peitilho alvos de neve, rolado em
472

macio musgo e folhas secas ! Depois de admirar a gordura do nababo e o conforto do aposento,
a raposeta, pintalegreta, senhora de muita treta, tornou a gemer:
– Ó meu rico senhor, tenha dó! Ando mirradinha de fome! Já nem me recorda que engo-
lisse um escaravelhinho...
O bicho não respondeu; mas, sempre à espreita, viu-lhe a Salta-Pocinhas abrir as pálpe-
bras, sacudir as orelhas, soprar, fungar, coriscar lume das pupilas verdes, dando em tudo sinal
de incomodado. E renovou a cantilena:
– Ó meu rico senhor!
– Qual rico senhor, nem qual diabo! – regougou afinal D. Salamurdo. – Não tenho nada
que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí apodrecerem, não
eram para você que vem empestar-me a casa. Apre, quando tiver de pedir esmola a portas de
certa teoria, lave-se primeiro, trate de desencardir-se da catinga, que fede à légua!
Grandemente se sentiu a raposinha com tão cruel descompostura. De sobra sabia ela que
o teixugo é bicho muito limpo e asseado, e que a outros que tais, como o almíscar, fadou a natu-
reza tão bem cheirosos que estar ao pé é apanhar uma dor de cabeça. Não lhes invejava a pren-
da. Bicho ganhão, bicho labregão. Não era desonra pertencer à ralé, nem faltarem-lhe costados
de fidalguia. Mas cheirar mal, ser assim fedorenta, ofendia-a na ideia que concebera dos seus
agrados, mocinha airosa, briosa, graciosa que se julgava. E por vingança, por pirraça, mais se
debruçou à janela a ganir a cegarrega.
Ouviu-a o teixugo Salamurdo, ouviu, tornou a ouvir, até que cheio de razões correu fora
para castigar a entremetida. Mas ela esgueirou-se a tempo. Tornou ele ao quarto de dormir, rea-
pareceu ela ao postigo:
– Teixugo narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata!
Postou-se no alpendre Salamurdo, de emboscada, a ver se lhe podia chegar ao pêlo. Por
trás da árvore, de soslaio, negaceava com ele a comadrinha.
– Larga a pata!
Volveu o bicharoco a recolher-se, e logo ela, à portinhola, a ladrar:
– Larga a parta!
– Que trabalhos os meus! – exclamou D. Salamurdo.
– Larga a pata?!... A pele hás-de tu largar-me nos dentes, se algum dia te caço a jeito !
Descarada, celerada, enjeitada de chacal!
– Larga a pata!
– Chegou-se a uma época, com seiscentos moscardos! em que a gente já nem segura
está na sua casinha. Vem o mariola e enxovalha-nos, vem o ladrão e rouba-nos. Não há ordem,
não há nada !
– Larga a pata !
– Não calas a sanfona? Então deixa, minha ladra, minha saca de mentiras, que vais ter o
pago. O vizo-rei há-de sabê-lo ainda hoje. E ele, que não é para brincos, dá-te o catatau !
473

O Salamurdo, dizendo isto, saiu de rompante, furioso, a queixar-se, se a ameaça era


verdadeira, ao lobo D. Brutamontes, vizo-rei daquelas selvas e penedias. A raposinha viu-o ir e
considerou:
– Se só o meu cheirete te causa tantos engulhos, eu te ensino. Tenho fé que doravante
não dormirei mais ao sete-estrelo.
E delambida, atrevida mas precavida, fusgando à direita, fusgando à esquerda, não hou-
vesse ali cilada, entrou na cova do teixugo. Percorreu-a de ponta a ponta: comer, de grilo!
Adiante: foi-se à cama do maganão, de fofo musgo, deliciosa para dormir e sonhar, e sem ver-
gonha, não só por acinte, mas também com ronha, estirou-se, rolou-se, espojou-se. E isto feito e
outras coisas mais, crente que o cheiro do seu corpo afugentaria para todo o sempre o esquisito
senhor, regougou de alegria. E a furta-passo, mais silenciosa que se calçasse alpargatas de
ladrão, nariz à flor da terra a tomar os ventos, meteu na peugada do teixugo, que ia levar queixa
ao vizo-rei.

RIBEIRO, 1961: 28-33

1.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo

Chegou a Salta-Pocinhas à porta, o mais fora que podia sem pisar o terreno traiçoeiro da
armadilha, e ganiu de focinho ao alto:
- Ó senhor bufo! senhor bufo!
A ave de rapina continuava com a cantilena macarena:
- Viram bois!... Viram bois!....
- Ó senhor bufo! – tornou ela mais forte. – Senhor bufo!...
- Quem chama? – proferiu então a voz desconsolada.
- É a Salta-Pocinhas, meu príncipe, é esta infeliz da sorte!
- Então que é?
- Que há-de ser, bateu a minha última hora.
- Hum, temos velhacaria!
- Velhacaria quê, ilustre ave nocturna! Mais hora, menos hora digo adeus ao mundo.
- Mas onde está a comadre, que a não vejo?
- Estou aqui à boquinha da cova... mesmo à boquinha.
- Tropeçou, comadre, tropeçou, e partiu os focinhos!? Dê graças que conserva pulmões
para nos buzinar que está com a morte nos gorgomilos! Ah! ah! ah!
E o grande rapinante, dando estalos com o bico, voltou à cantilena macarena:
- Viram bois!... Viram bois!...
- Senhor bufo, por quem é! – gemeu a raposa. – Deixe lá os bois e oiça...
- Viram bois!
474

- Por alma de quem lá tem... Lembre-se que minha avó e seu ilustríssimo avô estiveram
juntinhos e foram amigos na arca de Noé.
- Que quer você, sua desenvergonhada? – exclamou o bufo, em tom de cólera.
- Pouca cousa... pouca cousa. Vossa Senhoria sabe que há viver e morrer? Sabe, que é
senhor de muito entendimento. Pois já que sabe, antes de ir mais adiante, queria que me per-
doasse as ofensas, se algumas lhe fiz...
- Ofensas suas não as tenho, que eu quero menos dares e tomares consigo que as moscas
com o picanço.
- Embora, deite-me o seu perdão. Também se peca por pensamentos...
- Está perdoada!
- Bem haja, meu rico senhor, bem haja. Para morrer em paz, só falta que Vossoria me vá
chamar o escrivão...
- Essa é boa! O escrivão, para quê?
- Para fazer o testamento. Tenho esta cova, queria deixá-la a um filho que é mesmo um
enjeitado da fortuna...
- Está a morrer... Mas que lhe aconteceu?
- Que me havia de acontecer!... Quis o mal de meus pecados que ontem, a horas de ceia,
descobrisse um galinheiro com o buraco por tapar. Galinheiro de fidalgo, pai da vida, onde cada
bico era um pote de enxúdias...
- E você entrou lá e passou tudo a fio de espada?...
- É como diz o meu bufo. Entrei lá com tanta sorte que nem tossiu homem, nem ladrou
cão. Fiz bem? Fiz mal? No outro mundo me tomarão contas. Quer-me parecer que prestei gran-
de serviço à humanidade em libertá-la dum galaroz que nos acordava do sono com tão agudos
cocoricós, duma galinha-da-índia, que andava sempre de maus instintos, mata! mata! e até do
peru, que, ao ver gente, se encarniçava e praguejava que parecia Belzebu!
- Adiante...
- Fiz a chacina e tratei de trazer tudo cá para a cova. Trouxe dois coelhos mansos...
- Dois coelhos mansos?! Dá-me um, comadrinha, dá-me um?
- Ouça a relação. Trouxe dois coelhos mansos, um peru, três galinhas, uma pata, e vinha
na quinta viagem com o galo nos dentes quando me saiu pela espádua o bicho-homem e dispa-
rou o arcabuz. Alcançou-me um bago de chumbo no coração, estou às portas da morte...
- Não ouvi o tiro.
- Foi longe, para o povo. E como havia de ouvir se Vossa Senhoria está sempre: Viram
bois! Viram bois!
- A comadre quer então o escrivão?
- Quero, para fazer testamento.
- Não conheço tal número...
475

- Homem, não conhece o gato montês, calabrês, miador e furtador? Aquele que fez o
testamento do urso Mariana quando o pobrezinho esticou o pernil? Mora aqui perto...
- Vou ver se o descubro. Tenho então um coelho?
- Os dois, meu senhor, os dois. Para que os quero eu!?
O bufo calou-se um instante e, quando a raposa já o julgava a bater asas para largar,
ouviu que lhe dizia:
- Olhe lá, comadre, não é intrujice?
- Intrujice! Ora essa, como podia isso ser...
- Alguma esparrela ao gato bravo...
- Qual! Eu sempre tive mais medo dele que ele de mim... Não, é pura verdade. Apanhei
o tiro e para aqui me vim arrastando com tanto custo, tanto custo, que nem a cama pude chegar.
- Mas fala tão espevitada...
- Então, o tiro não foi na língua..
- Bem, eu vou chamar o gato bravo. Um coelho está certo...?
- Dois, meu coraçãozinho de oiro, dois.

RIBEIRO, 1961: 105-110.


CONCLUSÕES FINAIS

Il faut bien voir qu’une bonne partie de l’activité symbo-


lique des sujets a pour fonction de reconstituer en per-
manence la réalité du moi, de l’offrir aux autres pour ra-
tification, d’accepter ou de rejeter les offres que font les
autres de leur image d’eux-mêmes.
Jean-Michel Adam1

O estudo que ora concluímos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português


europeu foi realizado, fundamentalmente, tendo em vista os seguintes objectivos:

(a) apresentar criticamente as principais teorias que estão na origem e desenvol-


vimento deste novo ramo de investigação - a cortesia linguística;
(b) expor criticamente estudos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português
europeu, de âmbito geral ou particular, realizados por autores nacionais e
estrangeiros (gramáticos e linguistas), no quadro dessas teorias ou de outras;
(c) questionar a aplicabilidade dessas teorias e desses estudos, analisando des-
crições gramaticais, construções linguísticas e práticas discursivo-tex-tuais,
reconhecidas ou reconhecíveis como realizações, explícitas ou implícitas, de
comportamentos verbais corteses e descorteses;
(d) descrever mecanismos de construção e reconhecimento de formas verbais
corteses e descorteses, insuficientemente desenvolvidos ou mesmo não con-
templados nessas teorias e/ou nesses estudos;
(e) articular tais mecanismos com os processos do sistema ou modelo de descri-
ção teórica e análise dos comportamentos verbais corteses e descorteses.

1
ADAM, 1999 : 107
476

Em termos mais práticos, o objectivo geral deste estudo pode ser resumido como
segue:

Identificar e descrever fórmulas e formas linguísticas e discursivo-textuais utili-


zadas e construídas, na expressão explícita e implícita de valores corteses e des-
corteses, por aqueles que interagem (in præsentia ou in absentia) em Português
europeu e reconhecer que funções exercem todas elas a nível intralinguístico e
extralinguístico.

O modelo teórico, cujas linhas fundamentais adoptámos e adaptámos, quando


que necessário, mas respeitando sempre o seu quadro conceptual e terminológico, é o
«sistema de cortesia» desenvolvido por Kerbrat-Orecchioni2 que, por sua vez, retoma e
reúne, corrigindo-as e desenvolvendo-as, as principais teorias fundadoras da cortesia
linguística (Lakoff, Leech e sobretudo Brown & Levinson).3 Trata-se, por isso, duma
proposta ecléctica que integra também contributos doutras áreas e disciplinas linguísti-
cas, bem como doutras áreas das ciências sociais. Confirma-se assim, mais uma vez,
que o estudo da cortesia linguística é de natureza profundamente interdisciplinar, exi-
gência que resulta também do carácter eminentemente social do seu objecto.
O referido sistema assenta, fundamentalmente, nas noções de território, face e
operações de figuração propostas por Goffman e adaptadas e adoptadas pelos principais
estudiosos da cortesia linguística. Estas noções e operações são universais, nos seus
valores, recebendo, todavia, interpretações e realizações específicas, segundo as diferen-
tes sociedades ou comunidades. Os fenómenos gerais de cortesia ou de descortesia são,
por isso, antes de mais, de natureza intracultural. Cada indivíduo possui uma face públi-
ca com uma dupla dimensão: uma face negativa e uma face positiva. Estas correspon-
dem, respectivamente, às noções goffmanianas de território e face. Os interlocutores, no
decurso duma interacção verbal, procuram proteger mutuamente essas faces, incluindo
as próprias, num permanente trabalho de figuração («face want» e «face work»). Para o
efeito, não lhe sendo possível evitar a realização dum acto que ameace essas faces
(FTA: Face Threatening Act), do(s) outro(s) e próprias, cada interlocutor recorre a
diversas estratégias linguísticas e discursivo-textuais, simples ou complexas, de atenua-
ção e/ou compensação das lesões entretanto causadas ou a causar.
2
Ver, supra, cap. III.
3
Ver, supra, cap. II.
477

No decurso duma interacção verbal, porém, os interactantes não realizam apenas


FTA’s (excepto em contextos de urgência, exercício de autoridade, ou de conflito real
ou lúdico), mas também actos valorizadores das mesmas faces (FFA: Face Flattering
Act). Estes últimos podem funcionar também como estratégias de atenuação, na realiza-
ção dum FTA, ou como estratégia de intensificação ou reforço doutro FFA, com inten-
ções que podem ultrapassar o simples estabelecimento duma relação pacífica ou confli-
tuosa. Segundo este sistema, a evitação e a realização atenuada dum FTA constituem
estratégias ou processos verbais de cortesia negativa, de natureza abstensionista e/ou
compensadora, enquanto a formulação de FFA’s constitui estratégias ou processos de
cortesia positiva, de natureza construtora.
As noções de face negativa - face positiva, FTA – FFA, cortesia negativa - cor-
tesia positiva, constituem as bases teóricas fundamentais deste modelo de análise. A
partir delas, Kerbrat-Orecchioni elaborou o referido sistema, composto por um conjunto
de regras e princípios que justificam e explicam as realizações e o funcionamento dos
fenómenos verbais de cortesia e, a contrario, de descortesia. É geralmente reconhecida
a capacidade descritiva e explicativa deste modelo, ainda que, a nosso ver, se situe, qua-
se exclusivamente, ao nível da alocução e elocução, descurando a dimensão delocutiva.
São consideradas, por isso, sobretudo as formas construídas em interacções verbais
estritas, deixando à margem as construções corteses e descorteses, construídas nas inte-
racções verbais em sentido lato.4
Ao introduzir a dimensão delocutiva e ao analisar os fenómenos corteses tanto
ao nível da língua (valores morfossintácticos e semântico-pragmáticos) e do discurso
(interlocução), o estudo de Carreira vem complementar o modelo de Kerbrat-Orec-
chioni, embora continue a privilegiar as práticas sobretudo interlocutivas. A linguista
portuguesa considera apenas as interlocuções, onde, além dos processos alocutivos, os
interlocutores utilizam construções que se referem a si próprios, podendo referir-se tam-
bém a terceiros fisicamente ausentes (ou presentes como tal considerados), podendo
estes últimos ser os próprios interlocutores, por uma questão de cortesia ou de descorte-
sia.
A propósito da existência de FFA’s que atenuam a realização de FTA’s, defen-
demos que os FFA’s, que acompanham a realização inevitável ou inevitada dum FTA,
se situam no âmbito das estratégias de cortesia negativa, uma vez que funcionam como

4
Sobre esta distinção, ver, supra, cap. 1.
478

actos compensatórios (espécie de presente verbal) pelas lesões causadas ou a causar


na(s) face(s) do(s) destinatário(s).
Carreira segue também, no essencial, o referido sistema de Kerbrat-Orecchioni e
teorias fundadoras, na descrição das formas de cortesia em Português europeu contem-
porâneo, integrando-o/as, todavia, no quadro da «semântica pragmática» de Pottier, em
particular no que toca às construções dos valores modais.5 No conjunto ainda reduzido
(comparativamente à quantidade que se vem produzindo sobretudo noutros países oci-
dentais) de estudos sobre a cortesia linguística em Português, levados a cabo por autores
nacionais e estrangeiros, cabe destacar os trabalhos de Carreira, pela visão abrangente [a
nível semântico-pragmático e discursivo (discursivo-textual, para nós)] e pelas propos-
tas inovadoras de análise, assente na noção do trimorfo cíclico e seu desenvolvimento.
Tarata-se dum esquema que sintetiza a dinâmica das relações de aproximação, contacto
e afastamento que, ao nível da proxémia, os interlocutores podem estabelecer , manter
ou anular entre si, no decurso duma interlocução. Foi com base nesse trimorfo que ela-
borámos os esquemas onde representámos as relações interpessoais horizontais (proxé-
micas) ou verticais (taxémicas), existentes ou de novo geradas e geridas pelos interac-
tantes (interlocutores ou não), consoante o co(n)texto e sua dinâmica, através das cons-
truções verbais corteses e descorteses, nomeadamente na análise dos tratamentos.6

As observações, análises e reflexões que fomos fazendo sobre a complexidade


dos fenómenos verbais de cortesia e descortesia em Português europeu, suas realizações
e funcionamentos, intra e extralinguísticos, explícita ou implicitamente, levam a con-
cluir que tais fenómenos ou comportamentos se encontram presentes e condicionam
tanto as interacções verbais em sentido estrito, como as interacções verbais em sentido
lato. Ou seja, em síntese, a actividade da linguagem contextualizada é sempre realizada
de forma mais ou menos cortês ou descortês. Mesmo quando não inclui formas ou fór-
mulas explícitas de expressão de cortesia ou de descortesia, um discurso-texto só apa-
rentemente é neutro, a este nível. Como observa uma personagem de Rei dos Álamos, de
Michel Tournier, «la parole est toujours caresse ou agression, jamais miroir de vérité».7
Nas interacções em sentido estrito, orais e bi ou pluridireccionais, correntes ou
ficcionais, encontra-se, regra geral, maior quantidade, diversidade e construções de mais

5
Ver, supra, cap. V, 1., para as formas de cortesia, e cap. X, 5., para os tratamentos. Cf. Também CAR-
REIRA, 1995, 1997 e 2001.
6
Ver, supra, cap. XII, FIGs. 2 a 6 e cap. XV, FIGs. 4 e 5.
7
Cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 13-14
479

elevada cortesia ou descortesia verbal, uma vez que é sobretudo face-a-face que se é
cortês ou descortês, e mais cortês ou descortês. A razão é (aparentemente) simples: é em
tais co(n)textos que mais directamente expomos e mostramos a(s) nossa(s) face(s) e, por
isso, mais facilmente podemos também protegê-la(s) ou lesá-la(s), ao sermos mais ou
menos corteses ou descorteses para com o(s) nosso(s) interlocutor(es). Os efeitos dos
comportamentos corteses e descorteses, em geral, e dos verbais, em particular, asseme-
lham-se ao lançamento dum boomerang: os FTA’s e os FFA’s que um locutor dirige
ao(s) seu(s) interlocutor(es) atingem directamente, favorável ou desfavoravelmente,
uma ou ambas as faces desse(s) interlocutpr(es) e ao mesmo tempo, mas indirectamente,
uma ou ambas as suas faces de locutor. E idênticos movimentos se verificam quando
um locutor dirige FTA’s ou FFA’s a si próprio: atinge directamente uma ou ambas as
faces próprias, mas indirectamente uma ou ambas as faces desse(s) interlocutor(es).8 É
por isso que, em regra, se é cortês com quem é cortês e descortês com quem é descortês.
Ainda que, segundo mandam as regras vigentes no diassistema sociocultural português
(como na maioria dos países ocidentais), devamos ser descorteses para connosco pró-
prios, porque é assim que somos corteses para com os outros. Em / como princípio, a
autovalorização ostensiva das próprias faces encontra-se proscrita, enquanto a heterova-
lorização das faces do outro é prescrita. Temos assim que se, por um lado, tais regras
levam a que os interactantes coproduzam práticas discursivo-textuais de autodescortesia
(desfiguração das próprias faces) e de heterocortesia (figuração das faces do outro), por
outro lado, é a gestão contextualizada dessas práticas e/ou a coconstrução de outras que
faz com que os interactantes revelem relações de cortesia ou de descortesia já existentes,
as negoceiem ou criem novas. Neste sentido, consideramos que a cortesia / descortesia
verbal ocupa um espaço nas relações humanas, onde as interferências entre o linguístico
e o sociocultural mais se aproximam e por vezes se confundem.

É a natureza essencialmente interaccional da actividade da linguagem (seja em


práticas correntes ou literárias, orais ou escritas), como provado está, a partir sobretudo
de Bakhtine, que está na origem e na explicação da construção de cortesias ou de des-
cortesias verbais, explícitas ou implícitas, em número e grau variado, também na
coconstrução duma interacção verbal em sentido lato. Quando se fala ou escreve, seja
em que co(n)textos de comunicação for, está-se sempre a influenciar e a ser influencia-

8
Ver, supra, cap. III, 1. e cap. XV, 1.1.
480

do, consciente ou inconscientemente, com maior ou menor sucesso, e por isso a ser
sempre condicionado, por uma série de factores que, no quadro da lógica natural, Grize
definiu e sistematizou, com clareza e coerência, na sua teoria de «esquematização dis-
cursiva». Foi com base nas ricas e coerentes reflexões teóricas e conceptuais deste
autor, conjugadas com os contributos introduzidos por Adam, que as adaptou aos domí-
nios específicos da linguística do discurso e do texto, a par das reflexões contidas tam-
bém, entre nós, em estudos de Coutinho, Menéndez e Opitz,9 que propomos e defende-
mos que a actividade co(n)textualizada da linguagem pressupõe e exige uma competên-
cia discursivo-textual, a qual se operacionaliza em diferentes desempenhos, tanto ao
nível da produção como da recepção (incluindo a crítica ou analítica).10
A actividade da linguagem é sempre condicionada pelas representações e ima-
gens que quem fala ou escreve tem e quer dar de si próprio, dos outros, do tema, dos
objectivos que, com o discurso-texto construído ou em construção (coconstruído ou em
coconstrução) pretende fazer, isto é, alcançar, bem como pelas representações e ima-
gens que sabe, pensa, presume que tem ou quer que tenha aquele a quem se dirige,
directa ou indirectamente. É na complexidade desta rede de representações e imagens, a
que andam indelevelmente associados os processos de figuração das faces (próprias e
alheias), que se pode descrever e compreender a comunicação verbal, em geral, nos seus
diferentes tipos e planos de enunciação, co(n)textualmente realizados, bem como as
bases linguísticas duma análise mais rigorosa das formas de cortesia e de descortesia,
como partes condicionantes e condicionadas de diferentes práticas discursivo-textuais.
A competência discursivo-textual é, assim, uma competência alargada que
inclui, inevitavelmente, uma subcompetência voltada para a realização de construções e
reconhecimento de comportamentos verbais corteses e descorteses, adequadas às rela-
ções existentes, presumidas ou desejadas, formais ou informais (incluindo as irónicas,
satíricas e lúdicas). Competência que não exclui antes integra fórmulas, formas e valo-
res de cortesia ou de descortesia já construídos em língua e que são activados e actuali-
zados a par de novas construções mais ou menos originais, nas realizações concretas,
co(n)textualizadas, dos diferentes exercícios da actividade da linguagem. A propósito do
co(n)texto, a entender como o conjunto de factores extralinguísticos e intralinguísticos

9
Ver, supra, cap. I, 2.4., ou cf. obras destas linguistas portuguesas, infra, na Bibliografia.
10
Sobre toda esta problemática, ver, supra, cap. I, (teoria) e caps. XIV e XV, para análises de práticas
corteses e descorteses, como expressão de competência discursivo-textual.
481

(cotexto), ora naturais ora ficcionais,11 convém destacar a sua importância na realização
dos comportamentos verbais corteses e descorteses, a par dos aspectos prosódicos
(entoação) nos casos de interacções em sentido estrito.
Ser competente em cortesia/descortesia verbal exige, por isso, não só (re)co-
nhecimento da quantidade e diversidade de fórmulas e formas, mais ou menos conven-
cionais e fixas, mais ou menos originais, como o (re)conhecimento dos mecanismos
linguísticos que suportam e explicam a sua construção e emprego adequado. A compe-
tência de cortesia encerra, neste caso, uma dimensão de metacompetência.
As construções discursivo-textuais corteses e descorteses percorrem os diferen-
tes domínios da competência comunicativa, desde os linguísticos aos socioculturais, que
têm em consideração não só o que se pode ou deve dizer (oralmente e por escrito), ms
também os modos de o dizer, conforme aos objectivos autofavoráveis ou heterofavorá-
veis pretendidos e a alcançar, imediata ou mediatamente, aspectos entre os quais existe
uma relação de íntima interdependência. Desde o género de discurso-texto a coproduzir,
que implica determinada organização e composição das unidades e sequências que o
constituem, até à selecção das fórmulas e formas, mais ou menos fixas e convencionais,
à construção de outras mais ou menos originais, passando pelos níveis de língua ou
registo, de acordo com o co(n)texto de comunicação, tudo isto condiciona as e é condi-
cionado pelas construções linguísticas e discursivo-textuais que expressam, explícita ou
implicitamente, intenções e efeitos de cortesia ou de descortesia.

Ao longo desta dissertação, depois dum inventário dos processos linguísticos


através dos quais os interactantes (interlocutores ou não) podem realizar comportamen-
tos verbais corteses e descorteses, procedemos a descrições sobretudo semântico-ragmá-
ticas de alguns deles, nomeadamente dos tempos e modos verbais12 e os tratamentos.13
Os valores semântico-pragmáticos de cortesia e de descortesia que os tempos e modos
verbais expressam resultam, por um lado, das construções modais e, por outro, dos valo-
res que adquirem em co(n)texto. Pode-se concluir, depois das descrições e análises fei-
tas por gramáticos e linguistas, que todos os tempos/modos verbais podem servir para
realizar e/ou acompanhar (reforçando ou atenuando) a construção de FTA’s e de

11
Porque consideramos que o contexto é também coconstruído pela actividade discursivo-textual dos
interactantes, particularmente ao nível de discursos-textos literários, escrevemos co(n)texto para, numa só
palavra, marcar sobretudo este último aspecto.
12
Ver, supra, cap. VI.
13
Ver, supra, cap. XI.
482

FFA’s. Há, todavia, tempos / modos que estão mais aptos, pelos valores semântico-
-pragmáticos que os caracterizam, para a realização de actos corteses (imperfeito e futu-
ro do indicativo, condicional e formas do conjuntivo, em geral), enquanto outros para a
realização de actos descorteses (imperativo e formas do indicativo, em geral).
Os valores semântico-pragmáticos corteses e descorteses que os tempos / modos
podem expressar resultam de mecanismos linguísticos de modalização, impessoaliza-
ção, indirecção, desactualização temporal e de polifonia enunciativa. A par dos tempos /
modos verbais e a propósito das formas substitutas e supletivas do imperativo, reflecti-
mos, por menos estudados e marginalizados, sobre os valores corteses e descorteses que
as interjeições, por um lado, e os diminutivos, por outro, podem também expressar. Em
termos gerais, pode-se afirmar que o uso de interjeições, nomeadamente as não lexicais
(ai!, ui! eh!, hã!) constituem formas de descortesia, enquanto os diminutivos são formas
de cortesia. Tanto umas como outros, porém, (como se passa, aliás, com os outros meios
linguísticos e discursivo-textuais) podem servir para expressar comportamentos corteses
ou descorteses, desde que, além da forma, seja tido em consideração, mais uma vez, o
contexto e a entoação, cuja importância deve ser, nestes casos, realçada, por se tratar de
formas que expressam, também, afectos e emoções favoráveis e desfavoráveis.
Os tratamentos são as formas que expressam, com maior evidência, as relações
de cortesia ou de descortesia existentes, presumidas ou desejadas entre os interactantes
(interlocutores efectivos ou não). Constituem processos e estratégias discursivo-textuais
através dos quais se estabelece e gere tais relações. As formas de tratamento (FT’s) e as
de cortesia / descortesia (a separação é apenas analítica, porque os tratamentos são ape-
nas alguns dos meios de expressão de cortesia ou de descortesia verbal) constituem, por
isso, processos linguísticos e discursivo-textuais que, como observa Moreno Fernández,
«se exigen mutuamente y que, por lo tanto, no pueden explicarse de forma independien-
te».14 Esta é também a nossa opinião. O destaque que lhes concedemos tem a ver, preci-
samente, com a importância que lhe atribuímos na manifestação, expressão e gestão
estratégica, nas práticas discursivo-textuais, dos níveis ou graus de cortesia e descorte-
sia, a nosso ver mais importantes que os seus valores estritamente deícticos e fáticos.
Trata-se de fórmulas e formas corteses e descorteses, alocutivas, elocutivas e delocuti-
vas, através das quais se valoriza ou ameaça, protege ou ataca as faces do alocutário, do
próprio locutor e de terceiros, e assim também se dá a ver uma imagem favorável ou

14
FERNÁNDEZ, 1998: 149.
483

desfavorável da representação que se tem, diz ter ou quer mostrar a quem as recebe ou
de quem se fala.
Na selecção e utilização das diferentes FT’s, ao longo duma interacção verbal,
seja ela estrita ou lata, encontramos reunidos os principais aspectos de natureza inter-
pessoal e linguística que definem a competência discursivo-textual de quem fala ou
escreve. A gestão adequada das FT’s corteses ou descorteses, segundo os contextos de
comunicação e a sua dinâmica (que elas próprias também ajudam a construir e a gerir),
é a manifestação mais evidente daquela competência. Competência que, no caso do Por-
tuguês europeu, se torna mais exigente, dadas a variedade, riqueza e complexidade do
seu sistema de fórmulas e formas, por um lado, e a reconhecida sensibilidade dos portu-
gueses aos tratamentos, por outro. Saber empregar e mesmo manipular as FT’s consti-
tui, por isso, uma subcompetência discursivo-textual de cortesia / descortesia, subcom-
petência que integra outras subcompetências, de que destacamos, por geralmente igno-
radas, as de natureza polifónica e retórico-argumetativa.15
Uma conclusão poderemos retirar da análise das FT’s actualmente em prática no
Português europeu: assiste-se a uma clara tendência para a utilização de formas que
situamos em duas grandes categorias - tuteamento e voceamento – incluindo cada uma
delas formas não apenas pronominais, mas também nominais e verbais, umas e outras
de maior ou menor cortesia ou de descortesia. Cabe também observar que as FT’s de
tuteamento ou de voceamento não são, respectivamente, corteses ou descorteses por
natureza. É o seu uso co(n)textualmente adequado ou não a uma dada situação de
comunicação e ao seu desenvolvimento que faz delas usos corteses ou descorteses (abu-
sos).

As descrições e análises parciais realizadas ao longo do trabalho e, em particu-


lar, as análises mais desenvolvidas que realizámos de interacções verbais em sentido
lato e em sentido estrito, respectivamente, nos capítulos XIV e XV, mostram claramente
que a construção explícita e implícita de cortesia e de descortesia verbal é uma compe-
tência discursivo-textual sempre nelas presente e delas condicionantes, ainda que em
maior ou menor grau.
Concluindo, voltamos a repetir que agir discursivo-textualmente é sempre inte-
ragir verbalmente, seja em co(n)textos de comunicação in præsentia (bidireccionada ou
unidireccionada), seja em co(n)textos de comunicação in absentia (unidireccionada,

15
Recorde-se, a este respeito, as análises realizadas, supra, no cap. XV.
484

mas sempre interaccional e por isso dialógica e polifónica), tanto a nível oral, como a
nível escrito, incluindo o literário. O interactante locutor, real ou imaginário, constrói o
seu discurso-texto tendo em maior ou menor consideração a sua própria personalidade,
a representação que tem de si próprio e a imagem ou face que de si próprio quer mos-
trar. Simultaneamente, tendo em maior ou menor consideração também a personalidade
do interlocutor (real ou imaginário, ou como tal considerado) a quem, imediata ou
mediatamente, se dirige. O interactante alocutário (interlocutor ou não) está sempre, por
isso, também a agir sobre a actividade discursivo-textual do interactante locutor, através
da representação que este dele tem e da imagem ou face que dele quer mostrar. Imagem
ou face que tanto pode ser para que o próprio alocutário nela se reveja, a ela se confor-
me ou a rejeite; para que dela o próprio locutor se sirva e eventualmente dela retire pro-
veito, em termos ilocutórios e perlocutórios; para que terceiro(s), ausente(s) ou presen-
te(s) [ou como tal considerado(s)], a receba(m) ou reconheça(m). Imagens ou faces que,
por isso, são tantas quantas as (id)entidades e os desdobramentos pluridiscursivos que,
consoante os co(n)textos, os interactantes representam ou desejam ver representados.
Toda a actividade de comunicação é, assim, intrinsecamente social e relacional.
Nas diferentes e diversas interacções verbais e através delas, os interactantes encontram-
-se, confrontam-se e/ou desencontram-se. Condicionam-se, por isso, reciprocamente, o
que se manifesta, inevitavelmente, nas esquematizações discursivo-textuais que, em
diálogo ou monólogo, mas sempre dialogicamente, constroem (portanto coconstroem),
sob maior ou menor co-acção do(s) outro(s), seja para promover e/ou cimentar a con-
córdia (cortesia), seja para evitar ou estabelecer a discórdia (descortesia).
As formas verbais de cortesia e de descortesia estão sempre, por isso, presentes
ou, pelo menos, pressentidas em toda e qualquer interacção verbal, dependendo a sua
maior ou menor gradação e frequência dos respectivos co(n)textos de ocorrência e
mesmo da concorrência entre os interactantes, a esse nível. Ninguém gosta de passar
por descortês. Por isso, mesmo quando se é, pede-se desculpa por ter sido e/ou inven-
tam-se razões que justifiquem os maus actos que se fizeram, para que se seja perdoado.
E se preciso for, reorganiza-se a vida numa história, como fez aquele afamado danado
almocreve de Barrelas.16

16
Ver, supra, cap. XIV.
485

Em princípio, são as relações corteses que predominam: é a paz social, a sua


manutenção e/ou desenvolvimento que se procura e pratica, por uma questão de corte-
sia, que é, no fundo, uma exigência do viver em sociedade. As diferentes formas verbais
de cortesia, sendo a sua expressão e a sua condição sine qua non, marcam sempre, por
isso, de forma explícita ou implícita, todas as práticas discursivo-textuais.
Pode-se dizer, por isso, parafraseando-se Pottier, que consoante a competência
que a este nível se tem, a cortesia e/ou o receio da sua ausência (descortesia) são as sen-
tinelas das nossas construções e práticas discursivo-textuais.17 Cortesia que se prende,
regra geral, mais ou principalmente com o tom e o modo (falar com bons ou maus
modos) como se diz e a quem se diz (o ethos e o pathos retóricos) que se reflecte, inevi-
tavelmente, no que é dito (logos). Mesmo quando se interage com leitores mais ou
menos hipotéticos, que poderão vir a sentir-se ofendidos por uma prática, ou aspecto(s)
dessa prática, ofensa de que o próprio escrevente ou escritor tem consciência:

«Peço desculpa pelo tom saudosista deste texto, mas o telemóvel foi uma praga que a
vida me rogou.»18

A cortesia / descortesia verbal deixou de ser apenas um aspecto da etiqueta


social ou boas/más maneiras, a cumprir em co(n)textos formais. É um domínio funda-
mental da linguística contemporânea: aquele em que se estuda os mecanismos linguísti-
cos e discursivo-textuais (nas sua dimensões enunciativas, referenciais, dialógicas, poli-
fónicas, retórico-argumentativas) que os interactantes (interlocutores efectivos ou não)
utilizam em co(n)textos de comunicação face-a-face ou diferida, para estabelecer e man-
ter boas, indiferentes ou más relações interpessoais, intensificando-as ou atenuando-as,
preservando ou destruindo, mutuamente, as representações, as imagens ou faces que
cada um tem, constrói e assim dá a ver de si próprio, dos outros, e das relações entre uns
e outros. Por isso, como observa Kerbrat-Orecchioni:

«on admet aujourd’hui qu’il est impossible de décrire efficacement ce qui se


passe dans les échanges communicatifs sans tenir compte de certains principes

17
Cf. POTTIER, 1992-1993, cit. por CARREIRA, 1995: 197.
18
Ana Sá Lopes, «Crónica saudosista», Público, 04/08/02. Negritos da nossa responsabilidade.
486

de politesse, dans la mesure où tels principes exercent sur la fabrication des


énoncés des pressions très fortes».19

Mas se tais princípios exercem pressões assim fortes sobre a construção dos
enunciados, de tal modo que se torna impossível descrever com eficácia o que de facto
se passa nos actos de comunicação, se não forem tidos em consideração, o que é a corte-
sia / descortesia linguística senão uma competência discursivo-textual?

Competência que não se verifica, por isso, ao nível apenas das interacções ver-
bais estritas, mas também ao nível de toda a actividade da linguagem co(n)textualizada.
Propor, depois de quanto foi exposto e descrito, uma definição de cortesia linguística,
talvez seja a melhor forma de terminar uma fase da nossa investigação sobre os fenó-
menos verbais corteses e descorteses, fase que com esta dissertação se conclui.
A cortesia / descortesia linguística é uma subcompetência discursivo-textual que
os interactantes (interlocutores efectivos ou não, falantes, escreventes ou escritores)
activam na coconstrução e recoconstrução de um conjunto aberto de processos linguísti-
cos e práticas discursivo-textuais, segundo as diferentes situações e objectivos de vida e
con-vivência, que sempre são de comunicação e por isso de interacção, mesmo quando
as realizações se situam apenas ao nível da alocução. Conjunto de processos e práticas
através dos quais os interactantes, interlocutores efectivos ou não, reflectem as relações
interpessoais existentes, presumidas ou desejadas, entre si e com terceiros (ou como tal
considerados), mas também as relações que estabelecem, criam e gerem. Processos e
práticas ora mais simples, ora mais complexos, como simples e complexas são, ou que-
remos que sejam, as relações humanas.

«Peço desculpa aos meus leitores e ao público em geral pelo sofrimento que este
livro possa causar, e rogo-vos que o usem com cuidado.»20

19
KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50. Também em 1992: 159-160.
20
M. Scott Peck, 2001: Gente da Mentira. Cascais: Sinais de Fogo (Trad. port. de People of the Lie, the
Hope for Healing Human Evil, 1985); p. 11. Negritos da nossa responsabilidade.
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