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A ausência do pensamento feminista no pensamento descolonial hegemônico

para América Latina e suas possíveis causas

Gustavo Luís de Carvalho1

Resumo

O presente trabalho busca ser uma pequena contribuição, ou melhor uma reflexão
sobre a ausência do pensamento feminista nos debates sobre a descolonização do ser e do
saber na Amárica Latina de acordo com o pensamento descolonial, encabeçados por
autores homens como Orlando Fals Borda, Paulo Freire, Enrique Dussel, Franz Fanon etc.
A ausência ou a pouca visibilidade das mulheres e do pensamento feminista para
uma práxis libertária latino-americana mostra ainda, imensas questões que necessitam de
ser investigadas e buscadas as razões para tais.
Apesar do avanço do movimento e do pensamento feminista que vem ocorrendo nos
últimos anos, a voz das mulheres ainda está longe de igualar ao lugar de fala masculino,
branco, descendente de europeu que apesar de sustentar discurso libertário, ainda
consegue pouco dividir a voz com o pensamento feminista em suas diversas e múltiplas
necessidades.
Neste sentido, cabe-nos a indagação do por que desta ausência e como podemos
auxiliar na ocupação deste espaço pelas mulheres que tanto como homens necessitam de
ter sua voz ouvida e suas necessidades atendidas, não por um sistema representativo
insipiente, ou por seus intelectuais orgânicos, ou meios meramente participativos dominados
pela voz masculina.

Palavras-chave: Contra-hegemonia, pensamento feminista, pesquisa-ação


participativa, lugar de fala e práxis descolonial.

Introdução

A América Latina foi fruto de uma empreitada colonial responsável pela


gênese do capitalismo mundial, primeiramente como periferia fornecedora de

1 Doutorando em Sociedade, Cultura e Fronteira. E-mail: gustavocarvalho.5@unioeste.br


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matéria prima e metais preciosos que ao desembarcar nos portos europeus


entravam no circuito produtivo de valorização do capital.
O trabalho escravo tanto índio como negro foi a base material para o
nascente modo de apropriação. Aqui seguimos Dussel (2012) ao substituir os
sistemas econômicos categorizados de modo de produção por modo de apropriação
por ser mais preciso.
Neste sentido, fundamentou-se um dos sistemas de exploração, expropriação
e periferização mais violentos da Idade Moderna cuja as consequências estruturais,
ideológicas e culturais perduram até os dias atuais principalmente através da
superexploração (Marini, 2000) da força de trabalho na América Latina justificado
tanto pela totalidade do sistema capitalista como exemplo o atraso tecnológico e a
permanência da monocultura para agroexportação como prática econômica central
das trocas internacionais.
Nos últimos tempos, diversos autores dedicaram estudos e pesquisas para
melhor análise, compreensão e diagnóstico das consequências do colonialismo para
os países da periferia capitalista, dentre eles concordamos com Maldonado-Torres
(2008) cujas ideias principais referem-se à descolonização do ser e do saber nos
povos vítimas da colonização e do imperialismo. Há uma grande necessidade do
enfrentamento e a superação do ser e do saber herdados do período colonial e
imperialista, porém presentes na estrutura social econômica e cultural nas ações
latino-americanas, asiáticas, africanas etc., como causa de sua constante
deterioração e empobrecimento. O autor citado ainda percebeu que a raiz e os
horrores tremendos da colonização e subjugação passada e ressignificadas no
presente (continuidades) são ainda um grande empecilho ao desenvolvimento social
e do bem-estar dos povos vítimas da exploração colonial.
Ainda seguindo na mesma linha, o geógrafo venezuelano Quintero Weir
(2019, p. 285) como representante do povo Añuu cujo processo de dizimação e
desterritorialização ainda continua atualmente afirma:

No hay duda de que la presencia y acción conquistadora y colonial


europea en estos territorios, no sólo implicó un despojo material, territorial,
sino igualmente el inicio del proceso de vaciamiento espiritual que bien
pudiéramos calificar como de aceleración de una entropía al interior de los
pueblos colonizados, generada por la colonialidad del saber y del poder
que, entre otras formas, se manifiesta en principio, con el mero
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desconocimiento de los saberes ancestrales e históricamente generados


por los pueblos originarios en su milenaria convivencia con sus espacios
territoriales.

Para Quinjano (1992, p. 12) ressaltou o papel da estrutura colonial de poder


na produção e fomento de toda forma de discriminações sociais que foram
classificadas e codificadas como “raciais”, “étnicas”, “antropológicas” e “nacionais”,
de acordo com as ocasiões dos agentes e das populações implicadas.
Percebe-se uma grande ausência nos autores do descolonialismo a falta do
tratamento da questão gênero, talvez pelas generalidades como: povos oprimidos,
povos originários, afrodescendentes, quilombolas etc., não perceberam o fato da
totalidade oprimida possuir camadas também desiguais dentre os distintos
elementos desta categoria.
De acordo com Saquet (2022) cujos trabalhos recentes teve o poder de
sintetizar a questão discutida pelos autores citados e por dezenas de outros da
mesma linha de pesquisa, concluiu que uma práxis libertadora deve se opor a uma
práxis dominadora.
Esta práxis deve ter como ponto de partida uma filosofia da libertação
representada especialmente nos trabalhos de Enrique Dussel e Franz Fanon, uma
sociologia da libertação por Orlando Fals Borda, uma pedagogia da libertação por
Paulo Freire.
O autor citado define que estes pensadores formam o triângulo
quadrimensional latino-americano para compor a base de uma práxis libertadora e
revolucionária (Saquet, 2022), em nível filosófico profundo de caráter mais
conceitual e abstrato, tem como base a síntese dos trabalhos de Enrique Dussel
onde uma totalidade opressora só pode deixar de existir através da substituição por
uma totalidade libertadora.

A mulher na filosofia da libertação segundo Enrique Dussel

Enrique Dussel é de forma incontestável o filosofo que mais se debruçou


sobre uma filosofia da libertação para os povos latino-americanos. De forma geral,
Dussel buscou construir uma filosofia latino-americana autêntica, reconhecendo a
importância do pensamento clássico e crítico de outros continentes, em especial o
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europeu, mas reconheceu ser insuficientes na construção de um pensamento latino-


americano autêntico, tanto pelas diferenças geográficas, sociais, culturais e
históricas, mas em especial no papel histórico que cada localidade teve para a
conformação do sistema capitalista.
A conquista das Américas é para ele um marco civilizatório e ontológico, mas
também o grande “encobrimento do outro”, preocupado com a eticidade dos
sistemas filosóficos, debruçou sobre a filosofia da alteridade estudada em
Emmanuel Levinas.
Podemos perceber os caminhos deste autor em (Dussel, 1977, p. 56) “O
sujeito europeu começa por ser um “eu conquisto” e culmina com a “vontade de
poder” é um sujeito masculino”.
Dussel enxerga no patriarcado e na erótica como os grandes elementos da
opressão mais violenta praticada dentre todas as outras no processo de conquista
das Américas, utiliza termos mais incisivos a acusar a erótica e o patriarcado de
praticar uma dominação de uma prepotência de uma varonilidade opressora e até
sádica e por um masoquismo e uma passividade, toda simbólica literária do período
colonial é uma testemunha disso (Dussel, 1977, p.56).
O patriarcalismo do colonizador encontrou nas Américas, diversas teogonias
dos povos originários com ditos e lendas de deuses bissexuais, o que nos leva a
crer que o ódio e o preconceito contra os povos aqui encontrados serviram para
inflamar ainda mais a violência colonizadora.
Além das categorias simbólicas, pedagógica, o autor estudou as questões
éticas e morais vigentes nos países latino-americanos, o que revela a dominação e
subjugação como um projeto continuado, em (Dussel, 1977) ele afirma que:

Na América Latina há normas vigentes, cujo cumprimento, embora inclua


uma evidente injustiça, permite ao homem oligárquico, da “aristocracia
urbana”, prostituir a mulher do povo sem nenhum tipo de sanção ética
(p.137).
A jovem, mulher popular herdeira da índia amasiada da colônia nega sua
mãe – posição de Electra – e com ela sua miséria, graças a venda de seu
corpo (p. 138).

Refletindo além das originais conclusões do autor, e de seu estudo através da


hermenêutica e simbólica e da criação da categoria erótica na filosofia da libertação,
podemos perceber a persistência da problemática do lugar de fala (Ribeiro, 2017). O
autor tenta em sua obra se distanciar do pensamento eurocêntrico na busca de um
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pensamento próprio (latino-americano) porém sua persistência entre a mulher pobre


violada pelo burguês rico não acrescenta muita novidade a própria libertação da
mulher latino-americana.

A ausência do papel da mulher no discurso descolonial.

Apesar de acertadamente os autores do descolonialismo evidenciarem a


necessidade de uma práxis libertadora para se opor a hegemonia do capital, o
grande responsável pela miséria e sofrimento das “massas” populares da América
Latina, encontramos pouca discussão sobre a opressão histórica e continuada ao
gênero feminino em todas suas formas multidimensionais possíveis.
Esta ausência, pode-se atribuir, de acordo com nossos estudos e reflexões a
possíveis três problemas, podendo manifestar-se tanto em separado como
combinado.
O primeiro problema ou causa desta ausência, trata-se já da conhecida
predominância masculina no meio acadêmico. Apesar dos avanços recentes da
inclusão da mulher no meio científico, ela ainda é amplamente e numericamente
inferior dentro de um meio de tradição machista com séculos de existência. Uma
sociedade ainda fortemente marcada pela hegemonia patriarcal deve refletir estes
traços inclusive nas investigações científicas impossíveis de ser despidas de seus
conteúdos ideológicos, sexistas e sociais como um espelho que reflete a totalidade
social concreta.
O segundo problema que possivelmente é uma sinergia ao primeiro trata-se
de uma questão ontológica. Conceitualmente podemos concordar com Ribeiro
(2017, p. 40) sobre o “lugar de fala”, a autora mostra claramente que não basta o
pensamento crítico se este não tem ressonância digamos “ontológica” com a
realidade e pertencimento à um determinado grupo ou minoria excluída, então ela
afirma:

Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas
e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala
nos faz refutar uma visão universal de mulher e de negritude, e outras
identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam
universais, se racializem, entendam o que significa ser branco como
metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se
também refutar uma pretensa universalidade.
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Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é


quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal.
Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização
discursiva.

O terceiro problema é um pouco mais complexo pois envolve o próprio


movimento dialético do real e de sua concreticidade além de seus problemas na
representatividade cognitiva na captação das determinações deste movimento. O
capital possui na “Produção” sua síntese conceitual abstrata mais distante do real. À
medida que esta totalidade abstrata se aproxima de níveis e camadas mais
concretas, passando pelas categorias explicativas (Dussel, 2012, p. 51), o nível de
complexidade e das quantidades de determinações aumentam, dificultando ainda
mais as representações do real que em suas primeiras análises em nível
representativo mental ainda subsiste no início do processo como totalidade caótica.
Neste ponto, notamos nos autores do discurso descolonial, a criação de
categorias ainda muito gerais e abstrata como “contra-hegemonia”, “descolonização
do ser e do saber”, “práxis da libertação” etc. Porém a solução teórica (ainda com
poucos trabalhos) deste problema está contido dentro da proposta em especial
defendida por Saquet (2022) ao conferir centralidade total da pesquisa-ação
participativa como proposta elaborada ao londo da vida do sociólogo colombiano
Orlando Fals Borda.
A pesquisa-ação ou “Investigación Acción Participativa” (Fals Borda, 2017)
proposta onde o pesquisador busca valorizar os sujeitos e a ativação de uma
territorialidade local mais justa, dialógica, autônoma, cooperativa, solidária,
colaborativa, através da práxis política e na busca de um desenvolvimento territorial
descolonial, valorizando a cultura, identidade e o conhecimento popular local,
compreendendo os sujeitos em seu contexto de vida e em sua visão de mundo, suas
singularidades, através do desenvolvimento de um saber e de uma prática outras
(SAQUET, 2019). Desenvolvidas com e para a melhoria de vida das comunidades
envolvidas na busca do protagonismo delas, de uma nova filosofia e práxis de vida
capaz de atender às necessidades (i)materiais destes mesmos sujeitos e na
construção conjunta de um paradigma contra-hegemônico.
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Pesquisa-ação participativa e lugar de fala.

A pesquisa-ação participativa, é um instrumento democrático, científico, plural


e amplamente participativo. Ninguém melhor do que a própria comunidade ou
agrupamento para conhecer as próprias necessidades e carências, o pesquisador
acadêmico pode através de imersão sociocultural ou melhor, viver a práxis daquela
comunidade para poder dar sua contribuição, aliando saberes a ciência ac
Além da pesquisa-ação, questões como consciência de classe,
acrescentamos a consciência de lugar, pois acreditamos que o lugar de
enraizamento local, o lugar de ver o mundo, a unidade homem-território, homem-
natureza afeta a própria consciência e a cosmovisão de uma comunidade e também
do indivíduo (Saquet, 2017).
Como aponta a geógrafa Ticuna Márcia Wayna Kambeba em (2017, p. 13):

Nós nos juntávamos a outros Ticuna, que ficavam ali no silêncio de sua
contemplação, observando, entre outras coisas, o solapamento do rio no
outro lado da margem. Ao menos era o que mais chamava atenção: ver
este banzeiro ir e vir. No meu pensar de criança, parecia estranho e
incomodava um pouco ver as pessoas em pé com braços cruzados ou
acocadas, totalmente em silêncio. E as águas batiam fortemente nas
canoas que se movimentavam de um lado para outro, como se dançassem
ao som do rio.

Apesar da consciência de lugar e a pesquisa-ação possam trazer uma


proximidade maior com as determinações da realidade destes grupos, isto ainda não
é suficiente, apesar de algumas semelhanças entre a consciência e lugar e o lugar
de fala, estes dois conceitos não são sinônimos pois como nos aponta Ribeiro
(2017):

Assim, entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois


estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e
refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade.
O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado
em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a
partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição
dos lugares de grupos subalternizados (p. 48).
Há pessoas que dizem que o importante é a causa, ou uma possível “voz de
ninguém”, como se não fôssemos corporificados, marcados e
deslegitimados pela norma colonizadora. Mas, comumente, só fala na voz
de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou reivindicar sua
humanidade. Não à toa, iniciamos esse livro com uma citação de Lélia
Gonzalez: “o lixo vai falar, e numa boa (p. 51).
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Nada obstante, facilmente podemos perceber dentro da maioria das


comunidades como exemplo dos agricultores familiares, quilombolas, trabalhadores
sem-terra etc., a forte presença da violência contra a mulher, os valores patriarcais e
o emudecimento da mulher.
Este é o produto histórico e cultural que ainda está longe de catalise mesmo
nos movimentos sociais mais contra-hegemônico que pudermos conceber. Neste
sentido, o lugar de fala é fundamental para a construção de saberes realmente
democráticos e participativo, capazes de construir uma nova práxis libertadora para
a América Latina que tão necessita da voz da mulher.

Categoria político-cultural de amefricanidade como aproximação do


descolonialismo e do feminismo da realidade.

O movimento e pensamento descolonial, pouco conhece ou discute autoras


como Lélia Gonzáles. Em seu texto sobre a categoria político-cultural de
amefricanidade, ela traz à baila importantes pontos de discussão. Em primeiro
momento, ela coloca a importância da cultura africana na construção da cultura e da
língua brasileira cunhando termo como “pretoguês” (Gonzáles, 1988, p. 70).
Não somente esta participação (do negro), mas também de como o racismo
permeou a ciência e aquilo que ela chama de cultura eurocristã, como marcas
profundas de um etnocentrismo em um território marcado pelo racismo de
denegação.
A autora ainda afirma que “A dureza dos sistemas fez com que a comunidade
negra se unisse e lutasse, em diferentes níveis, contra todas as formas de opressão
racista” (González, 1988, p. 74). Sobre esta afirmação, importa ressaltar nosso
direcionamento que um pouco difere dos autores clássicos do descolonialismo. Para
nós existem níveis e camadas de opressão dentro dos próprios grupos de oprimidos,
talvez a herança dos grandes pensadores das revoluções socialistas levaram as
generalizações da categoria oprimido ou subalternos.
A categoria “amefricanidade” criada pela autora nos leva a reflexão sobre o
caráter transterritorial da permanência, mesmo que fragmentada de um núcleo
afrocentrado amalgamado com a experiência destes povos nas diversas partes do
continente americano.
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O caráter multidimensional do território explica em parte estas coexistências e


resistências entre América e África, sob a ótica territorial, porém em uma escala
muito menor, considerando os corpos humanos como território para elucidar este
imenso processo dialético do colonialismo, em especial, a mulher cujos corpos foram
constantemente desterritorializados pelo patriarcalismo eurocristão, cabe uma
reterritorialização de seus corpos através de lutas e resistências dentro das diversas
dimensões territoriais (Saquet, 2013;2017;2019) para a libertação da mulher
afrodescendente nas Américas, neste sentido que a autora (Gonzáles, 1988, p. 79
coloca:

“Uma ideologia da libertação deve encontrar sua experiência em nós


mesmos, ela não pode ser externa a nós e imposta por outra que nós
próprios. Deve ser derivada de nossa própria experiência cultural particular.
Então por que não abandonar as reproduções de um imperialismo
massacra não só os povos do continente, mas muitas outras partes do
mundo e reafirmar a particularidade de nossa experiência na AMÉRICA
como um todo, sem nunca perder a consciência de nossa dívida e dos
profundos laços que temos com a África”

A importância do descolonialismo de María Lugones para o feminismo


libertário latino-americano.

Se por um lado, temos as limitações de categorias muito gerais e abstratas


como pobres, povo, subalterno etc., María Lugones percebeu a mesma problemática
dentro do movimento feminista. A pesquisadora argentina alinhada a teoria crítica da
“Modernidade”, crítica esta mais vasta e profunda do que o criticismo de esquerda.
Lembramos que Marx, possuidor de uma crítica devastadora ao capital não escapa
a crítica a Modernidade devido ao seu eurocentrismo e por propor a natureza como
objeto assim como o capitalismo, como se não bastasse, a proposta de um sistema
universal, com uma ciência universal e com uma humanidade universal, e este é o
exato ponto da crítica a Modernidade. Podemos observar parte desta crítica em
(Lugones, 2014, p. 935):

A modernidade organiza o mundo ontologicamente em termos de categorias


homogêneas, atômicas, separáveis. A crítica contemporânea ao
universalismo feminista feita por mulheres de cor e do terceiro mundo
centra-se na reivindicação de que a intersecção entre raça, classe,
sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade. Se mulher e
negro são termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis,
então sua intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras – e não
sua presença. Assim, ver mulheres não brancas é ir além da lógica
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“categorial”. Proponho o sistema moderno colonial de gênero como uma


lente através da qual aprofundar a teorização da lógica opressiva da
modernidade colonial, seu uso de dicotomias hierárquicas e de lógica
categorial. Quero enfatizar que a lógica categorial dicotômica e hierárquica
é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça,
gênero e sexualidade.

Notamos de forma geral, uma outra característica da Modernidade, a


fragmentação da sociedade e neste ponto a autora aponta a dicotomia humano/não-
humano para demonstrar que mesmo em subalternidade, a mulher branca europeia
ainda pertenceria ao humano enquanto a negra e a indígena seriam não humanas.
Estas categorizações e dicotomias serviram para justificar a violência colonizadora.
Para os dias atuais, na tentativa de solapar as relações e determinações de
compreensão e libertação dentro de uma totalidade opressora capitalista, onde por
um lado, o nacionalismo, a democracia burguesa e a microeconomia são
instrumentos por excelência para ideologicamente tentar igualar os desiguais (Saes,
1990).
A autora chegou as mesmas conclusões como Maldonado-Torres e Franz
Fanon sobre a brutalidade e violência do processo civilizatório com a destruição de
todas as formas de reprodução social não capitalista, além das mudanças radicais
na relação entre gêneros desencadeado pela colonização, onde o precipício mais
profundo foram mulheres negras e dos povos originários, ressaltou a importância do
eurocristianismo, armado de todo tipo de pseudociência, mitos ideológicos,
espirituais e cosmológicos para justificar toda a barbárie praticada. Podemos
observar (Lugones, 2014, p. 938) esta concordância:

A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e,


consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação
intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o
próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica. Assim, à medida que o cristianismo tornou-
se o instrumento mais poderoso da missão de transformação, a
normatividade que conectava gênero e civilização concentrou-se no
apagamento das práticas comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de
tecelagem, do cosmos, e não somente na mudança e no controle de
práticas reprodutivas e sexuais. Pode-se começar a observar o vínculo
entre, por um lado, a introdução colonial do conceito moderno instrumental
da natureza como central para o capitalismo e, por outro, a introdução
colonial do conceito moderno de gênero. Pode-se notar como este vínculo é
macabro e pesado em suas ramificações impressionantes. Também se
pode reconhecer, com o alcance que estou dando à imposição do sistema
moderno colonial de gênero, a desumanização constitutiva da colonialidade
do ser.
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O espaço de luta é o território, o movimento hegemônico encontra resistência


territorial (Saquet, 2019) tanto a nível de lugar geográfico como a corporalidade
humana, a resistência é uma resistência sempre contra-hegemônica, a resistência é
o único meio de sobrevivência de um determinado grupo, neste sentido a resistência
é central para (Lugones, 2014, p. 940) ao afirmar que “o feminismo não fornece
apenas uma narrativa da opressão de mulheres. Vai além da opressão ao fornecer
materiais que permitem às mulheres compreender sua situação sem sucumbir a ela”
e continua “Assim, a colonialidade do gênero é só um ingrediente ativo na história de
quem resiste” (p. 941).
A autora percebe a necessidade de cooperação e a força de grupo em
(Lugones, 2014, p. 949):

Não se resiste sozinha à colonialidade do gênero. Resiste-se a ela desde


dentro, de uma forma de compreender o mundo e de viver nele que é
compartilhada e que pode compreender os atos de alguém, permitindo
assim o reconhecimento. Comunidades, mais que indivíduos, tornam
possível o fazer; alguém faz com mais alguém, não em isolamento
individualista.

Para uma linguagem interdisciplinar, podemos admitir que estes grupos irão
territorializar-se materialmente e imaterialmente através de continuidades e
descontinuidades sua resistência, produzindo assim uma territorialidade ativa onde o
feminismo descolonial realmente possa prosperar em seus saberes outros, de forma
a não repetir os processos opressivos vigentes até o momento:

Eles incluem a afirmação da vida ao invés do lucro, o comunalismo ao invés


do individualismo, o “estar” ao invés do empreender, seres em relação em
vez de seres em constantes divisões dicotômicas, em fragmentos
ordenados hierárquica e violentamente (Lugones, 2014, p. 949).

Considerações Finais

Apesar dos grandes avanços tanto do pensamento descolonial como do


pensamento feminista, ainda há uma enorme distância na igualdade de discurso e
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importância reconhecida dos representantes tanto intelectuais como populares na


práxis descolonial em especial na América Latina.
Apesar de toda crítica em plano teórico contra a Modernidade capitalista, na
prática ainda há fortes elementos do patriarcalismo e limites ontológicos e
conceituais da questão feminina como protagonista da práxis libertária, já que o
discurso ainda é ocupado de forma hegemônica por autores homens e pouco se
referem ao papel fundamental da mulher na transformação social e resistência.
Como nos mostra o lugar de fala, o autor deste texto está limitado aos poucos
aspectos conceituais que hora são discutidos, porém, a falta vivencial das múltiplas
situações reais e cotidiana da consciência feminina e o lugar de fala das mulheres, o
autor não possui a mesma autoridade ou profundidade que uma voz autêntica
feminina que existe em sua condição singular.
Cabe nos aqui, ampliar o diálogo, e de forma dialógica ampliar os espaços ou
melhor auxiliar na construção de uma territorialidade (i)material do pensamento
feminista em todas as discussões e práxis que possuam rótulo de descoloniais e
libertárias.

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