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Ensaios de Sociologia

Material Teórico
Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. João Elias Nery

Revisão Textual:
Profa. Ms. Selma Aparecida Cesarin
Homens e idéias do século 20
na perspectiva de Norbert Elias

• Introdução

• Trajetória: ciência e sociedade segundo


Norbert Elias

• As ideias de Norbert Elias em perspectiva

• Norbert Elias: vida e obra

O tema desta Unidade é a obra do sociólogo alemão Norbert Elias, que


desenvolveu o que ficou conhecido como Sociologia Figuracional.
Estudaremos a vida e a obra do sociólogo Norbert Elias, que atuou
em diversas instituições europeias de ensino e pesquisa entre os
anos 1920 e 1990, além de ter trabalhado por dois anos em uma
universidade em Gana, África.
Refletindo sobre os processos de longo prazo e suas configurações
no campo da Sociologia, da História e da Psicologia, Norbert Elias
tem uma obra ampla, na qual aborda diversos fenômenos de seu
tempo a partir de premissas que estabeleceu em suas pesquisas.
Como outsider, este autor buscou elaborar uma reflexão crítica, sem
vínculos com as ideias dominantes em seus círculos de trabalho.

No material didático, você encontrará informações acerca dos temas abordados pelo sociólogo, aspectos das
metodologias utilizadas e sua relação com o mundo das ideias no Brasil, incluindo os livros aqui editados.
Consulte o conteúdo teórico e outros materiais disponibilizados na Disciplina e, precisando, recorra ao
tutor, que poderá orientá-lo em possíveis dúvidas.
A originalidade de sua abordagem e sua recusa aos modismos fizeram com que apenas no final de seu
percurso de vida suas pesquisas alcançassem reconhecimento acadêmico para além das instituições nas
quais atuou. A influência de seu pensamento no campo da sociologia no Brasil teve maior relevância
a partir dos anos 1980 e diversos pesquisadores utilizam o referencial teórico desenvolvido em seus
trabalhos, buscando em sua obra apoio para o estudo de fenômenos da realidade brasileira.
Um exemplo disso pode ser encontrado no artigo Norbert Elias e uma narrativa acerca do envelheci-
mento e da morte, Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702008000200009&script=sci_arttext.

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

Contextualização

Nesta unidade, analisaremos a obra do sociólogo alemão Norbert Elias. A apresentação


inclui os principais conceitos desenvolvidos, as obras publicadas e as relações de seu trabalho
com contemporâneos como Adorno, Mainheim e Marcuse.
O contexto europeu das primeiras décadas do século 20, marcado por duas guerras mundiais,
ganha destaque, pois o autor, alemão e judeu, participou da Primeira Guerra e sofreu com os
efeitos da segunda, exilando-se por longo tempo na Inglaterra, vivendo, posteriormente em
outros países da Europa e em Gana, na África.
Estas circunstâncias marcam o autor e sua obra e, por isso, são abordadas, buscando-se
compreender os nexos que o autor estabeleceu entre ciência e realidade, análise teórica e
contexto social e político.
A Sociologia do século 20 produziu ideias inovadoras em resposta a uma sociedade que
passava por transformações profundas, passando de um estado rural, comunitário, tradicional e
artesanal para o ambiente da sociedade urbano-industrial de massas.
As ideias de Norbert Elias fazem parte dessas reflexões, dessa busca de compreender a vida
humana em sociedade.

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Introdução
O poder não é um amuleto que um indivíduo possua e outro não; é uma
característica estrutural das relações humanas - de todas as relações humanas.
(Norbert Elias, 1980, p. 81)

O século 20 ofereceu a estudiosos de diversas áreas amplo material de pesquisa e a ciência


esteve no centro dos acontecimentos em praticamente todas as partes do mundo e em todos os
temas sobre os quais a sociedade tenha lançado seu olhar.
Naquele século, a inovação foi perseguida e logo transformada em tradição, a vanguarda
rejeitada ou absorvida, o protesto – político, acadêmico, artístico ou de qualquer outra natureza
– combatido e seus efeitos assimilados.

Nesse ambiente de profundas transformações políticas, econômicas, tecnológicas, sociais


e culturais, a ciência ocupou importante espaço, seja contribuindo para o surgimento de
novos produtos e serviços, seja refletindo sobre as novas realidades que se apresentavam
e seus efeitos para o cidadão e para a sociedade.

Ciências que haviam surgido no século 19 e outras que a estas se juntaram no século 20
atraíram mentes brilhantes na busca por novas fontes de energia, no desenvolvimento de bens
da modernidade capazes de tornar a vida das pessoas mais prática, simples e confortável e na
descoberta de produtos que realizariam verdadeiras revoluções na área da saúde, entre eles
remédios e vacinas responsáveis por mudar o panorama da saúde humana, levando à cura de
doenças antes incontroláveis e a padrões nunca antes vividos em termos de expectativa e de
qualidade de vida.
No campo das ciências humanas e sociais muito se avançou no sentido de explicar a vida
humana nos novos ambientes modernos, as sociedades urbano-industrial de massas, resultado
de um rápido processo de transferência do mundo tradicional, rural e baseado na produção
artesanal, para as sociedades que se formavam representando os novos tempos.
A Sociologia tem importante papel nesse processo e, desde o século 19, vinha apresentando
reflexões fundamentais para a compreensão dos fenômenos contemporâneos.
Observando o ambiente complexo e aparentemente caótico produzido pelo Capitalismo,
pensadores produziram reflexões originais e interpretações que oscilavam entre adesão e rejeição,
aprovação e crítica e, com avanços e retrocessos, essa ciência tem oferecido à sociedade importantes
contribuições para explicar e questionar as realidades produzidas pelas sociedades humanas.
Valendo-se de diferentes metodologias e estudando objetos específicos ou questões mais
gerais da sociedade, a Sociologia ganhou legitimidade e participou efetivamente tanto da vida
acadêmica quanto do mundo político e empresarial, apresentando significativas contribuições à
análise dos mais diversos fenômenos produzidos pela sociedade.

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

Há muitos personagens nessa história, desde os clássicos Marx, Weber e Durkheim,


considerados os “pais” da Sociologia como ciência, até nossos contemporâneos, que produzem
reflexões sobre fenômenos recentes ou mais afastados no tempo.
Norbert Elias é um desses personagens e à análise de sua obra dedicaremos as próximas páginas.

Trajetória: ciência e sociedade segundo Norbert Elias

Contemporâneo de T. Adorno, M. Horkheimer, H. Marcuse, K. Manheim e Walter Benjamin,


Norbert Elias não obteve a aceitação acadêmica destes, que participaram ativamente das
discussões acerca da sociedade desde os anos 1930 e ocuparam cargos em importantes institutos
de pesquisas e universidades, seja na Europa, seja nos EUA (à exceção de Walter Benjamin,
que teve sua obra reconhecida, porém fracassou em suas tentativas de ocupar postos na área
acadêmica e, diferente dos demais, não conseguiu fugir do nazismo).
De origem alemã e judaica como os demais, Norbert Elias sofreu intensamente com a
ascensão do nazismo na Alemanha e com as duas guerras mundiais que destruíram milhões de
vidas e bens materiais e simbólicos.
Ainda adolescente, participou da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e viveu longo
exílio em Londres a partir de 1935, o que influenciou sua produção, parte escrita em alemão,
parte em inglês.
Muitos de seus contemporâneos seguiram para os EUA e produziram parte de suas obras
naquele país, influenciados pela ascensão da cultura de massas e pela transformação do país
em grande potência mundial.
Como europeus, assistiam a derrocada do “velho continente” e a oposição fundamental
da guerra fria entre EUA e URSS. Muitos permaneceram nos EUA mesmo depois do final da
Segunda Guerra Mundial, inseridos no universo acadêmico e de pesquisa, com posições mais ou
menos críticas, porém absorvidos pelo sistema educacional e de pesquisa. Os que retornaram à
Europa, como Adorno e Horkheimer, retomaram projetos interrompidos em função da guerra.
Já Norbert Elias seguiria caminho diferente, em uma verdadeira peregrinação pela Europa.
Permanecendo por longo período na Inglaterra trabalhando em pesquisa financiado por uma
fundação judaica, não obteve êxito acadêmico, apesar da tese defendida nos anos 1920 e
de atividades desenvolvidas como assistente de Karl Manheim na Universidade de Frankfurt,
Alemanha, nos anos 1930.
Por três décadas, atuou em diversas instituições, sem, no entanto, obter reconhecimento
pelo seu trabalho, até que no final da década de 1960 passou a ser convidado para atuar
em universidades europeias como professor visitante e, finalmente, em 1984, instalou-se
na Holanda, onde criou grupos de pesquisa a partir de suas concepções e publicou textos
produzidos ao longo das décadas anteriores.

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As vicissitudes que caracterizam a vida, o contexto social e intelectual no qual viveu Norbert
Elias ajudam a compreender o legado deste autor, que transitou entre diversas ciências a partir
de uma formação múltipla – Medicina, Filosofia, Sociologia e Psicologia – e acirrada crítica à
especialização que se assistia nas Ciências.
Em uma de suas críticas questionava ele “Que tipo de formação é essa, esta ‘sociedade’
que compomos em conjunto, que não foi pretendida ou planejada por nenhum de nós, nem,
tampouco, por todos nós juntos?” (1994, p. 13).
Sem filiar-se a grupos ou associar suas ideias às de seus contemporâneos, Norbert Elias
tornou-se um outsider, atuando marginalmente ao sistema educacional europeu de seu tempo,
o que lhe dificultou acesso ao espaço público de discussão dos temas relevantes existentes.
Porém permitiu maior liberdade na escolha de seus objetos de pesquisa e metodologias.
As polêmicas científicas da primeira metade do século 20 foram acompanhadas por esse
autor sem, no entanto, participar efetivamente delas.
Sua abordagem sociológica definida posteriormente como sociologia figuracional poderia
fazer parte do pensamento crítico daqueles tempos, nos quais cientistas sociais produziam
reflexões inovadoras, seja para legitimar, seja para exercer a crítica teórica à razão administrativa
e instrumental que, segundo autores como Adorno e Horkheimer, haviam aprisionado o espírito
humano em novos dogmas.
Suas contribuições incluem, além da Sociologia, a Psicologia e a Filosofia e uma questão que
orientou sua trajetória intelectual é a crítica à oposição indivíduo/sociedade.
Para ele, tratava-se de uma dicotomia indefensável, na medida em que o ser humano é, por
natureza, social e, por isso, não haveria um grau zero de vida em sociedade.
Para Norbert Elias, questionando a oposição à qual nos referimos:
O indivíduo sempre existe, no nível mais fundamental, na relação com
os outros, e essa relação tem uma estrutura particular que é específica de
sua sociedade. Ele adquire sua marca individual a partir da história dessas
relações, dessas dependências, e, num contexto mais amplo, da história de
toda a rede humana em que cresce e vive. Essa história e essa rede humanas
estão presentes nele e são representadas por ele, quer ele esteja de fato
em relação com outras pessoas ou sozinho, quer trabalhe ativamente em
uma grande cidade, ou seja, um náufrago em uma ilha a mil milhas de sua
sociedade”. (1994, p. 31).

A partir dessa concepção, o autor define o conceito de configurações, por meio do qual
procura demonstrar a existência de relações entre indivíduos guiadas por uma situação de
interdependência destes, que estariam ligados uns aos outros em diversos aspectos, caracterizando
uma teia de relações da qual o indivíduo participa, mesmo que inconscientemente.

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

Essa conceituação leva Norbert Elias a criticar o que para ele é uma construção pautada
na separação indivíduo/sociedade, por ele denominada homo clausus, o oposto do indivíduo
participante das teias de relações.
Tal situação expressaria a dificuldade das ciências em construir diálogos, trabalhos
interdisciplinares em torno de objetos comuns. Referindo-se à relação entre psicologia e
sociologia Norbert Elias afirma que:
Muitas vezes, é como se as psicologias do indivíduo e da sociedade parecessem
duas disciplinas completamente distinguíveis. E as questões levantadas por
cada uma delas costumam ser formuladas de maneira a deixar implícito,
logo de saída, que existe um abismo intransponível entre o indivíduo e a
sociedade (1994, p. 15).

A crítica à, segundo ele, excessiva especialização da Ciência o levou a participar de polêmicas


acadêmicas e a se posicionar para além dos modismos e das normas acadêmicas estabelecidas,
buscando compreender os fenômenos que analisava a partir de sua múltipla formação e da
reinterpretação de termos já consagrados.
De acordo com suas reflexões e critica à ciência:
Pode-se facilmente derrubar as cercas artificiais que hoje erigimos no
pensamento, dividindo os seres humanos em várias áreas de controle: os
campos, por exemplo, dos psicólogos, dos historiadores e dos sociólogos.
As estruturas da psique, da sociedade e da história humanas são
indissociavelmente complementares e só podem ser estudadas em conjunto.
Elas não existem e se movem na realidade com o grau de isolamento
presumido pelas pesquisas atuais. Formam, ao lado de outras estruturas, o
objeto de uma única ciência humana (1994, p. 38).

A leitura de suas obras exige do leitor do século 21 a compreensão prévia dos embates nos
quais o autor se envolveu e, ainda, uma postura crítica quanto à reinterpretação de termos já
consagrados por ele utilizados em novas significações na construção de discursos que fazem
parte do que ficou conhecido como sociologia figuracional.
Para enfrentar a crescente especialização que via na ciência, Norbert Elias propôs uma leitura
da realidade a partir de diferentes concepções e ciências, com destaque para cruzamentos entre
Sociologia, História e Psicologia.
A fusão entre as duas últimas resultaria em uma psicologia histórica, que seria capaz de relacionar
personalidade a estruturas sociais, superando os limites impostos pelas ciências isoladamente.
Sua formação em Filosofia, Medicina e Psicologia, além da Sociologia, possibilitaram utilizar
diferentes metodologias na análise dos indivíduos e da sociedade, tendo como fio condutor o
entendimento da necessidade de estabelecer estudos de longa duração como forma de obter
resultados confiáveis.
No campo da Psicologia, contribuiu para a construção de metodologia voltada à psicanálise de
grupo, trabalhando com o psicanalista Fuchs e utilizando a experiência como paciente em Londres.
Outra área na qual teve importante contribuição é a História.

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Sua obra “O Processo civilizador” influenciou autores ligados à Historia da cultura e das
ideias, ligando-o à corrente da nova História que se desenvolveu na França, a qual se apropriou
de suas reflexões acerca da História a partir dos anos 1970.

Os historiadores dessas correntes criticam o que veem como evolucionismo na obra de


Norbert Elias e este os critica por não incluírem questões como as pulsões, as emoções e os
impulsos inconscientes na análise da história.
Como sociólogo, Norbert Elias analisou diferentes objetos, porém, mesmo seus críticos
admitem haver em sua obra coerência na abordagem e uma linha de estudos guiada por
sua curiosidade intelectual, que o levou a estudar temas distintos, como a vida na sociedade
moderna e o esporte como prática social, porém pautados pela preocupação em entender
as configurações que identificou como eixo de seus estudos em processos de longo prazo,
afastando-se da Sociologia dominante então, a estrutural funcionalista.

Outro aspecto que caracteriza a obra de Norbert Elias e a opõe à sociologia tradicional é o que
define a relação do pesquisador com seu objeto de estudo, os seres humanos. Ressalta o autor que:
Para compreendermos do que trata a sociologia, temos de nos distanciar de
nós mesmos, temos de nos considerar seres humanos entre os outros... No
entanto, é difícil fugir ao sentimento de encarar os seres humanos como se
fossem meros objetos, separados de nós por um fosso intransponível... Os
instrumentos convencionais com que pensamos e falamos são geralmente
construídos como se tudo aquilo que experenciássemos como externo ao
indivíduo fosse uma coisa, um ‘objeto’ e, pior ainda, um objeto estático
(1980 p. 13).

Tal posicionamento foi criticado por se aproximar, segundo críticos da visão de neutralidade
da ciência, por sugerir distanciamento e realismo do pesquisador.
Norbert Elias, porém, procurou elucidar essas questões indicando não haver possibilidade de
neutralidade, mas busca por identificar suas próprias crenças e vontades pessoais para, então,
evitar que estas se interfiram nos processos de pesquisa.

As ideias de Norbert Elias em perspectiva


Considero-me inovador em sociologia, e todas essas inovações, no fundo,
não eram aceitáveis na época. Cada vez que eu exprimia uma ideia inusitada
ao longo de uma de minhas intervenções numa reunião de colaboradores,
isso provocava uma discussão muito agressiva com as gerações mais jovens
(2001, p. 4-75).

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

O conceito de indústria cultural, criado por T. Adorno e M. Horkheimer, contemporâneos de


Norbert Elias, em 1947, auxilia-nos a compreender os movimentos de produção e disseminação
da obra deste último; produzida à margem do sistema acadêmico de seu tempo e mantida
na marginalidade por décadas, a obra acabou assimilada por tal sistema, que a transformou
em obras da cultura universitária, incorporada ao mercado editorial e às discussões acerca de
temas abordados com originalidade e criticidade que passaram a interessar ao sistema por
sua capacidade de colocar em pauta temáticas antes estudadas que Norbert Elias denominou
“maneira tradicional de pensar”, à qual se opôs, como indica no texto reproduzido no início deste
item, buscando a inovação, que muitas vezes precisa de tempo para ser assimilada, como ocorreu,
no mesmo período, com as vanguardas artísticas e ideias políticas inovadoras ou revolucionárias.

Dessa forma, o que se apresentou entre os anos 1920 e 1960 como produção marginal
e original, foi incorporado ao mundo das ideias e à discussão pública acerca de temas do
campo da Sociologia abordados por Norbert Elias em uma perspectiva teórica posteriormente
denominada sociologia figuracional.

A tese de doutorado dos anos 1920 e textos posteriores abordando questões do tempo ou
da construção simbólica, por exemplo, foram revisados pelo autor e apresentados em livros
que reuniam reflexões de temas diversos, produzidas ao longo de décadas e, como a autor foi
testemunha de um século de mudanças e catástrofes, realizou em vida uma revisão da própria
obra, desde a juventude nos anos 1920 até os escritos da maturidade nos anos 1980.
O campo acadêmico e da indústria cultural no Brasil, refletem esse movimento, assimilando
as ideias de Norbert Elias a partir dos anos 1980, quando obras inicialmente publicadas na
Europa interessaram à Sociologia desenvolvida no Brasil em instituições como Universidade de
São Paulo (USP) e Universidade de Brasília (UnB), nas quais a sociologia figuracional passou a
ter presença e influência no trabalho realizado por sociólogos de diferentes vertentes.
Esse interesse tardio por sua obra no Brasil faz com que pesquisadores considerem a relevância
de seus estudos para a ciência no Brasil e indiquem a insuficiência de sua utilização no campo
da Sociologia e da História. De acordo com Gonçalves e Silva (2008, p. 39):
Norbert Elias é atualmente lembrado no cenário acadêmico brasileiro entre
pesquisadores da educação física, sociólogos e historiadores, destacando-
se entre as suas obras, os dois volumes de O Processo Civilizador e por
conceitos ligados a ela, como redes (teias) de interdependência, figurações,
civilização, processo civilizador, entre outros. Ainda assim, Elias continua
sendo um autor pouco trabalhado no Brasil. Um dos principais motivos para
isso poderia ser o fato de o autor ter ocupado, por bastante tempo, na própria
comunidade de sociólogos uma posição outsider.

Tais considerações são verdadeiras, porém é possível observarmos que o outsider Norbert
Elias foi incorporado ao discurso acadêmico tradicional, que assimilou a crítica à “maneira
tradicional de pensar”, inicialmente mantida à margem do sistema de produção e disseminação
de idéias, fazendo também do autor e de sua obra participantes da tradição, mesmo contra a
vontade deste, como demonstra o texto a seguir:

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Recentemente - e isso me irritou muito - li em um estudo inglês que eu era
o último representante da sociologia clássica, alguém que aspira a grande
síntese, e assim por diante. Isso me irritou, porque preferiria ser reconhecido
como o primeiro a abrir uma nova via (na sociologia) (2001, p. 84).

Como ocorre com artistas, intelectuais e demais participantes do espaço público e da indústria
cultural, Norbert Elias também seguiu a trilha da inovação, marginalidade, originalidade e
contestação dos valores dominantes à participação nesse sistema, demonstrando a capacidade
deste em transformar a crítica em discurso aceito pelo establishment.
O reconhecimento por sua contribuição inovadora levou a obra de Norbert Elias a se tornar
um clássico do campo da Sociologia, extrapolando o círculo restrito ao qual esteve ligada durante
décadas e ganhando espaço na Europa e em outras partes do mundo, incluindo o Brasil.
O que podemos depreender desse processo é que o mundo das ideias e da pesquisa
acadêmica manteve a produção intelectual do autor à margem por décadas, como ocorreu com
outros pensadores do seu tempo, até haver nesses espaços condições de absorver aquelas ideias
originais questionadoras da “maneira tradicional de pensar”.
Como observam Norbert Elias, continuadores de sua obra e críticos, isso ocorreu sem que o
autor modificasse sua metodologia ou aceitasse o que denominou modismos. Para ele:
Verdadeiramente, eu sinto hoje certo orgulho de nunca ter cedido, mesmo
que isso tenha sido difícil. Sempre tive consciência de que as opiniões
dominantes eram uma impostura. Teria sido possível ter uma existência
mais fácil na Inglaterra se tivesse aceitado as idéias dominantes, mas não me
permiti compromissos...Se há algo em mim que considero positivo é o fato
de nunca ter me deixado corromper pelos modismos, quaisquer que fossem.
Nunca me autorizei a dizer qualquer coisa sob o pretexto de que estava na
moda (2001, p. 84).

É possível verificar nas obras e nos pronunciamentos de Norbert Elias uma postura de recusa e
crítica à “maneira tradicional de pensar” e, com isso, a aceitação de suas ideias, que apresentam
contradições com os cânones e os modismos, deve-se a mudanças que ocorreram no campo
sociológico ao longo das décadas de 1920 a 1970, que possibilitaram a circulação de conceitos
e posicionamentos inovadores, importantes para a ampliação dos debates acerca de temas e
objetos de pesquisa diversos e relevantes para a construção do conhecimento.
Analisando a trajetória de alunos com os quais trabalhou na Universidade de Leicester,
Norbert Elias identifica que sua proposta metodológica dificultava reunir outros pesquisadores
e criar, assim, uma cultura de investigação baseada no que denominou “processos de longa
duração”. Para ele:
A maioria considerava meu pensamento centrado no processo de longa
duração uma posição marginal; e não estavam completamente errados, pois
talvez lhes custassem a carreira seguirem aquele caminho. O fato de pensar
em termos de processo de longa duração ainda não estava na moda, em
sociologia (2001, p. 74).

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

A moda e os modismos estão presentes em todos os campos da vida humana e, como afirma
Norbert Elias, é importante não se deixar corromper por eles, pois a História apaga ou torna
irrelevante o que se configura como transitório e datado e, por outro lado, eleva à condição de
clássico aquilo que atravessa os tempos e permanece como contribuição à compreensão dos
fenômenos do presente.

Norbert Elias: vida e obra

Apresentamos a seguir algumas informações relevantes relativas à vida e à obra de Norbert Elias:
··Nasceu em 1897, na cidade de Breslau (Alemanha), atual Wroclaw, Polônia. Viveu na
Alemanha, na Inglaterra, na Holanda, em Gana. Morreu em 1990 na cidade de Amsterdam;
··Formação: Medicina, Filosofia, Sociologia, Psicologia;
··Instituições nas quais atuou: Universidade de Heidelberg, Universidade de Frankfurt,
Universidade de Leicester, Universidade de Ghana, Universidade de Amsterdam;
··Principais livros publicados no Brasil: Os alemães; Os estabelecidos e os outsiders;
Mozart: sociologia de um gênio; Norbert Elias por ele mesmo; A peregrinação de Watteau
à Ilha do Amor; O processo civilizador (2 vols.); Sobre o tempo; A sociedade de corte; A
sociedade dos indivíduos e A solidão dos moribundos;
··Conceitos centrais formulados: teias de interdependência, configurações, redes,
homo clausus;
··Atualidade: Obra permaneceu desconhecida até 1970. A partir de então, tem sido
utilizada por sociólogos, historiadores e pesquisadores da área da educação em diversos
países, incluindo o Brasil. A Fundação Norbert Elias (http://www.norberteliasfoundation.
nl/index.php), fundada em 1983, é responsável pela organização de seu legado;
··Polêmicas e curiosidades: questionou a concepção de conhecimento científico de K.
Popper; trabalhou em uma fábrica de fundição de ferro depois da Primeira Guerra
Mundial; tinha grande curiosidade pelo desconhecido; era excelente professor (aliava
erudição e experiência de vida); tornou-se professor aos 59 anos no departamento de
Sociologia da Universidade de Leicester.

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Material Complementar

Nesta unidade, estudaremos a obra do sociólogo alemão Norbert Elias. Verificamos que as
ideias desse autor foram incorporadas à indústria cultural e aos círculos acadêmicos do campo
da Sociologia a partir dos anos 1970, apesar de terem sido produzidas a partir dos anos 1920.
Ao analisar a trajetória do autor, procuramos identificar as razões para essa tardia aceitação
de sua obra e identificamos no contexto acadêmico, social e político europeu das primeiras
décadas do século 20, razões para que isso tenha ocorrido.
As duas guerras mundiais, a perseguição aos judeus e o posicionamento do autor como
outsider no campo da Sociologia são os motivos mais relevantes.
Atualmente, a obra de Norbert Elias está disponível em livros e em trabalhos acadêmicos
sobre ele ou que utilizam seus conceitos como referência.
Além do que disponibilizamos no material didático, você pode obter informações sobre a obra
de Norbert Elias no site da fundação que organiza sua obra: http://norberteliasfoundation.nl/.
Infelizmente a maior parte do material disponível está em inglês, o que o torna pouco
acessível para nós.
Um artigo que recomendamos está na bibliografia:

• GONÇALVES, H. S. E SILVA, F. A. Norbert Elias: apontamentos bibliográficos e meto-


dológicos para a Sociologia e História do Conhecimento e da Ciência. In: Revista Em
Tempos de História, número 12. Brasília: UnB, 2008. Disponível em: http://seer.bce.
unb.br/index.php/emtempos/article/viewFile/2560/2114.

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Unidade: Homens e idéias do século 20 na perspectiva de Norbert Elias

Referências

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001

. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980.

. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. v. 2. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1993.

. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.

. O processo civilizador: uma história dos costumes. v. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994b.

. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

. A sociedade da corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de


corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001a.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das


relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

GONÇALVES, H. S. E SILVA, F. A. Norbert Elias: apontamentos bibliográficos e metodológicos


para a Sociologia e História do Conhecimento e da Ciência. In: Revista Em Tempos de
História, número 12. Brasília: UnB, 2008.

Fundação Norbert Elias: http://www.norberteliasfoundation.nl/index.php.

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Anotações

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