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NORBERT ELIAS ESTRUTURADO

José Carlos Reis*

O texto de Carlos Antonio Aguirre Rojas, pesquisador


do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Nacional
Autônoma do México, “Norbert Elias: Historiador y Crítico de
la Modernidad”, quer refletir sobre o lugar e o aporte à
história da obra de Elias. O seu ponto de vista é disciplinar,
portanto - é o da história.
Inicialmente, no entanto, ele considera as
dificuldades em se examinar as grandes obras das ciências
sociais a partir de um ponto de vista especializado. O
primeiro tema de Aguirre Rojas é o tema já clássico da
inter/transdisciplinaridade em ciências sociais. As grandes
obras das ciências sociais são transdisciplinares e só se
poderia avaliá-las adequadamente nessa perspectiva
transdisciplinar. Não se pode reduzir a obra de Braudel à
história, a de Levi-Strauss à antropologia, a de Freud à
psicanálise, a de Adorno à filosofia, a de Barthes à
lingüística e, finalmente, a obra de Elias à sociologia. Todas
as grandes obras das ciências sociais interessam às
diversas ciências sociais. Seria adequado considerar Elias
como sendo exclusivamente um sociólogo? Haveria em sua
obra algo que pudesse interessar ao historiador?
Aqui se percebe uma certa ambigüidade no discurso
de Aguirre Rojas. “Ambiguidade” não significa imperfeição,
contradição ou falta de rigor, mas complexidade. É difícil
defender a “trans” ou interdisciplinaridade e esquecer o
olhar especializado. O olhar transdisciplinar é somente uma
proposta de abertura a outras leituras e interpretações da
realidade social, a defesa da circulação de textos, temas e
técnicas, a recusa do estudo especializado de um certo
panteão disciplinar. Mas, esse “olhar transdisciplinar”, por
um lado, existe e, por outro, não existe concretamente. Ele
existe nas grandes obras, nos grandes autores, que por isso
*
Departamento de História/UFMG.
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tornaram-se matrizes das diversas ciências sociais. Por


outro lado, nas pesquisas particulares e de alcance mais
restrito e definido, ele existe de modo, também, definido e
restrito. Aqui predomina o olhar especializado. Toda leitura
de uma obra de ciências sociais é a partir de um ponto de
vista disciplinar. Aguirre Rojas lê Elias como historiador. Um
sociólogo ou antropólogo o lerão a partir do seu ponto de
vista especializado. Um geógrafo pode ler Braudel ou Levi-
Strauss ou Elias, mas o fará como geógrafo. A
complexidade está nisso: a ambição de um olhar múltiplo e
até global e a necessidade de uma escolha, de uma
delimitação, de uma focalização, para ser técnicamente
eficiente.
Aguirre Rojas defende, sem contradição, a
transdisciplinaridade da obra de Elias e a avalia como
historiador e para o historiador, reforçando e legitimando a
especialização que ele contesta e que é contestada desde
68. Ele quer traze-lo para a área da história,
compartilhando-o com sociólogos e outros cientistas sociais.
A ambigüidade: ele recusa a especialização e parte dela,
afirma a transdisciplinariedade e reconhece a especificidade
das diversas abordagens. Ele quer tratar a obra de Elias
como inclassificável, classificando-a e reivindicando-o para
o panteão dos historiadores. Ele reconhece que por mais
fecundos que sejam os “diálogos cruzados” entre as
ciências sociais, eles não apagam a especificidade da
abordagem da realidade social das diversas disciplinas.
Essa temática é sempre atual e inconclusa. Os Annales hoje
rediscutem a sua proposta pioneira da interdisciplinaridade,
querem rever os seus termos. No título novo de sua revista
já há uma vírgula separando História, Ciências Sociais.
Essa vírgula não seria um sinal de separação, mas de
distinção, especificação, diferenciação.
Portanto, Aguirre Rojas avalia a obra de Elias como
historiador, defende a sua inclusão na área da história e
quer avaliar o seu aporte aos estudos históricos. Ele
reconhece que, “...partindo do limitado horizonte disciplinar,
que continua sendo o esquema dominante de aproximação

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intelectual, é difícil uma avaliação adequada da obra dos


grandes pensadoresà...”. A razão da sobrevivência desse
esquema é a dificuldade e talvez até a impossibilidade de
um olhar global, múltiplo e competente. Olhar é escolher e
focalizar, para se aprofundar e dominar tecnicamente o seu
objeto. Aguirre Rojas, para realizar uma avaliação
adequada, escolheu e focalizou na obra de Elias a sua
contribuição específica aos estudos históricos.
Para encontrar o Elias-historiador, Aguirre Rojas
divide-o em dois: um pré - Segunda Guerra Mundial, que
seria predominantemente historiador, com as suas duas
obras A Sociedade de Corte, de 1933 (Lisboa: Estampa,
1987) e O Processo Civilizador, de 1939 (2 vols., Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990/3); um pós-1945, que se tornou
mais teórico e sociológico. Mas, haveria um terceiro Elias. O
Elias-historiador seria na verdade pós-69. O seu “lado
historiador” não foi conhecido antes de 1969, pois as suas
duas obras históricas dos anos 30 não repercutiram
imediatamente, nem ainda nos anos posteriores à Segunda
Guerra. Só com o movimento de 68 foi que emergiu o Elias-
historiador e com grande vigor e brilho, tornando-se
referência essencial dos historiadores. As suas “obras
históricas” só foram traduzidas para o francês e inglês nos
anos 1970. Em espanhol, elas só apareceram nos anos 80 e
em língua portuguesa, Elias é recentíssimo. Aguirre Rojas
interessa-se por esse Elias-historiador pós-69, quando foi
descoberto e assimilado pelos historiadores. Qual foi o novo
tipo de história que ele propôs?
Aguirre Rojas faz uma avaliação dupla do aporte de
Elias à história: como historiador, ele converge e talvez até
possa ser incluído indiretamente no movimento inovador
dos Annales, sem perder a sua originalidade; como crítico
da modernidade, ele também não é solitário, pois faz parte
de um conjunto de autores, escolas e tendências de todas
as ciências sociais entre os anos 20/70. A sua avaliação do
Elias - historiador tem a marca do historiador formado na
leitura dos clássicos do século XX. Ele não procura
apresentá-lo como um evento intelectual, uma emergência

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inovadora e inesperada que tudo modificou, um “clássico


adormecido” que acordou e fez acordar. E nem o defende
heróica e ingenuamente contra seus possíveis maus
leitores. Elias não é apresentado como uma matriz
intelectual solitária, genial e por algum tempo
lamentavelmente incompreendido, mas como participante e
praticante de uma matriz comum a várias correntes e
autores do século XX.
Aguirre Rojas situa-o no contexto europeu e alemão
do entre-guerras, do pós-Segunda Guerra e de pós-68; na
tradição intelectual judia alemã e européia (Marx, Freud,
Durkheim, Adorno, Bloch, Benjamin, Levi-Strauss), uma
cultura cosmopolita, anti-nacionalista; ele o considera
representante e fruto da hegemonia cultural alemã na
Europa entre 1870 e 1939; com os eventos dramáticos do
século XX e a conseqüente perda da Europa da hegemonia
no Planeta, ele o coloca entre os críticos da modernidade. A
expressão intelectual comum na Europa dos anos 20/30
será a da crise do progresso, o ceticismo em relação à
modernidade capitalista européia. Elias se inclui nesse coro
crítico: a psicanálise, a antropologia, o marxismo, a escola
de Frankfurt, Reich, Brecht... São manifestações contra a
razão européia moderna. Esse era o Elias da primeira
edição, dos anos 30. Ele não repercutiu imediatamente, mas
estava integrado no padrão intelectual dos anos 20/30.
Haveria algo de realmente novo em Elias? Algo que o
singularize plenamente entre os autores, escolas e temas
da sua época?
O Elias novo é o que repercutiu após 68. Antes, ele
era um desconhecido, marginal, não era uma referência
teórica, embora a sua obra ainda desconhecida fôsse
inauguradora de uma nova história. Mas, em 68/9, quando
foi descoberto, a sua nova história já era parcialmente uma
velha história. Grande parte do que Elias trouxe em 69 já
era praticado pelos Annales e pela história que se deixou
influenciar por Weber desde os anos 30. O combate contra
o positivismo e o historicismo (que não devem ser
confundidos) ja estava mais ou menos encerrado pelos

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Annales; uma história comparativa, interpretativa, de longa


duração, inovadora quanto aos temas e crítica da
modernidade, em 69, há muito predominava. Mas, 68
significou alguma coisa nova e não foi por acaso que sua
obra foi redescoberta nos anos 70.
O que há de novo em Elias é o mesmo que houve de
novo, com variações, na terceira geração dos Annales e em
Foucault: temas como o cotidiano, as mentalidades, as
atitudes em relação ao corpo, uma nova visão do poder
agindo sobre e por dentro do corpo, as maneiras de vestir,
comer, amar, gestos, vestuário, cerimoniais etc. (Veja-se
Chartier, 1987.) A história se interessou, então, pelos
temas da antropologia, da sociologia e da psicanálise. Foi
por isso que a terceira geração dos Annales o descobriu e o
transformou em referência teórica. Foi sobretudo através
desses historiadores que ele ganhou o mundo. Roger
Chartier, A. Burguière, J. Revel fizeram muito pela difusão
da sua obra. Sua maior contribuição talvez seja a
construção de uma interpretação histórica com apoio na
sociologia, na psican lise e na antropologia. Ele tematizou
os aspectos emocionais e comportamentais na mudança
histórica. A sua interpretação da modernização como um
aumento do autocontrole, como uma vitória do racional
sobre o pulsional, como um processo de individualização
era, em alguma medida, inovadora, como pode ser visto em
Combats pour l'Histoire, de L. Febvre (s/d), mas não o livra
de polêmicas em torno do seus conceitos de “processo” e
de “evolução”. Há um sentido histórico em Elias? São
questões relevantes, embora exijam dos interlocutores uma
postura mais tolerante em relação à discussão clássica e
nem sempre fértil sobre tais temas.
Sobre a questão do sentido histórico, Aguirre Rojas
enfatiza a sua crítica ao progresso linear e otimista, da
modernidade burguesa. Entretanto, nisso ele não estava só,
fazia coro. Elias, desconstrucionista, revela o lado negativo
do projeto burguês moderno. Todo progresso é um regresso
relativo, pois não há afirmação sem negação correlativa. A
vida social é pacificada, mas a tensão se desloca para o

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interior da vida individual. O autocontrole e a conduta


normatizada são progresso, que tem um custo - o aumento
dos conflitos internos do indivíduo e o aumento da violência
do Estado sobre os indivíduos e entre os Estados. O
progresso da razão moderna é excludente: os indivíduos
que não conseguem o autocontrole são excluídos. O
discurso da razão é vítima da violência que produz; no
entanto, não a reconhece e não a reprime.
Contudo, o que talvez seja digno de nota é que a
avaliação de Aguirre Rojas quanto à contribuição de Elias à
história, se bem o li, não é um elogio ao evento Elias. A obra
de Elias é essencial à compreensão do projeto da
modernidade e da sua crise, porém não é a única, embora
seja original. Sua obra mais realiza e consolida uma matriz
teórico-metodológica já bem construída do que propõe uma
novidade. Os seus pressupostos e conceitos são construídos
de modo próprio, original, eliasiano, mas exploram uma
matriz que é compartilhada por todas as ciências sociais
entre os anos 20/70. A sua obra converge com as de
Durkheim, Febvre, Bloch, Braudel, Levi-Strauss, Ariès,
Foucault e o pensamento crítico alemão. O valor de sua
obra é o de expressar e explorar plenamente essa matriz e,
por isso, tornar-se original dentro dela. A riqueza do estudo
de Aguirre Rojas está em revelar a originalidade de Elias
sem apresentá-lo como um evento único, singular e
irrepetível, heróico, mas contextualizando-o e aproximando-
o das tradições intelectuais alemãs e européias do seu
tempo. Elias não é uma ruptura, um evento - é uma das
expressões maiores das possibilidades estruturais da sua
cultura e época.

Bibliografia

CHARTIER, Roger. La Sensibilité‚ dans l'Histoire. Paris:


Gerard Monfort, 1987.

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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Trad. Rio de Janeiro:


Zahar, 1990/1993. 2 v.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. Lisboa:
Estampa, 1987.
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Trad. Lisboa: 70,
s/d.

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