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o enraizamento
ção de Plutarco, que escreveu no início do século ll
d.C., falando de Sócrates:
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fascinam pela sua vasta cultura e pelos seus conheci- grande parte pela intervenção irresponsável do ho-
mentos da filosofia, sobretudo da Antiga Grécia. Seu mem, são um alerta e um grito da natureza diante
filósofo preferido será Platão. Simone domina o grego da devastação e do esgotamento dos recursos limi-
e o latim, sendo ela mesma a tradutora, para os seus tados do nosso planeta. Ora, se refletirmos sobre a
alunos, de textos originais dessas duas línguas. riqueza semântica da palavra ecologia (oikos, casa) e
sobre a nossa corporeidade, dar-nos-emos conta de
Na brevidade de sua existência (faleceu em que somos nós mesmos os autores da destruição da
1943, na idade de 34 anos) Simone deixou-nos um nossa casa comum, da nossa mãe-Terra.
testemunho de vida e uma produção filosófica mui-
to importantes. A publicação das Oeuvres complètes Diante desse quadro, as reflexões e os exem-
pela Gallimard, uma das maiores editoras da França, plos de vida de Simone Weil a respeito dessas duas
compreende 17 grossos volumes. Os seus Cadernos categorias a do enraizamento e a do desenraizamen-
(Cahiers) são ricos de frases pertinentes aos mais to, confrontados com a problemática da relação do
variados temas sobre a filosofia, a política, o traba- homem com o homem e do homem com a natureza,
lho, a arte, a ciência e a religião. Uma intelectual bem constituem sem dúvida um desafio e um convite per-
diferente do paradigma usual, militante lúcida, com- manentes para a meditação e para a ação. Ora, a re-
prometida (engagée) com a justiça social e as lutas flexão teórica acerca dos mistérios da natureza teve
contra a pobreza. Filia-se à CGT (Confederação Geral um tratamento privilegiado por parte dos filósofos
dos Trabalhadores). Na cidade de Puy, onde era pro- gregos. Basta recordar a teoria dos ‘quatro elemen-
fessora de filosofia, desfila nos protestos em apoio tos’, teoria que pode parecer estranha a um estudio-
ostensivo aos desempregados. Escreve numerosos so da física contemporânea, mas que nos questiona
artigos sobre sindicalismo e economia, publicados profundamente se pensarmos a respeito da nossa
na imprensa de esquerda. sobrevivência graças à água, ao fogo ou seja à ener-
gia e aos combustíveis, à poluição do ar destruindo a
Em 1934 pede uma licença “para estudos camada de ozônio...
profissionais”, mas de fato ela quer fazer uma expe-
riência muito cara ao seu coração : Trabalhar como A curiosidade da inteligência humana em des-
operária incógnita a fim de conhecer na própria pele vendar os mistérios da physis foi um estímulo im-
a condição operária. Trabalha durante dois anos na portante na filosofia da Grécia antiga. Dessa forma,
usina Alsthom e depois em outras duas fábricas, ex- as reflexões de Simone que se referem ao sentido
periência que a deixará esgotada fisicamente. Dessa profundo do enraizamento e desenraizamento, se
experiência escreverá numerosos trabalhos sobre as inspiram na riqueza dessa fonte cultural, sendo ao
condições dos operários. Mais tarde, fará outra expe- mesmo tempo um tema original no campo da filo-
riência similar trabalhando como camponesa. sofia ocidental.
Dessa forma, não é necessário recordar a origi- “O enraizamento é talvez a necessidade mais
nalidade do pensamento filosófico e do seu corres- importante e mais desconhecida da alma humana. É
pondente empenho político e social. O assumir da uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem
parte de Simone dos dramas dos indigentes, dos fa- uma raiz por sua participação real, ativa e natural na
mintos e dos explorados é demonstrada na sua vida existência de uma coletividade que conserva vivos
real do dia-a-dia Ela compartilha na própria carne certos tesouros do passado e certos pressentimentos
as experiências dramáticas da fome, do desenraiza- do futuro. Participação natural, isto é, que vem auto-
mento da condição operária e campesina, das guer- maticamente do lugar, do nascimento, da profissão,
ras e das lutas sindicais do momento. do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas
raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua
Ora, tais dramas continuam a desafiar, hoje vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos
mais do que nunca, a todas as pessoas, os movimen- meios de que faz parte naturalmente”.
tos sociais, as comunidades nacionais e internacio-
nais, engajados na construção de uma outra ordem.
Ademais, hoje, a humanidade se defronta com outra Weil, S.: L’enracinement : Prélude à
grave ameaça adicional de destruição e de desen- une déclaration des devoirs envers l’être humain,
raizamento: As catástrofes ecológicas, causadas em Gallimard, Paris 1990, p. 61. Trad. Portuguesa :
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os mesmos autores, é que a guerra do Iraque tenha Deve-se recordar que ele foi o primeiro presi-
sido declarada e sustentada à base de mentiras, de denteda FAO (1952-55). Naquela sua obra, tornada
chantagens e de pressões de todo tipo. E quase todos clássica, definia a fome como um “flagelo fabricado
os problemas eram previsíveis e foram previstos. Ora, pelos homens contra os outros homens”. E acrescen-
se essa montanha de dólares tivesse sido aplicada tava que “a Natureza é generosa, mas ainda vivemos
em favor dos famintos e dos miseráveis do planeta, em meio à miséria, num mundo de abundância”. Na
certamente hoje não veríamos mais na mídia estes enorme lista de iniciativas e publicações devemos
milhões de figuras esquálidas, ‘trapos humanos’, que recordar a fundação da Associação Internacional
nos interpelam num silencioso protesto contra a in- da Luta contra a Fome, iniciativa de Castro, do Abbé
sensibilidade e a ausência de efetiva solidariedade Pierre e do Padre Lebret. Ele, que tanto amava o Bra-
das pessoas bem nutridas, das autoridades e das ins- sil, morreu aos 65 anos, no exílio, sem poder realizar
tâncias governamentais nacionais e internacionais. o sonho de retornar em vida a seu país natal.
Por isso, Simone insiste em que nenhum dis- Passaram-se muitos anos e somente em 2002
curso dobre o respeito devido ao outro terá efetivi- um outro pernambucano, simples torneiro mecâni-
dade, se não for expresso pela satisfação real, e não co, Luiz Inácio Lula da Silva, popularmente conheci-
apenas fictícia, das necessidades terrestres básicas do como Lula, nascido na região de Castro, foi eleito
de todo ser humano. presidente do Brasil. Em sua campanha eleitoral, Lula
lançou o desafio: “Fome zero”. E, realmente, o Brasil
“A consciência humana nunca variou sobre está conseguindo vencer o desafio, por meio do Bol-
esse ponto. Há faz milhões de anos, os egípcios pen- sa Família do Ministério do Desenvolvimento Social
savam que uma alma não pode ser justificada após a e Combate à Fome, graças à volumosa contribuição
morte se não pode dizer: ‘Não deixei ninguém sofrer financeira oriunda dos impostos, que não deixa de
fome’. Todos os cristãos se reconhecem expostos a ser uma espécie de efeito de transferência de renda.
um dia ouvir o Cristo dizer-lhes: ‘Tive fome e não me Segundo o recente relatório do IPEA, graças ao pro-
destes de comer’. Todos se representam o progres- grama Bolsa Família conseguiu-se subtrair da fome e
so humano como sendo, inicialmente, a passagem a da miséria mais de 40 milhões de brasileiros de todas
um estágio da sociedade humana em que as pessoas as idades. Ademais com a cobertura do Bolsa Família o
não passarão fome”10. comércio em cinco estados do Nordeste e um do Nor-
te apresentaram expansão acima da média anual12.
Saciar a fome dos famintos e apagar a sede é,
para Simone, a primeira obrigação em relação a todo E, se examinamos o mapa da fome no mundo,
ser humano. E, além da fome saciada, outras neces- constataremos, com muita tristeza, que ainda é a África
sidades básicas vitais devem ser satisfeitas, como: a que continua, de longe, a ser o Continente mais sofrido
habitação, a higiene, o vestuário, a cura em caso de e mais abandonado. Ora, o Ocidente tem uma dívida in-
doença, a proteção contra a violência e, hoje, mais cancelável para com a África, desde a época do tráfico de
do que nunca, devemos repetir: “água potável para milhões de escravos, arrancados de suas raízes familiares
dessedentar”. e locais, e vendidos aos proprietários rurais e aos donos
do poder nas Américas. Em seguida, houve o colonialis-
Em 2008, comemoramos, no Brasil, o centená- mo e hoje, um certo abandono por parte dos países ditos
rio de nascimento de um dos pioneiros na denúncia desenvolvidos. Mas, o maior paradoxo do esquecimento
contra o flagelo da fome, o médico e sanitarista Jo- e da memória talvez seja o fato de que, segundo as mais
sué de Castro, autor do livro que se tornou clássico, recentes pesquisas dos paleontólogos, a África teria sido
Geografia da fome11. o berço da humanidade. Por isso, Hans Küng conclui,
afirmando que “temos origem biológica comum” e que
“sob a pele, todos somos africanos”13.
10 Weil, S.: L’enracinement...,cit., p. 13.
11 Castro, J. de: Geografia da fome, Anta-
res/Achiamé, Rio de Janeiro 1945. A obra teve tal 12 Mais informações, em várias línguas, no
repercussão internacional, que foi logo traduzida site e nos links do Ministério do Desenvolvimento
em mais de 25 línguas. Para mais informações, Social e Combate à Fome: www.msd.org.br
veja o site: www.josuedecastro.com.br 13 Küng, H.: O princípio de todas as coi-
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Ao drama da fome devemos hoje acrescentar te indispensável que façamos rapidamente opções
o da falta e o da escassez sempre mais evidente de inteligentes, se quisermos que nossos oceanos, nos-
água potável. Riccardo Petrella, professor da Uni- sos mares e nossas ilhas continuem vivos”. Não sem
versidade Católica de Louvain, afirma que “em par- razão, Tales de Mileto afirmava que “a água está na
ticular, a água potável não é acessível a um grande e origem de todas as coisas”.
crescente número de pessoas (mais de 1.4 milhões)
e a poluição sempre crescente da água de superfície
e subterrânea, ao lado de muitos outros fatores, não 2. O enraizamento, o desenraizamento e a
nos estimula a pensar que o futuro seja mais favorá- questão ecológica
vel”14. E acrescenta “que podemos viver sem Internet,
sem petróleo e tantos outros bens tidos como indis- Os dramas da fome e da falta de água potável
pensáveis, mas não nos é possível viver sem água”. tornam-se, hoje, ainda mais graves, se os relacionar-
mos com a questão ecológica. Se considerarmos o
ONU, em 1992, instituiu o dia 22 de março como simples significado etimológico de oikós, que, em
o Dia Mundial da Água, publicando, simultaneamen- grego, designa a casa ou a moradia, constataremos
te, um documento intitulado: Declaração Universal imediatamente a interdependência de todos os ele-
dos Direitos da Água, do qual transcrevo somente mentos componentes da natureza, e, em particular,
o artigo 2: “A água é a linfa de nosso planeta. Ela é dos seres vivos. A Terra é, portanto, nossa casa e a
condição essencial para todo vegetal, animal ou ser Grande Mãe. Neste sentido, as reflexões de Simone
humano. Sem ela não podemos conceber como são sobre o enraizamento e o desenraizamento do ser
a atmosfera, a vegetação, a cultura ou a agricultura”. humano são extremamente importantes no deba-
Ademais, a que servem as atuais propostas de em- te ecológico. Sabemos como os filósofos gregos se
presas públicas ou privadas para a dessalinização da interessaram para compreender e explicitar os mis-
água dos mares e dos oceanos, depois da provocada térios da physis e do cosmo, de modo contemplati-
destruição da água doce pelo homem? Em março de vo e admirativo, não dominador. No mais, a própria
2009 foi realizado, em Istambul, o 5º Fórum Mundial etimologia grega de kosmos nos revela a riqueza se-
da Água, advertindo que, para o futuro, o maior im- mântica desta palavra, uma vez que designa o bom
pacto das mutações climáticas incidirá sobre a dis- ordenamento, a ordem do universo, ou melhor, o
ponibilidade hídrica, provocando inundações mais universo considerado como um sistema bem consti-
intensas e secas mais prolongadas. tuído. Também o autor do livro do Gênesis, narrando
a criação dos seres do universo, ao final de cada dia
Uma outra advertência, muito grave, foi fei- repete esta admirável frase: “E Deus viu que aquilo
ta, em 2004, por Koïchiro Matsuura, diretor geral da era bom”. Simone, em diversas passagens, explica
UNESCO, por ocasião da Jornada mundial do ambien- esta bondade divina, escondida no universo, recor-
te, sob o título: Avis de recherche! Mers et océans: rendo, principalmente, às contribuições de diversas
morts ou vivants?” Ele denuncia os desastres do des- culturas da Antiguidade.
medido desfrutamento da pesca predatória indus-
trial, as consequências dos herbicidas e pesticidas, Junto aos Gregos, a ciência da natureza era ela
da indústria do transporte marítimo e do turismo. E mesma uma arte, que tinha por matéria o mundo e
o documento conclui, dizendo que “é absolutamen- por instrumento a imaginação; ela consistia, como as
outras artes, numa mistura do limite com o ilimitado.
sas (Título do original alemão: Der Anfang aller Daqui, a convergência entre a ciência e a arte. Para
Dinge, 2005), Vozes, Petrópolis 2007, p. 225. nós, oposição, porque nossa ciência analisa. Fazer do
universo a obra de Deus; fazer do universo uma obra
14 Petrella, R.: O manifesto da água: Argu- de arte, é este o objeto da ciência grega15.
mentos para um contrato mundial, Vozes, Petró-
polis 2002, 24 (Título inglês: The water manifesto:
Arguments for a world contract, 2001). Uma ou- 15 Weil, S.: Quaderni, I, Adelphi Edizioni,
tra obra muito importante é a do monge brasilei- Milano 1982, 235. Sobre este aspecto da relação
ro, Marcelo Barros, O Espírito vem pelas águas. entre cultura grega e SW, é muito útil a leitura do
Bíblia: espiritualidade ecumênica e a questão da livro do filósofo brasileiro F. Rey Puente, pro-
água, Rede, Goiás 2002. fessor de filosofia da UFMG, Simone Weil et la
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Na mesma linha de reflexão, a propósito da terial. A razão humana passa, então, da função de razão
beleza do cosmo, é muito rico o comentário, de ins- raciocinante à de uma razão instrumental, assim deno-
piração franciscana, que Simone faz sobre a seguinte minada por Horkheimer, em seu livro:Eclipse da razão
frase de Tales: (1955). E ainda, em relação às consequências destruti-
vas da técnica, Attilio Danese lembra que: “Simone Weil
“Tudo está repleto de deuses”. Esta frase de Ta- exprime juízos severos em relação à ingênua esperança
les chama logo a atenção por sua beleza. Parece-me no progresso científico. Chega a escrever: ‘A técnica é
difícil pensar que o rumor do vento entre as folhas maldita’ (Cahiers, 111, 286) e apresenta uma denúncia
não seja um oráculo; é difícil pensar que este cão, ecológica ante litteram das consequências de uma ido-
meu irmão, não tenha alma; é difícil pensar que o latria tecnicista”19.
coro das estrelas nos céus não cante os louvores do
Eterno. Mas, se estes pensamentos não fossem difí- A literatura contemporânea referente à ecolo-
ceis, não seria nada; porque, pensar é tão somente gia como tal e à relação conflitiva da ecologia com
um ato heróico (...). O belo não pode ser que o mito a tecnologia é muito vasta, além das reportagens e
do verdadeiro16. das notícias cotidianas referentes aos desastrosos
efeitos das mudanças climáticas. Uma das primeiras
Em outra passagem dos Cadernos, Simone re- denúncias vem da obra conjunta da bióloga ameri-
pete: “O mundo é a linguagem de Deus. O universo é cana R. Carson e do microbiólogo francoamericano
a Palavra de Deus. O Verbo”17. René Jules Dubos, intitulada Silent Spring (Primave-
ra silenciosa) (1962). Título muito expressivo. Eles fo-
Ora,são muitos os modos de interpretar esta ram, praticamente, os pioneiros na pesquisa e na de-
“linguagem de Deus”, estabelecendo uma verdadeira núncia dos efeitos negativos de uma tecnologia mal
comunhão do homem com as maravilhas do univer- empregada, sobretudo no cultivo da terra mediante
so, como a meditação, a contemplação, o empenho a aplicação dos agrotóxicos.
por uma justiça social que alcance a toda a humani-
dade, a própria reflexão filosófica quando realmente No campo da filosofa, é importante recordar
entendida como “sabedoria” e, sobretudo, o respeito as críticas de Heidegger à técnica e, mais tarde, as
e o cuidado pela Terra. de seu aluno, Hans Jonas, na volumosa obra: O prin-
cípio responsabilidade. Ora, diante do ‘vazio ético’,
Nessa mesma linha de pensamento, devemos verificado nas morais tradicionais, Hans Jonas toma
colocar o excelente trabalho do Frei Betto, intitulado a iniciativa de reformular a ética em torno da idéia
A obra do artista: Uma visão holística do Universo, de responsabilidade, sob todos os seus aspectos, di-
uma síntese da visão espiritual do mundo com o co- recionada, principalmente, ao futuro. Discute a con-
nhecimento científico a partir da aventura do pen- fiança que foi depositada nos ideais do progresso e
samento dos gregos aos nossos dias. Um exercício das utopias e reformula o imperativo kantiano, pro-
saudável de admiração e contemplação18. pondo um novo tipo de ação humana, expresso nas
seguintes máximas:
Ora, a partir da modernidade, com o progressi-
vo advento e o domínio da ciência e da técnica, estas “Aja de modo a que os efeitos da tua ação
formas de conhecimento não são mais utilizadas como sejam compatíveis com a permanência de uma
formas de contemplação e de admiração, mas como autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, ex-
instrumento de exploração e domínio da Terra. Assim, presso negativamente: “Aja de modo a que os
a relação do homem com a Terra está se tornando sem- efeitos de tua ação não sejam destrutivos para
pre mais perversa. É a ilusão do ilimitado progresso ma- a possibilidade futura de uma tal vida”; ou, sim-
plesmente: “Não ponha em perigo as condições
Grèce, L’Harmattan, Paris 2007. necessárias para a conservação indefinida da hu-
16 Weil, S.: Ibid., p. 41.
17 Weil, S.: Quaderni, III, Adelphi Edizioni, 19 Di Nicola, G. P. e Danese, A.; Simone
Milano 1988, 175. Weil: abitare la contraddizione, Dehoniane, Roma
18 Betto, F.: A obra do artista: Uma visão 1991, p. 362.
holística do Universo, Ática, São Paulo 1995.
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manidade sobre a Terra”, ou, em uso novamente Ora, frente a esse quadro apocalíptico da atu-
positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura al situação da fome e da exploração do planeta, as
integridade do homem como um dos objetivos grandes perguntas que Kant se colocava a si mes-
do teu querer” 20. mo na Crítica da razão pura, atualizadas, podem
servir de bússola para todos nós: “Que posso saber?
Ora, diante do quadro supra-apresentado, re- Que devo fazer? Que posso esperar?”23. Talvez a se-
lativo à ambiguidade da natureza humana, com ten- gunda pergunta seja a mais urgente. Por isso, não
dências conflitantes em relação ao bem e ao mal, ou é sem sentido que Simone propunha, em seu livro,
seja, de amor e solidariedade, de ódio e destruição, O enraizamento..., a prevalência e a anterioridade
pensadores nos campos da filosofia, da teologia e da obrigação sobre o direito, o qual lhe é subordi-
das ciências ditas humanas elaboraram as mais di- nado. O dito de J. Dubos: “Pensar globalmente, agir
versas teorias e concepções. Permito-me citar ape- localmente”, adotado por diversas organizações de
nas alguns de seus pensamentos. defesa do ambiente, pode se constituir no lema de
cada um de nós, inspirados por um ‘otimismo trági-
Kant nos dará uma interpretação da maldade co’, na expressão cristã de E.Mounier ou nesta outra
humana, fundada sobre a própria natureza de nossa de Gramsci “Otimismo da vontade e pessimismo da
constituição ontológica: o mal radical. Este tema foi inteligência”.
tratado explicitamente em sua obra: A religião den-
tro dos limites da simples razão, obra tardia que lhe Por isso, não é possível continuar com o atu-
custou, ademais, muitas críticas. O mal radical, como al modelo consumista, sobretudo o norte-america-
a própria expressão afirma muito claramente, encon- no ou chinês, fundados numa suposta economia da
tra-se na raiz do homem. É uma fenda intrínseca ao abundância inesgotável. É um modelo imoral que
homem, pelo fato de ser constitutivamente finito21. não pode ser universalizado e deve urgentemente
ser substituído por um outro, inspirado na solidarie-
Freud dará outra explicação, ao afirmar, a par- dade universal e numa sóbria gestão dos recursos do
tir de suas observações clínicas, que o homem, a so- planeta. No crash de Wall Street de 1929, o diagnós-
ciedade e a ética são marcados por um conflito origi- tico de Mounier e dos seus companheiros identifica-
nário e insolúvel entre Eros e Tanatos, tese central da ram acima de tudo uma crise de civilização na sua
obra: O mal-estar na civilização22. totalidade. Em setembro de 2008, assistimos à mais
grave crise após a de 29. No entanto, os diagnósticos
Podemos então afirmar que estamos diante dos especialistas em economia e finanças dos diver-
de um ‘enigma’ indecifrável e que, por exemplo, sos países do planeta tem-se limitado exclusivamen-
as figuras da serpente, do pecado original e de te a sanar os bancos e a socorrer as empresas, em
Adão na narração bíblica, as explicações de San- especial os fabricantes de automóveis.
to Agostinho, de Kant a propósito do mal radical
e de Freud sublinhando as pulsões de vida e de O gravíssimo problema ecológico e a desigual
morte, sã. distribuição e usufruição das riquezas tem sido com-
pletamente ignorados.Por isso, urge uma conversão
radical (metanóia) permanente das mentes e dos co-
rações, de todas as instituições nacionais e interna-
cionais e supranacionais. A proposta, por exemplo,
20 Jonas, H.: O princípio responsabilidade : de Hans Küng insistindo há anos sobre a necessida-
Ensaio de uma ética para a civilização tecnológi- de de uma verdadeira ética planetária24.
ca. Trad. do original alemão, Contraponto/PUC-
Rio, Rio de Janeiro 2009, pp. 47-48.
21 Kant, I.: A religião dentro dos limites da 23 Kant, I. : Critique de la raison pure,
simples razão. Abril Cultural, São Paulo 1990, Trad. do original alemão, PUF, Paris 1980, p.
pp. 271-295, Col. “Os Pensadores”. 543.
22 Freud, S.: O mal-estar na civilização, 24 Küng, H.: Projeto de uma ética mundial,
Abril Cultural, São Paulo 1978, pp. 129-194, Paulinas, São Paulo 1992. Título original, em
Col. “Os Pensadores”. alemão: Projekt Weltethos, 1990.
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