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Para Betsy Lerner —

minha amiga e minha guia


Sumário

1. Capa
2. Rosto
3. Sumário
4. COMO A MENTE FUNCIONA
5. DEVOÇÃO
6. UM SONHO NÃO É UM SONHO
7. ESCRITO NUM TREM

8. Sobre a autora
9. Créditos

Landmarks

1. Body Matter
2. Epigraph
3. Acknowledgments
4. Copyright Page
5. Table of Contents
A inspiração é a incógnita da equação, a musa que assola na hora oculta. As setas voam e não se percebe o
impacto, nem se percebe que todo um elenco de catalisadores, uns independentes dos outros, reuniu-se de modo
clandestino para formar um sistema singular, dissolvendo o indivíduo com as vibrações de uma doença incurável
— ao mesmo tempo profana e divina.
O que se há de fazer com os impulsos então gerados, com essas terminações nervosas que cintilam como um
mapa iluminado de constelações desonestas? As estrelas pulsam. A musa busca ganhar vida. Mas a mente é
também musa. Busca ser mais inteligente que seus gloriosos oponentes, reestruturar tais forças de inspiração. Um
riacho de cristal que súbito seca. Uma coisa de beleza, exânime, conspurcada. Por que o criador retorce o drama
todo? A pena se ergue, guiada pela musa estilhaçada. Sem dissonância, ela registra, não se percebe a harmonia,
sem dissonância ela continua, Abel se dissolve em não mais que um pastor esquecido.
COMO A MENTE FUNCIONA
Mesa de trabalho, Nova York.(1)
1.

De algum jeito, procurando outra coisa, dei com o trailer de um filme chamado Risttuules, traduzido como Na
ventania. É o réquiem de Martti Helde para os milhares de estonianos deportados em massa para fazendas
coletivas na Sibéria na primavera de 1941, quando os soldados de Stálin os capturaram, separaram suas famílias e
os tocaram para vagões de gado. Morte e exílio, seu destino reescrito.

O cineasta criou um poema visual através de uma dramatização inédita, com atores percorrendo um cenário de
quadros humanos imóveis. O tempo fica suspenso, mas ainda corre acelerado, espalhando imagens na forma de
palavras arrancadas desse triste desfile. Um presente terrível, eu reconheço enquanto escrevo, fazendo força para
verter as palavras. Mesmo assim, sinto que por trás delas algo mais se prepara. Sigo uma linha mental e encontro
uma floresta de coníferas, um lago e uma casinha de tábuas. Era o começo de alguma outra coisa, mas naquele
momento eu não sabia.

Uma cena de inverno. Logo na outra trilha. Um roupão azul é a cortina de uma janela pela qual ninguém mais
há de olhar. Há sangue por toda parte, privado de sua cor de sangue, um cão que ladra, estrelas que caem por
céus lívidos.

Um bezerro à beira da morte. Lasca no casco — manchas, furos. Cai a noite, obscurecendo a perna agitada da
última coisa viva.

Uma cena bem a tempo. Engrenagens, pequenas mãos suspensas no gelo. Pássaros não mais curiosos deixam
de bater asas. A dança está encerrada e o rosto do amor é somente a saia larga e os saltos lustrosos dos sapatos
do inverno.

De manhã acordo com os dioramas em preto e branco de Risttuules ainda na cabeça, o ritmo tenso da ópera
humana encarnada em estátuas recurvadas e respirantes. Tão arrebatada por seu poder expressivo que não consigo
lembrar o objetivo de minha busca original. Fico ali deitada relembrando uma panorâmica lenta da corrente
humana proscrita que percorre um vendaval incessante de pétalas brancas. Crisântemos. Sim! Ramos de
crisântemos e a desgraçada fileira da vida passando num borrão. No entanto, voltando ao mesmo trecho do filme
que eu tinha visto antes, não encontro essa cena. Será que sem querer eu criei essa projeção? Deixo de lado o
computador e lanço minha sentença ao gesso irregular do teto: saqueamos, adotamos, não sabemos. Levanto para
urinar. Imagino neve.

Tendo ainda fresca nos ouvidos a voz delicada de Erna, a narradora feminina de Risttuules, eu me visto, pego o
caderno e um exemplar de Accident Nocturne, de Patrick Modiano, e vou até a cafeteria do bairro. Operários
trabalham com britadeiras na rua, suas vibrações ensurdecedoras atravessam as paredes da cafeteria. Sem
conseguir escrever, eu leio, passeando pela rede do Accident — ruas incertas, fragmentos de endereços, rotas ora
irrelevantes e eventos que formam um círculo de nada. Lamento não escrever, mas percebo que me perder no
vibrante torpor do universo de Modiano é quase como escrever. Você penetra na pele do narrador com sua pálida
noção de paranoia e preocupação com minúcias, e o espaço em volta se altera. Inevitavelmente, bem no meio de
alguma frase, eu me vejo pegando a caneta.
Chegando ao final do Accident, ainda que não seja bem um fim, já que vapores de um futuro invadem a última
página, eu releio o começo e depois antevejo o dia que me aguarda. Vou pegar o último voo para Paris. Meu editor
francês organizou uma semana de eventos literários que incluem conversas com jornalistas sobre escrita. Meu
caderno permanece intocado. Uma escritora que não escreve preparando-se para ir falar com jornalistas sobre
escrita. Que sabichona, eu me repreendo. Tomo outro café preto, com uma tigelinha de amoras. Há tempo de sobra
e eu viajo com pouca bagagem.
Com a rua em obras, eu me vejo obrigada a esperar para atravessá-la e voltar para casa, enquanto um guindaste
gigante iça vigas metálicas de sustentação vários andares acima da cafeteria, evocando em minha mente a cena de
abertura de A doce vida, em que um helicóptero transporta uma imagem de Cristo em tamanho real sobre os
telhados urbanos de Roma.
Pego as coisas que sempre levo quando viajo e deixo tudo empilhado perto da minha pequena mala enquanto
ouço novamente a voz do trailer. A cadência de uma língua desconhecida sugere a propagação das melodias mais
tristes. Enquanto os soldados se adiantam, uma jovem mãe estende roupa e protege os olhos do sol. Seu marido
separa o joio do trigo, sua filha brinca feliz. Intrigada, procuro um pouco mais e descubro um trecho de seis
minutos de Risttuules intitulado A carta da bétula. A tomada de uma janela aberta, imagens de brancura e de
bétulas emergindo de frases sussurradas, um trem, o vento, o vazio.
O telefone toca, quebrando o encanto, meu voo cancelado. Tenho que pegar um mais cedo. Rapidamente troco
de marcha, chamo um táxi, enfio o computador na capa protetora, a câmera num saco, e meto o resto na mala. O
táxi chega rápido demais, e me dou conta de que ainda não escolhi os livros que vou levar. A ideia de embarcar
num avião sem um livro produz uma onda de pânico. O livro certo pode servir como uma espécie de docente,
dando o tom ou até alterando o rumo de uma viagem. Desesperada, percorro a sala com os olhos, como se em
busca de uma tábua de salvação num pântano profundo. Numa pequena pilha de livros por ler em cima do meu
arquivo, estão o ensaio de Francine du Plessix Gray sobre Simone Weil e Un pedigree, de Modiano, com o
aturdido rosto do autor na capa. Pego os dois, me despeço do meu gatinho abissínio e rumo para o aeroporto.
Por sorte o trânsito está leve quando entramos no Holland Tunnel. Aliviada, mergulho novamente na voz de
Erna. Me imagino escrevendo um conto guiada pela atmosfera que a ressonância de uma determinada voz humana
evoca. A voz dela. Sem uma trama em mente, apenas rastreando os tons da voz, seus timbres, e compondo frases,
como que música, e sobrepondo essas frases, camadas transparentes, às dela.
E o rosto do amor é apenas o branco do inverno cobrindo os galhos de árvores caídas buracos abaixo, céus
sem cor.
Corro pelo terminal, chego com folga a tempo de pegar o avião, mas ainda assim meio abalada. Não tenho a
menor esperança de pegar no sono assim tão cedo, sem falar que o meu quarto no hotel só vai ficar pronto horas
depois de eu chegar. Mesmo assim eu me acomodo, bebo água mineral e me deixo afundar no livro de uma vida,
uma lasca de Simone Weil. O livro escolhido às pressas iria se provar mais do que útil, e sua biografada, modelo
admirável de uma imensidão de atitudes mentais. Brilhante e privilegiada, ela percorreu os grandes salões da mais
elevada erudição, abdicando de tudo para embarcar num caminho difícil de revolução, revelação, serviço público e
sacrifício. Até ali eu não tinha dedicado tempo ou atenção a ela, mas isso certamente iria mudar. Fechando os
olhos, contemplo a ponta de uma geleira e mergulho lentamente numa fonte íntima de água quente cercada por
muralhas de um gelo impenetrável.
2.

Passo pela aduana e, sonolenta, saio do terminal em Paris-Orly. Meu amigo Alain está me esperando. Eu me
registro no hotel localizado numa ruela estreita logo ao lado da igreja de Saint-Germain-des-Prés. Enquanto
preparam meu quarto, comemos baguetes com café no Café de Flore.
Depois de me despedir, entro no pequeno parque adjacente à igreja, que tem na entrada o busto de Apollinaire
feito por Picasso. Sento no mesmo banco em que me sentei com minha irmã na primavera de 1969. Tínhamos
vinte e poucos anos, aquela idade em que tudo, inclusive a cabeça sentimental do poeta, era uma revelação. Irmãs
curiosas, com um punhado de endereços preciosos de cafeterias e hotéis. O Deux Magots dos existencialistas. O
Hôtel des Etrangers, onde Rimbaud e Verlaine presidiam o Círculo Zútico. O Hôtel de Lauzun, com suas quimeras
e seus corredores dourados, onde Baudelaire fumava haxixe e onde concebeu os poemas da abertura de As flores
do mal. Nossa imaginação cintilava por dentro, enquanto caminhávamos de um lado para outro diante desses
lugares que eram sinônimos de seus poetas. Só por estar perto de onde eles escreveram, lutaram e dormiram.
De repente esfria. Noto pedacinhos de pão, pombos infatigáveis, os beijos langorosos de um jovem casal e um
sem-teto em busca de moedas. Nossos olhos se encontram e caminho na direção dele. Seus olhos são cinzentos e
ele me faz lembrar meu pai. Uma luz prateada parece se espalhar sobre Paris. Sinto uma onda de nostalgia
induzida pelo presente perfeito. Começa a garoar. Pedaços granulados de filme rodopiam no ar. A Paris de Jean
Seberg com uma camiseta listrada de gola canoa, vendendo o Herald Tribune. A Paris de Eric Rohmer, parado sob
a chuva na Rue de la Huchette.
Mais tarde no hotel, lutando para não dormir, abro a biografia de Weil ao acaso, cabeceio um pouco, depois
escolho um trecho totalmente novo, com esse processo de alguma maneira animando o tema do livro. Simone Weil
entrando com um passo ríspido no enquadramento, vinda da terceira dimensão. Vejo a barra de sua longa capa e
vejo seu cabelo escuro cortado brutalmente curto, como o da brilhante e independente noiva de Frankenstein.
Outra imagem de Simone passa voando diante de meus olhos, uma caricatura como as dos viajantes que vão ao
Monte Análogo, criadas por René Daumal. Rosto em forma de coração, cabelo projetando-se horizontalmente,
olhos escuros e penetrantes atrás de óculos redondos de aro de metal. Os dois se conheciam e foi ele quem ensinou
sânscrito a ela. Imagino o casal de tuberculosos, cabeças que mal se tocam, examinando textos antigos, seus corpos
falimentares sequiosos de leite.
A mão da gravidade me puxa para a inconsciência. Ligando a televisão, eu passo pelos canais, parando no
finzinho de um documentário sobre uma montagem da Fedra de Racine, depois caio num sono pesado. Mais tarde
abro os olhos de repente. Na tela, uma moça no gelo. Algum tipo de campeonato de patinação artística. Uma loura
vigorosa termina sua bem-sucedida apresentação. A moça que entra depois é encantadora, mas cai feio e não
consegue se recuperar direito. Lembro de assistir a competições como essa com meu pai, sentada no chão aos pés
dele enquanto ele escovava meu cabelo embaraçado. Ele admirava as patinadoras atléticas e eu, as graciosas, que
pareciam incorporar o balé clássico.
Anunciam a última patinadora, uma russa de dezesseis anos, a mais jovem da competição. Embora eu esteja só
meio acordada, lhe concedo toda a minha atenção. Uma mocinha entra no rinque como se nada mais existisse no
mundo. Sua determinação, sua combinação de arrogância inocente, graça desajeitada e coragem é de tirar o fôlego.
Seu triunfo sobre as outras me leva às lágrimas.
No meu sono o gênio produz combinações, regenerações. O determinado rosto-coração de Simone funde-se ao
rosto da jovem patinadora russa. Cabelo escuro curtinho, olhos escuros que atravessam céus mais negros. Escalo o
flanco de um vulcão entalhado no gelo, calor extraído do poço de devoção que é o coração feminino.

Acordo cedo, vou a pé ao Café de Flore e peço um prato de presunto com ovos e café preto. Os ovos são
perfeitamente redondos, dispostos sobre um pedaço perfeitamente redondo de presunto. Fico admirada com as
manifestações do gênio num prato de ovos ou no centro de um rinque de patinação. Alain vem me encontrar e
rumamos para o número 5 da Rue Gaston-Gallimard, quartel-general da editora desde 1929. Aurélien, meu editor,
abre a porta da sala que um dia foi o escritório de Albert Camus. Na única janela, uma visão do jardim térreo.
Expostos numa estante envidraçada, livros de Simone Weil publicados depois de sua morte, sob a coordenação de
Aurélien: Carta a um religioso, O conhecimento sobrenatural e O enraizamento.
O sr. Gallimard me recebe em seu escritório. Sobre a lareira está o relógio que Saint-Exupéry deu de presente ao
avô dele. Descemos escadas gastas de mármore, passamos pelo salão azul e entramos no jardim em que Yukio
Mishima foi fotografado sentado numa cadeira branca. Ficamos vários minutos admirando em silêncio a
geométrica simplicidade do jardim.
Ele me evoca outros jardins, como um estereoscópio riscado pela passagem do tempo. O secular Orto Botanico
di Pisa, com sua esquecida estátua de Humboldt e as imensas palmeiras chilenas. O Jardim dos Simples, com seus
remédios loucos, onde a consciência se alterna entre expansão e repouso. Penso em Joseph Knecht, sozinho no
modesto jardim dos eruditos, contemplando seu futuro como Magister Ludi. Penso no jardim da casa de veraneio
de Schiller em Jena, onde dizem que Goethe plantou um pé de ginkgo.
— Eu conheci Genet — o sr. Gallimard diz com delicadeza, desviando os olhos para não parecer imodesto.
Diversas espirais entalhadas no muro alto à direita me atraem. Parecem a espiral que Brancusi criou para
representar James Joyce para a pequena edição que a Black Sun fez de Tales Told of Shem and Shaun. Vou me
deixando ficar, satisfeita por me ver entre os fantasmas de escritores que passaram por este mesmo perímetro.
Camus encostado na parede fumando seus cigarros. Nabokov refletindo sobre a curva do náutilo.

Jardim Gallimard.
Naquela noite eu sonhei que sabia nadar. O mar estava frio, mas eu vestia um casaco. Acordei tremendo, pois
tinha deixado a janela aberta para ficar olhando a igreja antes de ir para a cama. Da minha janela eu via a igreja e,
dessa forma, um longo pedaço da minha vida. A primeira vez que vi essa igreja foi com minha irmã no fim da
primavera de 1969. Entramos ali juntas, meio tímidas, e acendemos velas para nossa família.
Levanto para fechar a janela. Está chovendo, uma chuva silenciosa e constante. Subitamente começo a chorar.
— Por que você está chorando? — pergunta uma voz.
— Não sei — eu respondo. — Talvez porque esteja feliz.

Paris é uma cidade que você consegue ler sem um mapa. Caminhando pela estreita Rue du Dragon, antiga rua
Sépulcre, que um dia ostentou um imponente dragão de pedra. No número 30, uma placa em memória de Victor
Hugo. Rue de l’Abbaye. Rue Christine. No número 7, Rue des Grands Augustins, onde Picasso pintou Guernica.
Essas ruas são um poema à espera de romper a casca de ovo para nascer — de repente é Páscoa; ovos por toda
parte.
Caminho a esmo e me vejo no Quartier Latin, depois me dirijo ao Boulevard Saint-Michel, em busca do número
37, onde Simone cresceu e a família Weil morou por décadas. Num relance me lembro de Patrick Modiano
procurando endereço após endereço, palmilhando a cidade toda em busca de certa escadaria. Penso em Albert
Camus, prestes a receber o prêmio Nobel, nessa mesma peregrinação até a casa dos Weil, mas por motivos mais
nobres — não a mera curiosidade, mas a contemplação.
Uma rotina insinuante. De pé às sete. Café de Flore às oito. Ler até as dez. Caminhada para a Gallimard.
Jornalistas. Autógrafos. Almoço com o pessoal da Gallimard — Aurélien, Cristelle, confit de Canard com feijão,
cardápio de bistrô. Chá no salão azul, o jardim logo ali, entrevistas. Uma jornalista me entrega um livro sobre
Simone Weil, traduzido para o inglês. Você sabe quem é ela?, pergunta. Depois um jornalista chamado Bruno me
presenteia com uma imagem de Gérard de Nerval, que coloco no meu criado-mudo. É o mesmo retrato
melancólico que grudei com durex na parede ao lado da minha escrivaninha nos meus vinte anos de idade.
Alain e eu nos reunimos à noite e fazemos uma refeição leve enquanto ele me coloca a par da nossa jornada da
manhã seguinte para o sul da França. Há uma apresentação do livro marcada em Sète, um antigo balneário no
Mediterrâneo, cidade natal do poeta Paul Valéry. Feliz com a perspectiva de visitar um lugar novo e respirar o ar
marinho, volto para o quarto, faço uma mala pequena e depois tento me convencer a dormir, recitando meu
mantra: Simone e Patrick. Patrick e Simone. Ele me imbui de uma calma angustiada. Ela me enche de adrenalina,
perigosamente familiar.
Talheres. Café de Flore.

Acordo mais cedo que o normal, chego ao Flore bem na hora em que a cafeteria está abrindo, peço uma baguete
com geleia de figo e café preto. O pão ainda está quente. A caminho do trem verifico uma vez mais o conteúdo da
minha bolsa. Caderno, Simone, roupa de baixo, meias, escova de dentes, uma camisa dobrada, câmera, minha
caneta e óculos escuros. Tudo de que preciso. Tenho esperança de escrever, mas acabo só olhando sonolenta pela
janela do trem, observando a paisagem que muda enquanto passamos dos muros grafitados das periferias de Paris
para espaços mais abertos, uma terra mais arenosa, pinheiros mirrados e, finalmente, o magnetismo do mar.
Em Sète comemos frutos do mar frescos numa cafeteria local com vista para o porto. Alain e eu subimos um
morro para ir ao cemitério em busca de Paul Valéry. Encontramos o poeta e lhe prestamos homenagem, mas o
túmulo de uma menina chamada Fanny, que adorava cavalos, também nos atrai. Amigos e familiares colocaram
cavalos na lápide dela, formando um pequeno estábulo que não foi incomodado nem pelo clima nem por vândalos.
Seduzida por uma lápide ainda mais antiga, noto a palavra DEVOUEMENT gravada na extremidade da pedra, na
diagonal. Pergunto a Alain o que ela significa.
— Devoção — ele responde, sorrindo.
Na manhã seguinte, antes de me reunir a Alain e Aurélien na estação de trem, faço um último passeio,
descobrindo um parque distante, dominado por uma imponente estátua de Netuno. Subo degraus irregulares de
pedra numa ladeira que dá para o que parece ser um jardim botânico, com diversas palmeiras baixas e grande
variedade de árvores. Enquanto circulo por ali, uma vertigem inesperada, apesar de bem conhecida, toma conta de
mim, uma intensificação do abstrato, uma refração da atmosfera mental.
Céu de um verde-claro, a atmosfera liberando um fluxo ininterrupto de imagens. Eu me refugio num banco
protegido por sombras. Respirando mais devagar, desenterro caneta e caderno da bolsa e começo a rabiscar, meio
involuntariamente. Uma libélula branca arrancada de uma caixa de música. Um ovo Fabergé que contém uma
guilhotina em miniatura. Um par de patins rodopiando no espaço. Escrevo sobre árvores, uma repetição de
piruetas, a atração magnética do amor. Sem saber ao certo quanto tempo transcorreu, paro de escrever, saio rápido,
passando pelas costas encurvadas de Netuno, descendo os degraus de pedra, correndo para chegar à estação que
não fica longe. Alain me olha de um jeito esquisito. Aurélien me pergunta se tirei fotografias. Só uma, eu digo, a
foto de uma palavra.
No trem continuo a escrever alucinadamente, como se tivesse ressuscitado de um mar de lembranças. Alain
ergue os olhos do livro e fita a paisagem pela janela. O tempo se contrai. De repente estamos chegando a Paris.
Aurélien está dormindo. E me ocorre que os jovens quando dormem parecem lindos, e os velhos, como eu,
parecem mortos.
Igreja de Saint-Germain-des-Prés.
(2)

3.

Uma alegria particular vinda de um tempo bom, uma leveza amistosa a que sucumbo com facilidade. Entro na
igreja de Saint-Germain, onde meninos estão cantando. Comunhão, talvez. Há um prazer solene no ar e sinto um
desejo conhecido de receber o corpo de Cristo, mas não me junto a eles. Em vez disso acendo uma vela para as
pessoas que amo e para os pais que perderam filhos no Bataclan. As velas bruxuleiam diante de santo Antônio
segurando uma criança, ambos cobertos por décadas de um delicado grafite que os faz parecer de carne e osso,
animados pelo rogo que os vivos endereçam a eles.
Faço um último passeio subindo a Rue de Seine, ou descendo? Não sei, eu simplesmente caminho. Aquela
estranha familiaridade fica me puxando. Uma sensação de coisas que parecem vir de longe. Sim. Já estive nesta
mesma trilha com minha irmã. Paro e olho para a ruela estreita da Rue Visconti. Eu me empolguei tanto quando vi
essa rua pela primeira vez que a percorri correndo e pulando de felicidade. Minha irmã tirou uma foto, e nela eu
me vejo congelada para sempre num ar pleno de alegria. Parece um pequeno milagre eu me reconectar com toda
aquela adrenalina, com toda aquela disposição.
Voltaire. Praça Honoré-Champion.

No alto da praça Honoré-Champion, outro lampejo de reconhecimento. Mais para o fundo de um jardinete bem
simplório, reconheço uma estátua de Voltaire, a primeira coisa que fotografei em Paris. Parece incrível, mas o
jardinzinho continua tão intocado e tão desinteressante quanto era meio século atrás, mas Voltaire, muito mudado,
parece estar rindo de mim. Os detalhes desse rosto que um dia foi benévolo, gastos pelo tempo, parecem
tragicamente cômicos, macabros, enquanto ele, decompondo-se lentamente, reina, estoico, em seu domínio
imutável.
Lembro de ter visto o gorro de Voltaire num mostruário de vidro de um museu qualquer. Um gorrinho de renda
cor da pele e muito humilde. Desejei intensamente aquele gorro, com um estranho fascínio que não me abandonou,
junto com a ideia supersticiosa de que quem usasse aquela peça poderia ter acesso a vestígios dos sonhos de
Voltaire. Tudo em francês, claro, tudo da época dele, e naquele momento me ocorreu que as pessoas que sonharam
através dos tempos sonharam com gente de sua época. Os gregos antigos sonhavam com seus deuses. Emily
Brontë, com as charnecas. E Cristo? Talvez ele não sonhasse e mesmo assim soubesse tudo que podia ser sonhado,
cada combinação, até o fim dos tempos.

*
Cumpridos meus deveres com a Gallimard, embarquei no Eurostar para Londres. No trem reescrevo alguns
trechos do conto que tinha começado no tranquilo parque de Sète e continuado no veloz trem rumo a Paris.
Inicialmente me perguntei o que teria me levado a escrever uma história tão escura, tão infeliz. Não desejava
dissecar com bisturi, mas ao reler me impressionou a quantidade de reflexões e de ocorrências passageiras que
inspiraram ou permearam o texto. Até a referência mais insignificante eu via nitidamente, como que sublinhada.
Por exemplo, um prato perfeito de ovos fritos estava ecoado num lago redondo. Eu tinha usado certos aspectos da
aparência de Simone para Eugenia, minha jovem heroína: sua flexibilidade intelectual, seu jeito estranho de andar
e sua arrogância inocente. Outros aspectos eu inverti. Simone estremecia se alguém tocava nela, enquanto Eugenia
tinha uma imensa vontade de ser tocada.
Na estação St. Pancras International peguei mais um trem, para Ashford, o último trecho da minha viagem, para
encontrar o túmulo de Simone Weil. Passamos por fileiras de casas, uma paisagem sem vida. Percebi que a data da
minha passagem era 15 de junho, aniversário de meu falecido irmão Todd. Sua única filha se chama Simone.
Imediatamente me iluminei. Apenas coisas boas podiam acontecer hoje.
Chegando, encontrei uma cafeteria e depois procurei um táxi. O céu estava fechando e havia um frio intenso no
ar. Tirei a câmera e o meu gorrinho de lã da mala. O trajeto de táxi levou cerca de quinze minutos e desci na
entrada do Bybrook Cemetery. Eu tinha expectativa de que houvesse uma casinha de pedra na entrada ou alguém
distribuindo mapas, mas não havia ninguém ali. Só um zelador cortando mato sob o véu de uma chuva leve mas
constante.
O cemitério era mais amplo do que eu esperava, e eu não fazia ideia de onde Simone poderia estar. Subi e desci
trilhas um tanto intimidada. A luz estava fraca. Ainda era meio-dia, mas lembrava mais o pôr do sol. Tirei algumas
fotos. Uma cruz em alto relevo. Um túmulo incrustado de hera. Quase uma hora se passou. Continuava chovendo.
Quando uma parte de mim sucumbia à ideia de que se tratava de uma tarefa impossível, de repente lembrei que ela
estava enterrada no setor católico. Encontrei uma área com muitas imagens de Maria e cheia de cruzes, mas nada
de Simone. Esquadrinhei uma área repleta de estátuas. O céu ficava mais escuro. Sentei num banco um pouco
desmoralizada. Será que Simone aprovaria aquela peregrinação? Achei que não. Mas eu tinha trazido lavanda de
Sète embrulhada num lenço velho, para deixar com ela, pedacinhos da França, e lembrando o quanto ela amava
sua pátria, o quanto tinha querido voltar, eu prossegui.
Ergui os olhos para as nuvens ameaçadoras.
Pedi a meu irmão.
— Todd, você pode me ajudar? Eu estou sozinha no seu aniversário, procurando uma pessoa chamada Simone.
Senti a mão dele me guiar. À minha direita uma área coberta de árvores me atraiu. De repente estaquei. Podia
sentir o cheiro da terra. Havia cotovias e andorinhas, um pequeno feixe de luz que aparecia e desaparecia. Virei a
cabeça sem nenhuma pausa exultante, e lá estava ela, em toda a sua modesta graça. Abri minha câmera sanfonada,
ajustei a lente e tirei algumas fotos. Quando me ajoelhava para colocar o pequeno embrulho sob seu nome,
palavras se formaram, caindo umas sobre as outras como numa cantiga infantil. Eu me senti desamparadamente
em paz. A chuva se dissipou. Meu sapato estava enlameado. Havia uma ausência de luz, mas não de amor.
4.

O destino tem sua mão, mas ele não é a mão. Eu estava em busca de uma coisa e encontrei outra coisa mais, o
trailer de um filme. Movidas por uma voz sonora mas estrangeira, jorraram palavras. Entrei numa jornada atraída
por um jukebox de luzes que evocavam uma sinfonia de pontos de referência. Penetrei num mundo que nem era
meu, errando pelas ruas abstratas de Patrick Modiano. Li um livro, conheci o ativismo místico de Simone Weil.
Assisti a uma patinadora, absolutamente seduzida.
Comecei a escrever o texto intitulado “Devoção” no trem de Paris a Sète. De início pensei em compor um
debate empolgado entre vozes disparatadas — um homem sofisticado e racional e uma garota precoce e intuitiva.
Estava interessada em ver para onde um levaria o outro, formando uma aliança num reino de opulência e de
desesperança. Também fui escrevendo um diário de viagem pouco disciplinado: pedaços de poemas, notas e
observações, sem nenhum motivo mais claro que não o de escrever. Revendo esses fragmentos, me assola a ideia
de que, se “Devoção” fosse um crime, eu tinha sem querer produzido as provas ao anotar meu percurso.
Quase sempre a alquimia que dá origem a um poema ou a uma obra de ficção fica escondida na própria obra, se
não incrustada nas serpenteantes cordilheiras da mente. Mas nesse caso eu podia rastrear uma pletora de
provocações, uma floresta de bétulas, o corte de cabelo de Simone Weil, cadarços brancos de uma bota, um
saquinho de parafusos, a arma existencial de Camus.
Posso examinar como, mas não por quê, escrevi o que escrevi, ou por que desviei de modo tão obstinado do meu
caminho inicial. Será que alguém consegue, depois de perseguir e de capturar um criminoso, finalmente
compreender a mente infratora? Será que de fato conseguimos separar o como do porquê? Alguns poucos
momentos de autointerrogação me forçaram a reconhecer o estranho remorso que senti depois de ter escrito este
texto. Fiquei pensando, como era eu quem tinha dado à luz meus personagens, se estava de luto por eles. Também
considerei ser esse um traço da idade, pois quando jovem eu escrevia com total entrega a respeito de qualquer
tema, sem um fiapo de preocupação moral. Deixo que “Devoção” se defenda como está. Foi você que escreveu, eu
me disse, e você não pode lavar as mãos como Pilatos. Elaborei essas filosóficas, ou quiçá psicológicas, questões.
Talvez “Devoção” seja meramente o que é, livre das amarras de uma visão de mundo. Ou, talvez, uma metáfora
sacada do ar que não deixa marcas. É minha conclusão final, totalmente desprovida de sentido.

Já em Nova York, tive dificuldade para me reacomodar quimicamente. Mais do que isso, sofri crises de
nostalgia, uma saudade de estar onde estivera. Tomar café da manhã no Café de Flore, as tardes no jardim
Gallimard, surtos de produtividade num trem em movimento. Eu estava no horário de Paris, caindo no sono no fim
da tarde, acordando de repente no meio da longa noite calma. Numa dessas noites assisti a O jardim secreto. Um
menino aleijado que volta a andar pela vontade férrea de uma menina cheia de vida. Houve um tempo em que
imaginei que escreveria histórias assim. Como Sara Crewe ou O principezinho manco. Crianças órfãs transpondo
uma escuridão ofuscada pela luminosidade. Não o tipo de história que me vi escrevendo quase sem fôlego num
trem para Paris, sem remorso.
Silêncio. Carros passando. O estrondo do metrô. Pássaros convocando a aurora. Quero ir para casa, resmunguei.
Mas eu já estava lá.
Bybrook Cemetery, Ashford, Kent.
Ashford

Na terra funda estão teus ossos


pequenas mãos pequenos pés
num repouso inquieto esse laço desata
pedindo pão pedindo sopa de batatas
um choque luminoso acerta a válvula
o leite do cordeiro jorrou do flanco
e névoa terrível subiu deste chão
você era toda uma branca de neve
e eu era o sétimo anão
disposto a te servir
havia hóstias que bastassem
para todos os seres vivos
que oferecessem sua língua
não havia mais gritos
não havia coração em jejum
Somente as relíquias da tísica
envoltas na seda da existência
DEVOÇÃO
1.

Ele a viu pela primeira vez na rua. Era pequena, pele de porcelana e cabelo grosso e escuro, franjinha cortada de
maneira severa. A capa que usava parecia fina para o inverno e a barra de seu uniforme, irregular. Quando ela
roçou nele ao passar, ele sentiu a ferroada da inteligência. Uma Simone Weil mais miudinha, lembrava de ter
pensado.
Ele a viu de novo dias depois, afastando-se dos outros alunos, que corriam para não perder o começo da aula.
Ele parou e se virou, imaginando os motivos que ela teria para seguir na direção oposta. Talvez estivesse se
sentindo mal, e saiu da fila para voltar para casa, mas seu ar determinado sugeria coisa diferente. Era quase certo
que seria um encontro proibido, um rapaz ansioso. Ela subiu num bonde. Ele não soube por que foi atrás dela.
Absorta em seu trajeto, ela não se deu conta da presença dele quando chegou a seu destino. Ele se manteve
vários passos atrás enquanto ela se aproximava da floresta que os cercava. Sem saber, ela o conduziu por uma
trilha de pedras até um bosque cerrado que obscurecia um lago perfeitamente redondo e completamente congelado.
Entre incisões de luz que cortavam o denso aglomerado de pinheiros, ele observava enquanto ela ia tirando a neve
de uma pedra baixa e achatada e depois sentou, olhando para o lago cintilante. Nuvens se moviam lá no alto,
encobrindo e depois expondo o sol, e de pronto a cena se fez surrealmente solarizada. Ela se virou de repente na
direção dele, mas não o viu. Tirou um par de patins de gelo surrados da mochila, encheu o bico da bota com papel
amassado e limpou direitinho as lâminas.
A superfície do lago era irregular, os patins dela não serviam bem. Ter de se adaptar a esses empecilhos pode ter
contribuído para seu estilo arriscado. Depois de completar vários círculos, ela foi ganhando velocidade e,
controlando uma posição aparentemente instável, lançou-se sem esforço no espaço fluido. Seus saltos atingiam
uma altura impressionante; pousava de modo descompensado, mas preciso. Ele a observou executar uma
sequência de piruetas, abaixando o tronco e girando como um pião enlouquecido. Jamais vira capacidades
artísticas e atléticas fundidas de modo tão pungente.
O ar estava úmido e frio. O céu escureceu, projetando uma luz azul sobre o lago. Ela abriu bem os olhos,
percebendo num borrão os pinheiros distantes, o céu ferido. Patinava para aquelas árvores, para aquele sol. Ele
devia ter se afastado, mas se conhecia, identificando aquele tremor interno que lhe vinha ao se ver face a face com
uma preciosidade: como um vaso envolto em séculos de trapos que ia desenrolar, certamente possuir e levar aos
lábios. Ele se foi antes que a neve caísse, percebendo pelo canto do olho o braço dela se erguer no que ela girava,
cabeça abaixada.
O vento aumentou e, relutante, ela deixou o lago. Desatando os cadarços, refletia com satisfação sobre os
eventos do dia. Acordara cedo, rezara na capela dos alunos e, como já tinha terminado suas provas do exame
nacional, pegou a mochila no armário e saiu sem hesitação nem remorso. Embora fosse uma aluna-modelo,
precoce e adiantada, era completamente indiferente. Tinha dominado o latim aos doze anos, resolvia equações
complexas com facilidade e era mais do que capaz de esmiuçar e reanalisar os conceitos mais ambíguos. Sua
mente era um músculo de desassossego. Não pretendia terminar os estudos nem agora nem em qualquer outro
momento; tinha quase dezesseis anos e já havia desistido de tudo aquilo. Seu único desejo era encantar, tudo mais
desaparecia quando ela entrava no gelo e através das lâminas sentia aquela superfície chegar a suas panturrilhas.

Uma manhã enevoada que logo se abriria, ideal para patinar. Ela fez café, esquentou uma fatia de pão na
frigideira e chamou sua tia Irina, esquecendo que agora ela não tinha mais ninguém. A caminho do lago, percebeu
que apesar do frio havia amoras nos arbustos, mas não as colheu. Laivos de névoa pareciam se erguer do chão. A
luz estava prateada e o lago ganhava uma aparência lustrosa, como se tivesse recebido o acabamento de mãos
munificentes. Ela fez o sinal da cruz e pisou no gelo, satisfeita com sua solidão. Mas não estava só.
Uma curiosidade intemperada e a certeza de que a encontraria o levaram a voltar. Sem ser visto, a observava
executar combinações únicas e intricadas, perigosas e poeticamente esporádicas. O êxtase dela o excitava; Deus
concedera alento a uma obra de arte. Ela arqueava o corpo, girando em espirais ascendentes e descendentes,
sacudindo um pouco de poeira cintilante da estrela em que inegavelmente se transformava. Ele partiu logo, mas
não a tempo.
Ela não soube ao certo o exato momento em que teve consciência da presença dele. De início mal passou de
uma sensação, depois, de modo ardiloso, ela um dia distinguiu seu contorno, as cores de seu casaco e de sua
echarpe, não totalmente camuflados. Sentindo que não havia ali más intenções, continuou a patinar, energizada
pela presença dele. Ninguém, nem mesmo sua tia, vira sua patinação depois de seus onze anos de idade. À medida
que os dias iam passando reconditamente interligados, eles assumiam seus papéis, cada um apoiado pelo outro.

Depois de se libertar da estrutura forçada da escola, e já sem Irina, seus dias corriam um atrás do outro. Ela tinha
pouca noção do tempo e vivia de acordo com a chegada e a diminuição da luz. Dormiu mais do que o normal e a
aurora já vinha se aproximando. Apressada, percorreu seus rituais matutinos, pegou os patins e seguiu para o
bosque. Ao se aproximar do lago, percebeu a ponta de uma grande caixa branca deixada ao lado das raízes
expostas de um sicômoro. Soube que devia ser para ela, que Ele havia posto aquilo ali. Largando os patins, retirou
umas pedras pesadas que tinham sido colocadas sobre a tampa e abriu lentamente a caixa. Sob camadas de papel
claro estava um casaco bordô, uma peça de roupa cara, apesar de algo antiquada, com um corte engenhoso e
forrada com uma pele sedosa. O casaco lhe servia à perfeição, já que a saia estilo princesa era removível, para ela
poder treinar sem impedimentos. Com mãos trêmulas, examinou cada detalhe, espantada com os pespontos
elaborados, com o forro de pele levíssima e com sua estranha cor, que parecia se alterar com as mudanças de luz.
Ela vestiu o casaco, surpresa porque, malgrado a impressão de leveza, ele propiciava o calor de um milagre.
Tímida, espiou o local em que ele costumava ficar, para demonstrar seu prazer, mas não havia sinal dele.
Rodopiando vertiginosamente, ela viveu o luxo melancólico da alegria solitária.
O presente inesperado sugeria pequenas esperanças, uma vaga mas promissora conexão humana. Ela sentia
prazer, mas também medo por causa disso, pois essa sensação por um instante lhe pareceu toldar sua ânsia por
patinar. Vivia apenas para os patins, era o que se dizia; não havia lugar para mais nada. Nem amor, escola, nem
raspar as paredes da memória. Lidando com um ramalhete de confusão, o laço dos patins se desfez em suas mãos.
Rápida ela o reatou, depois removeu a saia de seu casaco novo e pisou no gelo.
— Eu sou Eugenia — ela disse para ninguém.
2.

Uma chuva fria raiava as janelas do chalé e depois se congelava em estranhos padrões. Nada de patinação
naquele dia. Eugenia sentou-se à mesa da cozinha e abriu seu diário. As primeiras páginas continham variações do
mesmo conjunto de versos, uma espécie de poema, suas Flores siberianas, amarradas num buquê frouxo, escritas
na língua estoniana da mãe e do pai, uma língua que tinha aprendido sozinha. Ela então foi até as últimas páginas,
usadas basicamente como caderno de exercícios para aprender inglês. Pensamentos sobre a patinação, sobre Irina,
sua tia e ex-guardiã, e sobre os pais que jamais conheceu. Pretendia escrever mais, porém as palavras não vinham,
então foi lendo e corrigindo o que já tinha escrito.

Eu nasci na Estônia. Meu pai era professor universitário. Meus pais tinham uma bela casa com um pouco de
terra e um lindo jardim do qual minha mãe cuidava com grande devoção. A irmã mais nova de minha mãe, Irina,
morava em nossa casa. Ela ia sair do país com um cavalheiro chamado Martin Burkhart. Ele tinha duas vezes a
idade de Irina e era muito rico.
Meu pai sentia um perigo iminente. Minha mãe não, ela apenas via o que havia de bom nas pessoas. Meu pai
pediu que Martin me levasse com eles. Irina disse que minha mãe me abraçou e chorou por três dias e três noites.
Me consolava a ideia de me ver coberta pelas lágrimas de minha mãe. Naquela primavera meus pais foram
separados e deportados de seu vilarejo na Estônia. Minha mãe foi enviada a um campo de trabalho na Sibéria,
mas nada se soube do destino de meu pai. Não tenho lembrança dessas coisas. Sei apenas o que Irina me contou.
Não sei os nomes de meus pais ou de nosso vilarejo, Martin acreditava que isso seria perigoso. Todos tinham
medo naquele tempo, mesmo depois do fim da guerra, mas eu era só uma criança sem medo de nada.
Irina era linda, como uma estrela de cinema, como Gene Tierney, que eu vi nas revistas dela de Hollywood. As
duas tinham o mesmo lábio superior que se projetava e mexiam o cabelo do mesmo jeito. Martin cuidou da nossa
documentação, das rações e me deu seu sobrenome. Ele cuidou de tudo. Era encantado pela beleza de Irina, como
alguém olhando um objeto no museu por trás de uma parede de vidro. Ela podia ser um tanto altiva, mas parecia
que isso o divertia, e ele lhe comprava muitos presentes.
Martin se interessou muito por mim enquanto eu crescia. Ele me comprou uma boneca e vestidos bonitos. Tive
aulas de balé e um tutor que lhe assegurou que eu era excelente em termos acadêmicos. No meu quinto
aniversário ele nos levou a um espetáculo no gelo. Lembro disso acima de tudo.
Depois que vi as patinadoras chorei três dias e três noites. Chorei como chorou minha mãe. Talvez eu tenha
reconhecido meu destino, mas fosse jovem demais para compreender plenamente o que aquilo significava. Incapaz
de resistir às lágrimas, Martin logo me comprou patins e um manguito branco para eu pôr as mãos, com um
chapéu que combinava. Quando pisei no gelo pela primeira vez, eu titubeei, não por medo, mas empolgação, pois
algo maravilhoso aconteceu. Tudo de que eu precisava me foi revelado numa fração de segundo, como saber
subitamente todas as respostas de uma prova difícil ou o caminho exato para um destino quase impossível.
Vi tudo isso diante de mim, num instante que instantaneamente sumiu, mas deixou sua marca. Intuí que quando
eu estivesse pronta, eu já teria a chave na mão. Eu me saí tão bem que logo as aulas de patinação se somaram às
de balé, e não muito tempo depois disso o balé foi sendo abandonado. Eu já tinha tirado dele o que precisava. Eu
simplesmente iria criar uma síntese de balé e patinação. Depois disso, foi a mesma coisa com tudo. Martin me
ensinou a jogar xadrez. Eu era uma oponente digna, mas não me esforçava para vencer. Estava mais interessada
nos movimentos das peças e em como podia incorporá-los à minha coreografia. Jamais falei sobre isso, pois tinha
medo que ele insistisse que eu passasse menos tempo pensando na patinação. Martin dizia que eu tinha talento
para a ciência, mas esse talento não me dava instrumentos para expressar o inexprimível. Nós falávamos muitas
línguas juntas, mesmo as mortas. No entanto, de todas as línguas que conheci, a patinação é a que conheço
melhor. Uma língua sem palavras, onde a mente deve reconhecer a superioridade do instinto.
E então tudo mudou. Martin morreu subitamente depois de um ataque cardíaco. Não nos permitiram ir ao
enterro. Seu advogado enviou um cheque para Irina, junto com a chave da casa que ficava num pequeno terreno à
margem da floresta. Tivemos que abandonar o apartamento que ele tinha conseguido para nós. Com o dinheiro
que deixou para ela, vivemos confortavelmente, mas nada voltou a ser tão bom quanto naquele tempo. Só quando
descobri o lago secreto é que entendi por que ele havia escolhido esta casa. Eu tinha quase onze anos. Ele deve
ter imaginado que eu encontraria o lago. Mas nada ali deixava Irina feliz, não até conhecer Frank. Antes disso
ela vivia seus dias como um fantasma.
Irina se foi já há quase dois meses. Sei que ela ficaria brava por eu ter abandonado a escola. Mas ninguém lá
vai se importar. Meus pensamentos conflitantes e minhas perguntas sempre incomodaram os professores, e acho
que não há mais nada que eles possam me ensinar. Entendo por que Irina partiu; nunca houve muito afeto entre
nós. Eu era uma responsabilidade que ela foi obrigada a aceitar. No entanto me inquieta meu comportamento
quando nos despedimos. Meu coração estava um tanto duro. Não abri a boca. Talvez por estar com medo, pois ela
é minha única ligação com minha família.

Eugenia parou de ler um momento e acrescentou as palavras — Ela é minha família. Largando o lápis, percebeu
que lamentava de verdade não ter ajudado Irina a fazer de sua partida um momento mais fácil. Talvez ter recebido
o presente do estranho tenha desarmado sua resistência, a inesperada generosidade dele expondo seu jovem
coração indevidamente enrijecido. Ela espiou pela janela e percebeu que a chuva tinha se tornado uma neve leve.
Fechando o diário, vestiu o casaco e caminhou pela floresta em direção ao lago. Patinou até o sol se recolher.
Depois ficou sentada na pedra plana, sem pressa no ato de desatar a bota dos patins e examinar as lâminas. Não
tinha medo de voltar para casa no escuro; palmilhara mil vezes a mesma trilha e conhecia cada pedra do caminho.
A lua subiu no céu, iluminando o lago. Era quase grande demais para um lago secreto, e surpreendentemente
fundo, sua salvação secreta da atmosfera opressiva do chalezinho solitário, que sempre parecera a Irina uma prisão.
Até ela conhecer Frank, tão bonito quanto ela, o homem com o qual finalmente ela encontrou a felicidade, o
homem que a levou dali.
No dia em que Irina partiu ela não estava usando maquiagem, e chorava. Ocorreu a Eugenia o quanto ela parecia
jovem e o quanto parecia uma atriz interpretando uma cena ensaiada muitas vezes.
— Eu tenho que ir. Frank está me esperando. Ele me deu um pouco de dinheiro, para você, está na cômoda.
Logo você vai fazer dezesseis anos. Você vai ficar bem, como eu também fiquei.
Eugenia permaneceu imóvel e calada. Queria estender a mão, agradecer por todos os sacrifícios dela, mas não
conseguia encontrar as palavras certas. Só um redemoinho de perguntas que seguiriam para sempre sem resposta.
— Não me odeie, eu fiz o que podia. Já tenho trinta e dois anos; é a minha chance de conseguir alguma coisa
para mim.
Quando estendeu a mão para abrir a porta, ela parou e olhou desesperada para Eugenia.
— Eu nasci linda — ela despejou —, por que teria que viver uma vida feia?
E então ela se foi. Como a mãe e o pai, como Martin, como a roupa no varal.
As estrelas apareceram como que sacudidas de uma rede de pesca. Eugenia ficou sentada sob elas, ainda
refletindo. Cada estrela cumpre seu papel; cada uma tem seu lugar. Tudo que eu sou, ela pensava, me foi dado pela
natureza.
3.

Ele era um homem solitário, trinta e tantos anos, incomumente controlado, robusto e viril, mas, de modo
surpreendente, sensível, tendo já lidado com todo o espectro da academia, do risco, da arte e do excesso. Vendia
artefatos, manuscritos raros e armas, ele não tinha dificuldade para determinar a idade e a origem de um marfim
obscuro apenas pelo tato, por como absorvia ou refletia a luz. Os valiosos ele entregava a museus; os preciosos,
guardava para si próprio. Tinha viajado muito, mas não por lazer. Seus baús continham grande quantidade de
objetos que, quando vendidos, aumentariam consideravelmente sua fortuna. Estava bem de vida, mas o entusiasmo
pelo sucesso tinha se esvaziado; andava atipicamente inquieto e irritadiço.
Ela entrou patinando nas horas de seus dias. Ele a imaginava egocentricamente girando no palácio de gelo dela.
Antevia a possibilidade de vê-la passando entre as pessoas em lugares distantes, seu espesso cabelo escuro, sem
gorro nem echarpe, um surrado par de patins de gelo jogado sobre o ombro. A pequena feiticeira, ele pensava, sem
no entanto deixar de se censurar por atribuir tanto poder a uma aluninha desenxabida.
Sonhou que estava sentado a uma mesa observando a amplidão de uma propriedade colonial desconhecida. O
fantasma dela, frágil como a torre de uma igreja recriada com açúcar derretido, materializou-se nos campos verdes.
Rodava lento num vaporoso vestido vermelho, que acentuava a exiguidade de seu porte. Ele a observava com
prazer enquanto seus giros se aceleravam, seus braços flexíveis dobrando-se com facilidade ao vento leve.
— Ela jamais será sua de verdade — sussurrou a mulher que o servia. Ele olhou firme para ela.
— Você disse alguma coisa? — perguntou, algo contrafeito.
— Não, monsieur — ela disse, sem nenhum vestígio de emoção.
Ele acordou sentindo-se inexplicavelmente cerceado, uma vaga sensação de raiva. Vestiu um robe e foi se sentar
na sala, acendendo um charuto e se perdendo nas espirais azuis da fumaça.

Vários dias se passaram sem que ele aparecesse. Na verdade ela tinha saudade de sua presença, que
inexplicavelmente parecia ter sido uma inspiração. Uma vez mais patinava apenas para si própria. Ainda estava
muito frio, mas com seu casaco, e felizmente sem vento, conseguia passar bastante tempo patinando. O lago era
seu lar, o ato de patinar, seu amor. Ela se entregava completamente, gerando seu próprio calor.
Todo ano lhe trazia o temor da chegada da primavera, pois logo o gelo ficaria estriado sob seus pés e a superfície
do lago racharia: como um espelho de mão derrubado num piso de mármore. Só mais um pouquinho, ela
implorava à natureza, só uma semana, uns dias, umas horas a mais. Ela se ajoelhou no gelo. Perigoso? Ainda não,
mas logo.
Ela não o via, mas sentia, percebia que ele se aproximava, até que um dia viu seu casaco. Ele continuou à vista,
mas manteve distância, satisfeito com a comunhão silenciosa entre os dois. Ela não deu mostras de perceber seu
retorno, mas o aceitou sem reprovações. Cruzando os braços na frente do coração, ela se lançou, atingindo uma
altura inédita. Com a coragem que a presença dele lhe dava, iniciou a terceira pirueta, estendendo um braço acima
da cabeça, as pontas dos dedos roçando a amplidão do céu. Exclamou sem perceber. Quem dera eu morresse neste
instante. Pura tolice, uma oração adolescente, um momento preciosamente dominado.
Ele se recolheu, dilacerado.

Ao nascer do sol ela bebeu café frio, com uma tigelinha de amoras e um pouco do pão que fizera na noite
anterior. O sol já estava alto, um incômodo para ela, que torcia para que o inverno durasse um pouco mais.
Chegando ao lago, viu que ele já estava lá, à espera. Ela largou os patins no chão e se dirigiu a ele sem receio,
acessando uma arrogância que lhe era natural. Ele a cumprimentou cordialmente em suíço-alemão, mas,
percebendo seu sotaque, Eugenia respondeu em russo. Ele ficou surpreso, mas satisfeito.
— Você é russa? — perguntou.
— Eu nasci na Estônia.
— Você está bem longe.
— Eu vim para cá criancinha. Minha tia me trouxe durante a guerra. O lago é minha casa.
— Quantas línguas você fala?
— Várias — ela respondeu, convencida. — Não dá para contar numa mão só.
— O seu russo é muito bom.
— As línguas são como o xadrez.
— E as palavras são como os lances?
Ficaram ali, num silêncio que não era desconfortável. Ela pensava que entre eles havia apenas a experiência do
silêncio e o casaco.
— O casaco — ela começou. Mas um gesto dele disse que não era nada.
— O casaco é o de menos, pequenina. Posso te dar tudo que você imaginar.
— Essas coisas não me interessam. Eu só quero patinar.
— Logo o gelo vai te deixar na mão.
Ela baixou o olhar.
— Eu sou amigo de uma treinadora importante de Viena. Você poderia patinar o quanto quisesse, na primavera e
no verão, até o seu lago poder te receber.
— Qual é o preço desse privilégio?
Ele a encarou abertamente.
— Eu só quero patinar — ela repetiu.
Ele ofereceu seu cartão. Ela ficou olhando ele ir embora com seu sobretudo escuro; não era um homem grande,
mas o casaco dava a impressão de força.
Ela esperou que ele sumisse trilha acima, então se ajoelhou e golpeou o gelo com uma pedra. Podia sentir a
vibração da água se movendo sob a superfície, camadas de gelo em derretimento. Contemplou com tristeza o céu
que preenchia a atmosfera com o calor de sua luz. Era tudo tão lindo, mas apontava para a chegada de meses sem
fim, desprovidos de sua maior felicidade. Sua noção mais central de identidade se enlaçava completamente nos
cadarços dos patins. O inverno derreteria, virando primavera, virando verão, e ela se veria reduzida a esperar o
regresso das folhas no chão que marcavam a volta do inverno. Tateou o cartão dentro do bolso. Agitada por um
coro de sensações diferentes, sentia-se ao mesmo tempo libertada e presa numa armadilha.
4.

Era o primeiro dia da primavera. A luz invadia sua janela e cobria sua colcha. Havia fotos de Eva Pawlik
grudadas com fita adesiva na parede ao lado da cama. Seus patins pendiam de um gancho, chamando por ela, mas
o gelo já estava derretendo. Preparou uma xícara de chocolate quente, desdobrou um cobertorzinho que guardava
num cesto, no canto do quarto. Tinha sido presente de Irina, na manhã de seu aniversário de treze anos, depois de a
tia ter guardado a peça por todos aqueles anos, à espera do momento exato. O cobertor tinha sido feito para ela, por
sua mãe, e preso a ele por um alfinete havia um bilhete de seu pai. Na época ela não conseguiu ler, mas estudou a
língua, traduziu, e leu várias vezes. Ele falava de levantar a filhinha no alto e do fato de ela ter os olhos da mãe,
olhos de um castanho profundo que pareciam conter tudo. O cobertor era como um pêssego macio, e tinha
florezinhas minúsculas bordadas na barra.
Obrigada, mãe, ela sussurrou, obrigada, pai.
Eugenia remendou o antigo suéter de Irina, encontrando uma longa mecha do cabelo da tia, e pensou se ela
voltaria um dia. Irina a tinha criado e sido a guardiã de tudo que havia para saber de sua história. Foi sempre difícil
arrancar algo dela, ainda que às vezes, quando bebia vodca demais, ela falasse do choro dos lobos, de árvores
cobertas de gelo ou do aroma das flores brancas e rosadas que cobria tudo na primavera. Mas nada do pai nem da
mãe dela. Eugenia vivia buscando respostas nos olhos frios de Irina.
— Não procure a sua mãe em mim — ela dizia. — Você tem que encontrá-la dentro de si.
— Eu sou parecida com ela?
— Eu realmente não sei dizer — ela respondia impaciente, passando batom.
— Mas eu tenho o cabelo dela.
— Tem, tem sim.
— E os meus olhos parecem os do meu pai?
— Não olhe para trás, Eugenia — ela aconselhava, pegando sua estola de raposa. — Tudo está à nossa frente.
Agora eu tenho um casaco mais fino que o dela, Eugenia pensou, melancólica. Mas daria o casaco sem vacilar
em troca de uma peça nova do quebra-cabeça. Tudo que tinha era um sonho recorrente, como um fotograma móvel
de um filme granulado — sua mãe protegendo os olhos do sol e lençóis desfraldados num varal. Apesar de terem
sido separadas cedo demais para que essa lembrança pudesse ser real, Eugenia se apegava a ela como se fosse. E ia
cosendo todo e qualquer retalho de lembrança, qualquer recordação, toda faceta nova de uma história velha,
pedindo que Irina lhe oferecesse algum pedacinho novo para a frágil colcha que perfazia a sua personalidade. Ela
nunca pedia amor nem desejava afeto, não tinha experiência com os meninos, nem mesmo beijos adolescentes.
Apenas queria saber quem era, e patinar. Era tudo que desejava.
Eugenia tirou o cartão do bolso do casaco. Ele lhe oferecera tudo. Sua própria treinadora, bons patins, um lugar
para praticar o quanto quisesse. Ela largou o cartão na mesa, passando o dedo sobre o nome dele, Alexander Rifa,
gravado em letras grossas, com um endereço embaixo, escrito à mão. Seu nome era Alexander, mas para ela seria
sempre Ele.

Naquela tarde, ele abriu a porta e a encontrou diante de si, pequena e altiva.
— Hoje é meu aniversário — ela disse. — Eu faço dezesseis.
Ele a recebeu em seus aposentos, exibindo seus bens materiais, ícones preciosos, crucifixos de marfim, cordões
pesados de pérolas, baús entupidos de sedas bordadas e manuscritos raros. Ele lhe ofereceu tudo que ela pudesse
desejar.
— A sua fortuna não me interessa.
— Talvez uma lembrança, pelo seu aniversário.
— Eu só quero patinar. É por isso que estou aqui.
Ele se deteve diante de uma estante envidraçada que abrigava um elaborado ovo esmaltado. Apesar de tudo, ela
se sentiu atraída pelo objeto, e ele destrancou a estante e o pôs diante dela.
— Abra — ele disse. — Foi o presente de um tsar para uma imperadora.
Dentro dele havia uma minúscula carruagem imperial perfeitamente lavrada de ouro. Ele colocou a carruagem
na mão dela, observando sua reação.
— Adivinhe o meu nome — ela disse.
— Existem muitos nomes.
— Mas eu tenho o nome de uma rainha.
— Existem muitas rainhas.
Ela o seguiu até o quarto. Ficou calada enquanto ele retirava lentamente a roupa dela; mas ele podia sentir que o
pulso dela acelerava. Possuiu-a devagar, com uma delicadeza surpreendente, consolando-a enquanto ela gritava de
dor. Possuiu-a de novo à noite, despertando nela um apetite espantoso e inexprimível por prazer.
De manhã ele retirou o lençol da cama, em que se abria uma mancha, mariposa de sangue.
— Este vai ser o seu quarto, se você quiser. Vou pedir para alguém comprar lençóis novos para você.
— Não. Eu vou comprar os meus próprios lençóis.
Ele preparou o café da manhã enquanto ela se lavava. Ela se aproximou dele, ansiosa.
— Eu soube que você ia me causar problemas quando te vi caminhando na minha direção — ele disse —, eu te
senti quando você passou roçando o meu casaco.
— Eu não te vi nesse dia.
— Talvez tenha me sentido, como eu te senti.
— Não, eu não senti nada.
A juventude pode ser cruel, ele refletiu, mas ele também sabia fazê-la sofrer. Apertou seu corpo contra o dela e
lhe disse que precisava ir, sussurrando o nome que deu a ela. Filadélfia.
— Por que Filadélfia?
— Porque — ele respirou no ouvido dela — é um lugar que um dia foi o berço da liberdade.
Ela se encostou na parede.
— Eu quero o que está dentro do saquinho que você usa pendurado no pescoço —ela disse de repente, como em
retaliação.
Espantado, ele hesitou, mas não conseguiu recusar.
— São suvenires sem valor, alguns parafusos pequenos e o disparador de um rifle antigo.
— Deve ser importante.
— Era o rifle de um poeta.
— E ele está onde?
— Em um lugar seguro, bem longe. Eu tirei os parafusos para ninguém poder disparar. Sem eles a arma é inútil.
O saquinho está costurado.
— Me dê.
— É isso que você quer?
— É.
— Tem certeza?
— Tenho — ela disse, irredutível.
— Então um dia preciso te dar o rifle também.
— Como você quiser.
— Você está acabando comigo — ele disse.
— Você está acabando comigo — ela devolveu.

Ele deixou uma soma grande de dinheiro num envelope. Vá até este endereço e compre lençóis novos, deste
tipo, e escreveu o nome no verso e lhe deu mais um beijo. Ela demorou um pouco para encontrar a loja. Havia
longas prateleiras com todo tipo de lençol que alguém pudesse imaginar, mas ela gravitou para uma estante
envidraçada cheia de robes e pijamas de seda cor da pele. Em vez de lençóis, escolheu uma camisola daquela
estante, usando metade do dinheiro, depois foi de bonde até uma região completamente diferente. Havia uma
lojinha que revendia roupa de cama de várias lavanderias chinesas. Depois de muito procurar, ela encontrou um
jogo de lençóis um pouco gastos que trazia nas etiquetas o nome que ele havia anotado. Lençóis italianos, um tanto
puídos, mas bem melhores que quaisquer lençóis que ela já tivesse visto.
Depois de comprar os lençóis, ela parou em um pequeno restaurante e pediu um bife, dos grandes, e uma
generosa xícara de café. Vez por outra tocava o saquinho que levava junto à curva da garganta. Me custou muito,
pensava, não com remorso, mas orgulho. Foi assim que me tornei Filadélfia, ela escreveu depois no diário. Como
a cidade da liberdade. No entanto eu não estava livre. A fome é carcereira de si própria.
5.

Ele voltou para ela trazendo pequenos presentes. Um suéter rosa-claro e uma medalha de santa Catarina,
padroeira da Estônia. Mas o melhor, para ela, foi uma revista com fotos de patinadoras, com Sonja Henie na capa.
Por alguns minutos ela pareceu estranhamente indolente e luxuriosamente obediente, deixando-se transportar pelo
pólen primaveril.
Em suas noites lânguidas eles entreviam um o mundo do outro. Ele falava de uma vida de privilégios, pai
diplomata, mãe oriunda de uma proeminente família suíça. Educado por tutores, ele era excelente com idiomas e
socialmente impecável, mas internamente inquieto, consumido pelo desejo de destroçar as coisas e redispor tudo
segundo suas próprias ideias. Encontrava consolo no poeta Rimbaud, que fazia o mesmo com as palavras.
— É ele o seu poeta? — ela perguntou, tocando o saquinho.
Alexander gravitava para as artes, mas cedeu diante das exigências do pai, indo estudar engenharia em Viena.
Foi infeliz ali, virou as costas para o pai e ingressou na Resistência francesa. Veio a entender que destroçar as
coisas era um aspecto poderoso da natureza humana. Ele explorou a sua e seguiu os passos do poeta, do Passo de
São Gotardo até as planícies da Abissínia.
Leu para ela trechos de Une saison en enfer. Ela ficava deitada a seu lado, imaginando o jovem Alexander
abandonando a universidade, como ela abandonara a escola. O som hipnótico da voz dele a conduzia ao sono. Ele
continuava lendo, depois punha o livro de lado para observá-la, pequena e brilhante com uma marca de umidade
abaixo do umbigo, e era levado a acordá-la de seu sono.
A natureza toda despertou, floresceu. Eugenia lhe contou histórias, como tinha escrito em seu caderno de
exercícios, respondendo suas perguntas num cantarolado monocórdio, uma impassível locução provinda de uma
existência fantasmagórica.
— Você e o seu pai se davam bem?
— Eu não cheguei a conhecer os meus pais. Eles foram deportados da Estônia na primavera, para um campo de
trabalho na Sibéria.
— Por que motivo?
— Não é necessário haver um motivo para tratar as pessoas como gado.
— Uma história cheia de buracos.
— Algumas coisas se dissolvem antes de se tornar memória. Lembro de trens. Lembro de novas línguas que
logo eu entendia. Minha tia Irina sentada diante de um espelho, a cabeça de lado, escovando o cabelo.
— Me fale de Irina.
— Ela me criou, mas nunca deixou de ser um mistério. Ela sonhava em ir para os Estados Unidos ser atriz, mas
a guerra mudou tudo. Ela tinha um pretendente com o dobro da sua idade que ia levá-la dali, e meu pai implorou
para ele me levar também. Atravessamos diversas fronteiras e nos acomodamos na Suíça, sob a proteção dele. Ele
já tinha uma família, mas era tão bom quanto era rico. Comprou vestidos para mim e, para Irina, um bracelete da
sorte, de ouro.
“A irmã da minha mãe era linda; senão, como poderia conquistar um homem tão bondoso? Ele respeitava suas
mudanças de humor e ficava comovido com seu prazer descomplicado diante de cada novo presente. Eu tinha
cinco anos quando ele nos levou a um espetáculo no gelo. Eu nunca tinha visto uma coisa tão maravilhosa, mesmo
assim não parava de chorar. Eu queria ser ela, aquela menina no centro da pista de gelo. Com aquela idade eu já
sabia que era o meu destino. Eu sabia falar muitas línguas de ouvido. Era excelente aluna, mas nada antes da
patinação me forneceu as ferramentas necessárias para eu expressar o inexprimível. O mundo exterior estava se
reerguendo, mas vivíamos numa bolha, e eu era jovem demais para saber essas coisas. Depois que Martin morreu,
Irina nunca mais levou ninguém lá em casa, de vez em quando ela sumia, mas sempre voltava. Logo depois do
meu aniversário de catorze anos, ela levou Frank.”
— Frank. Ele é uma pessoa boa?
— Ele é bom para Irina, nisso eu acredito, tão bonito quanto ela. Frank era supervisor de uma construtora e
ficou bem de vida depois da guerra. Ele fazia Irina rir. Tinha que viajar muito por causa do trabalho, mas quando
estava aqui as coisas melhoravam. Não faz muito tempo os meus patins ficaram pequenos e eu peguei dinheiro do
bolso dele para comprar um par de usados, um tanto grandes, mas de boa qualidade e com belas lâminas. Irina me
perguntou onde eu tinha conseguido o dinheiro, e eu contei. Pensei que Frank ia ficar louco, mas ele não ficou.
Deixa eu ver, ele disse. Eu falei que eles eram um pouco grandes, mas que eu enchia o bico. Frank tirou as
lâminas, levou até a cidade e mandou afiar. Ele era assim. Irina com ele era diferente do que tinha sido com
Martin. Ela tirava o sapato dele e massageava seus pés. Talvez estivesse feliz.
— Você tinha inveja de Irina?
— Inveja? E por que eu teria inveja? A Irina não sabe patinar.
Ela levantou um momento e tirou a combinação.
Ele estava na cama, esperando. Ele a segurou pelos quadris. Devagar, Filadélfia, disse, e a colocou de bruços,
tateando com delicadeza. Quando ela gritou ele a virou de novo. Ela sentiu a respiração dele. Sentiu uma pulsação,
como a de um coraçãozinho, e enquanto levantava o quadril se lembrou do rosto de um menino que jogou lama no
seu vestido de primeira comunhão. Viu a mancha e as mãos sujas dele. Viu a luva de renda branca de Irina. Lá fora
os sinos tocavam. Ela nadava na imundície, totalmente perdida.
6.

A história deles não podia se encerrar, apenas se espedaçar. Uma história com o poder intrínseco de um mito.
Que girava em torno de si própria e girava por si própria, deixando apenas uma transparência, a cama deles feita de
uma nuvem acre, onde copulavam brutalmente e depois flutuavam. Quando é que deixa de ser algo lindo, um
aspecto fiel do coração, para se tornar desviado, ligeiramente desequilibrado, e então se lançar num vácuo de
obsessão? Ele meditava sobre essas coisas num passeio vespertino, parando para jogar o charuto aceso nas folhas
caídas. Ficou olhando enquanto elas pegavam fogo e depois se apagavam com sua própria umidade.
Quando ele saiu numa viagem de negócios, ela não conseguia deixar de pensar nele. Não, não nele, de fato, mas
no que se acendia entre eles, parecendo espalhar seu calor sobre o lago sagrado, derretendo suas margens. Ela
sonhou que patinava cada vez mais rápido, com a voz dele sussurrando na pequena concha de sua orelha.
Filadélfia. Ela se lançou sobre o gelo, executando três giros, tentando um quarto. Um magnífico salto foi feito em
pedaços pelo sol que jorrava pela janela sobre seu travesseiro enquanto ela abria os olhos.
Embarcando no bonde, ela voltou ao chalé para pegar algumas de suas coisas. Encontrou duas cartas da escola à
sua espera. O resultado dela no exame nacional estava entre os melhores do país, e ela podia receber uma medalha
de prata em matemática. Quase nada ali lhe interessava. Apesar do véu leve de chuva, foi caminhar na floresta. A
trilha que levava ao lago estava enlameada. Diante dela, ele surgiu: um diorama densamente enevoado,
estranhamente afastado dela. Começou a chover mais pesado bem no momento em que ela ocupou seu lugar na
pedra plana, onde se sentava desde os seus onze anos. Cabisbaixa, deu adeus a seu lago e voltou ao chalé. Dormiu
em sua antiga cama. A noite ficou fria e não havia lenha na lareira. Acordou tremendo, febril.
No final da manhã ela voltou para o apartamento dele e foi para a cama, no seu quarto, pequeno e com apenas
uma janela, mas seu. Lembrou de se sentir doente deste jeito quando criança. Martin disse para Irina cortar várias
cebolas e ferver numa panela. Irina disse que o cheiro das cebolas ia acabar com o vestido dela. Ele disse que lhe
compraria outro. Eugenia teve que se inclinar sobre a panela e inalar o vapor pela boca. Ele passou a noite com
elas. Repetindo o ritual estranhamente solene. Descascando. Cortando. Fervendo. Vaporizando. Inalando. Ela
sonhou com seu guardião, que não pediu por nada. Ele sempre foi bom. Sempre havia flores e comida. Ela tinha
um quarto com paredes amarelas clarinhas e uma boneca com um vestido que parecia ficar de cores diferentes sob
a luz da manhã. Do creme ao rosa-claro a tons de pêssego. Sonhou o sonho de sua mãe. Sol, lençóis num varal e
uma mulher, não muito diferente de Irina, mas com cabelo mais curto e mais escuro, protegendo os olhos do sol.
Quando voltou, Alexander chamou seu nome, mas ela não respondeu. Ele a encontrou no quarto dela, deitada,
acordada no escuro. Ele se aproximou intrigado, mas ao tocar sua garganta percebeu imediatamente a situação.
Eugenia ardia de febre. Ele encheu de gelo a grande banheira com pés de metal e ela se estendeu ali, tremendo.
Depois de lhe dar algo quente para beber, ele a carregou para a cama. Ela sentia as mãos dele em seu corpo, seu
alento. Ela sentia que estava escapando.
Cebolas, lembrou num sussurro.
7.

Alexander cumpriu sua promessa. Pediu para ver os patins dela e tirou os cadarços. Você não vai mais precisar
deles, disse, e lhe deu dinheiro para comprar outro par, mais do que suficiente. Os novos eram cor da pele, com
cadarços de seda reforçada. Eram perfeitos. Sob medida para ela. Em vez de papel amassado, os dedos dela agora
roçavam as pontinhas da bota. Com o restante do dinheiro ela foi até um pequeno rinque de treinamento e lasseou
a bota lentamente. Fazia muito tempo que não usava patins novos. As bolhas incomodavam, mas eram um preço
pequeno. Como parecia miraculoso poder patinar quando as flores estavam abertas.
Alexander a apresentou a uma treinadora austríaca chamada Maria. Eugenia ficou sentada quietinha enquanto os
dois falavam a seu respeito como se ela fosse uma bonequinha de porcelana sem língua. Maria anotou um
endereço.
— Venha amanhã — ela lhe disse —, e eu vou ver você patinar. Quanto mais cedo melhor, porque à noite eles
alisam o gelo.
Era uma grande arena coberta, com dois rinques. Maria a recebeu na manhã seguinte de maneira um tanto fria.
— O seu benfeitor me concedeu um estipêndio para que você possa treinar diariamente, por quanto tempo
quiser. Vou observar e passar a ele minha avaliação.
Eugenia se sentiu um pouco manipulada, mas estava eufórica com a possibilidade de usar a arena por tempo
ilimitado. Apesar de Maria não parecer impressionada, ela sabia o que podia fazer e se sentiu confiante enquanto
atava os cadarços e entrava em seu mundo. Depois de algumas voltas no rinque para avaliar o espaço, qualquer
insegurança já tinha desaparecido.
Maria ficou aturdida com a jovem patinadora que parecia ter surgido do nada. Mais baixa que a média, de uma
beleza não convencional, mas ainda assim impressionante, e com uma estranha aura de graciosidade. Havia algo
singularmente original, e mesmo arriscado, em seu estilo; ela patinava no limite. Apesar de seu ceticismo inicial, a
treinadora logo reconheceu o inegável potencial de sua discípula. Maria faria dela uma campeã. Eugenia teria uma
mentora, alguém que falava sua língua natal. A língua dos patins.
Ela passou a chamar a técnica de Snejana, porque era branca como a neve. Blusa branca e grossa que ia até os
joelhos, calça branca, agasalho branco enrolado na cintura. Seu rosto pálido, emoldurado por um cabelo louro
desalinhado, ainda guardava marcas de sua beleza de juventude. Ela um dia cativara plateias com seus olhos azuis
como gelo e seu desempenho afiado. Emoção desprovida de emoção. Mas um terrível acidente pusera fim à sua
ascendente carreira. Havia passado por uma sequência bem-sucedida de cirurgias, mas jamais recuperou sua
impressionante destreza nem sua vigorosa forma física.
Uma campeã seria uma forma de redenção pelo que havia perdido. Impondo sua vontade férrea, Maria
empenhou tudo que tinha em Eugenia, tentando refinar, moldar, dar-lhe as ferramentas de que precisava para
reivindicar seu destino. Mas Eugenia também podia ser voluntariosa; era ambiciosa, mas com que finalidade?
Sonhava não com coroas de louros, mas com atos inéditos.

Alexander se preparava para uma longa jornada. Eugenia expôs seus conflitos.
— Maria não entende como eu trabalho. Como improviso lances no meu tabuleiro de xadrez.
— Talvez ela suspeite que você pensa demais.
— Toda ideia se depura em sentimento. Patinar, para mim, é sentimento puro, não um portal para a satisfação.
— Ela quer que você tenha sucesso.
— Ela quer que eu atue num modelo tradicional, que eu represente histórias que não parecem naturais.
— Você tem suas próprias histórias. Você pode transmiti-las com seu próprio estilo, com seus gestos. Os braços
de uma mãe sem sua criança no colo, por exemplo.
— A minha mãe.
Eugenia se calou e ficou olhando enquanto ele colocava coisas no seu baú, esvaziando a cômoda.
— Você vai ficar muito tempo longe?
— Bastante tempo, sim. Mas vou voltar para você.
— Maria quer que eu vá para um treinamento em Viena. Ela disse que eu preciso estar com a documentação em
ordem.
— Maria parece bem possessiva — ele disse.
Eugenia enrijeceu, mas sabia que era verdade; em relativamente pouco tempo Maria tinha se introduzido em sua
vida como mãe e mentora.
Ela viu os dedos dele se moverem pelas dobras delicadas das vestes de uma madona de marfim. A pátina da
estatueta parecia mais dourada que branca por causa dos séculos de afagos.
— Ela vai com você?
— Vai, é meu talismã de viagem.
— Você também é possessivo — ela disse.
— As nossas posses nos causam muita dor — ele replicou.
— Como é que pode ser verdade, se elas te dão tanto prazer?
— Outra pessoa vai ficar com elas quando eu morrer. Isso me causa dor.
— Eu não sou de ninguém — ela disse, desafiadora.
— De ninguém? — Ele sorriu, desabotoando a blusa dela.

Eugenia sentia a atração tácita de duas forças. Ambos eram controladores, mas Alexander fingia indiferença e
assim a trazia para perto de si. Durante a ausência dele, Maria tentou reforçar sua influência. Toda sua
concentração tinha por objetivo preparar Eugenia para as competições. Jamais vira patinadora tão criativa e
corajosa, mas seus métodos heterodoxos tinham que ser domados. E nesse processo Eugenia se sentia oprimida,
resistindo à disciplina em favor da expressividade.
— Nós estamos nos preparando para uma competição. Existem regras. Existe todo um sistema que você precisa
aceitar, e depois superar.
— Há muitas formas de superação.
Eugenia patinou até o coração do rinque e sem hesitação executou uma série de combinações insustentáveis. No
silêncio da arena ela era perfeitamente autocentrada, ouvindo sua própria música. Naquele momento era o lendário
pássaro de fogo que se ergue das sombras de um noturno delicado, uma bênção e uma maldição para quem a
capturasse.
Maria estava fascinada por sua jovem discípula.
— Você por acaso fez um pacto com o diabo, algum acordo profano? — Maria riu.
Mas Eugenia viu outra verdade nos olhos dela. Por dentro, Maria não estava rindo.

Alexander voltou sem avisar. Maria o cumprimentou quando ele entrou na arena; Eugenia não o viu, mas sentiu
sua presença. Ele ficou olhando satisfeito enquanto ela patinava e percebeu o momento em que ela sentiu sua
proximidade. Maria conteve a respiração, espantada com a altura inédita daquele salto. O efeito que ele tinha na
menina não lhe passou despercebido.
— Ela está indo muito bem — disse. — Mas precisa treinar mais. Quero levá-la a Viena, onde ela vai se expor a
uma atmosfera mais competitiva. Pelo que sei os documentos dela não estão em ordem, Eugenia nem tem um
passaporte de verdade. Para uma menina que conhece tantas línguas, parece que ela nunca saiu daqui.
— Eu vou cuidar disso — ele garantiu, sem querer trair seus próprios planos para o futuro de Eugenia. — Vou
precisar levá-la a Genebra por uns dias enquanto a embaixada providencia os documentos. Depois ela vai estar
livre para viajar o quanto quiser.
Eugenia continuava patinando, alheia aos desígnios de um e de outro. Tinha suas próprias aspirações. Um axel
terminando em quatro piruetas, por que não cinco? O impossível reinava no poema de sua mente. Fazer o que
ninguém fizera, reinventar o espaço, produzir lágrimas.
8.

Ela estava dormindo em seu próprio quarto. Ele a acordou, e lhe trouxe o café. Nós vamos sair daqui a pouco,
não leve nada, ele disse. Tenho tudo de que precisamos.
— Os meus documentos? — ela perguntou sonolenta.
— Isso, nós vamos no trem das seis da manhã para Genebra.
Usando conexões diplomáticas, Alexander conseguiu um passaporte para ela. Mas os dois não voltaram como
ele prometera. Apesar das forças que nutrira sob a agressiva tutelagem de Maria, Eugenia deixou que ele a levasse.
No começo ficou encantada com as viagens, com o movimento contínuo de carros, trens e balsas. Foi afastando da
mente as imagens recorrentes de Maria à espera, curiosidade e desejo toldando razão e responsabilidade.
Conheceu coisas vistas apenas em livros. O rio Elba. A ponte sobre o Danúbio. Uma torre de igreja em espiral
que guardava uma bomba. O Vieux-Marché onde Joana D’Arc foi queimada e a sala esquecida onde o grande
mapa do mundo foi picotado e dividido por generais vitoriosos depois da guerra. Caminhou descalça sobre as
pedras que formavam o pátio irregular da cidadela de les baux. Alexander deixou uma cruz de marfim num nicho
escavado na pedra. Ficaram parados diante dele, mas não rezaram. Ela estava cansada de viajar, mas não abriu a
boca. Em Marselha depositaram flores sob a janela baixa de uma sala do Hospital da Imaculada Conceição antes
de continuarem uma jornada sem repouso.
— Para onde estamos indo?
— Para longe daqui.
— Por que temos que ir?
— Para pegar o que eu te prometi.
— Eu vou poder patinar? Vai ter um lago?
— Não, Filadélfia, lá existem poças fundas e salgadas que jamais congelam.
O sol era um fardo. Tudo parecia morto. Como você é cruel, ela pensava. No entanto ia seguindo apática, como
Trilby atrás de seu mestre.
Embarcaram num grande navio. Ela sentiu o sal no ar e estremeceu. O mar era imenso e as ondas tinham curvas
belíssimas. Eugenia imaginou aquelas curvas congeladas. Imaginou o mar inteiro congelado para poder passar a
vida patinando ali e nunca chegar ao fim. Sentada à mesa do capitão, ela olhou fixamente para uma peça no centro,
um cisne entalhado no gelo, vendo a figura derreter devagar. Ninada pelo mar encrespado, dormia profundamente,
um braço erguido sobre a cabeça, como fazia quando patinava. Olhando para seu pequeno corpo nu, Alexander
sentiu uma onda de remorso que abafou rapidamente.
Chegando ao porto, eles seguiram em frente, por quilômetros de poeira vermelha, deserto e savana, até
chegarem a um pequeno conjunto de construções cercadas por acácias e eucaliptos. Um rapaz cumprimentou
Alexander num dialeto que ela não conhecia e em seguida deu as boas-vindas a ela em francês. A mãe do rapaz os
levou sem dizer palavra até um quarto anexo ao deles. Era espaçoso e caiado. A esteira onde eles dormiriam estava
enrolada e havia um rifle contra a parede. A mulher lhes trouxe um caldo grosso, pão fermentado e xícaras do que
cheirava a sangue de algum animal. O filho matou uma cabra em honra a eles, e a mulher queimou pedaços de
incenso.
Alexander levantou antes do nascer do sol, deixando-a sozinha por várias horas. Ele repetiu esse ritual
diariamente, revirando vilarejos em busca de vestígios sagrados e esquecidos de sua cultura antiquíssima e
voltando à noite para junto dela. A mulher e seu filho cuidavam de Eugenia como se ela fosse uma princesa
convalescente, servindo-lhe tigelas de semolina com mel. Estão tentando me engordar, ela pensava, mas comia
com avidez.
Desacostumada do calor, ela dormia mais que o normal. Quando acordava, a mulher lhe servia uma bebida de
gosto amargo com uma pasta doce que não fazia nada para matar sua sede, mas parecia intensificar seu desejo
físico. Então ela esperava, antevendo o regresso dele, as noites vorazes que teriam. Planetas pendiam de um céu
negro e baixo, estonteantemente próximos. Tudo parecia escrito numa lasca de vidro. Ela possuía não o brilho do
amor, mas o rosto de uma ave devastada.
9.

Fique aqui, Filadélfia, ele disse. Tirou suas poucas roupas e passou os dedos levemente pelo corpo dela. Seus
dedos eram como plumas. Falou do primeiro homem, retraçando o longo Y do Tigre e do Eufrates. Trocava de
idiomas sem perceber e ela respondia com indiferença, na mesma moeda. Súbito ele a pressionou contra a parede e
ela sentiu horrorizada a potencial euforia do desejo não correspondido.
À noite a mulher entrou no quarto com tigelas de café adoçado. Eles sentaram no chão de terra batida. Os
lençóis sujos eram um testamento de seus êxtases e mágoas recíprocos. Ela tirou o tecido manchado e colocou um
novo na esteira; ao vê-lo os dois foram levados a violar sua brancura com mítica depravação. Eram
simultaneamente cães e deuses.
— Você se lembra do primeiro dia em que veio a mim?
— Era o meu aniversário — ela disse, automaticamente agarrando o saquinho.
— Me dê isso aí — ele disse. Ela sentou-se e, relutante, tirou o saquinho do pescoço. Era bem pequeno e pendia
de um cordão de couro. Com cuidado ele soltou os pontos da parte de cima; ali dentro havia um pouco de cinzas,
os minúsculos parafusos e o disparador do rifle do poeta. Ele reinstalou o disparador e os parafusos lenta e
deliberadamente no rifle, inseriu uma bala e depois o apoiou contra a parede.
— Amanhã — disse — vou te ensinar a atirar.
Naquela noite ele amarrou as mãos dela frouxamente com os cadarços de seus patins velhos. Foi delicado e
beijou as pálpebras de seus olhos fechados, descendo pelo pescoço nu. Ela jogou a cabeça de lado, abrindo os
olhos. Os cadarços mal deixaram marca, mas dominaram seus sonhos, estendendo-se por todo um campo,
criaturinhas obscenas que palmilhavam a terra, se enroscavam nos troncos esguios de árvores em flor e se
entrelaçavam no cabelo louro desalinhado de Maria, sua treinadora.
Ela acordou com uma lucidez terrificante. Os cadarços enrolados saíram com facilidade de seus pulsos, ela
rastejou sorrateira até o rifle e o pegou. Sentia o mesmo tipo de náusea de quando andou pela floresta com Frank,
matou seu primeiro coelho e depois o viu esfolar, carnear e pôr a pequena carcaça, pendurada, para secar.
Eugenia levantou. Alexander estava nu, deitado na esteira. Ela pensou que ele não parecia tanto um deus quando
estava dormindo. Sua mente girava, inventariando tudo que ele tinha lhe dado, tudo que lhe havia tirado. Ele abriu
os olhos e a viu parada ao lado dele, fazendo pontaria para baixo. Ergueu os olhos sonolento, mais divertido que
assustado.
— Filadélfia — ele disse.
Erguendo um pouco o rifle, ela assestou a mira.
— Filadélfia? — ele disse tentativamente, ainda se esforçando para acordar.
— Isso, Filadélfia, o berço da liberdade — ela disse, puxando o gatilho.

Havia uma grande soma na mala dele. Ela pegou seus próprios documentos e entregou metade do dinheiro para
a mulher e deu os pertences dele, inclusive o relógio e os charutos, para o filho. Ao nascer do sol eles cavaram um
buraco e colocaram o corpo de Alexander Rifa na terra com o rifle, seu passaporte e os cadarços respingados de
sangue. Retiraram os parafusos e o disparador antes de enterrá-lo. Eugenia ficou com os parafusos e com a
medalha que ele usava no pescoço. Era de prata e tinha um talhe no meio, como que riscada pela lâmina de um
patim.
Antes que ela partisse, a velha lhe disse algo em amárico. Foi a primeira vez que falou diretamente com ela, mas
Eugenia não entendeu o dialeto. O filho da mulher tentou explicar o que a mãe tinha dito. Um coração atordoa o
outro.
O filho a ajudou no primeiro e difícil trecho de sua jornada de volta para casa. A viagem era complicada e ela
seguia lenta, como em sonhos. Ainda de posse das passagens deles, viajou de navio e depois numa série de trens,
por vezes apenas parando numa cidade para errar por ruas desconhecidas. Em Viena visitou um museu e viu o
berço dourado de um bebê que se tornou rei. Eu tenho o nome de uma rainha, ela lembrava de ter dito. É um
caminho longo para quem está só. Havia pontes, lagos, jardins botânicos. Em Zurique procurou e encontrou o
túmulo de Martin Burkhart, que havia tratado Irina e ela com tanta bondade, e deixou flores.
Ao se aproximar de casa, jurou que nunca mais patinaria. Era sua penitência, negar-se a única coisa sem a qual
não conseguia viver.
10.

No bolso de sua saia estava a chave do apartamento dele. Ela se aproximou da porta pesada, entalhada com um
brasão em que dois leões se abraçavam. Segurou a respiração ao inserir a chave, quase contando que ele estivesse
ali, esperando, talvez com um presentinho ou com algum plano em mente para um castigo exuberante. A sala da
frente estava escura, mas o quarto que ele lhe dera, inundado de luz. Sua cama pequena ainda estava desfeita,
desde aquela partida apressada. Ver aquilo a deixou nauseada. Havia poucos vestidos no armário, e o suéter rosa-
claro que ele lhe dera ainda estava em seu papel de seda.
Sentou-se à mesa diante de uma pequena pilha de livros que ele tinha escolhido para ela ler, determinada a
continuar a educação que tão conscientemente evitara. Um livro sobre a Doutrina do meio-termo, que inspirara
uma série de manobras, construídas com base em uma equação. E a grande concha de náutilo que ele lhe dera de
presente, observando o quanto a espinha lindamente enroscada ecoava um giro sobre o gelo. Havia a fotografia de
um lago margeado por pinheiros jovens, e uma pinha que guardara o aroma da floresta em sua resina pegajosa.
Uma semente de remorso abriu-se lenta e se espalhou por seu corpo; era outro tipo de sangue. Ela pegou os livros
ainda por ler, separados para o estudo de inglês. A letra escarlate e O professor, e o livro que ele mesmo estava
lendo — O mito de Sísifo, com pequenos comentários em russo com a letra elegante dele.
Como que delicadamente guiada, ela abriu no começo e leu, traduzindo mentalmente as breves notas dele. O
texto propunha um exame filosófico da questão do suicídio — Viver vale a pena? Ele escrevera na margem que
talvez houvesse pergunta mais profunda: Eu mereço a vida? Quatro palavras que fizeram estremecer seu eu mais
profundo. Ela levantou abruptamente, tirou a fotografia da moldura, vestiu o suéter e saiu, cuidando de evitar
coisas que um dia foram dele.
11.

A carta
Cara Eugenia,

Tantas vezes você me perguntou sobre a nossa família, mas eu não te disse nada. Seu pai me disse para eu não
falar. Por que uma criança teria que sofrer com o fardo da política ou do sangue? Ele temia de verdade pela sua
segurança. Era professor universitário e sabia falar várias línguas, como você. A mãe dele era judia; morreu
antes de você nascer. Agora eu o entendo. Seu pai era mais politizado que religioso. Seu modo de falar sem
rodeios fez com que entrasse na lista dos soviéticos.
Nossa família era católica e sua mãe rezava o tempo todo. Ela se preocupava acima de tudo com o jardim e
você era sua flor mais preciosa. Eu não sinto nada pela minha origem. Eu me sinto nova, Frank é novo e nosso
bebê vai ser novo. Você também é nova. Foi esse o presente que seus pais lhe deram quando libertaram você.
Martin tentou localizar a nossa família. Eu tinha esperanças de devolver você à minha irmã e ficar livre. Mas
ele não encontrou ninguém, nada era como antes. Para mim, parecia que estávamos soltas no espaço, e isso me
dava medo. Mas agora percebo que também foi um milagre. Desprovidas de passado, tínhamos apenas presente e
futuro. Todos nós gostaríamos de acreditar que viemos apenas de nós mesmos, que cada gesto é todo nosso. Mas
então descobrimos que nosso lugar é na história e no destino de uma longa fileira de criaturas que também podem
ter desejado ser livres.
Não existem sinais que nos digam quem somos. Nada de estrelas nem cruzes, nem cifras no pulso. Nós somos o
que somos. Seu presente vem apenas de você. Mas Frank me disse que uma vez te viu patinar num laguinho
escondido na floresta. Ele estava caçando um cervo. Parou e ficou olhando, mas você não o viu. Ele me disse que
você era uma campeã. Foi exatamente o que ele disse.
Frank encontrou uma casinha bonita para nós perto da floresta negra. Às vezes eu sonho que os lobos estão
chorando. Mas tudo isso acabou. Só quero ser eu mesma. Tenho um emprego de vendedora de perfumes numa loja
fina. Tenho vários vestidos bonitos que posso usar de novo quando o bebê chegar. Estamos em segurança e somos
a nova era.

Sua Irina
12.

Finalmente ela voltou ao chalé. Uma janela estava quebrada e a entrada, coberta de folhas mortas. Havia uma
pequena pilha de cartas. A escola, Maria, Irina. O que teria acontecido se tivesse prosseguido os estudos, se tivesse
entrado no rinque do mundo, se cada movimento no tabuleiro de xadrez, cada equação, e até mesmo a negra
fluidez do amor, se tudo tivesse se cristalizado?
O inverno lutava por se fazer primavera. Eugenia mal saía do chalé. Ficava sentada à mesa diante de seu diário e
escrevia sob a sombra de um coração partido, lentamente traçando as curvas das letras como que com as lâminas
dos patins. Ela nada acrescentou ao breve ensaio de uma vida, apenas variações do mesmo poema, suas Flores
siberianas, num esforço vão por revelar os olhos de um pai, o rosto de uma mãe.
Quando sonhava, ouvia a lírica voz de Alexander. Quando sonhava, ouvia o choro de sua mãe. Transbordando
de vontade de confessar, de despejar cada indiscrição que levara ao ato de roubar a vida de alguém, ela embarcou
no bonde e foi até a cidade, até a capela anexa à sua antiga escola.
— Desejo rezar, padre, mas não consigo encarar nosso Senhor. Não consigo lhe dizer o que fiz.
— Minha filha, é esse o mistério da confissão, largar seu fardo e deixar que ele o carregue para você.
— O confessionário é estreito demais para os meus pecados. É apenas um pequeno barco no centro de um mar
terrível.
Eugenia estava sentada num banco do parque que ficava em frente à capela. Ela se abaixou e amarrou o sapato.
Tinha embrulhado o dinheiro da carteira de Alexander num papel grosso e marrom. Era uma boa soma. Foi até o
correio que ficava a algumas quadras dali. No correio lhe deram uma caixinha bem resistente, ela escreveu o
endereço que estava no envelope da carta de Irina e postou.

Na manhã de seu aniversário de dezessete anos, Eugenia tirou uma carta dobrada de uma caixinha de madeira
com uma libélula pintada na tampa. Era a carta que seu pai havia prendido ao seu cobertor com um alfinete, no
princípio do inverno de 1941. Ela só tinha um ano e poucos meses de idade, mas ele já detectara nela uma luz que
brilhava muito além da fazenda, das flores do quintal, além até da beleza de sua esposa. Eugenia abriu o coração
para sentir o que ele sentiu, a grande sombra das tropas de Stálin que avançavam. Bem no momento em que as
flores se abriam em botões e estouravam, prenunciando a chegada de uma primavera obscena e aterradora. Ela não
precisava ler, pois sabia o texto todo de cor. Mas seus olhos caíram nas últimas palavras do pai. A carta escorregou
de seus dedos. Ela não foi pegá-la no chão.

As qualidades que vão lhe ser úteis para viver você recebeu de mim. As que vão fazê-la bem-vinda no céu, da
sua mãe.

Eugenia tirou os patins do armário e foi para o lago. Estava fresco, estava iluminado, um dia cheio de
promessas. Ela parou num e noutro ponto do caminho, pegando distraída algumas pedrinhas, enchendo os bolsos
fundos do casaco velho, aquele que dera a Ele a impressão de ser ineficaz para protegê-la do frio. Ela se
aproximou da clareira. O mesmo pequeno bosque, o mesmo lago sob o mesmo céu.
O padre tinha sido bondoso, mas não conseguiu fazê-la falar. Em vez disso, ela escolheu contar sua história na
igreja mais ampla, na catedral verde da natureza. Pois a natureza também é sagrada, mais sagrada que os ícones,
mais sagrada que as relíquias dos santos. Essas coisas eram mortas se comparadas à mais insignificante das coisas
vivas. A raposa sabe disso, o cervo, o pinheiro.
Eu sou Eugenia, ela disse, oferecendo sua confissão, a locução de sua jovem vida. Começou pela primeira
percepção que teve dele, pelo prazer que sentiu de ser vista e de como aquilo incendiou seu desempenho. Falou de
sua felicidade ao ganhar o casaco, do calor que ele propiciava e de como se vendeu por um saco de parafusos
retirados do rifle de um poeta, levada tanto pela curiosidade quanto pelo desespero. Não deixou nada de fora, e à
medida que descrevia o desejo ardente que sentia por ele, percebeu horrorizada que algum desejo ainda morava
dentro dela. Falou de como lavou o sangue dele dos tornozelos dela, de como o enterrou sem uma única lágrima.
Ao reviver aquele momento, por fim chorou não a perda dele, mas a perda da inocência.
Cuidadosamente Eugenia atou os cadarços dos patins. Enquanto tocava o gelo sentiu uma perfeição que havia
muito não sentia. Tudo voltou num instante e ela patinou com uma harmonia que somente o silêncio igualaria. Os
animais da floresta se reuniram. Uma raposa, um cervo, um coelho sob os ramos. Os pássaros pareciam fascinados,
empoleirados nos galhos das árvores em torno.
O sol espalhava seu calor, marcando o início precoce da primavera. O atrito dos patins acelerou o prematuro
enfraquecimento da superfície do lago, precariamente estriada sob uma perigosa camada transparente. Ela não
diminuiu a velocidade, mas girou como se estivesse no centro de um infinito de infinitos. Naquele espaço infame
criado e povoado por místicos que não buscam mais alimento neste mundo. Livre de toda expectativa, de todo
desejo, ela rodava e era ao mesmo tempo tear, linha, fio de ouro. Baixou a cabeça e estendeu um braço na direção
do céu, entregue, tragada pela mão enluvada de sua própria consciência.
Flores siberianas

Flores siberianas são rosadas


como o bracelete de uma filha
pálido penhoar
postado contra uma janela
que não mais desse vista
Há sangue em toda parte
privado de sua cor de sangue
E o rosto do amor é nada
além da brancura do inverno
cobrindo a colina
abeto e pinheiro
gamo e galhada
tudo soprado
e no entanto desejamos
Dois olhos negros
Uma cabeça curvada
Uma coroa caída
A brancura do inverno.
UM SONHO NÃO É UM SONHO
Uma porta paterna.
A luz se espalha sobre uma mesa provida de cinzeiro, caneta e de uma pilha de papel ofício. O escritor se curva
e pega a caneta, abandonando assim o mundo que corre do outro lado da pesada porta de madeira, entalhada
com dois grifos que equilibram uma coroa que levita. O cômodo está silente, no entanto a atmosfera está
carregada, uma sensação de galhadas se entrelaçando.
Do lado de fora, uma menina agachada sob a ominosa heráldica, que parece emitir um leve brilho
avermelhado. Ela imagina que consegue ouvir a caneta do pai riscando o papel. Aguarda furtivamente até que ela
pare de riscar, porque então ele irá abrir a porta, pegar a mão dela, descer a escada e lhe fazer um chocolate
quente.
Por que alguém se sente compelido a escrever? A se isolar, a se envolver num casulo, no êxtase de sua solidão,
malgrado as necessidades dos outros. Virginia Woolf tinha seu quarto. Proust, suas venezianas fechadas.
Marguerite Duras, sua casa calada. Dylan Thomas, seu modesto casebre. Todos em busca de um vazio que
pudessem encher de palavras. Palavras que irão adentrar um território virgem, arrombar cofres que ninguém veio
abrir, articular o infinito. Palavras que criaram Lolita, O amante, Nossa Senhora das Flores.
Há pilhas de cadernos que delatam anos de esforços abortados, euforia esvaziada, passos incansáveis pelo chão.
Precisamos escrever enfrentando miríades de lutas, como quem domestica um potro voluntarioso. Precisamos
escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem certa dose de sacrifício: para dar voz ao futuro, revisitar a
infância e para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de
leitores.

Quando ainda estava em Paris, recebi um convite da filha de Albert Camus, Catherine, para visitar a casa da
família Camus em Lourmarin. Não costumo visitar a casa dos outros, pois, apesar da hospitalidade que as pessoas
oferecem, normalmente tenho a sensação de confinamento ou sinto uma pressão imaginária. Quase sempre prefiro
o confortável anonimato de um hotel. Mas nesse caso aceitei; a honra era minha. Depois de me despedir de
Simone, peguei um trem para Aix-en-Provence, onde o assistente de Catherine me esperava para me acompanhar
no trajeto de uma hora de carro até Lourmarin. Qualquer receio que eu pudesse estar sentindo desapareceu diante
da gentileza dele e do calor da recepção de todos.
A villa antiga, onde um dia houve uma criação de bichos da seda, foi comprada com o dinheiro do prêmio Nobel
de Camus, para ser a residência da família fora de Paris. Minha pequena mala foi levada ao quarto que um dia foi
dele. Olhando da janela, foi fácil ver o que o atraiu àquele lugar. Sol desnudo, bosques de oliveiras, trechos secos
de terra pontilhados com emaranhados de flores silvestres amarelas, tudo parecia próximo do ambiente natural da
sua Argélia natal.
O quarto era seu santuário. Era onde ele trabalhava em sua obra-prima inacabada, O primeiro homem,
exumando seus ancestrais, tomando posse de sua gênese pessoal. Escrevia sem ser incomodado, atrás da pesada
porta de madeira, entalhada com dois grifos que seguram uma coroa. Eu imaginava muito bem a pequena
Catherine contornando as asas deles com o dedo, desejando apenas que seu papa abrisse a porta.
Eu tinha catorze anos quando Camus perdeu a vida num acidente de carro. Nas notícias que se seguiram ao fato,
havia fotos de seus filhos e uma descrição de sua valise, encontrada num campo, sob a chuva, na área do acidente,
e que continha seu último manuscrito. Foi uma experiência de humildade, ocupar, ainda que brevemente, o quarto
em que ele tinha escrito aquelas páginas.
Mobiliado com modéstia, o cômodo tinha prateleiras que sustentavam suas obras. Os três volumes dos Journals
de Eugène Delacroix. Lettres de Gauguin. La vie de Mahomet. Le viol des foules, a avaliação dolorosamente
relevante de Serguei Tchakhtótin sobre o abuso das massas pela propaganda política. Antes de descer as escadas
voltei à janela. Em algum ponto do campo, mais além dos ciprestes, pode-se entrar no cemitério onde ele repousa
ao lado de sua mulher, com seu nome algo erodido, como se a natureza tivesse escrito lá sua própria história.
Vista de Lourmarin.

Catherine preparou o almoço para nós e um chá cor de violeta, um remédio para minha tosse crônica. A
conversa foi calorosa e natural, sem um único momento de constrangimento. Depois me juntei à filha de Catherine
para uma longa caminhada com os cachorros pelos campos em torno. Falamos de árvores, identificando cada uma
— cipreste, abeto, pinheiro, jovens oliveiras, figueiras, cerejeiras carregadas de frutas e um imponente cedro-do-
líbano. Ela colheu cerejas para nós enquanto os cachorros saltitavam alegres à nossa frente. Mais para o fim do
passeio, ela me entregou um ramo fino encimado por minúsculas flores amarelas, uma coisa silvestre, com
levíssima fragrância. Se chama immortelle, ela disse.
Quando voltamos, o assistente de Catherine me chamou para o escritório do térreo, onde eles trabalham e
realizam as tarefas oficiais. Era modesto e continha um ar de produtividade tranquila. Ele perguntou se eu gostaria
de ver o manuscrito; fiquei tão atônita que mal consegui responder.
Disseram para eu lavar as mãos, o que fiz com solenidade.
A filha de Camus entrou, pôs o manuscrito de Le Premier Homme, O primeiro homem, sobre a mesa à minha
frente e foi se sentar numa cadeira, de modo a nos dar distância suficiente para que eu pudesse me sentir a sós com
ele. Por uma hora tive o privilégio de examinar o manuscrito inteiro, página por página. Estava escrito com a letra
dele, cada página sugerindo uma sensação de inabalável unidade com seu tema. Impossível não agradecer aos
deuses por terem concedido a Camus uma pena justa e judiciosa.
Eu virava cada página cuidadosamente, maravilhada com a beleza estética de cada folha. As primeiras cem
folhas de papel com marca-d’água traziam Albert Camus gravado no lado esquerdo; as restantes não eram
personalizadas, como se ele tivesse se cansado de ver o próprio nome. Várias páginas vinham acrescidas com suas
anotações firmes, linhas cuidadosamente revisadas e trechos cortados com mão firme. Era possível perceber uma
missão concentrada e um coração acelerado impulsionando as últimas palavras do parágrafo final, as últimas que
ele escreveria.
Fiquei em dívida com Catherine por ela ter permitido que eu examinasse o manuscrito de seu pai, predisposta a
aceitar esse momento precioso, a que nada faltava. Mas lentamente discerni uma alteração bastante familiar na
minha concentração. Aquele impulso que impede que eu me entregue por completo a uma obra de arte, me
arrastando das paredes de um de meus museus preferidos para minha própria mesa de trabalho. Pressionando-me a
fechar as Canções da inocência para sentir, como Blake, um relance do divino, que também pode se fazer poema.
Este é o poder decisivo de uma obra singular: o chamado à ação. E eu, repetidamente, sou tomada por uma
arrogância orgulhosa que me leva a acreditar que posso atender a esse chamado.
As palavras à minha frente eram elegantes, cáusticas. Minhas mãos vibravam. Infundida de confiança, tive o
ímpeto de sair correndo, subir as escadas, fechar a porta pesada que um dia foi dele, sentar diante do meu próprio
monte de papel e começar meu próprio começo. Um sacrilégio sem culpa.
Pousei a ponta dos dedos na margem da última página. Catherine e eu nos olhamos sem dizer palavra.
Entreguei-lhe o manuscrito, acolhendo um arrependimento reservado ao fim de um caso amoroso. Eu me levantei
da mesa, o chá violeta frio, a immortelle deixada para trás.
Seguindo para a cidadezinha, imagino Camus se levantando de sua mesa e com relutância deixando o trabalho
de lado. Observado pelo fantasma de uma menina, ele desce as escadas, segue por esta mesma rota, passa pela
torre do relógio com a inscrição em latim: As horas que passam nos devoram. Ele caminha por estas mesmas ruas
estreitas calçadas com pedras, indo ocupar sua cadeira de sempre no Café de l’Ormeau. Acende um cigarro e toma
um café, entregando-se ao zunido do vilarejo. À distância, colinas de lavanda, amendoeiras, um argelino céu azul.
Inevitavelmente sua mente há de evitar o impulso de uma conversa amistosa para voltar a seu santuário, a
determinada frase que ainda precisa ser resolvida.
As coisas se movem devagar. Há um toco de lápis no meu bolso.
Qual a tarefa? Compor uma obra que comunique em vários níveis, como numa parábola, sem a marca da
inteligência vulgar.
Qual o sonho? Escrever algo bom, que fosse melhor do que eu sou, e que justificasse minhas tribulações e
indiscrições. Oferecer prova, por meio de palavras reordenadas, de que Deus existe.
Por que eu escrevo? Meu dedo, como uma caneta de ponta seca, retraça a pergunta no ar em branco. Um enigma
conhecido, proposto desde a juventude, quando eu me afastava das brincadeiras, dos companheiros e do vale do
amor, cingida de palavras, um passo fora do grupo.
Por que escrevemos? Irrompe um coro.
Porque não podemos somente viver.
ESCRITO NUM TREM
Manuscrito, mesa de Lalanne, Nova York. (3)
Lápide, Sète, França.
A autora gostaria de manifestar sua gratidão a
Família de Albert Camus
John Donatich
Dan Heaton Christina Coffin
Alexandre Alajbegovic Claude Lalanne
Fred Kameny Laitsz Ho Ariel Garcia
Rosemary Carroll
Andi Ostrowe 12 Chairs Cafe Lenny Kaye
Fotografias: Patti Smith,
Steven Sebring (1 e 3),
Linda Bianucci (2)
PATTI SMITH nasceu em 1946 em Chicago, nos Estados Unidos. Ganhou
reconhecimento nos anos 1970 por sua fusão revolucionária de poesia com
rock, e seu disco Horses é considerado um dos álbuns mais influentes da
história. Além da carreira musical, publicou volumes de poesia como Babel
(1978) e Auguries of Innocence (2005). Em 1973, expôs seus desenhos pela
primeira vez e, em 2008, a Fundação Cartier de Paris fez uma grande mostra
sobre sua trajetória nas artes visuais. Dela, a Companhia das Letras publicou Só
garotos, Linha M e O Ano do Macaco.
Copyright © 2017 by Patti Smith
Copyright de “Escrito num trem” © 2018 by Patti Smith
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
Devotion
Capa
Fabio Uehara
Foto de capa
David Gahr/Getty Images
Preparação
Ciça Caropreso
Revisão
Renata Lopes Del Nero, Adriana Moreira Pedro e Adriana Bairrada
ISBN
978-85-545-1565-2

Todos os direitos desta edição reservados à


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Só garotos
Smith, Patti
9788543805290
280 páginas

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Só garotos é uma autobiografia cativante e nada convencional. Tendo como pano de fundo a história
de amor entre Patti Smith e Robert Mapplethorpe, o livro é também um retrato apaixonado, lírico e
confessional da contracultura americana dos anos 1970, desfiado por uma de suas maiores expoentes
vivas. Muitas vezes sem dinheiro e sem emprego, mas com disposição e talento de sobra, os dois
viveram intensamente períodos de grandes transformações e revelações - até mesmo quando Robert
assume ser gay ou quando suas imagens ousadas e polêmicas começam a ser reconhecidas e
aclamadas pelo mundo da arte. Ao refazer os laços sinceros de uma relação muito peculiar, Patti
Smith revela-se uma escritora e memorialista de grande calibre - e o modo como seu texto reflete a
lealdade dos dois é comovente, apesar de todas as diferenças. Só garotos pode ser lido como um
romance de formação de dois grandes artistas do século XX, que apostaram na ousadia, na liberdade e
na beleza como antídotos à massificação - e contra todas as recomendações. Este e-book não inclui as
imagens presentes na edição impressa.

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A vida invisível de Eurídice Gusmão
Batalha, Martha
9788543805658
192 páginas

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Feito raro para um romance de estreia, este livro é festejado internacionalmente antes de chegar às
livrarias brasileiras, com os direitos já vendidos para mais de dez editoras estrangeiras.Rio de Janeiro,
anos 1940. Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã
Eurídice se torna uma dona de casa exemplar. Mas nenhuma das duas parece feliz em suas escolhas.
A trajetória das irmãs Gusmão em muito se assemelha com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio
de Janeiro no começo do século XX e criadas apenas para serem boas esposas. São as nossas mães,
avós e bisavós, invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam protagonizar a própria vida, mas
que agora são as personagens principais do primeiro romance de Martha Batalha. Enquanto
acompanhamos as desventuras de Guida e Eurídice, somos apresentados a uma gama de figuras
fascinantes: Zélia, a vizinha fofoqueira, e seu pai Álvaro, às voltas com o mau-olhado de um poderoso
feiticeiro; Filomena, ex-prostituta que cuida de crianças; Luiz, um dos primeiros milionários da
República; e o solteirão Antônio, dono da papelaria da esquina e apaixonado por Eurídice. Essas
múltiplas narrativas envolvem o leitor desde a primeira página, com ritmo e estrutura sólidos. Capaz
de falar de temas como violência, marginalização e injustiça com humor, perspicácia e ironia, Martha
Batalha é acima de tudo uma excelente contadora de histórias. Uma promessa da nova literatura
brasileira que tem como principal compromisso o prazer da leitura.

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Mulherzinhas
Alcott, Louisa May
9788554516208
592 páginas

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Edição da Penguin-Companhia traz as aventuras das quatro irmãs March com prefácios de Patti Smith
e Elaine Showalter.Mulherzinhas é considerado um dos livros mais influentes de todos os tempos.
Ultrapassando a barreira das idades, esse romance é lido com a mesma paixão por adultos e jovens. A
história das irmãs March se tornou um clássico feminista que reflete sobre a tensão entre obrigação
social e liberdade pessoal e artística para as mulheres. Cada leitor terá sua irmã favorita: a
independente Jo, a delicada Beth, a bela Meg ou a artista Amy. Essas quatro mulheres e sua mãe,
Marmee, enfrentam com diligência e honra as privações da Guerra Civil americana, e se tornaram um
sucesso instantâneo já em 1868."Muitos livros maravilhosos me fascinaram, mas, com Mulherzinhas,
algo extraordinário aconteceu. Eu me reconheci, como num espelho, naquela menina comprida e
teimosa que disputava corridas, rasgava as saias subindo nas árvores, falava gírias e denunciava as
afetações sociais. Uma menina que podia ser encontrada encostada num enorme carvalho com um
livro, ou em sua escrivaninha no sótão, debruçada sobre um manuscrito. Ela era Josephine March. [...]
Uma menina americana do século XIX que teimava em ser moderna. Uma menina que escrevia.
Como incontáveis meninas antes de mim, vi como modelo uma que não era como as outras, que
possuía alma revolucionária, mas também noção de responsabilidade. Sua dedicação à sua arte me
deu meu primeiro vislumbre do processo do escritor e fui tomada pelo desejo de abraçar essa vocação.
Os passos em falso que ela dava, dos cômicos aos ousados, eram invejáveis, e me concediam
permissão para dar os meus." — Patti Smith
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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 páginas

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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o feminismo é essencial para libertar homens e
mulheres? Eis as questões que estão no cerne de Sejamos todos feministas, ensaio da premiada autora
de Americanah e Meio sol amarelo. "A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo.
É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um
mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim
que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos
criar nossos filhos de uma maneira diferente. "Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra
exatamente da primeira vez em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão com seu
amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele; era como se dissesse:
'Você apoia o terrorismo!'". Apesar do tom de desaprovação de Okoloma, Adichie abraçou o termo e
— em resposta àqueles que lhe diziam que feministas são infelizes porque nunca se casaram, que são
"anti-africanas", que odeiam homens e maquiagem — começou a se intitular uma "feminista feliz e
africana que não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma, e não para os
homens". Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua experiência pessoal de mulher e
nigeriana para pensar o que ainda precisa ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua
personalidade para ser como esperam que sejam, e os meninos se sintam livres para crescer sem ter
que se enquadrar nos estereótipos de masculinidade.

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Sobre homens e montanhas
Krakauer, Jon
9788554516154
176 páginas

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Em doze artigos, Jon Krakauer tenta compreender por que homens e mulheres se aventuram por
paredes de rocha e gelo como se procurassem voluntariamente a morte.Você sabia que é possível
escalar cachoeiras? Sabia que o monte McKinley, no Alasca, o maior dos Estados Unidos, possui um
dos ambientes mais inóspitos do planeta e que mesmo assim cerca de trezentas pessoas o escalam a
cada ano? Você sabe qual é a segunda maior montanha do mundo? E sabe que ela é bem mais difícil
de ser escalada do que o Everest? Por que tantas pessoas arriscam a vida nas paredes de gelo e rocha?
Nesta coletânea de artigos e reportagens sobre aventuras vividas ao redor do mundo, do Himalaia ao
Alasca, Jon Krakauer, autor de No ar rarefeito e Na natureza selvagem, mostra homens e mulheres
que enfrentam paredes de gelo e rocha por todo o planeta, revela o que eles fazem, como sobrevivem
e o que os motiva.

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