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Resenhas

Ângela Alonso, Idéiasem movimento: a geração nativa, que já rendeu excelentes pesquisas e ainda
1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, Paz e pode render outras, não é a seguida por Ângela
Terra, 2002, 392 pp. Alonso em Idéias em movimento: a geração 1870 na
crise do Brasil Império.
É interessante apontar, inicialmente, as opções
João Ehlert Maia rejeitadas na pesquisa, por indicarem quais cami-
Doutorando em Sociologia no Iuperj nhos novos a autora deseja trilhar. De saída, Alonso
descarta uma das mais tradicionais abordagens, que
Como tratar de forma original um tema tão fami- classifica os personagens em função de suas filiações
liar à imaginação intelectual brasileira como esse, o intelectual-doutrinárias. Essa recusa não é gratui-
da famosa “geração 1870”? Como apreender o sen- ta. De acordo com a autora, isso seria conferir ao
tido dessa geração, que abriga nomes tão díspares mundo intelectual do período (Segundo Reinado)
quanto Joaquim N abuco, Alberto Salles, Sílvio uma autonomia e uma complexidade inverossímeis.
Romero, Lopes Trovão, entre tantos outros? Como Como falar de escolas intelectuais num cenário em
interpretar sociologicamente um conjunto que reúne que política e letras se misturavam de forma tão
liberais, republicanos, positivistas e federalistas, to- provocadora? Ademais, assumir filiações e prefe-
dos às voltas com Spencer, Comte e Darwin? Uma rências como índice seguro de classificação signi-
alternativa seria seguir o padrão que parece lenta- ficaria atribuir peso excessivo às próprias inter-
mente se impor nas áreas de estudos voltadas para o pretações dos atores do período, como se a visão
chamado “pensamento social brasileiro”: o tratamen- que os mesmos construíram a respeito de suas tra-
to monográfico de autores e obras, recurso que per- jetórias já esgotasse o processo de pesquisa socio-
mitiria maior precisão conceitual e interpretativa lógica. A opção por uma abordagem que buscasse
diante das generalizações esquemáticas. Essa alter- correspondência direta entre ideologia e grupos
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sociais (como “cientificismo = expressão de seto- Ao longo do texto, Alonso trabalha com um “tri-
res médios emergentes”) também é afastada, dada pé” conceitual que a auxilia a encaminhar o argu-
a pluralidade de atores que compunham essa ge- mento principal. Comunidade de experiência, repertó-
ração – setores médios, por certo, mas também grupos rio e estrutura de oportunidades políticas formam o ar-
tradicionais decadentes. O ra, então onde estaria o cabouço a partir do qual a autora interpreta a ação
sentido do protesto coletivo que sacudiu o Impé- coletiva da geração e o sentido prático-político que
rio e propiciou uma explosão de “idéias novas”? O orientaria esse “movimento social”. De uma certa
argumento da autora é cristalino, e trabalhado exaus- forma, os capítulos centrais estão estruturados justa-
tivamente ao longo do livro: a geração de 1870 deve mente em torno de cada um desses conceitos, o que
ser compreendida a partir de um marco analítico facilita a exposição da hipótese e o acompanhamento
que destaque a experiência compartilhada de seus do raciocínio desenvolvido.
membros. Com esse movimento, a autora busca evitar No primeiro capítulo, a autora apresenta o regi-
a clássica dualidade que opõe cultura e prática social, me imperial, seus valores, práticas e modus operandi.
problema que assola qualquer estudo sobre idéias Demonstrando habilidade para lidar com a biblio-
e intelectuais. Assim, o trânsito intelectual entre Europa grafia consagrada ao tema e combiná-la com clássi-
e Brasil não é tratado como um processo autôno- cos sobre a formação social brasileira (e aqui o re-
mo infenso ao jogo social “nacional”, como se ao curso principal é ao ensaio de Florestan sobre a re-
analista restasse apenas a tarefa de determinar o maior volução burguesa no Brasil), Alonso delineia o que
ou menor grau de “imitação” presente nesse trânsi- considera serem os eixos principais na legitimação
to. Mas, ao mesmo tempo, as idéias não são deduzidas do status quo saquarema: o indianismo romântico, o
aprioristicamente a partir da localização cartográfica liberalismo estamental e o catolicismo hierárquico.
dos grupos na estrutura de classes. As “idéias no- Todos esses elementos teriam alimentado a energia
vas”, nos diz a autora, são ferramentas, mobiliza- intelectual envolvida nas disputas que acirraram a
das seletivamente a partir dos critérios que orga- crise no Segundo Reinado, momento em que os
nizavam a luta política na crise do Segundo Rei- conservadores se viram obrigados a um exercício
nado. Estão em movimento. constante de racionalização em torno dos funda-
Alonso busca numa literatura mais comumente mentos da ordem ameaçada. O segundo capítulo,
associada a outros campos de pesquisa o instru- possivelmente o mais ricamente documentado, in-
mental necessário para confeccionar um enquadra- vestiga os diferentes grupos que compunham a ge-
mento singular para seu objeto. Assim, autores como ração de 1870 (liberais republicanos, novos liberais,
Tilly, Swindler e Tarrow são mobilizados para a positivistas abolicionistas, federalistas positivistas do
compreensão de um movimento que, na perspectiva Rio Grande do Sul e federalistas científicos de São
da autora, nunca teria sido propriamente “intelec- Paulo) e destaca a experiência comum de margina-
tual”, mas antes uma ação coletiva animada por lização política. Essa marginalização, é claro, seria
um profundo desejo de intervenção política. O que relativa, e diria respeito antes ao esgotamento de
unificaria os diversos membros da famosa geração possibilidades de realização profissional e intelec-
seria uma coleção de críticas novas ao status quo tual dentro dos limites estreitos da ordem imperial
imperial e saquarema, críticas essas assentadas em do que a uma efetiva posição de subordinação so-
uma experiência comum de marginalização polí- cial dentro dessa mesma ordem. Manejando rica pes-
tica, e não a filiação doutrinária ou a pertença a quisa empírica, a autora mostra como integrantes
esta ou aquela classe social. destacados da geração tiveram aspirações e projetos

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de ascensão emperrados pelo imobilismo da má- de 1870 “intelectuais” envolvidos em polêmicas


quina saquarema, incapaz de dar conta da dinâmica doutrinárias. Contudo, o próprio desenvolvimento
moderna que se gestava no Brasil no período. O uso do capítulo suscita outras leituras do problema. Ao
da categoria “marginalização” é decerto afrouxado, abrir a literatura examinada, Alonso pontua discus-
o que permite incluir nessa situação nomes tradi- sões ricas, que certamente revelariam novos ângulos
cionais com proeminência parlamentar, como Joa- de análise para os interessados no tratamento her-
quim Nabuco. Esse capítulo talvez seja o mais rele- menêutico desses textos. O debate entre america-
vante para o encaminhamento do argumento, na nismo e iberismo, por exemplo, ganha sutilezas e
medida em que busca caracterizar sociologicamen- contornos inesperados na interpretação da autora,
te a geração de 1870 sem obscurecer sua evidente que apenas pincela um possivelmente produtivo di-
heterogeneidade interna. Alonso não hesita em mos- álogo com os escritos de Werneck Vianna a respeito
trar como o elo de solidariedade entre seus inte- do tema. Como sua linha interpretativa rejeita aná-
grantes era algo frágil, já que construído não em lises mais próximas ao universo da História das Idéias
torno de identificações profissionais ou intelectuais, e dedica-se a um tratamento sociológico amplo de
mas por uma situação histórica contingente. toda uma geração, Alonso nesse capítulo termina por
O capítulo 3 é o mais intrincado do livro. Como apresentar inúmeras análises interessantes e criativas
já foi dito, a abordagem da autora é centrada no que infelizmente não podem ser mais aprofundadas.
tratamento político de um movimento em geral visto O capítulo 4 e a conclusão do livro arrematam
como puramente “intelectual”. Mas como a absor- de forma precisa o argumento. Após trabalhar a co-
ção das idéias que movimentavam a Europa na se- munidade de experiência e o repertório, Alonso finaliza
gunda metade do século XIX por parte dos mem- seu tripé conceitual analisando a estrutura de opor-
bros da geração é uma parte central da investigação tunidades que se teria gestado no período e forne-
do movimento de protesto, é imprescindível abrir a cido uma gama de recursos organizacionais para os
literatura produzida por esses personagens. É preci- membros da geração. A conjugação de urbanização,
so, diz a autora, compreender seu repertório, ou seja, a desenvolvimento econômico e maior complexida-
gramática intelectual mobilizada pelos agentes na de do tecido social imperial teria possibilitado aos
formação de um movimento coletivo. personagens pesquisados espaços novos de mobili-
Nas extensas análises que faz de obras seminais zação que escapavam ao estrangulamento vivido no
dos principais autores envolvidos, Alonso demons- sistema partidário. Assim, o olhar de Alonso volta-se
tra segurança e conhecimento dos debates que en- para os comícios, os novos jornais e os manifestos
volviam positivistas, darwinistas, “cientificistas”, que se multiplicavam e teriam possibilitado a arti-
abolicionistas, liberais ou combinações entre esses culação de um movimento heterogêneo que com-
elementos. O critério de interpretação que usa é partilhava como princípio identitário apenas um
condizente com sua linha argumentativa: esses es- antagonista. Na interpretação da autora, a geração
critos devem ser compreendidos como peças pro- de 1870 é indissociável do surgimento de um “proto-
duzidas pela absorção política de idéias européias, espaço público”, na medida em que sua própria
ou seja, como obras que visariam a atacar funda- experiência de marginalização e o aprofundamento
mentos da ordem imperial saquarema, e não avan- do capitalismo no país (com a conseqüente intro-
çar no campo da teoria política. Com esse procedi- dução de novos personagens e tipos sociais) teriam
mento, a autora afasta-se novamente de abordagens forçado a abertura de novos lugares sociais para o
tradicionais que enxergam nos membros da geração fazer político. O esgarçamento da dinâmica Partido

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Liberal/ Partido Conservador e a cisão dentro da visitado pelas nossas ciências sociais. Cabe ao leitor
própria elite imperial seriam outros componentes interessado o desafio de seguir essas trilhas e mobi-
desse processo de alargamento da vida pública. Ao lizar de forma criativa esse trabalho de Ângela Alonso.
final, a caracterização dessa ampla coalizão é feita
pela autora com o recurso ao conceito de “refor-
mismo”. Diante da heterogeneidade interna da ge- Enio Passiani, Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato
ração e das inúmeras tensões que terminaram por e a formação do campo literário no Brasil. Bauru,
minar uma unidade que por si só já seria precária, Edusc, 2003, 276 pp.
Alonso opta por unificar conceitualmente os diver-
sos matizes de rebeldia sob a égide do combate ao Flávio Moura
imobilismo imperial – ao fim e ao cabo, único prin- Professor de Teoria do Jornalismo na Facamp
cípio que permitiria a agregação da diversidade. e editor da revista Novos Estudos, do Cebrap.
Curiosamente, volta-se aqui a uma matriz operató-
ria clássica da política “à brasileira”, como bem per- Comemorações do aniversário de São Paulo e mi-
cebe a autora: a moderação – que no registro de nisséries globais à parte, o momento é de revisão das
Alonso possui contornos negativos, sendo associada idéias estabelecidas sobre o modernismo. Desde o
ao elitismo que caracterizaria o processo histórico final dos anos de 1990, vêm sendo publicados di-
nacional. Certamente se poderia cotejar esse fecho versos trabalhos que tratam de atenuar o caráter trans-
com notações mais positivas desse “traço” nacional, formador do movimento e compreendê-lo a partir
em especial aquelas que, centradas no conceito de um ponto de vista mais distanciado que o dos
gramsciano de revolução passiva, buscam uma in- críticos responsáveis pela supervalorização de seu le-
terpretação do Brasil que escape à dicotomia “re- gado. Trabalhos como o de Tadeu Chiarelli, Annate-
forma versus revolução”. resa Fabris e Sergio Miceli, entre os de vários outros
O percurso feito por Alonso ao longo do livro é autores, têm se ocupado de identificar os elementos
decerto instigante e original. Pode-se questionar a conservadores que lhe serviram de base, de relativizar
centralidade conferida pela autora ao tema da margi- algumas de suas conquistas estéticas, de entendê-lo
nalização política como critério sociológico de com- mais como continuidade do que como ruptura e de
preensão do objeto e sua utilização “alargada”, mas desmontar seus pressupostos à luz do projeto de li-
não a densidade da pesquisa que sustenta essa tese e derança empreendido por seus artistas de maior des-
a coerência argumentativa que a encaminha. O ris- taque e pelos críticos mais ligados a eles.
co de compactar de forma excessiva a heterogenei- Em boa medida, N a trilha do Jeca, trabalho de
dade da geração de 1870 é assumido e enfrentado mestrado do sociólogo Enio Passiani publicado no
sem que o rigor da abordagem escolhida seja ate- fim de 2003, pode ser aproximado a essa linhagem.
nuado, o que faz com que esse trabalho seja exem- A proposta é entender, a partir do exame da obra de
plar no campo da metodologia disciplinar. Ao final, Monteiro Lobato e de sua atuação editorial, como
o resultado que se lê em Idéias em movimento: a gera- ele passou a ocupar posição hegemônica no campo
ção 1870 na crise do Brasil Império não é apenas posi- literário brasileiro nas duas primeiras décadas do
tivo pelo que está apresentado no argumento prin- século XX – e como sua perda de influência nos
cipal, que por si só já garante um lugar de relevo anos seguintes se liga à ascensão do grupo moder-
para esta obra, mas também pelas sugestões e trilhas nista.“O s modernistas fizeram de Lobato o símbolo
de pesquisa abertas pela autora em um tema já tão maior de um passado que devia ser enterado; por-

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tanto, matá-lo (e junto com ele toda uma geração no processo histórico de formação de nossa litera-
de escritores) significava declarar finalmente a vitó- tura”, lembra o autor.
ria modernista”, afirma Passiani nas primeiras pági- Adiante nesse primeiro capítulo, o maior do li-
nas de seu livro. vro, Passiani faz rápida leitura da obra de críticos
A morte simbólica de Lobato a que o autor se ligados ao movimento, entre eles Sérgio Buarque de
refere, decretada por Mário de Andrade em 1926 Holanda, Mário da Silva Britto e Antonio Candido,
num artigo publicado no jornal carioca A Manhã, e empenha-se em mostrar como foram aos poucos
é um dos episódios de que se vale para mostrar como construindo um discurso que instituía o modernis-
o embate direto com os líderes do modernismo con- mo como o momento supremo de ruptura com o
tribuiu para que ele fosse excluído do grupo e, como passado. O corolário dessa construção teria sido a pró-
tal, impedido de colher os frutos simbólicos que essa pria definição do momento literário que sucede o
associação poderia trazer. A partir de uma análise so- realismo-naturalismo e antecede a Semana de Arte
ciológica desse processo, Passiani procura elucidar os Moderna de 1922 como “pré-modernismo”, rótu-
motivos que levaram a crítica ortodoxa a enxergar lo sugestivo de que nesse período estava em jogo
Lobato como contista medíocre e autor regionalista apenas uma preparação para os movimentos da ge-
de pouco calibre, ainda que pudesse considerá-lo um ração seguinte. “Ao contrário do que a pena mo-
grande autor infantil. Ao mesmo tempo, trata de re- dernista mostra”, escreve o autor, “o período ante-
constituir a posição social do pré-modernismo no rior também constitui um momento de ruptura com
bojo da história cultural do país, visto que a própria os moldes poéticos preconizados pela estética art
acepção de “pré-modernismo” não pode ser enten- noveau, e representou a primeira tentativa de se co-
dida fora do contexto da luta simbólica empreendi- nhecer o país a fundo por meio de uma nova lin-
da no interior do campo literário. guagem: a narrativa literária, pela primeira vez na
O livro divide-se em quatro capítulos. No pri- história da literatura brasileira, se mostrou explicita-
meiro, “As peças do quebra-cabeça”, o autor busca mente como uma ferramenta para o conhecimento
demonstrar como o confronto travado contra os das condições ‘reais’ do país”.
modernistas se deu mais em razão das semelhanças No capítulo seguinte,“Na trilha do Jeca”, Passiani
que das diferenças existentes entre os dois lados. Preo- refaz a trajetória de Lobato e os caminhos que per-
cupado em desvelar um Brasil “real”, para além das correu para penetrar no ambiente intelectual da
idealizações românticas, defensor de uma literatura época, do ingresso na Faculdade de Direito do Lar-
engajada nos problemas do país, de uma linguagem go São Francisco aos primeiros artigos em O Estado
literária coloquial e direta, pródiga em neologismos, de S. Paulo, veículo fundamental para a divulgação
inserida numa pesquisa estética séria, Lobato se te- de seu nome no país. “O artista e seu projeto cria-
ria ocupado de um projeto literário em muitos as- dor” e “Crise à vista” são os capítulos que fecham a
pectos semelhante ao de autores modernistas, que argumentação. O primeiro deles, único a trazer aná-
por isso viam nele um obstáculo à possibilidade de lise de texto propriamente dita, apresenta uma lei-
se instituírem como os renovadores por excelência tura de Urupês e de Cidades mortas, os mais impor-
da arte brasileira. “O s modernistas se auto-repre- tantes entre os primeiros livros de Lobato, contra-
sentavam como uma ruptura radical em relação ao pondo-os à atividade do escritor como editor, crucial
passado literário nacional e a presença de Lobato, para entender sua inserção no campo literário. O
sua obra, denunciava que não havia uma ruptura último capítulo aponta como, a partir de 1925, com
drástica, mas, ao contrário, uma certa continuidade a falência de sua casa editora, o fracasso de seu ro-

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mance O presidente negro, publicado no ano seguinte, tuir ele próprio critérios de legitimação intelectual
e a ascensão do modernismo, sua influência no cam- a partir dos autores que escolhia para publicar por
po intelectual se reduz drasticamente. sua editora. Adepto de uma escrita que se queria
Torna-se mais simples entender essa montagem próxima da linguagem popular, e portanto incom-
argumentativa se levarmos em consideração que a patível com as“gramatiquices” dos acadêmicos, Lo-
principal referência teórica do autor é Pierre Bour- bato tinha cacife para tirar proveito da opção de
dieu. Mais especificamente, a noção de campo for- posar de independente no campo. A partir de 1925,
mulada pelo sociólogo francês. De modo simplifi- contudo, quando sua editora vai à falência, os escri-
cado ao extremo, é possível entendê-la como um tores modernistas assumem a dianteira e seus livros
sistema inclusivo de relações e posições predetermi- deixam de emplacar, o escritor tenta uma vaga na
nadas que abrangem, à maneira dos postos disponí- Academia, o que se mostra uma maneira de recupe-
veis no mercado de trabalho, classes de agentes pro- rar parte dos bens simbólicos perdidos e garantir
vidos de propriedades de um tipo determinado. A sua sobrevivência no campo.
cada uma dessas posições estariam associadas toma- A equação que se propõe para o problema é
das de posição estéticas ou ideológicas. Dessa ma- engenhosa: como esnobara a academia nos anos an-
neira, a tentativa de traçar o modo como as catego- teriores e não foi eleito para o posto, o escritor acaba
rias em questão puderam ter acesso a essas posições, enveredando para a literatura infantil. Praticamen-
como faz Passiani nesse trabalho, é o ponto de par- te o inventor do gênero no país e ainda hoje sem
tida para uma análise que pretenda dar conta do rival à altura, Lobato teria visto nessa prática um
problema. Essa abordagem envolve ao menos três modo de explorar um nicho ainda virgem, a par-
aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a posição tir do qual poderia reconstruir a carreira e gran-
do artista na estrutura da classe dirigente; em segun- jear prestígio como criador. Apresentado com as
do, a concorrência interna em busca de legitimida- devidas ressalvas – a escolha não seria uma estra-
de cultural; e, em terceiro, as disposições socialmen- tégia consciente do escritor, mas um tipo de in-
te constituídas do agente. Segundo a formulação de tuição decorrente do habitus literário internalizado
Bourdieu, a essas disposições corresponde a idéia de a partir da experiência no campo –, esse tipo de
habitus, entendida como princípio gerador e unifi- formulação exemplifica a boa mão do sociólogo para
cador do conjunto de práticas e ideologias caracte- associar as tomadas de posição às disputas que se
rísticas de um grupo determinado. travam no interior do campo. É nessa mesma chave
A familiaridade de Passiani com o conceito e a que se pode ler a associação entre a posição social
preocupação em delineá-lo em seus menores mati- do escritor, herdeiro de uma família de fazendei-
zes é perceptível ao longo de todo o trabalho. Veja- ros decadentes do vale do Paraíba, e o espaço de
se, por exemplo, a relação de Lobato com a Acade- que dispunha no jornal O Estado de S. Paulo, ge-
mia Brasileira de Letras. Em 1919, por sugestão de rido por uma família que defendia interesses se-
amigos, o escritor começa a aventar a hipótese de melhantes. O u a relação entre o discurso feito por
candidatar-se à ABL. De início, contudo, mostra-se Ruy Barbosa em 1919, em que o jurista baiano
refratário à idéia, alegando que não tinha “feitio elogiava Urupês, e o sucesso comercial estrondoso
acadêmico”. Nesse ponto, Passiani demonstra em obtido pelo livro, de resto beneficiado pelo fato
pormenores como era possível sustentar essa afir- de Lobato ter sido seu próprio editor.
mação. Na época, Lobato era o autor de maior des- Alguns desajustes, no entanto, ficam visíveis na
taque no campo literário brasileiro, capaz de insti- caracterização da “força revolucionária” da obra

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lobatiana. No terceiro capítulo, em que procura dar Ismail Xavier, O olhar e a cena: melodrama,
base a essa visão a partir da leitura dos textos, por ve- Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São
zes Passiani recorre a qualificações do tipo “lingua- Paulo, Cosac & Naify, 2003, 384 pp.
gem exata”,“texto enxuto”,“texto que leva o leitor
à reflexão”, as quais sugerem certo desequilíbrio en- Sergio Mota
tre a visada sociológica e a literária, além de uma de- Professor do Departamento de Comunicação Social
fesa talvez exacerbada de seu objeto de análise. Essa da PUC-Rio
mesma defesa aparece nos trechos em que analisa o
confronto entre Lobato e Anita Malfatti, deflagrado Há quem acredite que o cinema pode ser um lugar
pelo conhecido artigo “Paranóia ou mistificação?”, de revelação, de acesso a uma verdade por outros
de 1917. Com base no trabalho de Tadeu Chiarelli, meios inatingível. Dentro do projeto de revelação
Passiani lembra que Lobato não era um crítico ama- do mundo para o olhar, toda leitura de imagem é
dor, mas um dos mais talhados analistas de artes plás- produção de um ponto de vista. É quase impossível
ticas de sua época, e que a reação dos modernistas a conceber uma cultura submetida ao olhar em que a
esse artigo só adquiriu grande proporção em razão visão não detenha prioridade. Por exemplo, ao ele-
da importância que atribuíam ao criador do Jeca ger a visibilidade como proposta para este milênio,
Tatu. Mas não discute, por exemplo, o possível pre- Italo Calvino afirma que não se pode correr o risco
conceito contra os imigrantes que poderia animar a de perder “a capacidade de pôr em foco visões de
invectiva de Lobato, hipótese que Sergio Miceli le- olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de
vanta em seu N acional estrangeiro e que, num estudo um alinhamento de caracteres alfabéticos negros
detalhado e bem fundamentado como o de Passiani, sobre uma página branca, de pensar por imagens”.
mereceria atenção pormenorizada. Para o escritor italiano, a experiência contemporânea
Note-se, ainda, que a publicação do livro do so- é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas
ciólogo envolve um paradoxo curioso: o trabalho que não conseguem se sustentar por si mesmas, di-
ganhou o prêmio de melhor dissertação de mestrado luindo-se antes de adquirir consistência na memó-
no concurso CNPq-Anpocs de 2002. O selo da pre- ria daquele que vê. O que confere à visibilidade
miação é impresso de modo ostensivo na capa do estatura de proposta é, justamente, a capacidade de
livro, assim como, no prefácio, são reiteradas as refe- ser um meio transparente, através do qual a realida-
rências ao trabalho de fôlego do jovem sociólogo, de se apresenta à compreensão. Sem contar que, quan-
que “anuncia um projeto de vida intelectual de en- do Calvino elege a visibilidade como um valor lite-
vergadura” e “ultrapassa as expectativas firmadas”. É rário a ser preservado, não a situa no campo da vi-
como se, no limite, a chancela da instância de consa- são, mas no da imaginação.
gração representasse ao mesmo tempo uma reco- Vive-se hoje um mundo dominado de todos os
mendação e uma ressalva. Como se estivéssemos lados pelas imagens, e esse excesso impõe novos re-
diante de um trabalho excepcional para o início de pertórios visuais, ao lado de uma idéia recorrente
carreira, e não simplesmente de uma ótima pesquisa. que afirma que tal saturação imagética contribui para
Feitas as contas, é disso que se trata: de um livro uma “falha” no aprendizado do ver. Assim, a questão
de primeira linha, mais uma fonte da qual não pode- que se desenha é: de que forma a cena do mundo
rão fugir os estudiosos de Lobato e do modernismo. pode ser codificada diante de uma multiplicação
infinita de imagens? No que diz respeito ao olhar, é
possível alguma pedagogia que auxilie na apreensão

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desse mundo saturado, em que tudo se dá ou se põe trução ilusionista de impacto visual, cuja conse-
a ver? O s teóricos pós-modernos revelam que a su- qüência imediata provoca no herói melodramático
perabundância induz a um estado de desorientação estados emocionais reveladores que jamais se alojam
no qual a percepção não se preocupa se as imagens no meio do caminho, em pontos intermediários. É
reproduzem ou não o mundo, na discrepância entre justamente o melodrama o responsável por fornecer
imagens e realidades, olhar e cena, entre significan- a esse espectador desorientado pelos níveis de acele-
tes e significados. Convertidos em meros produtos ração advindos da Revolução Industrial uma espécie
de entretenimento, os signos podem deixar de apon- de cartilha da moralidade (um mundo que ainda
tar para um mundo de diferenças e de novas possi- tem espaço para reconciliações, conforme afirmou o
bilidades e criar a simples vertigem da representa- crítico em outra ocasião).
ção, para espectadores reais e virtuais (ver, nesse sen- Nessa delimitação das relações entre melodrama
tido, o livro Paisagens urbanas, de Nelson Brissac e cinema, Xavier reconhece que o melodrama, após
Peixoto). a Revolução Francesa e durante o século XIX, fun-
A importância que a imagem e a visualidade cionou como uma espécie de motor que impulsio-
vêm assumindo na epistemé moderna e a existência nou as origens do cinema (e, mais tarde, da televi-
de um alhures do espetáculo são investigações de O são), alimentando-o de enredos rocambolescos, de
olhar e a cena, de Ismail Xavier. Com o olhar arguto sentimentalismos e moralismos centrados no inevi-
que lhe é peculiar, o crítico arregimenta temas e fil- tável maniqueísmo, representados por atores que ti-
mes basilares da cinematografia mundial e nacional, nham na grandiloqüência e no exagero da forma
a fim de demonstrar os liames que sustentam as rela- sua principal marca. Dentro dessa perspectiva, o li-
ções entre a estrutura do drama, o lugar da cena e o vro de Ismail Xavier não deixa de ser uma historio-
papel do espectador no cinema diante da oferta de- grafia de um certo tipo de olhar que encontra no
senfreada de imagens. Em um primeiro momento, a naturalismo engendrado pela cena burguesa do sé-
sondagem teórica de Xavier passa, obrigatoriamen- culo XVIII uma aceitação tácita da ilusão. Nesse tipo
te, pela delimitação do lugar do melodrama teatral de drama, a cena se revela um lugar de autonomia
no cinema que nascia com o século XX. Resultado que não dá conta do olhar que o espectador, em
imediato de uma época marcada pela inconstância e outra instância, lança sobre ela. Reproduzir na cena
por precários índices de estabilidade (o século o mundo tal como ele se apresenta é tarefa ensinada
XVIII), a estrutura melodramática apresentou ao es- pelo Iluminismo. Nesse sentido, a cena ganha auto-
pectador a inversão desse estado de coisas. No lugar nomia pela naturalidade que sua representação en-
de uma instabilidade permanente a reboque do de- cerra e deve ser um espaço discreto, sem o uso de
senvolvimento capitalista, um universo codificado, aparentes artifícios e gestos que prejudiquem tal acei-
sem riscos, facilmente reconhecido e estruturado tação incondicional.
com rigidez, dentro de valores que se opunham na Nesse percurso crítico, é o cinema clássico o her-
simplificação de duas instâncias: o bem e o mal. Nes- deiro do lugar ocupado pelo espectador, principal-
sa rígida estrutura encontra-se, portanto, uma tam- mente pelo fato de que o dispositivo cinematográfi-
bém rígida dualidade (dicotômica, na visão de co inaugura um deslocamento importante em rela-
Xavier) e uma irremediável oposição na qual não há ção à estrutura teatral. Com o cinema, a imagem que
possibilidade de conciliação por parte dos persona- ocupa o lugar do espectador revela um espaço que se
gens. Em sua pesquisa, o crítico reconhece que tais organiza à revelia dele, dentro de uma dimensão ter-
experiências estabelecem um jogo com uma cons- ceirizada (porque externa) engendrada pelo olhar

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da câmera. O que se revela diante desse olhar, princi- comum pós-freudiano no Brasil, que passa a legiti-
palmente em relação aos dispositivos de representa- mar novas estratégias morais de inspiração humanis-
ção, é um mundo que apresenta um retrato fiel da ta. Xavier, em uma leitura precisa, identifica os es-
realidade, mais que uma instância de “naturalismo”, quemas melodramáticos de tais objetos e revela de
encenado como tal, para garantir a identificação do que maneira, principalmente em Anos dourados, apa-
espectador com a cena descrita que se amalgama rece uma certa modernização que conserva a estru-
com a vida. Como resultado imediato, olhar do es- tura do melodrama clássico, o que responde, por um
pectador e olhar da câmera são faces da mesma moe- viés conciliatório, à crise do modelo patriarcal.
da e parceiros nessa astúcia da representação.“A pro- Apesar de ser uma coletânea de textos publica-
jeção da imagem na tela consolidou a descontinui- dos em ocasiões distintas, impressiona o fato de o li-
dade que separa o terreno da performance e o espaço vro não cometer, em nenhum momento, o pecado
onde se encontra o espectador, condição para que a irreparável da falta de conjunto, comum nesses casos.
cena se dê como uma imagem do mundo que, deli- A mudança da transitoriedade de textos dispersos
mitada e emoldurada, não apenas dele se destaca mas, para a durabilidade do livro é relevante para se anali-
em potência, o representa”, define o crítico, na tenta- sar até que ponto uma reunião de ensaios pode per-
tiva de compreender a logística dessa nova forma de der o foco e a objetividade. Não é o caso de O olhar e
representação arregimentada pelo cinema. a cena, dono de uma unidade evidente que enfeixa
Essa estratégia da construção da cena como seus artigos e se ramifica por suportes teóricos dife-
imago mundi ou como microcosmo privilegiado, renciados: uma reflexão a respeito dos desdobra-
para fins de ilusionismo (algo como afirmar que o mentos do melodrama em diferentes canais de re-
espectador faz parte da cena e com ela se confunde presentação, uma tentativa de colocar em xeque “os
ou identifica), é habilmente demonstrada por Xavier, problemas enfrentados na crítica dos filmes cuja in-
que disseca esses dispositivos de representação em terpretação se enriquece a partir do cotejo com for-
dois momentos modelares, representados por D. W. mas da encenação teatral herdadas pelo cinema” e,
Griffith (clássico do cinema norte-americano em principalmente, um estudo da maneira, na saturação
formação), que se serviu em excesso do modelo me- de imagens da indústria cultural e do produto de
lodramático, e Alfred Hitchcock, que superou ironi- massa, como os filmes analisados sobrepujaram (ou
camente tal estrutura, utilizando artimanhas meta- ratificaram) o viés ilusionista do cinema e das artes.
lingüísticas, para revelar uma outra logística do espe- Esse esqueleto teórico de um pensamento críti-
táculo (nesse sentido, valem o livro as análises de dois co irrefutável encontra sua apoteose na leitura que
filmes do diretor inglês, Vertigo e, principalmente, Ja- Xavier faz da obra de Nelson R odrigues, o que ocu-
nela indiscreta). pa boa parte do livro e um módulo inteiro (“O ci-
Em um segundo momento, Ismail Xavier volta- nema novo lê Nelson R odrigues”). O crítico exa-
se para a produção nacional, a fim de discutir estraté- mina as adaptações cinematográficas do autor de A
gias de atualização da matriz melodramática nas mi- falecida sob a perspectiva da transformação do país
nisséries de Gilberto Braga (Anos dourados e Anos re- nos últimos quarenta anos, o que faz, pelo menos
beldes). Interessa ao crítico, nesse momento, revelar os desse capítulo, uma reflexão de referência no campo
possíveis liames entre as formas do melodrama (e a dos estudos sobre esse autor. No cinema brasileiro,
persistência de tal modelo) e o realismo, e também nunca houve um escritor que tenha inspirado tan-
demonstrar, por outro lado, de que forma a televisão tos filmes como Nelson (cerca de vinte longas), en-
foi o agente que procurou constituir um certo senso tre 1952 e 1999. Como já havia feito com as produ-

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Resenhas

ções anteriores, Xavier reconhece os elementos o poder, o erotismo e a sedução, na esfera pública e
melodramáticos de tal dramaturgia e a forma com na vida privada”.
que o cinema se apoderou desse repertório de cri-
ses, que não permite retorno aos padrões nem dá
espaço para reconciliações, consoante revela o críti- Ruy Coelho, Tempo de Clima. São Paulo, Pers-
co nas leituras que realiza, entre outras, dos filmes pectiva, 2002, 142 pp.
Boca de ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e
A falecida (1964), de Leon Hirszman, que procura- Fernando Antonio Pinheiro Filho
ram solucionar tensões entre a necessidade de cons- Doutor em sociologia pela USP, professor
trução realista e os textos de que partiram. Com a da USP e da FESPSP
intenção de fazer um balanço dessa produção cine-
matográfica, a análise reconhece que o momento Primeira navegação
mais produtivo desse conjunto de adaptações se deu A reunião dos escritos publicados por Ruy Coelho
quando houve uma clara intenção, na escolha de na revista Clima entre 1941 e 1944, ora editados em
tom e gênero, de, por meio dos filmes, radiografar o livro, dá ensejo não só à apreciação direta de seus
Brasil e produzir um extrato de diagnósticos que achados e eventuais deslizes na atividade crítica, como
revelam, principalmente nas obras adaptadas por permite também, de um viés mais sociológico, acom-
Arnaldo Jabor, as contradições do processo de mo- panhar o valor expressivo dos textos como marcos
dernização, com ares tragicômicos e alegóricos. dos posicionamentos do autor no interior do grupo
Na verdade, reconhecer o lugar que ocupa o es- de redatores da revista, desse grupo no campo da
pectador em relação à cena que se disponibiliza é, crítica de arte que pretendia reconfigurar e da in-
de certa forma, dentro de uma perspectiva históri- fluência de tal episódio no direcionamento das car-
co-social e estética, entender a natureza específica reiras intelectuais dos envolvidos. Nos limites desta
da experiência audiovisual como interface espaço- resenha, pretende-se alinhavar os últimos aspectos
temporal, em que se entrechocam o tempo das nar- mencionados, buscando atribuir à obra de estréia
rativas, a linguagem de imagens visuais e o sujeito seu peso específico no desenrolar da trajetória do
projetado nesse jogo, que não é apenas o sujeito do autor.
discurso fílmico, recurso interno do texto como re- Na divisão do trabalho intelectual entre o gru-
lação de enunciação. É, também, corpo social e his- po de jovens alunos da Faculdade de Filosofia da
toricamente em processo. Como afirma o próprio USP que funda a revista em 1941, Ruy Coelho é
crítico: “Para existir em sociedade, em especial no aquele que não tem uma função específica: para fi-
império do marketing e da competição, precisamos car no núcleo central, lembremos que Antonio Can-
criar a cena, estar disponíveis diante de um olhar dido trata de literatura, Paulo Emílio Salles Gomes
que nos toma como objeto, nos oferecer como es- de cinema, Décio de Almeida Prado de teatro; a Ruy,
petáculo, cumprindo os protocolos de sua geome- o mais jovem, coube o papel do curinga (conforme
tria e de seu desempenho. Há variadas formas dessa a expressão assumida pelo próprio) que, além desses
geometria e de seus componentes, lugares específi- temas, cuida ainda de erigir uma teoria da crítica,
cos de manifestação que se mesclam ao mundo prá- ligada em sua visão à filosofia e à estética, e via de
tico e se expandem sem fronteiras claras no dia-a- regra articulada com a análise substantiva das obras.
dia, no núcleo familiar, nos confrontos em socieda- É talvez essa ausência de uma determinação mais
de, em tudo que a crítica cultural já observou sobre específica, correlata à busca de um caminho pessoal,

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Resenhas

que dá a ver como se faz o entranhamento da socia- juízo. Q uanto ao primeiro, a sugestão é não mais de
bilidade vivida no texto. acúmulo, mas de ausência de subjetividade que dis-
Sob esse aspecto, o longo ensaio sobre a obra de solveria a obra ao reduzi-la à configuração social de
Proust que abre o volume (publicado no primeiro origem. A solução, segundo o autor inspirada em
número de Clima, em maio de 1941) interessa so- Hegel (que, de resto, é a referência teórica mais pre-
bretudo pelas escolhas de filiação que ora revela, ora sente no livro) e em Sartre, consiste em encontrar o
deixa entrever. Precisamente, refiro-me aqui à recu- ponto de vista do autor para, pondo-se assim na obra,
sa do pensamento de Bergson como baliza de com- apreender seu movimento imanente e revelar sua
preensão do romance proustiano, contra a vertente essência – como a revelação da essência é tradicio-
que vê na recriação do real pelo pensamento como nalmente tarefa da filosofia, o novo método, que há
condição de sua realidade, sugerida no Em busca do de superar todos os outros, é batizado de crítica filo-
tempo perdido, a realização literária da identificação sófica. Claramente, tal construção teórica correspon-
entre realidade da consciência e experiência da du- de à necessidade de fundação de um novo lugar no
ração preconizada pelo filósofo. Na análise de Coe- campo intelectual, eqüidistante da cultura artístico-
lho, tal visão é preterida em favor do racionalismo literária dos criadores e da cultura científica da
dos discípulos de Kant,cuja concepção de conheci- objetivação plena da obra; entre a herança crítica
mento estaria mais próxima de Proust.Vale assinalar modernista e os limites do rigor acadêmico. Nesse
que tal corrente, conhecida como neo-criticismo sentido, o artigo de Ruy Coelho procura contribuir
francês, serve de base filosófica à sociologia de Dur- para realizar o que enuncia, consolidando o projeto
kheim, que não por acaso argumenta sobre a natu- coletivo de que se fez porta-voz.
reza social do tempo e vê na crítica à orientação es- A polivalência de Coelho (ao longo dos artigos
pacializante da inteligência que impediria a apreen- o leitor encontra ainda textos sobre música, cine-
são do real como duração uma clara deriva de Bergson ma, política) funciona então no registro da não-
em direção ao irracionalismo. O u seja, nesse movi- especialização adequada às formulações mais abran-
mento, o jovem aluno de ciências sociais acena si- gentes, que no nível expressivo resolve-se no ma-
lenciosamente para a escola francesa de sociologia e nejo de um efeito de erudição obtido por meio de
reivindica sua adesão a um racionalismo que pon- recursos como o controle de uma linguagem esté-
tua todos os textos do livro, e que para além da es- tica inespecífica mas dúctil. Por exemplo, neste trecho
colha teórica sanciona a adoção de um tom elevado que se refere a um romance: “A palheta do autor
no estilo como marca de competência, mas retendo acha-se singularmente enriquecida nesta obra. Aban-
a ambigüidade de filiação disciplinar na ausência de donou o claro-escuro em que era mestre. Seu es-
menção e de uso do aparato sociológico de crítica. tilo se coloriu de várias cambiantes novas pela ne-
Procedimento semelhante é usado no artigo de cessidade de descrição do mundo exterior em seus
junho de 1942 (número10 de Clima), “Introdução aspectos pitorescos” (p. 56). O u ainda no comen-
ao método crítico”, plataforma de trabalho ancora- tário sobre a relação entre música e pintura no
da na dupla recusa dos estilos científico e impressio- filme Fantasia de Disney.
nista de crítica. Ao último, assimilado imediatamen- A consideração da música brasileira revela outro
te à produção da geração modernista (cujo nome mecanismo tendendo ao mesmo efeito, que consiste
emblemático é o de Mário de Andrade, citado como em desqualificar esteticamente a tradição popular,
exemplo), Coelho reprova a excessiva projeção da no texto intitulado “Uma voz na platéia”, em cujo
interioridade do crítico, nublando a objetividade do final o autor se escusa do petulante de sua atitude

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Resenhas

pela intenção de interpretar os desejos da platéia – é Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à brasileira.
sua a voz que fala em nome dos que se calam. Nou- São Paulo, Edusp/Orion, 2004, 296 pp.
tro lance, sua voz volta-se à fustigação de outro ícone
da geração anterior, O swald de Andrade, cujo ro- Yvonne Maggie
mance Os condenados é impiedosamente desqualifi- Professora titular de Antropologia da UFRJ
cado, não sem algum espírito de cálculo, conforme
deixa entrever no último parágrafo do texto:“Não se Espiritismo à brasileira começa com um fascinante re-
doa O swald com as críticas, talvez severas em exces- lato da presença de Francisco Cândido Xavier, o
so. Achei meu dever de moço exprimir a opinião famoso médium Chico Xavier, no programa Pinga
sincera acerca desse livro de mocidade” (p. 81). Fogo da TV Tupi em 1971, em um evento inédito e
O u seja, o arsenal crítico do jovem que julga é ao vivo: a transmissão de uma sessão mediúnica.
comparativamente superior ao arsenal literário do Coincidentemente, esse foi o mesmo ano em que o
jovem criador objeto de sua crítica, o que antecipa a exu Seu Sete da Lira, incorporado na médium dona
consagração daquele mediando-a com a posterior Cacilda, incendiou a cidade do Rio de Janeiro com
consagração deste. Note-se que, nesse e nos outros sua aparição espetacular, também ao vivo, nos pro-
escritos reunidos, Coelho faz uso de demonstrações gramas de Chacrinha e de Flávio Cavalcanti.
explícitas de erudição como constantes remissões a O livro dedica-se a entender a reinterpretação
uma ampla gama de autores consagrados e citações que se fez no Brasil do espiritismo francês de Allan
no original em diversas línguas, o que reforça a le- Kardec. Seus escritos, e os de outros autores euro-
gitimação do que diz. peus espíritas na segunda metade do século XIX,
Sem dúvida é a competência intelectual do au- venderam quase tantas cópias quanto A origem das
tor que garante o êxito da empreitada. De fato, a espécies de Darwin.
revista serviu de veículo institucional de expressão Mas enquanto na Europa a doutrina de Allan
para os novos críticos, que por meio dela ingressam Kardec minguou, no Brasil se manteve muito viva.
na crítica cultural em órgãos da grande imprensa, Stoll aborda o espiritismo em terras brasileiras por
suscitam a admiração de nomes como Sérgio Milliet meio da análise da vida de Chico Xavier, falecido
e Vinicius de Morais, e logram viabilizar suas carrei- em 2002, e, como contraponto, do estudo da traje-
ras. Mas a ambivalência da posição construída fará tória de outro seguidor do espiritismo de inspira-
com que sua estabilização dependa em maior ou ção kardecista tupiniquim ainda atuante, Luiz An-
menor grau do ingresso como professor na mesma tonio Gaspareto. A autora argumenta que cada um
universidade em que todos se conheceram como desses personagens incorpora uma das duas verten-
alunos, deslocando para o interior do campo acadê- tes, ou versões, brasileiras da doutrina kardecista. De
mico o embate vivido anteriormente, mas agora sem um lado, o santo que se afasta do mundo e que, como
a mesma unidade. O fato de Ruy Coelho integrar- todos se lembram, era uma figura quase sem corpo
se tardiamente à Faculdade de Filosofia, em 1953, apesar de sempre ter se apresentado com enorme
após formação como antropólogo nos Estados Uni- cuidado pessoal, com os cabelos bem penteados es-
dos, num período de oito anos que começa imedia- condendo a calvície. De outro, o santo que se imis-
tamente após o final da revista em 1945, ganha nova cui nas coisas do mundo e se apresenta com beleza
luz diante da experiência do jovem curinga que o como que pós-moderna, com brincos na orelha e
livro permite acompanhar. músculos à mostra. As fotos da edição cuidadosa
mostram claramente esses dois tipos com caracterís-

338 Tempo Social – USP


Resenhas

ticas físicas e representações corporais de santidade do bon vivant ou, na interpretação de Stoll, se “[...]
contrastantes. aproxima da teodicéia da boa fortuna”, no sentido
Segundo Sandra Jacqueline Stoll, Chico Xavier weberiano. O primeiro pregava o asceticismo, o se-
afastou-se do cientificismo da doutrina de Kardec gundo defende a “ética da prosperidade”. Ainda se-
ao se aproximar do catolicismo com seu “discurso gundo a autora, ser espírita para Chico Xavier re-
das virtudes” e da noção de santidade cristã. Na ar- presentava o sofrimento, o sacrifício, a renúncia, a
gumentação da autora, essa transformação foi uma pobreza e a caridade. Para Gaspareto, representa a
das razões do sucesso do espiritismo de inspiração felicidade, o prazer, a auto-realização, a prosperidade
kardecista no Brasil. A vida de Chico Xavier é um e a auto-ajuda. O livro termina sugerindo que esses
exemplo de vida monástica, pois o médium renun- dois“[...] modelos éticos convivem no contexto es-
ciou à sexualidade e aos bens materiais. Personifi- pírita tensionando-se mutuamente, sem que, contu-
cou assim um tipo ideal de espírita que representou do, seja possível prever o desenlace”.
esse ethos religioso. Chico Xavier gozou de enorme Independentemente dos possíveis rumos futuros
fama nacional e não há cidadão brasileiro que não dessa tensão no espiritismo brasileiro, a leitura do li-
se lembre de sua figura emblemática. Psicografava vro de Sandra Jacqueline Stoll suscita questões ainda
cartas de vítimas de assassinatos, peças que foram mais difíceis de serem respondidas. Não fica claro,
incorporadas a processos criminais. Também psico- por exemplo, por que Kardec, tão popular na França
grafou poemas de Augusto dos Anjos e Alphonsus do século XIX, mas que certamente não revolucio-
de Guimaraens (alguns reproduzidos no livro), en- nou o mundo europeu como o fez Darwin, teve tan-
tre outros, e escritos de Humberto de Campos, a to sucesso aqui. Diferentemente da Europa, os espí-
ponto de sua viúva ter movido um processo por ritos e os espíritas foram centrais na vida brasileira,
plágio contra o médium e a Federação Espírita. Um pelo menos até bem recentemente. Hoje em dia seu
amigo meu, poeta e descendente de um dos escri- lugar no espaço público, sobretudo a televisão, pare-
tores psicografados por Chico Xavier, comentou ce ter sido tomado pelo seu inimigo mortal, as igre-
laconicamente: “Se é verdade que os poetas depois jas neo-pentecostais, que no seu afã de pregar uma
da morte continuaram fazendo poesia, eles piora- teologia da prosperidade procuram relegar os espíri-
ram muito!”. tos ao status de emissários do demônio.
A crítica a essa versão de santidade é construída
por meio da figura contrária de Gaspareto. Visto
como dissidente pelos seguidores de Allan Kardec, o Caleb Faria Alves, Benedito Calixto e a constru-
médium pinta quadros em sessões alucinadas nas quais ção do imaginário republicano. Bauru, Edusc,
incorpora Picasso, Monet e Toulouse-Lautrec, entre 2003, 344 pp.
outros tantos. (Não há notícia de processo de plágio
nesse caso!) Uma dessas sessões, na qual Toulouse- Ferdinando Martins
Lautrec assinou as telas, foi transmitida pela TV Cul- Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo
tura em 1990. Gaspareto, segunda a autora, faz uma
nova síntese na qual entram elementos do espiritis- Em artes plásticas, a expressão just milieu é utilizada
mo, do “neo-esoterismo” ou da “nova era”, e de prá- para fazer referência aos pintores que ficaram no
ticas de auto-ajuda. meio do caminho entre as manifestações acadêmi-
Chico Xavier representou, assim, a versão do cas do século XIX (do neoclássico às vertentes do
renunciante, enquanto Gaspareto expressa a versão impressionismo) e as vanguardas do início do sé-

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Resenhas

culo XX. Entende-se que o que caracteriza a pro- nos mesmos moldes do ensino ministrado na Acade-
dução desses artistas é um certo descolamento das mia Imperial. O autor analisa como, nessa ocasião, a
discussões em torno do fazer artístico da “arte pela cidade de São Paulo se consolida como um dos
arte”, o qual, por sua vez, teria engendrado debates principais mercados nacionais de obras de arte, ao
no campo cultural, possibilitando assim o surgimento mesmo tempo em que ocorrem mudanças com re-
da crítica de arte como a conhecemos hoje, mas sem lação aos temas, à formação dos artistas, às fontes de
fazer eclodir, no entanto, qualquer reação suficien- financiamento e às maneiras de apreciar e consumir
temente febril e virulenta para romper com a tradi- a produção artística. Nesse sentido, o pesquisador
ção. Como toda definição, a expressão pode tornar- volta-se contra autores que afirmam que a Repúbli-
se um lugar-comum ou um conceito guarda-chuva, ca no Brasil não produziu uma estética própria nem
capaz de abrigar generalizações que não dão conta buscou redefinir politicamente o uso da já existente.
das particularidades de cada caso. Para Alves, a criação do Museu Paulista erige-se
O livro Benedito Calixto e a construção do imaginá- como marco fundante das mudanças acima elencadas,
rio republicano, de Caleb Faria Alves, vem justamente caudatárias em larga medida das proposições gerais
tratar da singularidade de um artista que é, tradicio- do positivismo:“A República estava sendo construída
nalmente, arrolado na “longa lista de pintores en- a partir do receituário positivista. Calixto [...] co-
globados pelo termo just milieu” (p. 277). Para tanto, nhecia as máximas positivistas e procurou propa-
o autor veste-se de uma armadura conceitual ex- gandeá-las” (p. 295). Mesmo admitindo que na épo-
traída da sociologia francesa, fortalecida com con- ca a sociedade brasileira ainda não tivesse atingido o
tribuições vindas da fotografia, da arquitetura, do seu grau máximo de evolução, Calixto concebe o
urbanismo, da etnologia, da ciência política e da his- vitral do Palácio da Bolsa de Café em Santos como
tória intelectual. Alves arregimenta conhecimentos um libelo progressista que traduz a esperança em um
diversos, costurando-os com o que Maria Arminda país que caminha a passos largos para a sociedade da
do Nascimento Arruda chama, no prefácio da obra, ordem almejada por Comte. Esse vitral é o último
de “fina artesania” (p. 17). trabalho de fôlego empreendido pelo artista. Até
O resultado não poderia ser menos denso. Mes- chegar a ele, Caleb Faria Alves traça um percurso
mo operando com um recorte específico, o livro tra- que vai do início da trajetória do pintor santista na
ça um panorama das mudanças ocorridas no campo carreira artística até o reconhecimento entre seus
das artes plásticas no Brasil entre a Proclamação da pares na fase madura.
República e a Semana de Arte Moderna de 1922, O capítulo 1,“Ingressando na carreira artística”,
datas que contemplam as transformações verificadas traz uma reconstrução minuciosa da biografia do
desde a débaclê da Academia Imperial de Belas Artes, pintor, relatando as mudanças no cenário paulista, a
que com a República passa a ser chamada de Escola falta de capital cultural e social de Calixto e as flu-
Nacional de Belas Artes, até o evento no Teatro Mu- tuações do artista diante dos diferentes tempos do
nicipal de São Paulo, que alinhou as aspirações de modernismo em São Paulo. Sua origem poderia
certos artistas da vanguarda brasileira com os eflú- relegá-lo a simples ilustrador ou, quando muito, a ar-
vios modernistas que emanavam da Europa. tesão, porém o livro nos mostra como a proximidade
Acompanhando a trajetória do pintor e historia- com os clubes dramáticos faz com que o pintor seja
dor santista Benedito Calixto, Caleb Faria Alves revê reconhecido pela sociedade santista, o que lhe aufere
a concepção existente de que a arte, nesse período, certo grau de distinção que possibilita sua vinda para
caracteriza-se por uma continuação do academismo São Paulo. Além disso, pequenos trabalhos propa-

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gandísticos fazem com que o artista se aproxime de No capítulo 3, “As fissuras da Academia”, Alves
comerciantes e políticos de Santos, o que lhe garante polariza a discussão em torno das figuras emblemá-
um aumento de capital social. Caleb Faria Alves dis- ticas de Pedro Américo e Victor Meirelles. A polari-
tancia-se o suficiente para perceber as estratégias e os zação é um procedimento válido como recurso
cálculos empreendidos por Calixto. Em São Paulo, explicativo, mas não reflete a complexidade do mo-
ele se aproxima de Grimm e do desafio da pintura ao mento histórico e muito menos as relações internas
ar livre. A ousadia lhe confere uma aura vanguardista do campo das artes plásticas. Por essa razão, o autor
e lhe rende o prêmio de viajar à França nos inícios da lança mão de outros temas que relativizam a discus-
década de 1880. são. Em especial, trata da posição da pintura de paisa-
O capítulo 2,“Um caiçara em Paris”, é um pou- gem na hierarquia acadêmica, da emergência de um
co problemático. O autor busca mostrar como o imaginário que valora positivamente as figuras do
pintor refletiu o aprendizado realizado na França, caipira e do caiçara, do gosto burguês pela cópia e da
mas parece que o ano passado na Academie Julian consolidação de São Paulo como pólo artístico da
foi em vão. Em vez disso, Caleb Faria Alves atribui República, em oposição à centralidade do Rio de Ja-
um peso muito maior à movimentação interna da neiro durante o Império. Além disso, o texto traz ri-
Academia, em especial ao debate em torno de Manet cas análises de quadros como Independência ou morte,
e Courbet. Aqui caberia uma análise mais apurada de Pedro Américo, e Inundação da várzea do Carmo,
dos quadros. Mais adiante, no capítulo 3, o autor do próprio Calixto.
destaca o abandono do fini como estratégia de opo- No quarto e último capítulo, a discussão volta-se
sição ao ensino acadêmico. Esse procedimento, no para as“Imagens da transformação”, quando Calixto,
entanto, deve ter sido aprendido por Calixto na sua já pintor maduro, desempenha um papel ativo na
passagem pela França, uma vez que é traço distinti- consolidação de um ideal republicano que inventa
vo da pintura de Manet e de outros impressionistas. uma tradição para o Brasil a partir do Estado de São
O pesquisador afirma, todavia, que “não fazia senti- Paulo. É nessa fase que o pintor volta para as mari-
do ser mandado diretamente à Europa por um ba- nhas e, na pintura histórica, ganha relevância a paisa-
rão do café, partindo do Estado berço do partido gem da Serra do Mar. Seus trabalhos adquirem maior
republicano, para seguir exatamente os mesmos pas- complexidade e valor, o que Caleb Faria Alves atri-
sos dos agraciados com as bolsas de estudo concedi- bui a um novo estatuto do moderno característico
das pelo Governo Imperial; não fazia sentido, tam- das primeiras décadas do século XX. O colecionis-
pouco, se filiar a uma escola em franca oposição à mo e a gestão de Taunay no Museu Paulista são de-
república burguesa, sendo ele mesmo um protegido terminantes para novas abordagens da história do
da burguesia paulista ascendente” (p. 122). Nesse Brasil, e Calixto submete seu trabalho artístico a suas
momento, a obra centra-se no fato de Calixto ter pesquisas como historiador. No entanto, os novos há-
sido financiado por barões do café e deixa de lado a bitos visuais que já chegavam ao Brasil, em especial os
movimentação interna do campo das artes plásticas, decorrentes da pintura impressionista, relegam o ar-
cujas mudanças nem sempre acompanham a con- tista a uma posição menos nobre no campo cultural.
juntura político-econômica. O capítulo carece, ain- É em função desse desvio – a perda de prestígio
da, de uma definição mais precisa do naturalismo, no interior do campo das artes plásticas – que Caleb
sem a qual é impossível depreender algum significa- Faria Alves constrói sua tese: o mérito do autor está
do sociológico para os termos “acadêmico”, “ro- em mostrar as contradições internas do campo, ao
mântico” e “realista”. mesmo tempo em que relativiza essa movimenta-

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Resenhas

ção em função da conjuntura político-econômica.


O autor destaca que, mais do que um ideal republi-
cano, Calixto tem uma maneira paulista de ver o
Brasil, e os desdobramentos desse ato fundador mar-
cam grande parte da discussão sobre as artes plásti-
cas no país durante o século XX.

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